Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1020/14.3T9CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: DIFAMAÇÃO AGRAVADA
Data do Acordão: 11/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 180.º, N.º 1, 183.º N.º 1, ALÍNEA A), 184.º E 132.º, N.º 2, ALÍNEA 1), DO CP
Sumário: As expressões da arguida-presidente de uma câmara municipal, proferidas, nessa qualidade, perante terceiros, visando o vice-presidente, também vereador daquele órgão, do seguinte teor: “judas”, “incompetente”, “faltas de lealdade e competência, desempenho, dedicação e sentido de compromisso do vereador”, “falta de lealdade e incompetência do membro do executivo para exercer as funções”, “o projecto que temos para…estava a ser desvirtuado pela louca sede de poder do vereador em questão”, constituirão, quanto muito, falta ética, por evidenciarem alguma falta de polimento, mas nunca o imputado crime de difamação agravada, p. p. nos termos dos artigos 180.º, n.º 1, 183.º n.º 1, alínea a), e 184.º, todos do CP, com referência ao art. 132.º, n.º 2, alínea 1), do mesmo diploma legal.
Decisão Texto Integral:







ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


Nos autos de instrução que, sob o nº 1020/14.3T9CBR, correm termos pelo Juízo de Instrução Criminal de Coimbra, da Comarca de Coimbra, J1, em que é arguida A... e assistente B... , aquela, não se conformando com a acusação deduzida, que lhe imputava a prática de um crime de difamação agravada e calúnia, veio requerer a abertura de instrução.

Levada a efeito esta, viria a ser proferido despacho de não pronúncia.

Inconformado, o assistente interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1 – No âmbito dos presentes autos foi o Arguida ilibada pela prática do crime de difamação agravada, p. p. nos termos dos artigos 180º, n.º1, 183º n.1, alínea a) e 184º, todos do Código Penal, com referência ao art. 132º, nº2, alínea 1) do citado código.

2 – Salvo o devido respeito pela posição contrária, discordamos da decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, na interpretação jurídica e relevância dada à prova produzida, por entendermos que os mesmos não se adequam à veracidade dos factos e ainda no que respeita à motivação de facto e de direito;

3 – Em concreto, a relevância dada aos três testemunhos ouvidos em sede de Instrução, sendo estes claramente inquinados por relações pessoais e de dependência profissional, em detrimento de toda a prova documental constante nos autos,

4 – Bem como a desvalorização de testemunhos prestados em sede de Inquérito, como sejam os de E... ou de F... ;

5 - Da motivação da Decisão objecto do presente recurso resulta que a Mma. Juiza “a quo” considerou justificável a conduta da Arguida, atribuindo à liberdade de expressão em âmbito da disputa política não só limites mais amplos, mas definindo mesmo limites intangíveis.

6 - A prova produzida indicia, tal como resulta da acusação do Ministério Público, que “No dia 25 de Novembro de 2014, pelas 14h, no Salão Nobre do Edifício dos Paços do Concelho (…) a arguida, na qualidade de presidente da Câmara de (...) informou os presentes que iria retirar a confiança política do ofendido, enquanto vereador político, retirando-lhe os pelouros, tendo-o comparado a “Judas” e dizendo que ele era “incompetente” - tudo isto sem que o ofendido estivesse presente ou tivesse qualquer hipótese de contraditório - bem sabendo que as circunstâncias supra descritas que facilitam a sua divulgação, o que não ignorava, bem sabendo serem aquelas expressões aptas para o efeito, a arguida actuou com o intuito de ofender o assistente na sua honra e consideração e atingir o seu bom nome pessoal e profissional, o que alcançou.

7 - Numa sociedade democrática o exercício do direito de crítica não pode ser confundido com o achincalhamento e com a humilhação gratuita.

8Entrando clara e inequivocamente essas críticas à dimensão da esfera pessoal do visado, caracterizando-o não apenas como vereador, mas como ser humano, temos de considerar as mesmas como um exercício déspota e vil, visando apenas agredir o âmago da personalidade do Assistente, fazendo-o em público e de forma a que tal ataque fosse divulgado, como veio a ser.

9 – Assim, em resumo, dúvidas não restam, face à factualidade provada, que a conduta da Arguida é merecedora de censura penal, encontrando-se preenchidos os pressupostos objectivos e subjectivos de imputação do crime de difamação previsto e punido nos termos do disposto no art. 180º do C.P.

Termos em que, e com o douto suprimento de V. Exas. deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se, em consequência, a Arguida pela prática do crime de difamação agravada, assim se fazendo JUSTIÇA!

            Respondeu o MP em primeira instância, concluindo pelo não provimento do recurso.

            Também a arguida respondeu, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:
1.º Vem o assistente - B... - recorrer, de facto e de direito, da decisão instrutória de não pronúncia da arguida A... quanto à prática do crime de difamação agravada e calúnia, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º e 184.º do Cód. Penal, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. 1) do mesmo diploma legal.
2.º Contudo o recorrente não especifica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, nem as provas que devem ser renovadas, violando o disposto no artigo 412.º, n.º 3, al. a) do C.P.P..
3.º Acresce que não corresponde à verdade que os depoimentos recolhidos em sede de inquérito não tenham sido valorados pela decisão instrutória de não pronúncia; como se pode verificar a decisão de não pronúncia refere expressamente o seguinte, Cumpre agora apreciar os indícios recolhidos tanto em sede de inquérito como em sede de instrução, tendo a decisão instrutória efectivamente levado em consideração os indícios recolhidos não só na instrução mas também em sede inquérito.
4.º Do depoimento de E... resulta apenas que a arguida proferiu exatamente as mesmas expressões que a decisão instrutória de não pronúncia teve em consideração, pelo que não existem outros indícios para além daqueles que já foram considerados; e o mesmo se diga relativamente ao depoimento de F... que se limitou a dizer que o que escreveu no artigo do jornal (...) foi o que a arguida lhe tinha dito.
5.º Pretende ainda o recorrente descredibilizar a prova produzida em sede de instrução alegando que existe proximidade e relação profissional entre a arguida e as testemunhas; sucede, porém, que encontrando-se em análise a relação profissional que a arguida tinha com o assistente, bem como a convicção que aquela tinha sobre a competência, dedicação e lealdade deste, é natural que as testemunhas tenha alguma proximidade e se encontrem no âmbito das relações profissionais da arguida.
6.º As testemunhas, para conhecerem a relação profissional existente entre a arguida (Presidente da Câmara) e o assistente (Vice-Presidente da Câmara e depois vereador), tinham obrigatoriamente que ter trabalhado com ambos, caso contrário nada de relevante poderiam trazer aos autos; da mesma forma que as testemunhas pertencem às relações profissionais da arguida, também pertencem às relações profissionais do assistente, ora recorrente.
7.º Cumpre ainda ter presente que as testemunhas depõem sob juramento, pelo que sempre que haja algum indício de estarem a faltar à verdade o Ministério Público tem o dever de mandar extrair certidão para abrir novo processo de inquérito, o que não aconteceu no presente caso, aliás nem sequer tal foi equacionado.
8.º Em suma, não constam nos autos - nem podiam constar - quaisquer indícios contrários aos depoimentos proferidos pelas três testemunhas que o recorrente pretende agora descredibilizar, sendo certo que o recorrente teve oportunidade de produzir contraprova ou a prova do contrário, o que não logrou fazer.
9.º Por todo o exposto, dúvidas não restam (i) que os depoimentos produzidos em instrução correspondem à verdade e (ii) que o depoimento das duas testemunhas, E... e F... , não só foram tidas em consideração como não colocam em causa os indícios de facto relevantes:
            a arguida não estava satisfeita com o trabalho desenvolvido pelo ora recorrente, achando que ele não tinha competência para o cargo e que não lhe era leal, daí ter-lhe retirado a confiança política e pelouros.
10.º Já no que diz respeito à matéria de direito, as conclusões do recorrente não indicam as normas jurídicas violadas pela decisão do tribunal a quo, nem o sentido em que o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada, muito menos a norma jurídica que deve ser aplicada, em violação plena do disposto no artigo 412.º do CPP.
11.º As expressões que estão em causa nos presentes autos são "judas", "incompetente", "faltas de lealdade e competência, desempenho, dedicação e sentido de compromisso do vereador", "falta de lealdade e incompetência do membro do executivo para exercer as funções", "o projecto que temos para (...) estava a ser desvirtuado pela louca sede de poder do vereador em questão".
12.º As expressões em causa não são suscetíveis de preencher o crime de difamação, sendo atípicas, desde logo porquanto foram proferidas no quadro legítimo do direito fundamental à liberdade de expressão e do direito à informação por se verificar um interesse público, sempre no âmbito da crítica política e fora do ataque pessoal. A arguida proferiu as ditas expressões sem qualquer intenção de ofender o assistente, estando absolutamente convicta de que a utilização daquelas expressões era legítima.
13.º No presente caso dos autos a arguida limitou-se a informar e a expressar as razões que justificaram a sua tomada de decisão de retirar os pelouros que havia atribuído enquanto presidente de câmara a um vereador.
14.º A generalidade dos portugueses não considera como difamação o facto de um autarca dizer que retirou os pelouros a um vereador pelo facto de este ser desleal e incompetente para essas funções; a generalidade dos portugueses não considera como difamação o facto de um autarca, que se sente traído, efetuar uma comparação com uma figura da bíblia, no caso a de judas; as expressões utilizadas são expressões de uso comum nas circunstâncias como a do caso concreto, não podendo sequer ser consideradas exageradas ou insultuosas.
15.º Acresce que as expressões utilizadas não dizem respeito / não têm qualquer ligação à esfera privada do participante, tendo sido utilizadas para justificar decisão política e administrativa, dizendo respeito apenas e de forma direta/imediata com o cargo de vereador, que é como quem diz com o interesse público que a arguida, na qualidade de presidente da câmara, tem que zelar.
16.º Bem andou a decisão a quo ao referir que,
            ...tais expressões foram proferidas no âmbito político. Consta da acusação que a arguida, na qualidade de presidente da Câmara de (...) informou que iria retirar a confiança política ao ofendido.
            Os indícios recolhidos tanto no inquérito como na instrução apontam nesse sentido. Isto é, foi no âmbito político que tais expressões foram proferidas e enquadradas num determinado contexto.
17.º A linguagem utilizada pela arguida tinha única e exclusivamente que ver com as características do assistente sempre em relação ao cargo de interesse público que este exercia como vereador; existia assim um relevante interesse público-social e imediato, desde logo por ambos serem representantes da coisa pública (presidente de câmara e vereador), no conhecimento das razões que levaram a Sra. Presidente de Câmara a retirar os pelouros que havia anteriormente atribuído ao Sr. Vereador.
18.º Por assim ser apenas se pode concordar com a decisão do tribunal a quo, quando refere que, As testemunhas apontam todas no sentido de existirem problemas entre a arguida, enquanto presidente e o arguido enquanto vereador. A arguida entendia que o assistente não tinha competência para o cargo e que não lhe era leal.... Da conjugação dos indícios pode concluir-se que a arguida, enquanto presidente da Câmara não estava satisfeita com o trabalho desenvolvido pelo assistente enquanto vereador, achando que ele não tinha competência para o cargo e não lhe era leal. Daí lhe ter retirado a confiança política e os pelouros... Os limites da crítica admissível são mais vastos em relação a um político agindo na sua qualidade de personagem pública do que em relação a um particular sendo que na luta política pode considerar-se legítimo o uso de frases ou expressões que, no âmbito da relações privadas, seriam ofensivas.
19.º Em suma, a arguida não difamou nem pretendeu difamar o Sr. Vereador B... : a arguida disse o que pensava da sua actuação, em termo que ainda se podem considerar enquadrados no discurso político, sem daí extravasarem para atingirem o assistente na sua honra em consideração. Diferente seria o caso de se tratar de expressões gratuitamente injuriosas, não correlacionadas com a ideia que se pretende exprimir ou a formulação de juízos de valor que não exprimissem uma polémica tomada de posição contra um particular modo de agir os assuntos públicos mas apenas uma vontade de agressão gratuita e de conforto com a personagem pública. (decisão recorrida)

20.º Não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais.
21.º Para quem exerce cargo ou função de natureza política - como é o caso de vereador da Câmara Municipal - os limites da crítica admissível são mais amplos.

Termos em que deve o recurso ser julgado improcedente, por não provado, e em sua consequência manter-se a douta decisão do tribunal a quo, que não pronunciou a arguida A... .

Assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!

            Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer, no sentido do não provimento do recurso.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

Através das conclusões que retira da motivação do seu recurso, o assistente coloca à nossa apreciação as seguintes questões essenciais:

I – De facto, pretende que o depoimento das três testemunhas ouvidas em instrução não poderia ter levado à desconsideração de toda a prova documental e pessoal produzida em inquérito, já que existem relações pessoais e de dependência profissional daquelas para com a arguida;

II – De direito, pretende que a factualidade constante da acusação se mostra indiciada em instrução e que, porque as expressões proferidas pela arguida visavam a ‘dimensão da esfera pessoal do visado’ se mostra merecedora de censura penal, nos termos do artº 180º do CP.

            Para uma melhor compreensão das questões, deveremos fazer uma pequena introdução.

            Finda a fase de inquérito, o MP pode tomar uma de duas atitudes (para além do caso de suspensão provisória, que ao caso não interessa):

a) – Ou arquiva o inquérito, se não tiverem sido recolhidos indícios da ocorrência do crime ou de quem foram os seus agentes (artº 277º, 2, CPP) ou se tiverem sido recolhidas provas de se não ter verificado o crime, de o arguido não ser o seu autor a qualquer título ou se for legalmente inadmissível o procedimento (nº 1, cit. artigo);

b) – Ou profere acusação, se tiverem sido recolhidos indícios suficientes da ocorrência de um crime e de quem foi o seu autor.

No primeiro caso, pode ocorrer intervenção hierárquica, sendo determinado (se não tiver sido requerida abertura da instrução), que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam (artº 278º, CPP); neste caso, e verificados os demais condicionalismos do artº 279º, 1, pode ainda ser reaberto o inquérito face à superveniência de novos elementos de prova.

Em qualquer dos dois casos referidos, pode ser requerida a abertura da instrução, pelo arguido, se tiver sido proferida acusação, e pelo assistente, não se tratando de crime de natureza particular, relativamente a factos pelos quais o MP não tiver deduzido acusação (artº 287º, 1, a) e b), CPP).

«A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.» (artº 286º, 1, CPP).

Porque a instrução visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito, não reveste, em consequência, a natureza de uma segunda fase investigatória, agora a cargo do juiz (neste sentido, entre muitos, v. o ac. da Rel. Guimarães de 14/2/2005, C.J. I-299)

            Averiguemos, pois, se foi recolhida suficiente prova indiciária que permita a imputação de factos à arguida e se estes têm a necessária tipicidade objectiva e subjectiva que permita a sua integração na previsão do artº 180º do CP.

Vinha a arguida acusada pela prática de um crime de difamação agravada e calúnia, previsto e punido pelos artigos 180º, nº 1, 182º, 183º e 184º, todos do Código Penal, por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea l) do mesmo diploma legal.

Nos termos do artigo 180º, nº 1 do Código Penal que, “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”.

Por outro lado, resulta do artigo 182º do Código Penal que “á difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”.

Nos termos do artigo 183º, nº 1, alíneas a) e b) do Código Penal “se no caso dos crimes previstos nos artigos 180º, 181º e 182º, a) a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou b) tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação, as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.

Estipula o artigo 184º do Código Penal que “as penas previstas nos artigos 180.º, 181.º e 183.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade”. Uma das vítimas referidas na dita alínea l) é o membro de órgão das autarquias locais.

Conforme resulta do texto do próprio despacho recorrido, «da análise da acusação conclui-se que as expressões que estão em causa são “judas”, “incompetente”, “faltas de lealdade e competência, desempenho, dedicação e sentido de compromisso do vereador”, “falta de lealdade e incompetência do membro do executivo para exercer as funções”, “o projecto que temos para (...) estava a ser desvirtuado pela louca sede de poder do vereador em questão”. Também pela análise da acusação se conclui, desde logo, que tais expressões foram proferidas no âmbito político. Consta da acusação que a arguida, na qualidade de presidente da Câmara de (...) informou que iria retirar a confiança política ao ofendido. Os indícios recolhidos tanto no inquérito como na instrução apontam nesse sentido.»

Apreciando os indícios resultantes da prova produzida em instrução, o despacho recorrido teceu as seguintes considerações:

«A questão que agora se coloca é a de saber se extravasam a luta política para atingirem a honra e consideração do assistente.

As testemunhas apontam todas no sentido de existirem problemas entre a arguida, enquanto presidente da Câmara, e o arguido enquanto vereador.

A arguida entendia que o assistente não tinha competência para o cargo e que não lhe era leal.

Pelos indícios recolhidos não era só a arguida a pensar nesses termos.

A testemunha C... , apontando situações concretas, também entendia que o assistente não tinha essa competência; assim como a testemunha D... , que trabalhou de perto com o assistente e não lhe reconhece igualmente a competência necessária e lealdade para o exercício do cargo em questão. A testemunha C... afirmou que a arguida estava convicta do que afirmava.

Assim, da conjugação dos indícios pode conclui-se que a arguida, enquanto presidente de Câmara, não estava satisfeita com o trabalho desenvolvido pelo assistente enquanto vereador, achando que ele não tinha competência para o cargo e não lhe era leal. Daí lhe ter retirado a confiança política e os pelouros.

Foi, pois, neste contexto que as expressões em causa foram mencionadas, entendendo-se que se enquadram no contexto político, não tendo a arguida intenção de denegrir a honra e consideração do assistente ou de o achincalhar.

O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, a qual se pode desdobrar numa perspectiva interna, traduzida na ideia que cada um de nós tem de si, e numa outra, externa, traduzida na conta em que somos tidos por terceiros. Difamatória ou injuriosa será, deste modo, a acção ou a expressão que seja apta a pôr em causa a “auto-estima” ou a “fama” do sujeito passivo. Neste sentido é clara a norma do artº 208º do CP Espanhol, aqui usada como auxiliar de interpretação comparada, ao estatuir que «é injúria a acção ou expressão que lesam a dignidade de outra pessoa, menoscabando a sua fama ou atentando contra a sua própria auto-estima».

O crime em estudo, há-de constituir, ao fim e ao cabo, um agravo à honra do lesado. A honra há-de ser não só a que resulta das acções próprias como do conceito alheio, a estima com que a opinião pública recompensa aquela virtude.

Todavia, mesmo a tutela penal do direito à honra e à consideração há-de sofrer (I) limitações gerais (aplicáveis a todos os indivíduos, sem excepção) e (II) limitações especiais (aplicáveis a determinado tipo ou classe de indivíduos).

I – Na primeira circunstância estão em causa aspectos que se prendem com a apreciação da capacidade efectiva dos factos ou do juízo para causar a ofensa, de modo a expurgar essa análise de cambiantes meramente subjectivas, atribuindo-lhe um cariz mais objectivo, seguindo critérios de normalidade, expurgando-a de meras susceptibilidades pessoais injustificáveis. «Com uma visão exacta, ensina JANITTI PIROMALLO que: “os crimes contra a honra ofendem um sujeito, mas não devem ter-se em conta os sentimentos meramente pessoais, senão na medida em que serão objectivamente merecedores de tutela.” Em conclusão: não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais.» (José Beleza dos Santos, ‘Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria’, RLJ, Ano 92, nº 3152, pag. 167)

II – Na segunda consideram-se aspectos que se prendem com a natureza do cargo ou ofício desempenhado pelo queixoso ou a sua notoriedade pública. Com efeito, diferente será a abordagem criminal dos factos conforme o ofendido se encontre ou não numa dessas situações pessoais. Será mais exigente a análise se os factos ou juízos se referem à ‘esfera íntima da vida privada’ por contraposição às referências a factos ou juízos atinentes ao cargo ou à exposição pública.

«No que respeita a pessoas revestidas de notoriedade, a lei entendeu satisfazer o interesse do público em conhecer a sua imagem. A rigorosa determinação de tais pessoas não se apresenta fácil, mas, de um ponto de vista geral, as pessoas objecto daquela publicidade podem identificar-se sobretudo pela notoriedade na arte, na ciência, no desporto, na política. Elas consentem, de uma forma geral, tacitamente, na difusão da sua imagem, que consideram uma consequência natural da própria notoriedade, mas, mesmo que se pudesse provar o contrário, seria isso irrelevante dado o reconhecido interesse público por parte da lei. De qualquer modo, mesmo as pessoas revestidas de notoriedade conservam o direito à imagem relativamente à esfera íntima da sua vida privada, em face da qual as exigências de curiosidade pública têm que deter-se. A limitação estabelecida pela lei deve entender-se, por sua vez, com esta restrição. O cargo público exercido é incluído pela lei entre os casos de limitação legal do direito à imagem. O interesse da sociedade estende-se sobre todos os que desempenham uma função pública de notável importância e que são rodeados, a tal título, de notoriedade.» (De Cupis, ‘Os Direitos da Personalidade’, Lisboa, 1961, pag.s 137 e 138).

Ora, estabelecendo o necessário paralelo entre a tutela do direito à imagem e o direito à honra e á consideração pessoal, logo se constata que os cidadãos com uma exposição pública da sua imagem devem ter de suportar maiores ataques do que o cidadão comum que, precisamente por não se querer submeter a essa exposição, deve beneficiar de maior tutela penal.

Como diz Beleza dos Santos, (op. e loc. Cit.) «neste juízo individual ou do público, acerca do que pode ser ofensivo da honra e da consideração, é comum a todos os meios e países a exigência de respeito de um mínimo de dignidade e de bom nome. Para além deste mínimo, porém, existe certa variedade de concepções, da qual resulta que palavras ou actos considerados ofensivos da honra, decoro ou bom nome em certo país, em certo ambiente e em certo momento, não são assim avaliados em lugares e condições diferentes. O que pode ser uma ofensa ilícita em certo lugar, meio, época ou para certas pessoas, pode não o ser em outro lugar ou tempo».

A tudo isto acresce que a pretensa ofensa terá sido cometida através do uso de meios de comunicação social, o que, por outro lado, colocará a questão da controvérsia direito de informação/direito à honra, em termos de determinação de qual deles deve prevalecer, já que ambos merecem tutela constitucional. Esta procura alcançar «a exigível composição dos interesses ou bens jurídicos em conflito – em obediência ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de restrição de direitos fundamentais e segundo o qual se deve obter a “harmonização” ou “concordância prática” dos bens em colisão, a sua “optimização”, traduzida na mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível?» (Figueiredo Dias, in “Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português”, RLJ, nºs 3697 e seg.s, pag.102).

E, tal harmonização deve ser feita de tal modo que não sejam beliscados quer a tutela da honra referente àquela ‘esfera íntima da vida privada’ quer o constitucional direito de liberdade de imprensa. «Esta, para não incorrer em actividade criminal (e, sobretudo, face ao receio de que tal lhe possa suceder), ver-se-á pouco menos que impedida de publicar críticas ou simples notícias, ou de emitir juízos de valor desde que aquelas e estes possam revelar-se adequados a lesar a honra (…) de quem deles seja objecto. Com o que ficaria irremediavelmente prejudicada, não só a legitima “esfera publicitária e privada” da imprensa, mas também a sua função pública enquanto “instituição moral e política” que justamente lhe confere a dignidade de objecto de protecção constitucional.» E, a pag. 135: «em matéria de tutela da honra porque casos há – e mesmo em relação a “homens públicos” – em que a imputação pela imprensa de factos verdadeiros mas ofensivos da sua honra deve ser punível. Em matéria de direito de informação porque casos há também em que a imputação pela imprensa de factos falsos ofensivos da honra das pessoas não deve ser punível

É nesta dialéctica, que pensamos ficar mais clarificada se recorremos ao conceito de ‘esfera da vida privada’ no primeiro caso, e de ‘exposição pública resultante das funções políticas do ofendido’ no segundo, que se deve procurar a solução do caso concreto mediante a prevalência de um dos direitos constitucionais em conflito sobre o outro.

Ora, analisados os factos indiciários, cremos que, muito embora a recorrida use de alguma causticidade, limita-se a exercer o direito de emitir opiniões, contendo-se dentro dos limites dos direitos de informação e de opinião, constitucionalmente consagrados.

            Assim se deve concluir que no caso concreto e no confronto entre os direitos à honra (com garantia constitucional no artº 26º da CRP) e a liberdade de expressão, de informação e de liberdade de imprensa (artºs 37º e 38º da CRP) se mostra justificada a prevalência dos últimos sobre o primeiro, já que a ofensa praticada não atingiu aquele restrito núcleo da esfera da vida privada e apenas muito limitadamente atingiu a esfera de exposição pública do visado.

            Os agentes da luta política devem ter uma capacidade superior de ‘encaixe’ de pequenas ofensas e dislates.

            No nosso caso, as afirmações imputadas (em termos necessariamente indiciários) à arguida, sendo embora susceptíveis de atingir a susceptibilidade pessoal do visado, não reúnem a necessária ilicitude para que possam ser consideradas, sem mais, ofensivas da sua honra e consideração. Basta recordar que as expressões foram proferidas pela arguida enquanto presidente da Câmara Municipal de (...) referindo-se ao assistente, seu vice-presidente e vereador.

            Falar em “faltas de lealdade e competência, desempenho, dedicação e sentido de compromisso do vereador”, que se apoda de ‘Judas’, “falta de lealdade e incompetência do membro do executivo para exercer as funções” e que “o projecto que temos para (...) estava a ser desvirtuado pela louca sede de poder do vereador em questão” constituirá, quando muito, falta ética, pois que denota alguma falta de polimento, mas nunca crime, por se integrar na luta política, já que, como consta da acusação, a arguida, na sua qualidade de presidente de Câmara, informou que iria retirar a confiança política ao assistente.

            Todas as referidas expressões que a arguida dirigiu ao assistente foram produzidas no âmbito das funções públicas por cada um deles desempenhadas e limitam-se a exteriorizar a opinião que a primeira tinha relativamente ao desempenho do segundo, nesse âmbito estrito. Por isso, e independentemente da sua justeza substancial, a arguida era livre de emitir essa sua opinião, desde que não pessoalizasse, não atingisse aquela esfera da vida privada, como não atingiu.

            Nos termos do artº 308º, 1, do CPP «Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.»

            Por força da expressa remissão do nº 2 do mesmo artigo, e sem prejuízo do disposto na segunda parte do nº 1, são aplicáveis ao caso as normas dos nºs 2, 3 e 4 do artº 283º, referente à acusação pelo MP.

            Ou seja, o juízo acerca da bondade do proferimento do despacho de pronúncia ou de não pronúncia há-de ser formulado tendo em atenção o conjunto das provas produzidas anteriormente, devendo proceder-se à respectiva análise, concatenação e apreciação crítica.

A lei adjectiva simplifica esta questão ao falar em «indícios suficientes» que refere (nº 2 do artº 283º) serem aqueles dos quais resulta «uma possibilidade razoável» de o arguido vir a ser sujeito a uma reacção penal ou medida de segurança.

            Face ao que atrás expusemos, não só as expressões em causa não são susceptíveis de atingir a eminente esfera de protecção da honra individual, que a norma penal prevê como, também, se deve concluir que a arguida não pretendia atingir a honra e consideração do assistente.

            Não se reunindo indícios suficientes da prática de um crime pela arguida, e sendo muito mais provável a sua absolvição do que a sua condenação, se submetida a julgamento, não deve a mesma ser submetida a tal.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em negar provimento ao recurso do assistente, assim confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo assistente, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Coimbra, 8 de Novembro de 2017

(Jorge França – relator)

(Elisa Sales – adjunta)