Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
219/06.0TBVZL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE ACTIVA
Data do Acordão: 09/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.89º Nº1 E 101º DO CÓD. DO NOTARIADO
Sumário: Tem legitimidade (processual) para instaurar acção de impugnação de escritura de justificação notarial (arts.89º, nº1 e 101º do Cód. do Notariado), o interessado que, relativamente ao prédio justificado, invoque ser titular de direito ou interesse incompatível com o declarado na escritura de justificação.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

A... e B... intentaram a presente acção, com forma de processo sumário, contra C... e D... , pedindo que:

a) seja declarada nula e de nenhum efeito a escritura de justificação aludida no art. 3.º da petição inicial quer por o direito justificado assentar em factos e considerações falsos, quer por os justificantes não terem o direito justificado;

b) seja declarada nula e de nenhum efeito, por falsa, a declaração "modelo 129" que os justificantes apresentaram nos Serviços de Finanças de E..., participando-se oficiosamente;

c) ordenar-se o cancelamento do registo com base na escritura impugnada.

Para tanto, alegam, em síntese, que as declarações efectuadas na escritura pública de justificação notarial são falsas, pois que os réus não compraram, como afirmam, o prédio em causa, que adquiriam em inventário que correu termos com o nº 14/91, por morte do pai do autor e do réu marido, sob a verba n.º12, que lhes foi adjudicada; que o prédio nunca foi misto, sendo que os réus peticionaram a rectificação das áreas do prédio no próprio inventário e participaram às Finanças o prédio misto com artigos matriciais um urbano e um rústico, com confrontações novas, posto que falsas.

Mais invocam que intentaram acção sumária  sob o n.º 14/91-A na qual se põe em causa a partilha efectuada naquele inventário, designadamente no que se refere à verba então adquirida, pretendendo, com o vencimento da mesma, o regresso do bem imóvel ao acervo hereditário. Concluem que a actuação dos réus visa pôr tal bem fora de alcance, comprometendo esse fim.

Os réus contestaram, excepcionando a ilegitimidade dos autores para instaurar a acção, pois que a procedência desta em nada lhes acresce no respectivo património. Alegam, além do mais, e em síntese, que uma vez lavrado o registo da aquisição efectuada com base em escritura de justificação, não é possível impugnar a mesma, porquanto os casos de nulidade notarial constam dos arts. 70.º-71.º do Código de Notariado; não há fundamento legal para declarar nula a declaração do modelo 129; e, finalmente, que o recurso à escritura de justificação se explica pelo facto de o de cujus do inventário n.º 14/91 ter apenas ½ do prédio da verba 12, sendo a partilha nula quanto à outra ½ desse prédio, que pertencia a F... , irmã do inventariado, quota que esta adquiriu, tal como este, da partilha por morte dos pais. Finalizam esclarecendo que o réu marido adquiriu os quinhões hereditários da F...por escritura pública cuja cópia juntam.

Os autores apresentaram resposta, alegando serem parte legítima e ser admissível a impugnação da escritura pública de justificação, independentemente de ter havido registo.

Com vista a concretização de matéria de facto e junção de documentos, foi realizado um convite ao aperfeiçoamento aos autores, a que estes acederam.

Cumprido o contraditório, os réus, essencialmente, remeteram para a primitiva contestação.

Procedeu-se ao registo da acção.

Em sede de audiência preliminar, procedeu-se ao saneamento do processo, julgando-se “improcedente a invocada excepção dilatória de ilegitimidade activa” e concluindo-se que as partes são legítimas.

Entendeu-se, ainda, que o estado dos autos permitia o conhecimento do mérito do pedido formulado proferindo-se sentença que concluiu nos seguintes termos:

“Pelo exposto, o Tribunal julga parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:

A) DECLARA-SE QUE A ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO, outorgada no dia 13.05.2004, no Cartório Notarial de E..., id. em 8 da matéria assente NÃO PRODUZ QUAISQUER EFEITOS JURÍDICOS.

B) DETERMINA-SE o cancelamento do registo efectuado pelos RR sobre o prédio identificado na referida escritura.

C) ABSOLVE os RR do restante pedido.

*

Custas pelos AA e RR em 1/3 e 2/3 respectivamente.

*

Registe e notifique as partes e dê conhecimento ao Cartório Notarial de E... e à Conservatória do Registo Predial de E...”.

Não se conformando, os réus recorreram, peticionando a revogação da decisão em ordem à “absolvição dos réus da instância, por ilegitimidade activa, ou do pedido, por improcedência”.

Formulam, em síntese, as seguintes conclusões:

(…) 7.2. Os autores são parte ilegítima, segundo o que alegam, pois não têm interesse directo em demandar e a procedência da acção não lhes traz qualquer utilidade (art. 26º, C.P.Civil).

7.3 Por outras palavras, o seu património jurídico não é acrescentado com a procedência da acção, nem tão pouco é diminuído com a improcedência.

7.4. A impugnação da escritura de justificação é inadmissível, depois de registado o direito justificado, como decorre da lei notarial (art.101º, C. Not.).(…)

 7.7. Os réus invocaram os factos constitutivos do seu direito, ao contrário do que se pretende. (…)

7.9. O recurso à escritura de justificação explica-se por o de cujus do inventário, G..., ter na verdade apenas metade do prédio em causa, sendo a partilha nula quanto à outra metade desse prédio, pertencente à irmão do G..., F....

7.10. Acrescente-se que a mesma adquiriu essa quota, tal como o G... , na partilha por morte dos pais, H... e I..., vindo os réus a adquirir os respectivos quinhões hereditários da F..., ou seja, a outra metade do dito prédio.

7.11. Desta forma, a escritura de justificação, pecando na aparência por pouco ortodoxa, sanciona na verdade uma realidade jurídica demonstrável e comprovada, não havendo qualquer interesse em obrigar os réus a substituir no caso um registo (da justificação) por outro (da aquisição sucessória e das compras conexas).

Os autores apresentaram contra alegações, formulando as seguintes conclusões:

“1ª Os RR. justificantes não compraram, verbalmente e em 1981, nada à F...e marido; logo mentiram!

2ª Os RR. não compraram em 1990 o prédio justificado, antes o quinhão hereditário da F...na herança ilíquida e indivisa deixada por óbito dos pais J...e mulher;

3ª Dado que os J... e mulher eram, simultaneamente pais da F..., do G... (pai dos A e R. maridos) e de outros filhos que ao caso não interessam, o imóvel deixado por óbito daqwueles (J.... e mulher) não integra necessariamente o quinhão hereditário da F...;

4ª Porque não partilhada a herança do J... e mulher, avós dos A. e R. maridos, estes são a ela chamados em representação do pai (G..., filho do J... e irmão da F...), podendo o prédio vir a caber –lhes  na partilha; têm assim os AA. Interesse económico e processual na declaração de ineficácia da escritura de justificação.

5ª No inventário 14/91 (instaurado por óbito do G...) não foi partilhado o quinhão hereditário deste ( G...) na herança dos pais ( J... e mulher);

6ª É ilegal e impróprio o recurso à escritura de justificação quando os justificantes tinham título: apenas a questão do prédio integrar ou não o quinhão hereditário (e vimos de ver que não) lhes impediu o registo …”.             

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância deu por provada a seguinte factualidade, aditando esta Relação os factos ora consignados sob os nºs 3-A, 13 e 14, relevando, para o efeito, a certidão de fls. 91 a 99, junta pelos autores e ainda a certidão de fls. 121, junta aos autos oficiosamente, na sequência do despacho de fls. 120, sendo que as partes, notificadas desta certidão, nada disseram:

1. Correu termos neste Tribunal o inventário obrigatório n° 14/91 no qual foi inventariado G..., pai do autor e do réu.

2. Na verba n.º12 da relação de bens do mencionado Inventário consta:

Prédio urbano, formado de Casa de Habitação, com dois andares, sendo o I ° uma loja e o 2° com duas divisões e aido, logradouro ou S.D. com 510m2, sito na povoação de Sanfins, da freguesia de Alcofra, com a superficie coberta de 60 m2, a confrontar de nascente com L... , poente com M..., norte e sul com o caminho, não descrito na conservatória e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 37I, com o valor patrimonial de mil oitocentos e dezanove escudos.

3. Na conferência de interessados realizada no âmbito no aludido Inventário, aos 1992, foi acordado que a verba n.º 12 fosse adjudicada ao interessado, aqui réu, C....

3-A. Nesse processo foi proferida sentença homologatória dessa partilha em 30/11/1992, transitada em julgado.  

4. Pela escritura pública de compra e venda lavrada no Cartório Notarial de N... em 07 de Dezembro de 1990, O... na qualidade de procurador dos vendedores, F... e marido P... e o comprador C..., casado sob o regime de comunhão de adquiridos com D..., declararam que titulam um contrato de compra e venda, pelo qual o primeiro outorgante em nome dos seus representados, pelo preço de duzentos mil escudos, já recebido, cede e transfere para o comprador os seguintes quinhões hereditários que somam o valor patrimonial de três mil e nove escudos.

Número 1- Por cem mil escudos o quinhão hereditário a que os seus representados têm direito na herança indivisa que ficou por óbito de J... (pai e sogro dos representados) (…) cujo quinhão corresponde a um doze avos da mesma herança (...).

Número 2 - Por cem mil escudos o quinhão hereditário a que os seus representados têm direito na herança indivisa que ficou por óbito de I... (respectivamente mãe e sogra dos representados) (…) cujo quinhão corresponde a um nono da mesma herança (...).

5. Os réus requereram a rectificação das áreas do prédio no inventário mencionado em 2).

6. As expressões «logradouro ou S.D. com 510m2» e «60m2», em substituição dos «45m2» que constavam na descrição da verba n.º 12 da relação de bens, foi ordenada rectificar por despacho de fls. 62 em 11-01-2002.

7. Os réus participaram o prédio misto com os artigos matriciais, um urbano e outro rústico, novos e confrontações novas.

8. Pela escritura pública de justificação lavrada no Cartório Notarial de N... em 13 de Maio de 2004, os réus declararam que:

- com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores do prédio urbano composto de uma CASA DE HABITAÇÃO, de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito nos limites de Sanfins, da dita freguesia de Alcofra, a confrontar de norte e nascente com o caminho, sul com L... e poente com M..., inscrito na matriz em nome do justificante sob o artigo 1430°,

- com a área coberta de 60 m2 e descoberta de 510 m2, com o valor patrimonial de €821,70, omisso na Conservatória do Registo Predial, anteriormente inscrito sob o artigo 371 urbano e 8279 rústico.

- que os justificantes, adquiriram o prédio no ano de mil novecentos e oitenta e um por compra meramente verbal feita a F... e marido P... e que foram residentes no Brasil, sendo então um prédio rústico.

- que desde o dito ano os justificantes têm vindo a possuir o prédio, desde logo entrando na sua posse e fruição, em nome próprio, posse que assim detém há mais de vinte anos, sem interrupção ou ocultação de quem quer que seja.

- que essa posse foi adquirida e mantida sem violência e sem oposição, ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, em nome próprio e com aproveitamento de todas as utilidades do prédio, nomeadamente efectuando obras de reconstrução e ampliação, nele habitando e guardando seus bens e pertenças, por si ou por intermédio de outrem, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, quer usufruindo como tal o imóvel, quer suportando os respectivos encargos.

-que esta posse em nome próprio, pacifica, continua e pública desde pelo menos o referido ano, conduziu à aquisição do imóvel por usucapião, o que invocam, justificando o direito de propriedade para o efeito de registo, dado que esta forma de aquisição não pode ser comprovada por qualquer outro titulo formal extrajudicial.

9. Encontra-se inscrito na Repartição de Finanças sob o artigo matricial n.º 371, a favor de J..., um prédio sito em Sanfins, freguesia de Alcofra, Concelho de E..., uma casa de habitação com dois andares sendo o 1.º uma loja e o 2.º com duas divisões a confinar do nascente com L..., poente com M..., e de norte e sul com caminho, com superfície coberta 45m2.

10. Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial de E... o prédio urbano sito em Sanfins – casa de habitação, de rés-do-chão, primeiro andar: 60m2, logradouro: 510 m2; norte, caminho; nascente, caminho; sul L...; poente, M... - valor patrimonial de €821,70 – artigo 1.430, com inscrição de aquisição sob G1 a favor da comunhão conjugal de C... e D..., por usucapião.

11. Correram termos os autos de acção declarativa sob a forma sumária com o n.º 14-A/1991, em que eram AA A... e RR Q...., C..., D..., R... , T... , U...., V.... e X... , em que os primeiros peticionam a emenda à partilha para ulterior partilha adicional, sob a qual recaiu a decisão de indeferimento liminar da petição inicial.

12. O recurso pelos réus à escritura pública mencionada em 8) assentou no por si alegado facto de, no Inventário 14/91 por óbito de G..., ao mesmo pertencer apenas ½ do prédio da verba 12.

13. A decisão supra referida sob o nº 11 transitou em julgado em 30 de Março de 2006, esclarecendo-se que se tratava de pedido de emenda à partilha efectuada no processo 14/91, referido sob o nº 1.

14. A presente acção foi interposta em 18 de Julho de 2006.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C., diploma a que aludiremos quando não se fizer menção específica – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos apelantes, está em causa apreciar, em primeira linha, da legitimidade dos autores para a instauração da presente acção de impugnação.

2. O tribunal recorrido respondeu afirmativamente à questão, fundamentando a sua posição da seguinte forma: [ [1] ]

“Isto posto, e fazendo apelo à acção tal como é configurada pelos AA, estes, ao manifestarem, na causa de pedir, serem herdeiros do falecido G..., pai dos A. e R. marido, alegando ser o objecto em litigio pertencente à herança aberta por óbito daquele, estão, demonstrar a sua própria legitimidade para a causa.

Com efeito, em acção de impugnação de escritura de justificação notarial, a legitimidade activa radica em quem alegar uma qualquer relação ou direito que seja posto seriamente em crise pela justificação notarial do réu. ACRL de 27-11-2003, rel Pires Condesso, proc. 335511, in dgsi.pt. Ao art. 101.º do Código do Notariado basta «algum interessado» para impugnar em juízo o facto justificado.

Neste sentido também ACRP de 24-11-2005, rel José Ferraz, proc. n.º0535685. Ora, qualquer herdeiro de uma herança revela interesse directo em agir, ainda que não peticione o bem para a herança, pelo que para os efeitos do que vai no art. 101.º do Código do Notariado, tem legitimidade activa.

Assim, e pelo já exposto, apesar de não peticionarem a ocorrência de efeito jurídico positivo para a herança pois que com procedência da acção de impugnação de justificação notarial, obterão apenas a declaração de ineficácia de um negócio cujo o objecto é alegadamente do património do de cujus que aceitaram, têm os AA legitimidade para propor esta acção de impugnação de justificação notarial. Neste sentido, o ACRL de 13-10-2005, rel. Pinto de Almeida, proc. 0533037, in dgsi.pt”.

Não se questiona o entendimento espelhado nos arestos citados, que até partilhamos. Ponto é que as considerações aí enunciadas, quando aplicadas ao caso em apreço, permitam ou suportem a conclusão vertida na sentença – e, com todo o respeito, parece-nos que não, como veremos adiante.

Também é líquida a natureza da presente acção, enquanto acção de impugnação de justificação notarial, instaurada no âmbito dos arts. 89º, nº 1 e 101º do Cód. do Notariado.

                                             *

A legitimidade das partes enquanto pressuposto processual não se confunde com a “legitimidade substantiva”, que se prende com a análise do mérito da causa, relevando, portanto, em sede de procedência ou improcedência do pedido. [ [2] ]

Enquanto pressuposto processual, estamos perante excepção que deve ser aferida tendo em conta a relação material controvertida tal como ela é configurada pelo autor. Efectivamente, com a revisão do Cód. do Processo Civil, operada em 1995/1996 e a alteração do art. 26º, nº3, veio o legislador tomar posição relativamente à velha querela entre os defensores da corrente subjectivista e os da corrente objectivista, como resulta do preâmbulo do D.L. 329-A/95 de 12/12. [ [3] ]

                                             *

Analisando os termos em que os autores, apelados, estruturam a acção, ressalta de imediato que os autores não se arrogam na titularidade de qualquer direito – de propriedade ou outro – sobre o prédio objecto da escritura de justificação.

Como também não reivindicam que tal prédio faça parte da herança aberta por óbito do pai do autor e réu, aliás, dizem precisamente o inverso. Efectivamente, como resulta da factualidade assente e na sequência de alegação dos autores, por óbito do G..., os interessados procederam à partilha dos bens deste, tendo acordado na adjudicação do prédio descrito na verba nº 12 (ora em causa) ao réu, sendo que nesse processo foi proferida sentença homologatória dessa partilha em 30/11/1992, sentença já transitada em julgado. Ou seja, à data de instauração da acção já havia cessado a situação de indivisão do património, pelo que não se vislumbra justificação para continuarmos a aludir a “herdeiro” e a “herança”, nos moldes constantes da decisão recorrida.

Afinal, o que pretendem os autores? Pretendem, como expressamente invocam nos arts. 16º e seguintes da petição inicial, salvaguardar a eficácia da acção que entretanto instauraram e que correu por apenso ao processo de inventário, com o nº 14/91 A, acção aludida no nº 11. [ [4] ]

Acontece que, à data de instauração da presente acção, já o aludido processo estava findo, na sequência de decisão de indeferimento liminar, decisão transitada em julgado em 30 de Março de 2006 – a presente acção foi interposta em 18 de Julho de 2006. Dificilmente se concebe, portanto, a argumentação dos autores e não se alcança a afirmação feita no art. 18º da petição inicial – depois da prolação de despacho de indeferimento liminar, transitado, os apelados ainda esperam que, nesse processo, o prédio possa “voltar a integrar o acervo hereditário”?

Sendo certo que os autores, na petição inicial, nada mais invocam a propósito desse inventário, maxime que tenham deduzido, posteriormente ao referido processo 14/91A, qualquer outra pretensão com vista à emenda ou anulação da partilha.

Ficamos, pois, perante uma situação em que está perfeitamente consolidada a partilha efectuada na sequência de óbito do pai do autor e réu, pela qual foi adjudicada ao réu a propriedade do prédio objecto da escritura de justificação, escritura cuja motivação tem por base, apenas, segundo alegação do réu, o facto do prédio que lhe foi adjudicado – e pese embora o tenha sido na totalidade –, pertencer apenas a seu pai na proporção de ½ (cfr. o circunstancialismo que a 1ª instância fez consignar no nº 12).

                                             *

Conforme se referiu no Ac.R.C. de 18/05/2004, “o termo interessado utilizado no n.º 1 do artigo 101.º do Código do Notariado tem de entender-se como todo aquele a quem a lei confere o direito de impugnar em juízo o facto justificado, remetendo para as normas que disciplinam a legitimidade processual, não conferindo essa legitimidade a quem mostrar um qualquer interesse na impugnação”. [ [5] ]

Dispondo o art.89º, nº1 do Cód. do Notariado que a justificação, para os efeitos do nº 1 do art. 116º do Cód. do Registo Predial, “consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga”, então impõe-se considerar que a legitimidade activa, nas acções de impugnação, tem como contraponto a afirmação de direito ou interesse incompatível com aquele que está na base da declaração de justificação.[ [6] ]

No caso em apreço, não há qualquer situação de incerteza da titularidade do direito ou de interesse relevante que se imponha regular, considerando a factualidade declarada na justificação e a alegação dos autores vertida na petição inicial e resposta à contestação.[ [7] ]

                                             *    

E que os autores não o ignoram ressalta do art. 8º da resposta à contestação, em que para sustentar a sua legitimidade, chegam ao ponto de afirmar que “a deturpação dos factos declarados na escritura de justificação é tão chocante e atentatória da mais elementar justiça e verdade dos actos jurídicos e notariais, em termos de os AA poderem, se necessário fosse, invocar até a lesão de interesses difusos”.

A capacidade de intervenção/participação dos cidadãos está na génese da chamada acção popular, nos moldes em que a mesma está prevista na C.R.P., na redacção da Lei Constitucional nº1/2005 de 12/08, vigente à data de instauração da acção (art. 52º, nº3), [ [8] ] e regulamentada na lei 83/95 de 31/08 (art. 1º). [ [9] ]

Trata-se de assegurar a defesa de interesses difusos – saliente-se o carácter exemplificativo da enunciação feita em ambas as normas, através da utilização do advérbio “nomeadamente” no texto constitucional e “designadamente” na Lei 83/95 –, isto é “a refracção em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada”.[ [10] ]

Em sede de legitimidade processual releva o disposto no art. 26º A do C.P.C., nos termos do qual têm “legitimidade para propor e intervir nas acções e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público bem como à protecção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa as autarquias locais e o Ministério público, nos termos previstos na lei”, sendo que são titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular, no que ao caso interessa, quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos (art. 2º, nº1 da Lei 83/95).

No caso, os interesses que estão na base da acção são interesses puramente individuais, não estando em causa a defesa de interesses que radicam na colectividade enquanto pluralidade indefinida de sujeitos.

Ou seja, também não é por essa via que os autores logram sustentar a sua legitimidade para a demanda dos réus.

                                             *

Quanto à matéria constante das contra alegações de recurso, trata-se de circunstancialismo novo, nunca antes invocado. Efectivamente, na fase de recurso, vêm os autores suscitar questão alusiva ao facto de, alegadamente, estar por partilhar a herança de J... e mulher, avós do autor e do réu e que estes “são a ela chamados em representação do pai (G..., filho do J... e irmão da F...), podendo o prédio vir a caber-lhes na partilha”, pelo que, concluem, os autores têm “interesse económico e processual na declaração de ineficácia da escritura de justificação”.

Ora, trata-se de factualidade que os autores deviam ter invocado na fase processual oportuna – em sede de petição inicial e resposta à contestação – não podendo esta Relação apreciar dessa matéria. Os recursos visam o reexame de matérias que foram apreciadas pelo tribunal recorrido e não se destinam a conhecer de questões novas, ressalvadas as que forem de conhecimento oficioso, o que não é o caso – aqui os apelados vêem, afinal, em fase de recurso, oferecer novos fundamentos para sustentar o pedido, o que não é admissível.

Concluindo, considera-se que os autores não têm legitimidade para, como os fundamentos invocados na petição inicial, instaurar a acção de impugnação judicial.

                                             *

Conclusão:

Tem legitimidade (processual) para instaurar acção de impugnação de escritura de justificação notarial (arts.89º, nº1 e 101º do Cód. do Notariado), o interessado que, relativamente ao prédio justificado, invoque ser titular de direito ou interesse incompatível com o declarado na escritura de justificação.          

                                             *

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, revogando a decisão recorrida, declaram que os autores não gozam de legitimidade para instaurar a presente acção, absolvendo-se os réus da instância.

Custas, quer na 1ª instância quer nesta Relação, pelos autores.

Notifique.    

                                        *********

[1] Anota-se que os Acs. de 27/11/2003 e de 13/10/2005 são da Relação do Porto e não, como por lapso foi referido, da Relação de Lisboa. 

[2] Como referem A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, p.134, “Uma coisa é saber se as partes são os sujeitos da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista. Outra coisa, essencialmente distinta, é apurar se a pretensão na verdade existe, por se verificarem os requisitos de facto e de direito que condicionam o seu nascimento, o seu objecto e a sua perduração. A primeira indagação interessa à legitimidade das partes; a segunda à procedência da acção”.


[3] Pode aí ler-se: “Decidiu-se, por outro lado, após madura reflexão, tomar posição expressa sobre a vexata quaestio do estabelecimento do critério de determinação da legitimidade das partes visando a solução legislativa proposta contribuir para pôr termo a uma querela juridico-processual que há várias décadas se vem interminavelmente debatendo na nossa doutrina e jurisprudência sem que se haja até agora alcançado consenso. Partiu-se, para tal, de uma formulação de legitimidade semelhante à adoptada no D.L. 224/82 (de 8/06) e assente, consequentemente, na titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor, próxima da posição imputada a Barbosa de Magalhães na controvérsia que historicamente o opôs a Alberto do Reis”.

[4] Referem os autores:

“16º: Por este tribunal corre termos a acção sumária nº 14/91A, na qual se põe em causa a partilha feita no inventário 14/91, incluindo a relação de bens.

17º: Onde foi incluído o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 371º(verba 12).

18º: No caso de procedência da acção, como se espera, o prédio pode voltar a integrar o acervo hereditário e como tal.

19º: Alterada a sua configuração, matriz e registo, por força da justificação, o mesmo (prédio) fica fora do alcance da sequela legal.

20º: o que os RR., no fundo pretenderam.

21º: E que constitui facto legitimador do presente pedido de declaração de nulidade e cancelamento de registo predial com base nela feito que se irá formular.

22º: Co-interessados que foram e são na partilha – os AA. –, não podem permitir, e na esperança da anulação da mesma (partilha), que do acervo dela sejam retirados ou adulterados (nas inscrição matricial e descrição registral) bens”.

[5] Proferido no processo nº 1475/04 (Relator: Des. Coelho de Matos), acessível in www.dgsi.pt

[6] No Ac. R.P. de 24/1/2005, proferido no processo 0535685 (Relator: José Ferraz), acessível in www.dgsi.pt,  refere-se que, “efectuada a escritura de justificação, para efeitos de primeira inscrição no registo, pode impugná-la aquele que tiver um direito incompatível com o invocado pelo justificante ou qualquer outro interesse juridicamente relevante. Os interessados, para efeitos de impugnação da justificação, são os titulares de uma relação jurídica ou direito que possa ser afectado, posto em crise pelo facto justificado”

[7] Nas situações em análise nos arestos citados na decisão recorrida, a questão punha-se de forma linear, sendo inequívoca a legitimidade dos demandantes, o que não acontece no caso em apreço. Assim:

- no Ac. R.P. de 24/01/2005, supra citado, os autores eram titulares do direito de propriedade sobre prédios contíguos com o prédio justificado, tendo interesse na definição das extremas entre os prédios vizinhos, que estava em discussão num processo judicial;

- no Ac. R.P. de 13/10/2005, proferido no processo 0533037 (Relator: Pinto de Almeida), o autor arrogava-se a qualidade de herdeiro, invocando que os prédios justificados não pertencem aos réus mas antes fazem parte da herança ilíquida e indivisa aberta por morte dos pais do autor e réu marido.

- no Ac.R.P. de 27/11/2003, proferido no processo 0335511 (Relator Pires Condesso), os autores alegam factos destinados a provar a sua aquisição por usucapião do prédio de que fazem parte, segundo a sua versão, o terraço e logradouro que estão incluídos na justificação notarial.

[8] Nos termos desse preceito “é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”
 Sobre a consagração constitucional do direito de acção popular antes e depois da revisão de 1989 vd. artigo de Mariana Sotto Mayor, O Direito de Acção Popular na Constituição da República Portuguesa, Boletim Documentação e Direito Comparado, nºs 75/76 (1998), pág. 253-259.    

[9] Lei do “Direito de participação procedimental e de acção popular”. Nos termos do art. 1º “A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no nº 3 do artigo 52º da Constituição (nº1). Sem prejuízo do disposto no nº anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público (nº2)”.       

[10] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, 3ª edição, pág. 282.

Miguel Teixeira de Sousa, “Legitimidade Processual e Acção Popular no Direito do Ambiente”, in Direito do Ambiente, INA, 1994, pág. 412, refere: "Pode assim afirmar-se que os interesses difusos não são interesses públicos, porque a sua titularidade não pertence a nenhuma entidade ou órgão público, também não se identificam com interesses colectivos, porque não pertencem a uma colectividade ou a um grupo mas a cada um dos seus membros, e também não são reconduzíveis a interesse individuais, porque, como o bem jurídico a que se referem é inapropriável individualmente, esses interesses são insusceptíveis de serem atribuídos em exclusivo a um sujeito, antes pertencem, sem qualquer exclusividade, a qualquer um dos membros de uma comunidade ou de um grupo" e "Os interesse difusos são simultaneamente interesses não públicos, não colectivos e não individuais".  Vd. ainda, sobre o conceito de interesses difusos, por confronto com interesses públicos, interesses individuais e interesses colectivos, Marques Antunes in O direito de Acção Popular no Contencioso Administrativo, Lex, 1997, págs. 36 e 37.