Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2345/09.5TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
DÍVIDA DE CÔNJUGES
PROVEITO COMUM DO CASAL
Data do Acordão: 11/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 668º, Nº 1, AL. D), DO CPC; 1691º, Nº 1, AL. C), DO C. CIV..
Sumário: I – O vício de excesso de pronúncia – a que se alude na al. d) do nº 1 do artº 668º do CPC -, capaz de levar à nulidade da sentença, ocorre sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, ou seja, ele ocorre sempre que o julgador vai além do conhecimento que lhe foi pedido pelas partes (excluídas aquelas questões que são de conhecimento oficioso.

II – Para que um cônjuge possa, à luz do disposto na al. c) do nº 1 do artº 1691º do CC, ser responsabilizado por uma dívida contraída pelo outro, necessário se torna que: a) essa dívida tenha sido contraída na constância ou vigência do matrimónio; b) que o tenha sido em proveito comum do casal; c) e que o tenha sido no âmbito e nos limites dos poderes de administração do cônjuge que a contraiu.

III – Regime esse que se aplica independentemente do regime de bens que vigore entre os cônjuges, sendo que tais requisitos são cumulativos e cujo ónus de alegação e prova incumbe, como regra, ao autor que dele pretenda prevalecer-se.

IV – Haverá proveito comum do casal sempre que a dívida tiver sido contraída tendo em vista os interesses comuns do casal, ou seja, o interesse da sociedade familiar, sendo que o mesmo, salvo nos casos em que a lei o declarar, não se presume, pelo que terá de ser alegado e provado.

V – O proveito comum do casal deve ser aferido, como critério, em função do fim visado pelo devedor com a contracção da dívida e não pelo seu resultado da aplicação da mesma.

VI – O referido proveito não se esgota num conteúdo puramente económico, podendo mesmo acontecer que o fim visado se reduza tão somente a um interesse intelectual, espiritual ou moral, tudo a avaliar casuisticamente, ou seja, perante cada caso concreto.

VII – Saber se determinada dívida foi contraída em proveito comum do casal implica ou envolve, simultaneamente, uma questão de facto (que comporta a averiguação do destino dado ao dinheiro representado pela dívida) e uma questão de direito (que se traduz em averiguar ou ajuizar se, em face desse destino apurado, a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal).

VIII – A simples prova de que um dos cônjuges aplicou o dinheiro, que lhe foi entregue na sequência de um empréstimo bancário que só ele contraiu, na aquisição de um veículo automóvel revela-se, só por si, manifestamente insuficiente para preencher e integrar quer o aludido conceito de “proveito comum do casal”, quer mesmo o conceito de “património comum do casal”.

Decisão Texto Integral: Acordam neste tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. O autor, BANCO A..., S.A., intentou (em 2/10/2009) contra os réus, B... e mulher C..., todos melhor identificados nos autos, a presente acção espacial declarativa de condenação para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato (à luz do DL nº 269/98 de 1/9).

Para o efeito alegou, em síntese, o seguinte:

No exercício da sua actividade comercial, emprestou ao R. marido a quantia de € 14.075,00, para financiamento da aquisição de um veículo automóvel.

Para tal outorgaram o A. e o R. marido, por documento particular, um contrato de mútuo, nos termos do qual, à verba mencionada acresciam juros à taxa nominal de 13,24% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como a comissão de gestão, o imposto de selo de abertura de crédito e o prémio do seguro de vida, serem pagos, nos termos acordados, em 72 prestações, mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 20 de Junho de 2004 e as seguintes nos dias 20 dos meses subsequentes.

Ainda de harmonia com o acordado entre as partes a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para a conta bancária do A.,. sediada em Lisboa.

Conforme também expressamente acordado, a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais e, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 13,24% - acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 17,24%.

Acontece que R. marido, das prestações referidas, não pagou a 51.ª prestação e seguintes, vencida a primeira em 20/08/2008, tendo contudo pago a 52.ª prestação, com vencimento em 20/09/2008, - num total de 21 –, vencendo-se então todas, sendo o montante de cada uma de € 293,49.

O total das prestações em débito pelo R. marido ao A., ascende a € 6.163,29 (21 x € 293,49), quantitativo este a que acrescem juros - incluindo já a cláusula penal referida - que sobre ele se vencerem à referida taxa de 17,24% ao ano, desde a data do vencimento referida, desde 20/08/2008, até integral e efectivo pagamento.

Estes juros vencidos - até 2 de Outubro de 2009 (data da instauração da acção) - ascendem já a € 1.187,73, sendo que sobre eles incide imposto de selo, à taxa de 4% ao ano. Imposto esse, sobre os juros referidos, que ascende já a € 47,51.

Pelo pagamento de tais importâncias em divida é também, solidariamente, responsável a ré, dado que o empréstimo em causa reverteu em proveito comum do casal por ambos então formado.

Nesses termos terminou o A. pedindo a condenação dos RR. a pagarem-lhe importância de € 6.163,29, acrescida da quantia de € 1.187,73 de juros vencidos até à data da instauração da acção, mais da quantia de € 47,51 de imposto de selo sobre os juros vencidos, mais dos juros que à referida taxa de 17,24%, se vencerem, sobre aquele capital inicial, desde 3/10/2009 até integral e efectivo pagamento e, ainda, do imposto de selo sobre os juros vincendos.

2. Apesar de ambos terem sido citados para o efeito, apenas a ré contestou.

E, em síntese, defendeu-se alegando desconhecer em pormenor os detalhes do contrato em causa, embora admitindo saber da sua existência.

Que desde Setembro de 2005 ambos réus se encontravam separados de facto, vindo o casamento que ambos celebraram a ser dissolvido na sequência do divórcio, por mútuo consentimento, decretado em 28/9/2009, por decisão da Sra. Conservadora da Conservatória de Registo Civil da Figueira da Foz, de imediato transitada em julgado.

Que o veículo adquirido, graças ao empréstimo contraído unicamente pelo réu marido, não reverteu em proveito comum do então casal dos réus, porquanto o mesmo foi adquirido por iniciativa única daquele com o intuito de realizar os seus próprios interesses, satisfazendo uma necessidade apenas sua.

Que, ao que sabe, pelo menos até se manter a viver com o réu sempre este terá pago as prestações devidas pelo contrato.

Pelo que terminou pedindo a improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.

3. Mais tarde, procedeu-se à realização do julgamento – com a gravação dos depoimentos prestados em audiência.

4. Seguiu-se a prolação da sentença, que, a final, julgou a acção totalmente procedente, condenando os RR. no pedido.

5. Não se conformando com tal sentença, o ré dela apelou, tendo concluído as suas respectivas alegações de recurso nos seguintes termos:

[…]

6. Contra-alegou o autor, pugnando pela improcedência do recurso e pela, consequente, manutenção do julgado.

7. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação


A) De facto.

Pelo tribunal da 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

[…]


***

B) De direito.

1. Do objecto do recurso.

É sabido (entendimento que continua a manter-se com a actual reforma, aqui aplicável, introduzida pelo DL nº 303/2007 de 24/8 - artºs 684, nº 3, e 685-A, nº 1, da actual versão do CPC) que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o seu objecto.

Importa também, desde já, salientaR que, tal como vem sendo dominantemente entendido, o vocábulo “questões” referido no artº 660, nº 2, do CPC, de que o tribunal deva conhecer, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.”, e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”), sem prejuízo daquelas questões de que o tribunal possa ou deva conhecer oficiosamente.

Ora, compulsando as conclusões das alegações do presente recurso, verifica-se que as questões que importa aqui apreciar são as seguintes:

a) Da nulidade da sentença.

b) Da responsabilidade da apelante/ré (mulher) pelas dívidas contraídas pelo réu (ex-marido) com a outorga do contrato que celebrou com o autor.


***

2. Quanto à 1ª questão.

Da nulidade da sentença.

Invoca a ré/apelante a nulidade da sentença, por alegada violação do disposto no artº 668, nº 1 al. d), do CPC.

Nulidade essa que fundamenta no facto de a srª juiz a quo ter, por sua vez, fundamentado a sua condenação no entendimento de a dívida ter sido contraída (pelo réu junto do A.) em proveito comum do casal, invocando, porém, para o efeito a norma contida na al. a) do nº 1 do artº 1691 do CC. Contudo, aduz a apelante, nunca o A. alegou – nem provou - que a dívida em causa no processo havia sido requerida por ambos os RR., nem tão pouco alegou - nem provou - que a recorrente havia dado o seu consentimento para que o réu, seu ex-marido, contraísse aquela dívida. Pelo que, no seu entender, a srª juiz a quo conheceu de questões de que não poderia conhecer.

Apreciamos.
Nos termos do preceituado no citado artº 668, nº 1 al. d), do CPC “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento”.
Decorre de tal norma que o vício que afecta a decisão advém de uma omissão (1º segmento da norma) ou de um excesso de pronúncia (2º segmento da norma).
Na verdade, é sabido que essa causa de nulidade se traduz no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no nº 2 do artº 660 do CPC, que é, por um lado, o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes (salvo aquelas em que a lei lhe permite delas conhecer oficiosamente).
Ao alegar que a sentença “a Meritíssima juiz a quo conheceu de questões de que não poderia tomar conhecimento”, está de algum modo a invocar um excesso de pronúncia por parte do tribunal a quo.
Ora, como se infere do que já deixámos expresso, o excesso de pronúncia pressupõe que o julgador vai além do conhecimento que lhe foi pedido pelas partes. Por outras palavras, haverá excesso de pronúncia, sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido. (Cfr. o prof. Alb. dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 49 e ss”; o prof. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil, págs. 672/673”; o prof. Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, pág. 143”; o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pág. 670”), e Ac. do STJ de 06/02/1992, in “BMJ, 414 – 415”).
Ora, basta atentar no pedido de tutela judiciária que o autor formulou, na causa de pedir em que o fez assentar, na decisão final proferida pelo tribunal a quo e na fundamentação que precedeu essa parte dispositiva, para facilmente se concluir não ter incorrido aquele tribunal em qualquer excesso de pronúncia.
Na verdade, como ressalta daquilo que se deixou exarado no relatório, o autor fundamentou a sua pretensão de condenação, desde logo, do réu no facto de lhe ter emprestado a quantia de € 14.075,00, para financiamento da aquisição de um veículo automóvel, nas condições que foram acordados no contrato de mútuo que por ambos foi celebrado, mas que o mesmo veio a incumprir, nos termos que acima se deixaram referidos. E daí que tenha pedido, com base nesse incumprimento, a condenação do réu no pagamento das importâncias que supra se deixaram referidas.

Porém, esse pedido de condenação estendeu-o também à ré, com o fundamento aduzido de o empréstimo em causa ter revertido em proveito comum do casal (por ambos então formado).

Ora, na sentença recorrida veio a aderir-se aos fundamentos aduzidos pelo A., para condenar ambos nos RR. nos termos peticionados por aquele.

No que concerne à condenação da ré – aquela que neste recurso apenas se discute -, basta compulsar a sentença para ver verificar que ela foi ali fundamentada no facto do sobredito empréstimo ter revertido em proveito comum do casal, ou seja, por se ter concluído que a referida dívida contraída pelo R. o foi em proveito comum do casal.

É assim, manifesto que não houve qualquer excesso de pronúncia, e nomeadamente no que concerne à condenação final da ré. O tribunal a quo conheceu das questões que lhe foram colocadas, à luz do pedido e da causa de pedir que sustentaram a tutela judiciária pedida pelo A. através desta acção.

É certo que (certamente, por manifesto lapso) cita-se, em termos de fundamentação jurídica, o artº 1691, nº 1 al. a), do CC, mas isso em nada invalida a sobredita conclusão, quando muito isso poderá contender com um alegado erro de julgamento (de direito) sobre a questão sub judíce (da condenação da ré) - questão essa que, contudo, irá ser de seguida apreciada -, nas não com o apontado vicio estrutural que foi apontada à sentença.
E, pois, patente que não ocorre aquele apontado vício, capaz de conduzir à nulidade da sentença.


***

3. Quanto à 2ª questão.

No que concerne aos termos em que foi decidido o mérito da causa pela sentença recorrida, a ré/apelante apenas se insurge quanto à parte ou seguemento dela que a condenou também - a par do réu (seu ex-marido) e em regime de solidariedade com o mesmo – no pagamento das quantias que o autor peticionava nesta acção. Ou seja, a ré/apelante não ataca a decisão, e a respectiva fundamentação, que condenou, nos termos que acima se deixaram aludidos, o réu (seu ex-marido), mas tão somente o faz na parte em que a condenou a ela. E fá-lo nos termos e com os fundamentos que acima se deixaram exarados aquando da transcrição das conclusões das suas alegações de recurso.

Assim, o que está aqui somente em causa traduz-se em saber se a ré/apelante deve neste caso ser também responsabilizada pelas dívidas contraídas pelo R. (seu ex-marido) na sequência do sobredito contrato (de mútuo) que o mesmo celebrou (e que depois incumpriu) com o A., e através do qual, este lhe emprestou a quantia inicial, de € 14.075,00, destinado, segundo informação sua, à aquisição de um veículo automóvel.

Para fundamentar a responsabilidade da ré, o autor alegou que o referido empréstimo reverteu em proveito comum de casal – dado o veículo em causa se destinar ao património comum desse mesmo casal, formado pelos RR..

Apreciemos.

Como é sabido, ainda que não tenham intervido como partes em determinado negócio, como sucedeu no caso em apreço com a ré, é possível responsabilizar um dos cônjuges pelas dívidas contraídas pelo outro (regime da comunicabilidade das dívidas). Tal sucede quando ocorre alguma das situações previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artº 1691 do CC.

Face ao que atrás se deixou exarado, parece ser claro que o A. fundamentou aquele seu pedido (de condenação solidária da ré) à luz do disposto no artº 1691, nº 1 al. c), do C. Civil.

Já agora, diga-se que, compulsando a sentença recorrida facilmente se verifica que foi com base no fundamento do proveito comum do casal que a ré foi condenada, muito embora se tenha, em passant, indicado a al. a) do nº 1 do citado artº 1691, em vez da al. c) do mesmo (o que só se compreenderá por manifesto lapso de escrita, pois é patente que in casu jamais se poderia justificar a condenação da ré à luz do disposto citada al. a) daquele normativo legal, dado que nem sequer foi alegado, e muito menos ficou provado, que o referido empréstimo tivesse sido contraído com o consentimento daquela - sendo esse um dos elementos a previsão norma e um dos requisitos dos pressupostos da tal responsabilidade).

Nesse dispositivo (o citado artº 1691, nº 1 al. c)) estatui-se que são da responsabilidade de ambos os cônjuges “as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração”.

Resulta, assim, de tal normativo que são requisitos ou pressupostos substanciais para que um cônjuge possa ser responsabilizado pelas dívidas contraídas pelo outro: a) que tais dívidas tenham sido contraídas na constância ou vigência do matrimónio; b) que o tenham sido em proveito comum do casal; c) e que o tenham sido no âmbito e nos limites dos poderes de administração do cônjuge que as contraiu.

Requisitos esses que são cumulativos e cujo ónus de alegação e prova incumbe, como regra, ao autor, que pretende fazer valer-se dessa situação de comunicabilidade da dívida (artº 342, nº 1, do CC).

Vem constituindo entendimento prevalecente que o regime previsto na citada alínea c) daquele normativo legal se aplica independentemente do regime de bens que vigore entre os cônjuges.

No tocante ao 1º requisito, calcorreando a matéria factual dada como assente (em conjugação com o que ressalta do documento junto a fls. 30/32 – certidão da sentença que decretou a o divórcio entre eles – que não foi objecto de qualquer impugnação, e aqui a considerar nos termos do disposto no artº 659, nº 3, do CPC) dela ressalta que os RR., em 05/04/2002, contraíram entre si casamento, sem convenção nupcial (o que significa foram casados segundo o regime de comunhão de adquiridos – cfr. artº 1717 do CC), o qual só veio a ser dissolvido em 28/9/2009.

Os RR. eram assim casados, segundo regime de comunhão de adquiridos, na altura que o réu contraiu o referido empréstimo, pelo que não subsistiam dúvidas de que a dívida em causa foi contraída na constância ou vigência do matrimónio celebrado entre os referidos RR., e daí que seja de concluir pelo verificação do 1º requisito acima aludido.

O 2º requisito pressupõe que a dívida tenha sido contraída em proveito comum do casal.

Haverá proveito comum do casal sempre que a dívida tiver sido contraída tendo em vista os interesses comuns do casal, ou seja, o interesse da sociedade familiar.

Proveito comum esse que, salvo os casos em que a lei o declarar, não se presume (cfr. nº 3 do citado artº 1691), o que significa que terá de ser alegado e provado.

Vem constituindo também entendimento dominante que no conceito legal de proveito comum deve atender-se ao fim visado pela aplicação e não aos resultados dessa aplicação (isto é, será em função do fim visado pelo devedor com a contracção da divida, e não pelo seu resultado, que se deve aferir tal proveito comum) e que o mesmo não se esgota num conteúdo puramente económico, podendo mesmo acontecer que o fim visado se reduza tão somente a um interesse intelectual, espiritual ou moral, tudo a avaliar casuisticamente, ou seja, perante cada caso concreto.

Por outro lado, vem também constituindo controvérsia, na nossa doutrina e jurisprudência, o saber se o referido proveito comum constitui em si uma questão de facto e de direito.

Porém, vem igualmente ganhando predominância a corrente de opinião - à qual aderimos, tal como no que concerne à questão anterior - de que estamos perante uma questão complexa ou mista, ou seja, de que consubstancia em si uma questão de facto e também uma questão de direito. Consubstancia uma questão de facto quando se visa alcançar o destino ou fim visado pela aplicação, neste caso com a contracção da dívida, e consubstancia uma questão de direito quando se visa determinar se, face ao destino apurado que foi dado à referida aplicação, a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal. Ou seja, o saber se determinada dívida foi contraída em proveito comum do casal implica ou envolve, ao mesmo tempo ou simultaneamente, uma questão de facto (que comporta a averiguação do destino dado ao dinheiro representado pela dívida) e uma questão de direito (que se traduz em averiguar ou ajuizar se, em face desse destino apurado, a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal). Vide, a propósito da temática que vimos abordando, e em tal sentido, e entre outros, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, págs. 329/335”; os profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito de Família, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, págs. 451/452”; Acs. do STJ 7/1/2010, processo 2318/07.2TVLSB.L1.S1; de 22/10/2009, processo 419/07.6TVLSB.S1, e de 10/12/2009, proc. 1499/97.0TVLSB.L1, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj).

Posto isto, e reportando-nos ao caso em apreço, diremos:

Como supra deixámos expresso, para fundamentar a responsabilidade da ré o A. limitou-se a alegar que o sobredito empréstimo (em que se consubstanciou o referido contrato de mútuo celebrado com o R.) reverteu em proveito comum de casal – atento até o veículo em causa se destinar ao património comum do casal dos RR. (cfr. artº 19º da p.i.).

Calcorreando matéria factual dada como provada pelo tribunal a quo, verifica-se que, em matéria de “proveito comum de casal”, dela apenas consta, descrita sob o nº 9, o seguinte: “O empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal dos RR. - atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos RR.”

Donde se extrai que aquele tribunal, na decisão proferida sobre a matéria de facto, deu integralmente como provado aquilo que, a tal propósito, foi alegado pelo A., e nos exactos termos em que o mesmo fez. E foi partindo daí que, como vimos, condenou também a ré.

Porém, tal como vem constituindo entendimento claramente dominante, e nomeadamente do nosso mais alto tribunal, que a expressão “proveito comum do casal” configura em si um conceito jurídico/conclusivo, a que deverá chegar-se a partir dos concretos factos materiais alegados e provados, ou seja, envolve em si um conceito de natureza jurídica ou de direito que há-de ser integrado e preenchido através ou a partir dos correspondentes factos materiais que permitam concluir, nos termos supra referidos, sobre o fim visado por um dos cônjuges com a aplicação do dinheiro obtido com a contracção da dívida, isto é, se visou ou não o proveito comum do casal. E o mesmo se dirá no que concerne à expressão, que foi alegada (e transcrita também para o factos provados) pelo A., de o referido veículo (adquirido pelo A) se destinar ao património comum do casal dos RR.. É que também a expressão “património comum” configura igualmente um conceito jurídico ou direito, e ser preenchido e integrado nos mesmos moldes atrás referidos para o conceito de proveito comum de casal, ou seja, a partir dos concretos factos materiais alegados. (No sentido acabado de defender, vide, entre muitos outros, os Acs. do STJ de 7/1/2010; de 22/10/2009; de 10/12/2009, estes já acima citados, de 14/1/2010, proc. 849/04.5TBLSD.P1.S1; de 10/9/2009, proc. 07B3536; de 11/11/2008, proc. 08B3303; de 12/7/2005, proc. 05B1710, todos publicados www.dgsi.pt/jstj, e ainda de 13/11/2007, in “CJ., Acs. do STJ, Ano XIII, T1, pág. 13”. Sobre a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, e que conduzem à conclusão atrás expandida, vide ainda o prof. Antunes Varela, in “RLJ, Ano 122, pág. 220”; o prof. Alb. dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado, vol. III, págs. 206/207”; o prof. Vaz Serra, in “RLJ Ano 112, pág. 271 e ss”; o estudo do conselheiro Abel Freire, in “C.J., Acs. do STJ, nº 171, Ano IX, tomo III, pág.5 e segs” e Acs. do STJ de 22/2/1995 e de 8/11/1995, respectivamente, in “CJ, Ano II, T1 - 279 e CJ, Ano II, T3 - 294”).

Posto isto, a primeira consequência que se deverá, desde logo, extrair vai no sentido de, à luz do preceituado no artº 646, nº 4 do CPC, dar-se como não escrita a resposta (a decisão da matéria de facto) que foi dada ou proferida sobre o alegado no artº 19º da petição inicial e que foi reflectida no ponto 9º da descrição dos factos dados como provados pelo tribunal a quo, o que equivale a dizer-se que deve eliminar-se dos factos provados aquele que consta do ponto 9º da sua transcrição acima feita. De qualquer modo, e razões que acima se deixaram expandidas, não poderia “tal facto” ser aqui considerado.

Sendo assim, calcorreando a matéria factual apurada, dela não se extrai qual o destino ou a utilização que o R. deu ou visava dar ao referido veículo (adquirido com o empréstimo monetário que o A. lhe concedeu para o efeito), e consequentemente impedidos ficamos de formular qualquer juízo conclusivo no sentido de se apurar se a dívida contraída por causa da sua aquisição pelo réu o foi ou não em proveito comum do casal que formava com a ré, sendo certo que era sobre o A. que impedia (nos termos do artº 342, nº 1, do CC) tal ónus de prova. Diga-se, a propósito, que a sentença recorrida louvou-se ainda em circunstâncias outras, para concluir pelo proveito comum do casal, que não se encontram reflectidas na materialidade factual dada como assente, por provada.

Aliás, em tal sentido apontou o acórdão do STJ de 22/10/2009 (acima citado), ao considerar dever “reputar-se manifestamente insuficiente, para o efeito, a mera prova de que o mútuo foi celebrado para a aquisição de um veículo automóvel, facto que não permite, por si só, concluir que tal aquisição teve em vista o benefício do casal, nem, por conseguinte, qualificar juridicamente a dívida como contraída em proveito comum do casal”.

Diga-se que ainda que o facto de o referido veículo poder ser considerado bem comum (artº 1724 al. b), do CC), em nada altera, no caso, a conclusão a que atrás se chegou, sendo certo que (como se escreveu no Ac. do STJ de 14/1/2009, também acima citado) não está aqui em causa o saber se o veículo integrou o património comum do casal, pois que, como vimos, não é pelo resultado da aplicação da dívida (contraída, neste caso, através do referido empréstimo) que se dever aferir, como critério, o proveito comum do casal, mas antes pelo fim visado com ela. Ora, o facto do veículo que o R. adquiriu, com o empréstimo que contraiu, ter passado, ipso iure, a considerar-se bem ou património comum do casal, tal não significa, à falta de mais e melhores elementos materiais, necessária e automaticamente que a dívida, contraída por causa de tal aquisição, tenha sido para beneficiar ou satisfazer directamente os interesses do casal.

Pelo que, face ao exposto, é-se levado a concluir que não se mostra preenchido o 2º dos requisitos ou pressupostos legais atrás enunciados que permite responsabilizar a ré pelo pagamento da aludida divida contraída pelo réu (então seu marido).

E tal tanto basta para se concluir pela procedência do recurso.

Aliás, diga-se ainda, em passant, que perante a matéria factual apurada, não é igualmente certo, a nosso ver, que se mostre igualmente preenchido o 3º requisito acima enunciado.

Na verdade, se é certo que a administração dos bens do cabe hoje, em princípio, a ambos os cônjuges (cfr. artº 1678, nº 3, do CC), já não é certo que a dívida em causa tenha sido contraída dentro no âmbito e dentro dos limites dos poderes de administração do réu.

A contracção de uma dívida para a compra de um veículo automóvel (até pelos montantes e condições envolvidos, e na falta de outros elementos esclarecedores) não pode reduzir-se ou configurar um simples acto de gestão ou de administração ordinária pelo cônjuge (neste caso pelo R.) que a contraiu. (Para maior e melhor desenvolvimento vidé, a propósito, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Ob. cit., págs. 289/290 e 334/335”).

E também por aí a pretensão do autor estaria condenada a fracassar.

Diga-se, por fim, que no caso presente não ocorre sequer a situação presuntiva prevista na al. d) - que invertia tal ónus de prova nos termos do artº 350 do mesmo diploma - daquele citado normativo legal (e desde logo porque não foi alegado, e muito menos foi feita a sua prova, de que dívida foi contraída no exercício do comércio do réu) e manifestamente também nenhuma das demais situações previstas nas restantes alíneas do citado artº 1691.

Termos, pois, em que por tudo o exposto, se decide conceder provimento ao recurso e, revogar, nessa medida, sentença recorrida na parte que condenou a ré/ora apelante no pedido contra si formulado pelo A..


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III- Decisão


Assim, em face do exposto, no provimento do recurso e parcial revogação da sentença da 1ª instância, acorda-se:

a) Em absolver a ré/apelante do pedido contra si formulada nesta acção pelo autor (assim se revogando nessa parte a sentença da 1ª instância).

b) Manter, quanto ao demais (na parte em condenou o réu), a sentença da 1ª instância.

Custas da acção pelo autor e réu -, na proporção do respectivo decaimento, e que para o efeito se fixa em 1/2 para cada um deles – e do recurso pelo autor/apelado (cfr. artº 446 do CPC na sua redacção anterior à introduzida pelo DL nº 34/08 de 26/2, e artº 2, nº 1 al g), - a contrario - do revogado CCJ, aqui aplicáveis, por força do disposto nos artºs 26 e 27, nº 1, do DL 34/2008 de 24/2, com a última redacção dada pelo artº 156 da Lei nº 64-A/2008 de 31/12).


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A título honorários (no âmbito deste recurso), arbitra-se à ilustre patrona da ré, nomeada no âmbito do apoio judiciário (cfr. fls. 20/24), a quantia de 9 URs.

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Isaías Pádua (Relator)
Teles Pereira
Manuel Capelo