Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ISAÍAS PÁDUA | ||
Descritores: | NULIDADE DE SENTENÇA EXCESSO DE PRONÚNCIA DÍVIDA DE CÔNJUGES PROVEITO COMUM DO CASAL | ||
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Data do Acordão: | 11/30/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | FIGUEIRA DA FOZ – 1º JUÍZO | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 668º, Nº 1, AL. D), DO CPC; 1691º, Nº 1, AL. C), DO C. CIV.. | ||
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Sumário: | I – O vício de excesso de pronúncia – a que se alude na al. d) do nº 1 do artº 668º do CPC -, capaz de levar à nulidade da sentença, ocorre sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, ou seja, ele ocorre sempre que o julgador vai além do conhecimento que lhe foi pedido pelas partes (excluídas aquelas questões que são de conhecimento oficioso. II – Para que um cônjuge possa, à luz do disposto na al. c) do nº 1 do artº 1691º do CC, ser responsabilizado por uma dívida contraída pelo outro, necessário se torna que: a) essa dívida tenha sido contraída na constância ou vigência do matrimónio; b) que o tenha sido em proveito comum do casal; c) e que o tenha sido no âmbito e nos limites dos poderes de administração do cônjuge que a contraiu. III – Regime esse que se aplica independentemente do regime de bens que vigore entre os cônjuges, sendo que tais requisitos são cumulativos e cujo ónus de alegação e prova incumbe, como regra, ao autor que dele pretenda prevalecer-se. IV – Haverá proveito comum do casal sempre que a dívida tiver sido contraída tendo em vista os interesses comuns do casal, ou seja, o interesse da sociedade familiar, sendo que o mesmo, salvo nos casos em que a lei o declarar, não se presume, pelo que terá de ser alegado e provado. V – O proveito comum do casal deve ser aferido, como critério, em função do fim visado pelo devedor com a contracção da dívida e não pelo seu resultado da aplicação da mesma. VI – O referido proveito não se esgota num conteúdo puramente económico, podendo mesmo acontecer que o fim visado se reduza tão somente a um interesse intelectual, espiritual ou moral, tudo a avaliar casuisticamente, ou seja, perante cada caso concreto. VII – Saber se determinada dívida foi contraída em proveito comum do casal implica ou envolve, simultaneamente, uma questão de facto (que comporta a averiguação do destino dado ao dinheiro representado pela dívida) e uma questão de direito (que se traduz em averiguar ou ajuizar se, em face desse destino apurado, a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal). VIII – A simples prova de que um dos cônjuges aplicou o dinheiro, que lhe foi entregue na sequência de um empréstimo bancário que só ele contraiu, na aquisição de um veículo automóvel revela-se, só por si, manifestamente insuficiente para preencher e integrar quer o aludido conceito de “proveito comum do casal”, quer mesmo o conceito de “património comum do casal”. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam neste tribunal da Relação de Coimbra I- Relatório 1. O autor, BANCO A..., S.A., intentou (em 2/10/2009) contra os réus, B... e mulher C..., todos melhor identificados nos autos, a presente acção espacial declarativa de condenação para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato (à luz do DL nº 269/98 de 1/9). Para o efeito alegou, em síntese, o seguinte: No exercício da sua actividade comercial, emprestou ao R. marido a quantia de € 14.075,00, para financiamento da aquisição de um veículo automóvel. Para tal outorgaram o A. e o R. marido, por documento particular, um contrato de mútuo, nos termos do qual, à verba mencionada acresciam juros à taxa nominal de 13,24% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como a comissão de gestão, o imposto de selo de abertura de crédito e o prémio do seguro de vida, serem pagos, nos termos acordados, em 72 prestações, mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 20 de Junho de 2004 e as seguintes nos dias 20 dos meses subsequentes. Ainda de harmonia com o acordado entre as partes a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para a conta bancária do A.,. sediada em Lisboa. Conforme também expressamente acordado, a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais e, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 13,24% - acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 17,24%. Acontece que R. marido, das prestações referidas, não pagou a 51.ª prestação e seguintes, vencida a primeira em 20/08/2008, tendo contudo pago a 52.ª prestação, com vencimento em 20/09/2008, - num total de 21 –, vencendo-se então todas, sendo o montante de cada uma de € 293,49. O total das prestações em débito pelo R. marido ao A., ascende a € 6.163,29 (21 x € 293,49), quantitativo este a que acrescem juros - incluindo já a cláusula penal referida - que sobre ele se vencerem à referida taxa de 17,24% ao ano, desde a data do vencimento referida, desde 20/08/2008, até integral e efectivo pagamento. Estes juros vencidos - até 2 de Outubro de 2009 (data da instauração da acção) - ascendem já a € 1.187,73, sendo que sobre eles incide imposto de selo, à taxa de 4% ao ano. Imposto esse, sobre os juros referidos, que ascende já a € 47,51. Pelo pagamento de tais importâncias em divida é também, solidariamente, responsável a ré, dado que o empréstimo em causa reverteu em proveito comum do casal por ambos então formado. Nesses termos terminou o A. pedindo a condenação dos RR. a pagarem-lhe importância de € 6.163,29, acrescida da quantia de € 1.187,73 de juros vencidos até à data da instauração da acção, mais da quantia de € 47,51 de imposto de selo sobre os juros vencidos, mais dos juros que à referida taxa de 17,24%, se vencerem, sobre aquele capital inicial, desde 3/10/2009 até integral e efectivo pagamento e, ainda, do imposto de selo sobre os juros vincendos.
2. Apesar de ambos terem sido citados para o efeito, apenas a ré contestou. E, em síntese, defendeu-se alegando desconhecer em pormenor os detalhes do contrato em causa, embora admitindo saber da sua existência. Que desde Setembro de 2005 ambos réus se encontravam separados de facto, vindo o casamento que ambos celebraram a ser dissolvido na sequência do divórcio, por mútuo consentimento, decretado em 28/9/2009, por decisão da Sra. Conservadora da Conservatória de Registo Civil da Figueira da Foz, de imediato transitada em julgado. Que o veículo adquirido, graças ao empréstimo contraído unicamente pelo réu marido, não reverteu em proveito comum do então casal dos réus, porquanto o mesmo foi adquirido por iniciativa única daquele com o intuito de realizar os seus próprios interesses, satisfazendo uma necessidade apenas sua. Que, ao que sabe, pelo menos até se manter a viver com o réu sempre este terá pago as prestações devidas pelo contrato. Pelo que terminou pedindo a improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.
3. Mais tarde, procedeu-se à realização do julgamento – com a gravação dos depoimentos prestados em audiência.
4. Seguiu-se a prolação da sentença, que, a final, julgou a acção totalmente procedente, condenando os RR. no pedido.
5. Não se conformando com tal sentença, o ré dela apelou, tendo concluído as suas respectivas alegações de recurso nos seguintes termos: […] 6. Contra-alegou o autor, pugnando pela improcedência do recurso e pela, consequente, manutenção do julgado.
7. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir. *** II- Fundamentação A) De facto. Pelo tribunal da 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos: […] *** B) De direito. 1. Do objecto do recurso. É sabido (entendimento que continua a manter-se com a actual reforma, aqui aplicável, introduzida pelo DL nº 303/2007 de 24/8 - artºs 684, nº 3, e 685-A, nº 1, da actual versão do CPC) que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o seu objecto. Importa também, desde já, salientaR que, tal como vem sendo dominantemente entendido, o vocábulo “questões” referido no artº 660, nº 2, do CPC, de que o tribunal deva conhecer, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.”, e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”), sem prejuízo daquelas questões de que o tribunal possa ou deva conhecer oficiosamente. Ora, compulsando as conclusões das alegações do presente recurso, verifica-se que as questões que importa aqui apreciar são as seguintes: a) Da nulidade da sentença. b) Da responsabilidade da apelante/ré (mulher) pelas dívidas contraídas pelo réu (ex-marido) com a outorga do contrato que celebrou com o autor. *** 2. Quanto à 1ª questão. Da nulidade da sentença. Invoca a ré/apelante a nulidade da sentença, por alegada violação do disposto no artº 668, nº 1 al. d), do CPC. Nulidade essa que fundamenta no facto de a srª juiz a quo ter, por sua vez, fundamentado a sua condenação no entendimento de a dívida ter sido contraída (pelo réu junto do A.) em proveito comum do casal, invocando, porém, para o efeito a norma contida na al. a) do nº 1 do artº 1691 do CC. Contudo, aduz a apelante, nunca o A. alegou – nem provou - que a dívida em causa no processo havia sido requerida por ambos os RR., nem tão pouco alegou - nem provou - que a recorrente havia dado o seu consentimento para que o réu, seu ex-marido, contraísse aquela dívida. Pelo que, no seu entender, a srª juiz a quo conheceu de questões de que não poderia conhecer. Apreciamos. Porém, esse pedido de condenação estendeu-o também à ré, com o fundamento aduzido de o empréstimo em causa ter revertido em proveito comum do casal (por ambos então formado). Ora, na sentença recorrida veio a aderir-se aos fundamentos aduzidos pelo A., para condenar ambos nos RR. nos termos peticionados por aquele. No que concerne à condenação da ré – aquela que neste recurso apenas se discute -, basta compulsar a sentença para ver verificar que ela foi ali fundamentada no facto do sobredito empréstimo ter revertido em proveito comum do casal, ou seja, por se ter concluído que a referida dívida contraída pelo R. o foi em proveito comum do casal. É assim, manifesto que não houve qualquer excesso de pronúncia, e nomeadamente no que concerne à condenação final da ré. O tribunal a quo conheceu das questões que lhe foram colocadas, à luz do pedido e da causa de pedir que sustentaram a tutela judiciária pedida pelo A. através desta acção. É certo que (certamente, por manifesto lapso) cita-se, em termos de fundamentação jurídica, o artº 1691, nº 1 al. a), do CC, mas isso em nada invalida a sobredita conclusão, quando muito isso poderá contender com um alegado erro de julgamento (de direito) sobre a questão sub judíce (da condenação da ré) - questão essa que, contudo, irá ser de seguida apreciada -, nas não com o apontado vicio estrutural que foi apontada à sentença. *** 3. Quanto à 2ª questão. No que concerne aos termos em que foi decidido o mérito da causa pela sentença recorrida, a ré/apelante apenas se insurge quanto à parte ou seguemento dela que a condenou também - a par do réu (seu ex-marido) e em regime de solidariedade com o mesmo – no pagamento das quantias que o autor peticionava nesta acção. Ou seja, a ré/apelante não ataca a decisão, e a respectiva fundamentação, que condenou, nos termos que acima se deixaram aludidos, o réu (seu ex-marido), mas tão somente o faz na parte em que a condenou a ela. E fá-lo nos termos e com os fundamentos que acima se deixaram exarados aquando da transcrição das conclusões das suas alegações de recurso. Assim, o que está aqui somente em causa traduz-se em saber se a ré/apelante deve neste caso ser também responsabilizada pelas dívidas contraídas pelo R. (seu ex-marido) na sequência do sobredito contrato (de mútuo) que o mesmo celebrou (e que depois incumpriu) com o A., e através do qual, este lhe emprestou a quantia inicial, de € 14.075,00, destinado, segundo informação sua, à aquisição de um veículo automóvel. Para fundamentar a responsabilidade da ré, o autor alegou que o referido empréstimo reverteu em proveito comum de casal – dado o veículo em causa se destinar ao património comum desse mesmo casal, formado pelos RR.. Apreciemos. Como é sabido, ainda que não tenham intervido como partes em determinado negócio, como sucedeu no caso em apreço com a ré, é possível responsabilizar um dos cônjuges pelas dívidas contraídas pelo outro (regime da comunicabilidade das dívidas). Tal sucede quando ocorre alguma das situações previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artº 1691 do CC. Face ao que atrás se deixou exarado, parece ser claro que o A. fundamentou aquele seu pedido (de condenação solidária da ré) à luz do disposto no artº 1691, nº 1 al. c), do C. Civil. Já agora, diga-se que, compulsando a sentença recorrida facilmente se verifica que foi com base no fundamento do proveito comum do casal que a ré foi condenada, muito embora se tenha, em passant, indicado a al. a) do nº 1 do citado artº 1691, em vez da al. c) do mesmo (o que só se compreenderá por manifesto lapso de escrita, pois é patente que in casu jamais se poderia justificar a condenação da ré à luz do disposto citada al. a) daquele normativo legal, dado que nem sequer foi alegado, e muito menos ficou provado, que o referido empréstimo tivesse sido contraído com o consentimento daquela - sendo esse um dos elementos a previsão norma e um dos requisitos dos pressupostos da tal responsabilidade). Nesse dispositivo (o citado artº 1691, nº 1 al. c)) estatui-se que são da responsabilidade de ambos os cônjuges “as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração”. Resulta, assim, de tal normativo que são requisitos ou pressupostos substanciais para que um cônjuge possa ser responsabilizado pelas dívidas contraídas pelo outro: a) que tais dívidas tenham sido contraídas na constância ou vigência do matrimónio; b) que o tenham sido em proveito comum do casal; c) e que o tenham sido no âmbito e nos limites dos poderes de administração do cônjuge que as contraiu. Requisitos esses que são cumulativos e cujo ónus de alegação e prova incumbe, como regra, ao autor, que pretende fazer valer-se dessa situação de comunicabilidade da dívida (artº 342, nº 1, do CC). Vem constituindo entendimento prevalecente que o regime previsto na citada alínea c) daquele normativo legal se aplica independentemente do regime de bens que vigore entre os cônjuges. No tocante ao 1º requisito, calcorreando a matéria factual dada como assente (em conjugação com o que ressalta do documento junto a fls. 30/32 – certidão da sentença que decretou a o divórcio entre eles – que não foi objecto de qualquer impugnação, e aqui a considerar nos termos do disposto no artº 659, nº 3, do CPC) dela ressalta que os RR., em 05/04/2002, contraíram entre si casamento, sem convenção nupcial (o que significa foram casados segundo o regime de comunhão de adquiridos – cfr. artº 1717 do CC), o qual só veio a ser dissolvido em 28/9/2009. Os RR. eram assim casados, segundo regime de comunhão de adquiridos, na altura que o réu contraiu o referido empréstimo, pelo que não subsistiam dúvidas de que a dívida em causa foi contraída na constância ou vigência do matrimónio celebrado entre os referidos RR., e daí que seja de concluir pelo verificação do 1º requisito acima aludido. O 2º requisito pressupõe que a dívida tenha sido contraída em proveito comum do casal. Haverá proveito comum do casal sempre que a dívida tiver sido contraída tendo em vista os interesses comuns do casal, ou seja, o interesse da sociedade familiar. Proveito comum esse que, salvo os casos em que a lei o declarar, não se presume (cfr. nº 3 do citado artº 1691), o que significa que terá de ser alegado e provado. Vem constituindo também entendimento dominante que no conceito legal de proveito comum deve atender-se ao fim visado pela aplicação e não aos resultados dessa aplicação (isto é, será em função do fim visado pelo devedor com a contracção da divida, e não pelo seu resultado, que se deve aferir tal proveito comum) e que o mesmo não se esgota num conteúdo puramente económico, podendo mesmo acontecer que o fim visado se reduza tão somente a um interesse intelectual, espiritual ou moral, tudo a avaliar casuisticamente, ou seja, perante cada caso concreto. Por outro lado, vem também constituindo controvérsia, na nossa doutrina e jurisprudência, o saber se o referido proveito comum constitui em si uma questão de facto e de direito. Porém, vem igualmente ganhando predominância a corrente de opinião - à qual aderimos, tal como no que concerne à questão anterior - de que estamos perante uma questão complexa ou mista, ou seja, de que consubstancia em si uma questão de facto e também uma questão de direito. Consubstancia uma questão de facto quando se visa alcançar o destino ou fim visado pela aplicação, neste caso com a contracção da dívida, e consubstancia uma questão de direito quando se visa determinar se, face ao destino apurado que foi dado à referida aplicação, a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal. Ou seja, o saber se determinada dívida foi contraída em proveito comum do casal implica ou envolve, ao mesmo tempo ou simultaneamente, uma questão de facto (que comporta a averiguação do destino dado ao dinheiro representado pela dívida) e uma questão de direito (que se traduz em averiguar ou ajuizar se, em face desse destino apurado, a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal). Vide, a propósito da temática que vimos abordando, e em tal sentido, e entre outros, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, págs. 329/335”; os profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito de Família, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, págs. 451/452”; Acs. do STJ 7/1/2010, processo 2318/07.2TVLSB.L1.S1; de 22/10/2009, processo 419/07.6TVLSB.S1, e de 10/12/2009, proc. 1499/97.0TVLSB.L1, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj). Posto isto, e reportando-nos ao caso em apreço, diremos: Como supra deixámos expresso, para fundamentar a responsabilidade da ré o A. limitou-se a alegar que o sobredito empréstimo (em que se consubstanciou o referido contrato de mútuo celebrado com o R.) reverteu em proveito comum de casal – atento até o veículo em causa se destinar ao património comum do casal dos RR. (cfr. artº 19º da p.i.). Calcorreando matéria factual dada como provada pelo tribunal a quo, verifica-se que, em matéria de “proveito comum de casal”, dela apenas consta, descrita sob o nº 9, o seguinte: “O empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal dos RR. - atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos RR.” Donde se extrai que aquele tribunal, na decisão proferida sobre a matéria de facto, deu integralmente como provado aquilo que, a tal propósito, foi alegado pelo A., e nos exactos termos em que o mesmo fez. E foi partindo daí que, como vimos, condenou também a ré. Porém, tal como vem constituindo entendimento claramente dominante, e nomeadamente do nosso mais alto tribunal, que a expressão “proveito comum do casal” configura em si um conceito jurídico/conclusivo, a que deverá chegar-se a partir dos concretos factos materiais alegados e provados, ou seja, envolve em si um conceito de natureza jurídica ou de direito que há-de ser integrado e preenchido através ou a partir dos correspondentes factos materiais que permitam concluir, nos termos supra referidos, sobre o fim visado por um dos cônjuges com a aplicação do dinheiro obtido com a contracção da dívida, isto é, se visou ou não o proveito comum do casal. E o mesmo se dirá no que concerne à expressão, que foi alegada (e transcrita também para o factos provados) pelo A., de o referido veículo (adquirido pelo A) se destinar ao património comum do casal dos RR.. É que também a expressão “património comum” configura igualmente um conceito jurídico ou direito, e ser preenchido e integrado nos mesmos moldes atrás referidos para o conceito de proveito comum de casal, ou seja, a partir dos concretos factos materiais alegados. (No sentido acabado de defender, vide, entre muitos outros, os Acs. do STJ de 7/1/2010; de 22/10/2009; de 10/12/2009, estes já acima citados, de 14/1/2010, proc. 849/04.5TBLSD.P1.S1; de 10/9/2009, proc. 07B3536; de 11/11/2008, proc. 08B3303; de 12/7/2005, proc. 05B1710, todos publicados www.dgsi.pt/jstj, e ainda de 13/11/2007, in “CJ., Acs. do STJ, Ano XIII, T1, pág. 13”. Sobre a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, e que conduzem à conclusão atrás expandida, vide ainda o prof. Antunes Varela, in “RLJ, Ano 122, pág. 220”; o prof. Alb. dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado, vol. III, págs. 206/207”; o prof. Vaz Serra, in “RLJ Ano 112, pág. 271 e ss”; o estudo do conselheiro Abel Freire, in “C.J., Acs. do STJ, nº 171, Ano IX, tomo III, pág.5 e segs” e Acs. do STJ de 22/2/1995 e de 8/11/1995, respectivamente, in “CJ, Ano II, T1 - 279 e CJ, Ano II, T3 - 294”). Posto isto, a primeira consequência que se deverá, desde logo, extrair vai no sentido de, à luz do preceituado no artº 646, nº 4 do CPC, dar-se como não escrita a resposta (a decisão da matéria de facto) que foi dada ou proferida sobre o alegado no artº 19º da petição inicial e que foi reflectida no ponto 9º da descrição dos factos dados como provados pelo tribunal a quo, o que equivale a dizer-se que deve eliminar-se dos factos provados aquele que consta do ponto 9º da sua transcrição acima feita. De qualquer modo, e razões que acima se deixaram expandidas, não poderia “tal facto” ser aqui considerado. Sendo assim, calcorreando a matéria factual apurada, dela não se extrai qual o destino ou a utilização que o R. deu ou visava dar ao referido veículo (adquirido com o empréstimo monetário que o A. lhe concedeu para o efeito), e consequentemente impedidos ficamos de formular qualquer juízo conclusivo no sentido de se apurar se a dívida contraída por causa da sua aquisição pelo réu o foi ou não em proveito comum do casal que formava com a ré, sendo certo que era sobre o A. que impedia (nos termos do artº 342, nº 1, do CC) tal ónus de prova. Diga-se, a propósito, que a sentença recorrida louvou-se ainda em circunstâncias outras, para concluir pelo proveito comum do casal, que não se encontram reflectidas na materialidade factual dada como assente, por provada. Aliás, em tal sentido apontou o acórdão do STJ de 22/10/2009 (acima citado), ao considerar dever “reputar-se manifestamente insuficiente, para o efeito, a mera prova de que o mútuo foi celebrado para a aquisição de um veículo automóvel, facto que não permite, por si só, concluir que tal aquisição teve em vista o benefício do casal, nem, por conseguinte, qualificar juridicamente a dívida como contraída em proveito comum do casal”. Diga-se que ainda que o facto de o referido veículo poder ser considerado bem comum (artº 1724 al. b), do CC), em nada altera, no caso, a conclusão a que atrás se chegou, sendo certo que (como se escreveu no Ac. do STJ de 14/1/2009, também acima citado) não está aqui em causa o saber se o veículo integrou o património comum do casal, pois que, como vimos, não é pelo resultado da aplicação da dívida (contraída, neste caso, através do referido empréstimo) que se dever aferir, como critério, o proveito comum do casal, mas antes pelo fim visado com ela. Ora, o facto do veículo que o R. adquiriu, com o empréstimo que contraiu, ter passado, ipso iure, a considerar-se bem ou património comum do casal, tal não significa, à falta de mais e melhores elementos materiais, necessária e automaticamente que a dívida, contraída por causa de tal aquisição, tenha sido para beneficiar ou satisfazer directamente os interesses do casal. Pelo que, face ao exposto, é-se levado a concluir que não se mostra preenchido o 2º dos requisitos ou pressupostos legais atrás enunciados que permite responsabilizar a ré pelo pagamento da aludida divida contraída pelo réu (então seu marido). E tal tanto basta para se concluir pela procedência do recurso. Aliás, diga-se ainda, em passant, que perante a matéria factual apurada, não é igualmente certo, a nosso ver, que se mostre igualmente preenchido o 3º requisito acima enunciado. Na verdade, se é certo que a administração dos bens do cabe hoje, em princípio, a ambos os cônjuges (cfr. artº 1678, nº 3, do CC), já não é certo que a dívida em causa tenha sido contraída dentro no âmbito e dentro dos limites dos poderes de administração do réu. A contracção de uma dívida para a compra de um veículo automóvel (até pelos montantes e condições envolvidos, e na falta de outros elementos esclarecedores) não pode reduzir-se ou configurar um simples acto de gestão ou de administração ordinária pelo cônjuge (neste caso pelo R.) que a contraiu. (Para maior e melhor desenvolvimento vidé, a propósito, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Ob. cit., págs. 289/290 e 334/335”). E também por aí a pretensão do autor estaria condenada a fracassar. Diga-se, por fim, que no caso presente não ocorre sequer a situação presuntiva prevista na al. d) - que invertia tal ónus de prova nos termos do artº 350 do mesmo diploma - daquele citado normativo legal (e desde logo porque não foi alegado, e muito menos foi feita a sua prova, de que dívida foi contraída no exercício do comércio do réu) e manifestamente também nenhuma das demais situações previstas nas restantes alíneas do citado artº 1691. Termos, pois, em que por tudo o exposto, se decide conceder provimento ao recurso e, revogar, nessa medida, sentença recorrida na parte que condenou a ré/ora apelante no pedido contra si formulado pelo A.. *** III- Decisão Assim, em face do exposto, no provimento do recurso e parcial revogação da sentença da 1ª instância, acorda-se: a) Em absolver a ré/apelante do pedido contra si formulada nesta acção pelo autor (assim se revogando nessa parte a sentença da 1ª instância). b) Manter, quanto ao demais (na parte em condenou o réu), a sentença da 1ª instância. Custas da acção pelo autor e réu -, na proporção do respectivo decaimento, e que para o efeito se fixa em 1/2 para cada um deles – e do recurso pelo autor/apelado (cfr. artº 446 do CPC na sua redacção anterior à introduzida pelo DL nº 34/08 de 26/2, e artº 2, nº 1 al g), - a contrario - do revogado CCJ, aqui aplicáveis, por força do disposto nos artºs 26 e 27, nº 1, do DL 34/2008 de 24/2, com a última redacção dada pelo artº 156 da Lei nº 64-A/2008 de 31/12). *** A título honorários (no âmbito deste recurso), arbitra-se à ilustre patrona da ré, nomeada no âmbito do apoio judiciário (cfr. fls. 20/24), a quantia de 9 URs. *** Teles Pereira Manuel Capelo |