Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2887/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO TRINDADE
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA
DESCRIÇÃO DA FACTUALIDADE INTEGRADORA DO ILÍCITO
Data do Acordão: 11/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 291º DO CP
Sumário: I- O crime de condução perigosa de veículo rodoviário previsto no artº 291º do Código Penal é um crime de perigo concreto.

II- Esse perigo concreto não exige, (embora seja aconselhável ) uma minuciosa identificação dos factores potenciadores do risco( velocidade a que se circulava, rastos de travagem a largura da via, número de veículos em circulação etc.- ) , sendo suficiente a descrição, como na acusação em apreço, duma determinada conduta que, segundo os padrões do condutor médio e as regras da experiência comum, permitam concluir pela existência desse perigo concreto

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal desta Relação:

O Digno Magistrado do Ministério Público acusou o arguido A... ,melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática de

- um crime de condução perigosa de veículo rodoiviário p. p. pelo art.º 291º,nº 1, al. b) do Código Penal (CP) com base na seguinte factualidade:

No dia 13 de Abril de 2003, cerca das 23 h 30, junto ao café S. Sebastião, sito em Pombal, o arguido travou-se de razões com a sua mulher B... e com 3 pessoas que a acompanhavam , em especial com C....

A fim de obstarem a um eventual desacato, todos estes introduziram-se no veículo ligeiro de passageiros pertencente e conduzido pelo dito C... e dirigiram-se pela EN nº 1, em direcção a esta cidade de Leiria.

De imediato forma perseguidos pelo arguido ao volante do seu automóvel.

Assim , o arguido começou por “colar” a sua viatura, com os máximos ligados ,à traseira da do C....

Depois, encetou uma série de ultrapassagens quer pela direita, quer pela esquerda ao veículo do C..., transpondo para tanto ,o traço longitudinal contínuo , divisório das hemi-faixas de rodagem.

Ao fim de cada uma dessa manobras o arguido reduzia a velocidade e colocava-se à frente do mesmo veículo, de modo repentino, fazendo com que , em virtude disso , o C... tivesse de accionar o mecanismo de travagem para evitar embater na viatura do arguido.

A proeza do arguido só terminou no lugar da Cova das Faias, nesta cidade e comarca de Leiria , quando foi mandado parar por agentes policiais, que alertados para o efeito foram pôr cobro a tal situação.

E ,isso ,porque o C... ao recear pela sua vida e daqueles que transportava não encontrou outra solução para evitar uma iminente tragédia que não fora a de pedir auxílio policial através do número de emergência “112”.

Além de, no sobredito percurso, ter violado diversas regras de trânsito, mormente sobre distâncias entre veículos e de ultrapassagens, o arguido fez uma condução desatenta e descuidada e imprudente, com perfeito conhecimento que com as suas relatadas condutas colocou em risco de vida daqueles que, na ocasião, circulavam pela assinalada via, em particular para o C... e seus acompanhantes, bem como pôs em perigo as viaturas alheias , de avultado valor.

Agiu, sempre livre e conscientemente, não ignorando que incorria em responsabilidade criminal.

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O Mº Juiz a quo considerando que, apesar da forma impressiva como que decorre ao nível concreto a actividade do arguido, o certo é que a acusação não especifica as consequências exactas de tal actuação de forma a impor-se um juízo de perigo concreto, apesar de descrever uma face do juízo de ilicitude, não indica a outra face ,o desvalor do resultado, rejeitou a acusação porque manifestamente infundada porquanto os factos descritos não constituem crime.

Inconformado, recorreu o Mº Pº , concluindo a sua motivação do seguinte modo:
1. Uma acusação só deve ser considerada manifestamente infundada quando for evidente que não pode proceder, como são os casos de os factos nela descritos não constituírem crime ou não revelarem os autos o mínimo suporte que a possa fundamentar.
2. A acusação dos autos contém todos os factos necessários e suficientes , configuradores da prática do crime p. e p. no artº 291º, al. b) do CP.
3. Em particular mostra-se preenchido o perigo concreto exigido pelo tipo legal.
4. A deficiente ou imperfeita caracterização da conduta típica não é motivo de rejeição da acusação.
5. A acusação rejeitada não é, pois , manifestamente infundada.
6. Violou , o despacho recorrido, a nosso ver, o disposto nos arts 283º, nº 2 e 311º, nº 2 al. a) ambos do CPP.
7. Nestes termos deverá ser revogado o despacho recorrido, ordenando-se a prolação de outro em que se receba a acusação deduzida e se designe data para julgamento.

O arguido respondeu pugnando pela improcedência do recurso para tal concluindo:
1. O crime pelo qual vem acusado é um crime de perigo concreto.
2. Pelo que para que se verifique a sua prática é necessário a violação grosseira das regras da circulação rodoviárias, assim como também a criação de um perigo concreto para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
3. No caso sub judicie a acusação é omissa quanto ao perigo concreto criado pela conduta do arguido.
4. Esta apenas refere que tal perigo foi criado mas não especifica como.
5. Desta forma não se mostra preenchido o tipo objectivo do ilícito.
6. Para isso seria necessário em concreto averiguar quais as circunstâncias em que a conduta do arguido foi praticada (existência de outros veículos na via, a velocidade a que se deslocavam, a dimensão do rasto de travagem que o C... foi obrigado a realizar).
7. Porquanto os factos constantes da douta acusação, por si só não importam a verificação do tipo legal de crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. no artº 291º, nº 1 al. b) do CP.
8. Sendo o fundamento apresentado suficiente para a rejeição da acusação, nos termos do artº 311º, nº 2 e nº 3 al. c) do CPP, por violação do disposto no artº 283º, nº 2 de nº 3 alínea b) do VPP.

Nesta Relação o Exmo. Procurador –Geral Adjunto emite parecer no sentido do provimento pois considera que em função da descrição dos factos feita na acusação, que não necessita de ser exaustiva, levada a cabo pelo arguido resultou grave perigo para a vida do C... e passageiros do veículo tripulado por aquele.

Parecer que notificado não mereceu resposta.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência há que decidir :

O âmbito dos recursos afere-se e delimita-se através das conclusões formuladas na respectiva motivação conforme jurisprudência constante e pacífica desta Relação, bem como dos demais tribunais superiores, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Acusação manifestamente infundada é aquela que em face dos seus próprios termos é, desde logo, evidente que não pode vir a ser julgada procedente, nomeadamente é aquela que, seja por ausência de factos que a suportem, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico – criminal, resultaria inevitavelmente com a submissão do arguido a julgamento, porque inútil, numa flagrante violência e injustiça para o mesmo.

Tal ausência de factos terá de ser aferida em relação ao disposto no artº 283º, nº 3 e existe quando a descrição factual constante do libelo acusatório não suporta a imputação de um determinado tipo legal.

No caso vertente e na acusação são descritos factos que são subsumíveis ao tipo legal indicado.

Na verdade o crime de condução perigosa de veículo rodoviário é um crime de perigo concreto( - É este o entendimento expresso por Figueiredo Dias no seio da Comissão Revisora do Código penal de 1982 – Acta Nº 32 relativa à sessão ocorrida em 17 de Maio de 1990) posto que não exige como elemento constitutivo um dano ou lesão dos bens jurídicos que tutela (vida ,integridade física e bens patrimoniais de valor elevado) , limitando-se a exigir a criação de um perigo para aqueles bens( - O perigo de que aqui se trata (perigo concreto) traduz-se na forte probabilidade de ocorrência de dano ou do resultado desvalioso que a norma pretende evitar se desencadeie ou, pelo menos , na colocação em causa da segurança dos bens jurídicos tutelados de tal modo que a sua lesão não fica dependente do acaso. Veja-se no primeiro sentido Faria Costa , O Perigo em Direito Pena(1992), 580 e ss e no segundo Rui Carlos Pereira , O Dolo de Perigo (1995), 32), o qual tanto pode decorrer do facto de o agente não se encontrar em , condições de conduzir com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob a influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos de efeito análogo ou de deficiência física ou fadiga excessiva ( alínea a) do número 1) , como da violação grosseira das regras da circulação rodoviárias referidas na alínea b) do número 1.

Tal facto típico deve-se ter por consumado , pois , logo que se verifique o risco(efectivo) de lesão de qualquer dos bens jurídicos que se visam proteger, desde que esse risco advenha de uma condução de veículo rodoviário(em via pública ou equiparada) .

“Os crimes formais e os crimes de perigo distinguem-se, na medida em que enquanto os primeiros são independentes do resultado, os segundos podem ser materiais, isto é, exigir um certo resultado para que se produza a consumação – Beleza dos Santos.” ( - Beleza dos Santos , Direito Criminal, pag. 275 e Eduardo Correia , Dtº Criminal 1971-I-288)

A noção de crime de perigo não parece suscitar grandes dúvidas, sendo que essa noção tem sido formulada por contraposição à do crime de dano, através da não exigência típica de efectiva lesão do bem jurídico tutelado pela norma, pelo que serão crimes de perigo aqueles cuja consumação se basta com o risco (efectivo ou presumido) de lesão do bem jurídico , risco esse que se consubstancia numa situação de perigo , a qual só por si tutelada está pela norma , constituindo ao fim e ao cabo o “resultado” que se pretende evitar , indissoluvelmente ligado , evidentemente , ao bem jurídico que aquela visa proteger.

Assim, haverá uma situação de perigo sempre que a produção do resultado desvalioso, isto é , o previsto pela norma , com o sentido que já definimos, mediante a formulação de um juízo de experiência , é mais provável que a sua não produção; ou pelo menos ocorre uma forte probabilidade de o resultado desvalioso se vir a desencadear ou a acontecer. Donde, a mera possibilidade de produção do resultado não é suficiente para caracterizar a situação como sendo de perigo , isto é , não engloba os elementos suficientes para se poder defender que se está perante um perigo jurídico - penalmente relevante. ( -Cfr. Faria Costa, O Perigo em Direito penal ( Dissertação da doutoramento em ciências jurídico-criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1992), 580 e segs.)( - Veja-se ,porém , em sentido contrário J. Marques Borges , Dos Crimes de Perigo Comum e dos Crimes Contra a Segurança das Comunicações)( - Também Rui Carlos Pereira, O Dolo de perigo(1995), 32 , parece defender um ponto de vista diferente , ao afirmar que haverá perigo(concreto) quando a segurança do bem jurídico é posta em causa de tal modo que a sua lesão ou não lesão depende do acaso.)

Como refere Figueiredo Dias( - Cfr. Direito Penal , Sumário das Lições à 2ª turma do 2º ano da Faculdade de Direito , 145) os crimes de perigo concreto e de perigo abstracto distinguem-se , consoante o perigo é ele próprio elemento do tipo ou só motivo da proibição.

Com efeito, crimes de perigo abstracto são aqueles em que o perigo constitui um mero motivo da incriminação, renunciando o legislador a concebê-lo com o resultado da acção, sendo crimes de perigo concreto aqueles em que o perigo surge como “evento típico” , destacado da própria acção perigosa, pelo que ao nível da imputação objectiva , como já ficou dito , é exigível a demonstração da existência de um vínculo causal (sublinhado nosso)entre a acção e uma situação destacável , em que a lesão do bem jurídico se afigure possível ou provável , nos termos já aludidos.”( - Oliveira Mendes,O Direito à Honra e a sua Tutela Penal ,45 e 47)

Face ao exposto e à factualidade constante da acusação não restam dúvidas que estão preenchidos os elementos constitutivos do crime pelo qual o arguido foi acusado.

Na verdade quem enceta uma série de ultrapassagens quer pela direita, quer pela esquerda, transpondo o traço longitudinal contínuo, ao fim de cada uma dessas manobras reduz a velocidade e coloca-se à frente de um outro veículo de modo repentino, fazendo com que em virtude disso o outro veículo tivesse de accionar o mecanismo de travagem para evitar embater na viatura do arguido, ao longo de vários quilómetros, cria perigo para a vida e integridade física não só dos ocupantes do veículo visado, como também , dos ocupantes de outros veículos que circulassem em sentido contrário, traduzindo-se esta conduta num comportamento temerário que consubstancia o perigo concreto a que fizemos referência.

Esse perigo concreto não exige, (embora seja aconselhável ) uma minuciosa identificação dos factores potenciadores do risco( velocidade a que se circulava, rastos de travagem a largura da via, número de veículos em circulação etc.- ) , sendo suficiente a descrição, como na acusação em apreço, duma determinada conduta que, segundo os padrões do condutor médio e as regras da experiência comum, permitam concluir pela existência de um perigo concreto.

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Nestes termos se decide:
- Julgar por provido o recurso revogando-se o despacho recorrido, que será substituído por outro em que se receba a acusação e designe data para julgamento.

Sem tributação.

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Coimbra, 2004-11-24