Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
172/20.8T8VLF-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: EXECUÇÃO
PERSI
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
Data do Acordão: 06/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA NOVA DE FOZ COA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 14.º, N.º 2, DO DECRETO-LEI N.º 227/2012, DE 25 DE OUTUBRO, E ARTIGO 576, N.º2, DO C.P.C.
Sumário: I -A inclusão de cliente bancário, consumidor, no PERSI é obrigatória nas situações previstas no artº 14 nº2 do D.L. 227/2012, ficando a instituição de crédito proibida de, no seu decurso e até à extinção deste procedimento, agir judicialmente contra o cliente bancário com vista à recuperação do crédito, por o prévio cumprimento do PERSI ser condição de admissibilidade da acção (declarativa ou executiva).

II - Invocada a excepção dilatória inominada de falta de integração no PERSI, o ónus de alegação e prova dos factos respeitantes à integração do cliente bancário no PERSI e da sua extinção, cabe ao exequente embargado, constituindo a falta de demonstração destes requisitos uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de COIMBRA:


RELATÓRIO

Intentada execução pela C... contra AA, para pagamento da quantia de € 9751,16, constituindo o título executivo, livrança por si subscrita e avalizada pela executada BB e contrato de subscrição de cartão de crédito, veio o executado AA deduzir embargos, invocando:

- o preenchimento abusivo da livrança exequenda, por parte da exequente;

-a não junção do título que subjaz à livrança e respectivos documentos comprovativos da dívida;

-a violação dos deveres de informação no que se reporta à conta cartão;


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Notificada para contestar veio a embargada contestar impugnando o preenchimento abusivo, mas alegando que a livrança constitui título executivo, com independência da relação causal e que ao executado foram prestadas todas as informações referentes aos contratos celebrados com o banco.

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Mediante articulado autónomo veio o embargante invocar a inobservância do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) no que toca à conta cartão.

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Admitida a invocação desta exceção, por se tratar de questão de conhecimento oficioso, o embargado veio alegar que “O título executivo consubstanciado na livrança junta aos autos não se enquadra no contexto dos contratos subjagados ao regime do Dec. Lei 227/2012 porque o mutuário não se qualifica como consumidor.” e que “Por fim e sem prescindir, Sempre se dirá que o mutuário (o executado AA) foi integrado em PERSI, nomeadamente quanto ao cartão de crédito nº ...12, objecto também de execução nos autos principais”.


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Após, realizou-se audiência de discussão e julgamento, finda a qual foi proferida sentença que decidiu julgar a “presente oposição à execução mediante embargos de executado deduzida pelo Embargante AA parcialmente procedente e, em consequência:

- Determina-se a prossecução da execução de que estes autos constituem um apenso, no que toca à livrança subscrita pelo executado AA, emitida em 2014/12/16 e com data de vencimento de 2020/02/21, no valor de 4.365,04€ (quatro mil trezentos e sessenta e cinco euros e quatro cêntimos)

- Absolve-se AA da instância e determina-se a extinção da execução movida contra o mesmo, no que toca à conta cartão n.º ...12.”


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Não se conformando com essa decisão, veio a embargada dela interpor recurso, concluindo da seguinte forma:

“1ª- O artigo 3º, alínea h), do DL nº 227/2012, define o suporte duradouro como qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas.

2ª- Se a intenção do legislador fosse a de sujeitar as partes do procedimento extrajudicial de regularização das situações de incumprimento a comunicar através de carta registada com aviso de receção, tê-la-ia consagrado expressamente.

3ª- Não definindo a lei a necessidade da comunicação ser por carta registada com aviso de recepção, não compete à instituição de crédito o ónus de provar a recepção.

4ª- No âmbito do PERSI é admissível o envio da comunicação por correio simples e por meios electrónicos através de endereço de e-mail ou por via da adesão ao sistema on line a que o cliente bancário adere.

5ª- Não tendo sido impugnadas a carta datada de 14/04/2018 a mesma tem o condão de provar a sua existência e envio ao embargante, tanto mais que a embargada estava impossibilitada de sobre a mesma produzir prova testemunhal, por esta já ter sido produzida quando a mesma foi junta aos autos.

6ª- Deverá, assim, alterar-se a matéria de facto não provada constante da alínea e) dos factos para outra em que se dê como provado que “ Ponto 12 dos Factos Provados: “Pela missiva datada de 14.04.2018, a embargada comunicou ao embargante que havia procedido naquela data à integração no PERSI, nomeadamente quanto ao cartão de ...12 e que, para beneficiar dos direitos consignados no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, deveria dirigir-se a uma agência da Embargada até ao dia 24.04.20118, foi expedida pelo Banco Embargado para a morada « Rua ...»”.

7ª- Deste quadro factual resulta inequívoco que se deu cumprimento ao disposto nos artºs 14º a 20º do Dec. Lei 227/12 de 25 de Outubro, devendo ser revogada a douta Sentença e deliberado que a execução deve prosseguir por inexistência de excepção de inexigibilidade da cobrança coerciva.

8ª- Entre outros, foram violados os artigos 14º, nº 4 e 18º, nº 1, alínea b) do DL 227/2012.

            Nestes termos e mais de direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso de Apelação ser julgado procedente e, destarte, alterar-se a douta Sentença por outra que julgue não verificada a excepção de ausência de PERSI e determine seja proferida decisão de mérito sobre a causa de pedir e pedido dos embargos de executado.

            Assim se fazendo inteira e sã

            JUSTIÇA.”


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Por sua vez o embargante veio interpor contra-alegações, delas constando o seguinte:

“A. Salvo melhor e douto entendimento, carece de razão a Recorrente, C....

B. Pois, tal como é referido pelo Tribunal a quo, a Recorrente (Embargada) competia-lhe fazer prova, primeiro, da existência da declaração e, segundo, do envio desta e da sua recepção pelo embargante . Cfr. Ac. Trib. Rel. Évora de 16.12.2021 ( “A simples junção aos autos das cartas de comunicação e a alegação de que foram enviadas à executada, não constituem, por si só, prova do envio e recepção das mesmas pelo cliente bancário) e Ac. do Trib. Da Rel. Coimbra de 07.11.2017 ( “cabe ao credor dar conhecimento à contraparte da abertura e do encerramento do PERSI, impendendo sobre si o ónus da alegação e prova da respetiva notificação.

C. Como muito bem sabe a Embargante (Instituição Bancária), com obrigação de saber, a prova da existência das missivas (forma da declaração) é uma coisa e, a prova do seu envio e da sua recepção pelos destinatários, é uma outra coisa. Cfr. Ac. Rel. Lisboa de 05.01.2021 e Ac. Rel. Évora de 11.02.2021.

D. E, tal como refere o Tribunal a quo a Recorrente não deu cumprimento a esse ónus de alegação e prova, isto é, não fez prova, seja do envio da carta, seja, da sua recepção pelo Embargante.

E. Esquece ainda a Embargada que foi produzida prova testemunhal nas duas audiências de discussão e julgamento, tendo as mesmas referido, em particular a testemunha CC, que tal notificação não ocorreu.

F. Também não corresponde à verdade que o Embargado não tenha impugnado o documento, pois, o Embargante, no seu requerimento datado de 27.10.2021 com a referência ...03, impugna tal documento, quando declara que “ a exequente, para além de não o ter interpelado para cumprir (pagar), também não lhe deu conhecimento, e estava obrigada a fazê-lo (Cfr. artigo 21º, n.º 3 do DL 227/2012), de que, também nessa qualidade (de fiador) podia solicitar a sua integração no PERSI, bem como sobre as condições para o seu exercício. Logo, a exequente (C...), violou normas de caracter imperativo, que configuram, também, execpções dilatórias atípicas ou inominadas, por falta de pressuposto (antecedente) da instauração da acção. Cf. neste sentido, o citado Acórdão Tribunal da Relação de Évora de 06.10.2016, Proc. 4956/14.8T8ENT-A.E1.

Termos que, atento o exposto, deve o executado ser absolvido da instância, pois “ Sibi imputet, si, quod saepius cogitare poterat et evitare, non fecit”.

G. A alegação por parte do Embargante de que não lhe foi dado conhecimento do início e extinção do PERSI, configura em si mesma uma impugnação dos documentos posteriormente juntos, uma vez significar que não os recebeu.

H. Mas, ainda que o Embargante pretendesse responder, como muito bem sabe a Embargada, tal estava-lhe vedado pelo nosso Código do Processo Civil, pelo que, não estando prevista legalmente a existência de tal resposta, nem tendo sido imposta pelo juiz, não pode nem tem a consequência da admissão por acordo dos factos.

I. Assim, quanto mais não fosse, perante a posição do Embargante, a Embargada estava obrigada processualmente a fazer prova do envio e da recepção das missivas pelo Embargante, coisa que manifestamente não fez.

J. Em suma, pretende a Embargada (Instituição Bancária) subverter os princípios básicos do Direito, quando defende ser suficiente fazer-se prova da existência de um papel (carta), sem curar de demonstrar e provar que a mesma foi efetivamente enviada pelo correio, e, essencialmente, se foi recepcionada pelo Embargante (Cliente).

K. Competia ainda à Embargada, C..., para além da já apontada alegacã̧o e prova da respectiva notificação e recepção do PERSI, demonstrar ter cumprido os deveres de informação, esclarecimento e proteção, que deu uma oportunidade real de negociação aos executados - Cfr. artigo 11º -A, n.º 1º, artigo 11º- B, n.º 1, , artigo 15º, n.º 6º, artigo 17º, n.º 3 (comunicação da extinção do PERSI, descrevendo o fundamento legal para essa extinção e as razões pelas quais considera inviável a manutenção desse procedimento)-, e não uma ilusória negociação, coisa que, como espelham os autos, não fez. Cfr. neste sentido Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 07.11.2017, Proc. 29358/16.8YIPRT.C1.

L. Mas ainda que academicamente se admita que a Embargada procedeu ao envio de tais cartas e que estas foram rececionadas, o que não se concede, facilmente se verifica que as mesmas não estão conformes com as exigências que o DL. 227/2012 impõe às instituições bancárias. Senão vejamos:

M. Contrariamente ao alegado pela C..., as missivas por si referidas não cumprem as normas imperativas do DL 227/2012, em particular, as constantes dos artigos 16º, n.º 6 e 17º, n.º 3 e 4 e artigo 20º, n.º 1 (falta o relatório de avaliação da capacidade financeira, bem como o registo das razões que conduziram à não apresentação de proposta), pelo que, também por estas razões não houve extinção do PERSI (artigo 18º, n.º 4 do referido diploma).

N. Impõe ainda aquele diploma legal, no seu n.º 1 do artigo 20 que “as instituições financeiras criem, em suporte duradouro, processos individuais para os clientes abrangidos pelo PERSI, os quais devem conter todos os elementos relevantes, nomeadamente as comunicações entre as partes, o relatório de avaliação da capacidade financeira desses clientes e quando aplicável, as propostas apresentadas aos mesmos, bem como o registo das razões que conduziram à não apresentação de propostas, e ainda a avaliação relativa à eficácia das soluções”.

O. E que, devem “conservar os processos individuais durante cinco anos subseqüentes da adoção dos procedimentos do PERSI”.

P. Ora, a Embargada para além de não ter feito prova da existência desse processo individual e dos elementos que o devem compor - processo de abertura, tramitação e encerramento do PERSI - no caso dos autos, estava ainda obrigada a guardá-los, em suporte duradouro, até ao ano de 2023.

Q. Pois, como muito bem sabe a Embargada (Instituição Bancária), ou pelo menos com tal obrigação, incumbia-lhe fazer prova nos autos quer da da abertura, tramitação e encerramento do PERSI, quer da sua comunicação e recepção ao Embargante (Cliente).

R. Pois, como se disse supra, estava obrigada a Embargada (Exequente/Instituição Bancária) a provar que cumpriu aquelas obrigações – deveres de informação, esclarecimento e proteção, que deu uma oportunidade real de negociação ao executado (embargante/cliente), e não uma ilusória negociação, dando-lhe conhecimento da abertura, tramitação e encerramento do PERSI, coisa que, como espelham os autos, não fez.

Termos em que deve improceder o Recurso apresentado pela Recorrente,

Assim se fazendo a costumada, JUSTIÇA.”

 


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QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as questões a decidir consistem em apurar:

a) da impugnação da matéria de facto;

b) se foi cumprida pelo exequente a obrigação de integração do embargante no PERSI;


***

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido é a seguinte:

4.1.1. Factos Provados

Com relevo para a decisão da causa, reputam-se provados os factos seguintes

1. No dia 11 de Dezembro de 2014, foi celebrado um acordo escrito, denominado “Contrato de Abertura de Crédito”- linha específica “Micro e Pequenas empresas” entre a embargada, o aqui embargante como cliente, BB, como avalista e P...SA, na qualidade de sociedade gestora e legal representante do Fundo de Apoio ao Financiamento à Inovação.

2. O embargante celebrou o acordo aludido em 1. como empresário em nome individual, o qual foi concedido para reforço do fundo de maneio enquadrado numa linha de apoio a micro e médias empresas, sendo que o montante disponibilizado através do mesmo, foi de € 25.000,00 e do mesmo consta, para além do mais, que o executado se confessou devedor à aqui exequente desse montante, nos termos aí clausulados;

3. O acordo escrito referido em 1. foi titulado por uma livrança, assinada e avalizada em branco, a qual foi apresentada à execução de que estes autos constituem um apenso, contendo, além do mais, os seguintes dizeres:

- Importância – 4.302,80€;

- Vencimento – 2020-02-21;

- Local e Data de Emissão – ...- 2014-12-16;

- Valor: PT ...91;

- Assinatura(s) do(s) Subscritor(es): contém uma assinatura aposta onde, por baixo da mesma, consta o nome do embargante;

- No verso, a seguir à expressão “ Bom por aval ao subscritor” mostra-se aposta a assinatura de BB;

4. Resulta da cláusula 24ª (livrança em branco) do acordo escrito referido em 1, seguinte:

« Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes deste contrato, o CLIENTE e a AVALISTA atrás identificada para o efeito entregam à C..., neste ato, uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, subscrita pelo primeiro e avalizada pela segunda, e autorizam desde já a C... a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria C..., tendo em conta, nomeadamente o seguinte:

a) A data de vencimento será fixada pela C... quando, em caso de incumprimento pelo DEVEDOR das obrigações assumidas, a C... decida preencher a livrança;

b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança;

c) A C... poderá inserir cláusula em protesto e definir o local de pagamento;»

5. A livrança aludida em 3. foi preenchida pela embargada.

6. No dia 21.02.2020, a exequente enviou uma missiva ao executado a comunicar-lhe: « (…) nos termos contratados consideramos vencida nesta data a totalidade do crédito, tendo sido fixado para o dia 21 de Fevereiro de 2020 o vencimento da livrança, subscrita por AA e avalizada por BB que preenchemos pelo valor de 4 302.80€ correspondente ao valor total do crédito à data do vencimento fixado a que acrescem juros de mora e legais encargos até integral pagamento.»

 

7. No dia 3 de Junho de 2011, embargante e embargado celebraram o acordo escrito, denominado “Pedido de Adesão”, nos termos do qual, para além do mais, foi concedido, a seu pedido, à aqui embargante um cartão de crédito, “....”, vinculando-se a embargante a liquidar o saldo existente no extracto atinente ao referido cartão de crédito nos moldes aí acordados.

8. O limite de crédito da conta cartão n.º ...12 foi acordado, em 03.06.211, pela quantia de 6.000,00€.

9. Em 03-08-2018, o limite de crédito da conta cartão n.º ...12 era de 2.500,00€, tendo a embargada emitido um extracto da referida conta, comunicando ao embargante que a «conta de crédito foi cancelada com cobrança sujeita a contencioso. (…) O seu limite de crédito foi excedido. Regularize a situação pagando o valor indicado.».

10. A 03-08-2018, o embargante tinha para com a embargada um saldo em dívida de €5.473,05.

 

11. As condições do pedido de adesão de cartão de crédito foram explicadas ao embargante.

4.1.2. Factos Não Provados

a) O embargante AA foi integrado em PERSI, nomeadamente quanto ao cartão de crédito nº ...12.

b) O embargante só teve conhecimento da Proposta de Adesão a Cartão no momento em que o subscreveu, desconhecendo o concreto dia em que foi durante o mês de Junho de 2011.

c) O embargante não tem conhecimentos técnico-jurídicos para interpretar quais as consequências jurídicas do escrito em b), uma vez estarmos perante uma linguagem extremamente técnica e fechada, com significados muito próprios, que o próprio funcionário da Exequente não conseguiria atingir e muito menos explicar.
O Tribunal não se pronuncia quanto ao demais alegado por conter matéria de direito, e como tal conclusiva, ou irrelevante para a decisão da causa.”


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IMPUGNAÇÃO DA MATÉIA DE FACTO

Pugna o recorrente, pela alteração da matéria de facto eliminando-se a matéria de facto não provada constante da alínea e) dos factos e, aditando outro ponto que dê como provado que “Ponto 12 dos Factos Provados: “Pela missiva datada de 14.04.2018, a embargada comunicou ao embargante que havia procedido naquela data à integração no PERSI, nomeadamente quanto ao cartão de ...12 e que, para beneficiar dos direitos consignados no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, deveria dirigir-se a uma agência da Embargada até ao dia 24.04.20118, foi expedida pelo Banco Embargado para a morada « Rua ...»”.
Para o efeito, alega que juntou com o requerimento de resposta à excepção de falta de integração no PERSI a carta remetida para notificação do seu cliente, não impugnada por este. Mais alega que a lei não impõe o envio de carta registada com aviso de recepção, sendo admissível o envio da comunicação por correio simples e por meios electrónicos através de endereço de e-mail ou por via da adesão ao sistema online por parte do cliente bancário.
Desta impugnação, resulta que o exequente/embargado funda a sua impugnação quanto à matéria em apreço, na não impugnação do documento em causa pelo embargante (nos termos do artº 364 nº2 do C.C.) e na ausência de forma especial para o cumprimento dos seus deveres de informação previstos no artº 14 do D.L. 227/2012.   
Ocorre que o embargado, labora em equívoco manifesto. Não só o documento em causa foi impugnado por requerimento de 18/11/2021, notificado por via electrónica ao embargado, como da sua não impugnação, não poderia resultar o facto que se pretende aditar. O ónus de impugnação refere-se aos factos alegados e aos documentos apresentados como meio de prova destes factos (artº 414 e 423, 574 nº1 e 587 do C.P.C.), mas a junção de meios de prova, ainda que documentais, não supre a alegação dos factos que estes se destinam a provar.
Ora, o exequente não alegou qualquer facto relativo à expedição e recepção do documento que juntou com o seu articulado, nem nenhum facto relativo à declaração ínsita no documento e à sua finalidade.
Nesta medida, ainda que o aludido meio de prova não tivesse sido impugnado, como foi, essa não impugnação para o caso seria inócua, pois que o exequente não alegou qualquer facto e não alegou o envio ao seu cliente da referida comunicação, nem o seu recebimento. (cfr. artºs 224 nº1 e 2 do C.C.)
Acresce que, se a informação ao cliente prevista no artº 14 nº4 do D.L. 227/2012, não exige forma especial, podendo ser feita por carta simples, impõe-se que seja feita prova de que foi efectivamente cumprido este dever de informação, cujo ónus se encontra a cargo do Banco exequente.
Tratando-se de uma declaração receptícia (cfr. artº 224 do C.C.), é necessário alegar e provar que esta declaração foi remetida e chegou (ou se presume ter chegado) ao seu destinatário.
Improcede assim a pretendida alteração da matéria de facto, sendo certo que, como se irá demonstrar, ao embargado não bastava alegar e provar que integrara este cliente no PERSI
 
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Insurge-se ainda o embargado contra a decisão que declarou extinta a execução no que se reporta ao saldo da conta cartão, por considerar que resultou provado que o embargante foi integrado no PERSI e notificado da sua inclusão neste procedimento.

A improcedência da impugnação da matéria de facto determina a improcedência total do recurso, por a prévia integração do PERSI e a extinção deste procedimento ser condição de procedibilidade da execução.

Com efeito, o DL nº 272/2012, de 25 de Outubro, em vigor desde 1 de Janeiro de 2013, além de instituir o Plano de Acção para o Risco de Incumprimento (PARI) para os devedores em vias de incumprimento de contratos de créditos, instituiu ainda um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), com o propósito de evitar que as instituições bancárias, confrontadas com situações de incumprimento já verificado desses contratos, possam desencadear, de imediato, os procedimentos judiciais com vista à satisfação dos seus créditos relativamente a devedores enquadráveis no conceito legal de «consumidor», na acepção que lhe é dada pela Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de Julho, alterada pelo Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril).

Nesta medida, as instituições de crédito ficaram obrigadas a promover um conjunto de diligências relativamente a clientes bancários em incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, no âmbito do chamado Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) (artigo 12.º e 14º do citado DL nº 272/2012, de 25 de Outubro), no qual «devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objectivos e necessidades do consumidor» (cfr. preâmbulo daquele diploma).

Assim sendo, este modelo de negociação previsto no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), visou não só assegurar uma concessão de crédito mais responsável, como prevenir e minorar os efeitos nocivos das situações de incumprimento, “estabelecendo um conjunto de medidas que (...) promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as actuais dificuldades económicas”.[3]

Este conjunto de medidas vinculativas tem como objetivo último, facilitar a obtenção de um acordo entre o cliente bancário e a instituição de crédito para regularização de situações de incumprimento.

Neste âmbito, estipulou-se a inclusão obrigatória do cliente bancário consumidor, neste procedimento, nas situações previstas no artº 14 nº2 do D.L. 227/2012, ou seja, nos casos em que

a) O cliente bancário se encontre em mora relativamente ao cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito e solicite, através de comunicação em suporte duradouro, a sua integração no PERSI, considerando-se, para todos os efeitos, que essa integração ocorre na data em que a instituição de crédito recebe a referida comunicação;

b) O cliente bancário, que alertou para o risco de incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, entre em mora, devendo, para todos os efeitos, considerar-se que a integração desse cliente no PERSI ocorre na data do referido incumprimento.”

Neste caso, “mantendo-se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31.º dia e o 60.º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa.” (nº1 do artº 14)

Iniciado este procedimento e no seu decurso, a instituição de crédito está proibida de:

-Resolver o contrato de crédito;

-Agir judicialmente contra o cliente bancário com vista à recuperação do crédito;

-Ceder o crédito ou transmitir a sua posição contratual a terceiros.[4]

O PERSI comporta assim três fases:

-a fase inicial, na qual a instituição bancária, após verificar que o cliente se encontra em mora, informa-o do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida, desenvolve as diligências que considere necessárias para apurar as razões do incumprimento, após o qual integra-o obrigatoriamente no PERSI entre o 31º e o 60º dia, subsequente á data de vencimento das obrigações em causa; (artºs 13 e 14);

-a fase de avaliação, mediante a qual avalia a situação financeira do cliente, de forma a apurar da sua solvabilidade e após a fase de proposta, mediante a qual apresenta um plano de regularização da dívida (artº 15)

-a fase de negociação, nos termos do qual procura obter o acordo do cliente à proposta de regularização do crédito. (artº16)

Durante o período de integração do cliente no PERSI e até à extinção juridicamente fundamentada deste procedimento, está vedado à instituição de crédito intentar acções judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito (artigo 18º nº 1 al. b), uma vez que “o conjunto dos elementos hermenêuticos – histórico, sistemático, teleológico e literal – aponta claramente que a integração do cliente bancário [e, bem assim, do fiador] no PERSI é obrigatória, quando verificados os respectivos pressupostos, posto que, consequentemente, a acção executiva só poderia ser intentada contra os obrigados após a extinção deste procedimento.”[5]

Mais se estipulou no artº 40 do D.L. 227/2012 que este entraria em vigor em 01/01/2013.

Relativamente à aplicação no tempo deste diploma, rege o artº 39, que estabelece um regime transitório, segundo o qual  

1- São automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias. (negrito nosso)

2 - Nas situações referidas no número anterior, a instituição de crédito deve, nos 15 dias subsequentes à entrada em vigor do presente diploma, informar os clientes bancários da sua integração no PERSI, nos termos previstos no nº 4 do artigo 14.º

3 - Os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora quanto ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito há menos de 31 dias são integrados no PERSI nos termos previstos no nº 1 do artigo 14.º”

Do disposto neste artigo decorre que são integrados no PERSI os clientes com contratos celebrados após 01/01/2013 ou que, apesar de celebrados em data anterior, permaneçam em vigor e que se encontrem em situação de mora no cumprimento das suas obrigações.

Volvendo ao caso em apreço, não resultou alegado ou provado qualquer facto respeitante a este procedimento.

O ónus de alegação e prova dos factos respeitantes à integração do cliente no PERSI e à sua notificação cabia ao exequente embargado, por se tratarem de factos essenciais à admissibilidade desta acção (artº 5 nº1 do C.P.C. e 342 nº1 do C.C.).

 Ora, o exequente não cumpriu sequer este ónus de alegação, uma vez que não alegou qualquer facto relativamente à data da suposta integração do executado no PERSI, nem quanto à comunicação exigida pelo artº 14 nº4 do D.L. 272/2012, nem indicou quais as negociações tidas, nem o resultado das mesmas, nem os factos relativos ao encerramento do PERSI e respectivo fundamento jurídico.

Com efeito, mesmo a provar-se a comunicação ao cliente de integração do seu crédito no PERSI, teriam de ter sido alegados os factos relativos às negociações tidas, ou à recusa de colaboração do cliente.

Neste último caso, existindo recusa, conforme se refere em Ac. do STJ de 16/12/2020[6], “das duas uma: (i) a instituição de crédito pode aguardar o decurso do prazo de 91 dias subsequentes à integração do cliente no PERSI e, por essa via, comunicar a extinção do PERSI, conforme decorre do art° 17° n° 1, al. c) do DL 227/20103; ou (ii) proceder à extinção do PERSI, por sua iniciativa, ao abrigo do art° 17° n° 2, al. d), justamente com fundamento na falta de colaboração com a instituição de crédito. Caso isso tivesse sucedido, a credora (…), ainda assim, estava obrigada a comunicar ao cliente, através de suporte duradouro, essa extinção do PERSI, descrevendo o fundamento legal para essa extinção e as razões pelas quais considerasse inviável a manutenção do procedimento, comunicação essa que deve ser acompanhada dos elementos referidos no art° 8 do Aviso 17/2012 do Banco de Portugal (art° 17° n°s 3 e 5 do DL 227/2012)”.

Nestes termos, teria a credora de alegar e provar que integrou o cliente no PERSI e lhe comunicou essa integração e que ocorreu a extinção do PERSI, invocando os fundamentos legais para essa extinção.

Pretender suprir esta total ausência de alegação, com a junção de cópia de uma carta, sem comprovar ou alegar sequer a sua recepção pelo cliente, não é conforme aos deveres de lealdade, boa fé e de informação que constam explanados no artº 4 do D.L. 227/2012 e pelo dever imposto pelo artº 5 nº2 de promover, sempre que possível, a regularização, em sede extrajudicial, das situações de incumprimento, mediante promoção e célere andamento das providências consignadas no PERSI.

A questão em apreço não se resume assim, conforme parece considerar a recorrente, à prova do envio da carta que junta como doc.1, mas antes à total ausência de alegação de qualquer dos factos respeitantes ao cumprimento dos preceitos previstos nos artºs 12 a 21 do D.L. 227/2012.

Conclui-se assim que alegada a excepção dilatória inominada de falta de cumprimento do PERSI, não foi objecto de alegação, nem de prova por parte do embargado, a inclusão deste cliente no PERSI, a comunicação de inclusão e o cumprimento dos demais normativos relativos à fase das negociações e encerramento deste processo.

Ora, quer a comunicação ao cliente da sua integração no PERSI, por alguma das formas previstas no artº 14 nº4 e 17 do D.L. 272/2012, quer a extinção deste procedimento, constituem condição de admissibilidade da acção, quer declarativa, quer executiva, com base nesse crédito, pelo que a falta de demonstração destes requisitos, constitui uma excepção dilatória insuprível de conhecimento oficioso (artº 576 nº2 do C.P.C.)[7] 

Improcede assim na sua totalidade o recurso interposto.


*


DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta relação em julgar improcedente a apelação.
Custas pela apelante, por ter decaído na totalidade do recurso (artº 527 nº1 do C.P.C.)
                       
                                               Coimbra 14/06/2022







[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] PINTO MONTEIRO, A Resposta do Ordenamento Jurídico Português à Contratação Bancária Pelo Consumidor, Boletim de Ciências Económicas - Homenagem ao Prof. Doutor António José Avelães Nunes, Vol. LVII, tomo II, 2014, pág. 2340.

[4] Neste sentido vide Ac. do STJ de 09/02/2017, Proc. nº 194/13.5TBCMN-A.G1.S1, www.dsgi.pt.
[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06/10/2016, Proc. nº 4956/14.8T8ENT-A.E1, www.dgsi.pt.
[6] Proferido no Proc. nº 2282/15.4T8ALM-A.L1.S1, de que foi relatora Catarina Serra, disponível in www.dgsi.pt

[7] Neste sentido vide entre outros os Acs. do STJ de 19/05/20, proferido no proc. n.º 6023/15.8T8OER-A.L1.S1, relatora Maria Olinda Garcia; de 13/04/21, proferido no proc. nº 1311/19.7 T8ENT-B.E1.S1, relatora Graça Amaral; de 16/11/21, proferido no proc. nº  21827/17.9T8SNT-A.L1.L1.S1, relatora Maria Clara Sottomayor,  e 09/12/21, proferido no proc. nº 4734/18.5T8MAI-A.P1.S1, relator Ferreira Lopes, todos disponíveis in www.dgsi.pt