Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
421/08.0YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
Data do Acordão: 01/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECISÃO SUMÁRIA DE REJEIÇÃO DA SOLICITADA QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
Legislação Nacional: ARTIGOS 78º E 79º DO DECRETO-LEI 298/92, DE 31 DE DEZEMBRO
Sumário: O respeito legalmente imposto ao segredo bancário impede que se obtenha informações sobre contas e seus titulares antes de descartar outras formas evidentes de obter o mesmo resultado.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de inquérito, em que se investigam factos eventualmente passíveis de integrar, em abstracto, a prática de um crime de burla p. e p. pelo art. 217º nº 1 do Código Penal, o Ministério Público pretende obter informações da Caixa Geral de Depósitos sobre a identificação do titular da conta cujo NIB identifica.

A mencionada instituição não forneceu tais elementos, com base no sigilo bancário.

Perante isto e mediante promoção do Ministério Público, o Ex.mo Senhor Juiz suscitou a intervenção deste Tribunal da Relação, nos termos e para os efeitos do artigo 135º nº3 do Código de Processo Penal, para quebra do sigilo.


*

Efectuando exame preliminar e compulsados os autos, verifica-se que o presente incidente que teve início já após a entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29 de Agosto, que procedeu à 15.ª alteração do Código de Processo Penal deve ser rejeitado.

Consequentemente, nos termos do art. 417º nº 6 al. b) do Código de Processo Penal, mostra-se processualmente pertinente decidi-lo imediatamente pela presente decisão sumária. 

II – FUNDAMENTAÇÃO

análise dos factos

Após remessa a este Tribunal, conforme solicitado, dos elementos pertinentes à indiciação do crime em investigação, designadamente participação e/ou auto de notícia e diligências probatórias efectuadas constata-se que:

Os autos de inquérito têm por base queixa de AP... por eventual crime de burla p. e p. pelo art. 217º nº 1 do Código Penal, pelo qual terá ficado lesado em 1680 €.

De acordo com a queixa formulada, adquiriu em leilão na internet dois lotes de moedas de ouro, pagou através de transferência bancária e não lhe foram entregues as moedas.

Tais factos, só por si não são bastantes para indiciar a prática de qualquer ilícito com relevância criminal.

Os indícios de conduta penalmente relevante resultam, todavia, dos elementos colhidos nos autos que apontam no sentido de ter havido ocultação do nome, sexo, subtil alteração da morada e desaparecimento (cfr. fls. 14, 16 e 18 deste apenso).

Porém, também resulta dos autos que o denunciante fornece (fls. 18) a identificação da titular da conta.

o direito

Dispõe o art. 78º do Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro, que aprovou o Regime Geral de Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) (integralmente publicado, em versão consolidada por sucessivas alterações, em anexo ao Decreto-Lei 201/02 de 26.9):

1. Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou à relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

2. Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósitos e seus movimentos e outras operações bancárias.

3. O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.

Face a esta norma tem de se concluir que os pretendidos elementos e informações sobre contas e seus titulares estão ao abrigo do segredo profissional imposto aos funcionários das instituições bancárias.

O referido dever de segredo bancário não é, porém, absoluto.

Postula o artigo 79.º do mesmo diploma:

Excepções ao dever de segredo

1 - Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.

2 - Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:

a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;

b) A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;

c) Ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização aos Investidores, no âmbito das respectivas atribuições;

d) Nos termos previstos na lei penal e de processo penal;

e) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.

O sigilo bancário, constituindo embora um direito inquestionável, está longe de ser absoluto, como se disse, podendo ceder perante outros direitos, nomeadamente o da realização da justiça, conforme decorre de vários diplomas em que se prevê a possibilidade de a autoridade judiciária competente solicitar informações no âmbito dessa investigação e com quebra desse sigilo[i]. Porém, quanto aos crimes em investigação não está prevista em qualquer norma especial a excepção ao segredo profissional imposta pela referida disposição legal.

Terá, pois, de concluir-se que os pretendidos elementos e informações sobre contas e seus titulares estão ao abrigo do segredo profissional imposto aos funcionários das instituições bancárias e que, consequentemente, a recusa de prestar informação fundamentada no facto de se tratar de informação protegida por segredo bancário foi legítima.

Mas, não sendo o dever de segredo profissional absoluto, não prevalece sempre sobre qualquer outro dever conflituante.

De entre as excepções previstas no artigo 79º do referido RGICSF, destaca-se a da al. d) do nº 2 na qual se estabelece que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo podem ser revelados “nos termos previstos na lei penal e de processo penal”.

O regime processual penal está contido nos artigos 135º, 181º e 182º do Código de Processo Penal.

Em face do regime consagrado no artigo 135º, se for invocada escusa para a não prestação das informações, cabe à autoridade judiciária averiguar da legitimidade do fundamento e, caso conclua pela sua ilegitimidade, ordenar que as mesmas sejam prestadas; caso se conclua pela legitimidade da escusa deverá ser submetido ao tribunal imediatamente superior o competente incidente, para que, após serem ponderados os interesses em questão, seja determinada ou não a quebra do segredo.

Este é o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, expresso no seu Acórdão 2/2008 (publicado do D.R., 1ª Série, nº 63 de 31 de Março do corrente ano), que fixou jurisprudência nos seguintes termos:        

1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário;

2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal;

3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.

O procedimento adoptado foi, precisamente, o que decorre da lei, face à legitimidade da resposta da instituição bancária.

Estabelece o nº3 do referido artigo 135º, que o tribunal “pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante (…)”.

Com a redacção introduzida pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, que procedeu à 15ª alteração do Código de Processo Penal, o referido artigo 135º nº 3, explicitou o princípio da prevalência do interesse preponderante, referindo-se à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, à gravidade do crime e à necessidade de protecção de bens jurídicos.

Já assim se devia entender e vinha entendendo face à redacção anterior do Código de Processo Penal. Realmente, muito embora não seja necessária a verificação de fortes indícios da prática do crime a investigar, certo é que a decisão de quebra do sigilo deve ponderar a concreta intensidade da lesão dos interesses na preservação do segredo, a concreta relevância da informação pretendida para as investigações e a gravidade do crime em questão.

No caso em análise, pretende-se obter informações da Caixa Geral de Depósitos sobre a titularidade de uma conta bancária quando essa informação já é dada nos autos pelo queixoso[ii].

Dos autos não resulta que o Ministério Público tenha ordenado qualquer diligência tendo em atenção esse elemento constante dos autos.

Falta, assim, a verificação de um pressuposto essencial – a imprescindibilidade, expressamente consagrada no art. 135º nº 3 do Código de Processo Penal, na sua actual redacção – para que se possa determinar o levantamento do sigilo bancário.

Efectivamente, a imprescindibilidade não pode deixar de ser compreendida como a indispensabilidade, ou necessidade séria e fundamentada da quebra do dever de sigilo para a prossecução do inquérito.

No caso dos autos, optou-se pela violação do segredo ab initio, quando existe já uma identificação da titular da conta que importa averiguar previamente.

Nem se argumente que só com a obtenção de confirmação bancária é que fica devidamente documentada nos autos a titularidade da conta. Só se torna efectivamente necessária a obtenção desse documento com quebra do segredo bancário se não for encontrada e interrogada a pessoa identificada a fls. 18 deste apenso ou se, interrogada, nada declarar, afirmar não ser a titular da conta e/ou não autorizar a consulta dos elementos desta (art. 79º nº 1 do Decreto-Lei 298/92).

Pode ser boa técnica de investigação a prévia obtenção de elementos documentais para confrontar os eventuais autores com esses elementos. Contudo, o respeito legalmente imposto ao segredo bancário impede que se obtenha essa prova documental antes de descartar outras formas evidentes de obter o mesmo resultado – no caso, através do interrogatório da pessoa que o queixoso identifica como titular da conta[iii].

Nem a ponderação da gravidade do crime justifica que se sacrifique o segredo bancário que, se mostra concretamente preponderante.


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Concluindo:

Tendo o queixoso indicado o nome e endereço do titular da conta onde terá depositado determinada quantia, a falta da informação sobre a titularidade dessa conta pela instituição bancária não inviabiliza a possibilidade de prosseguimento da acção penal, porquanto, o interrogatório da pessoa indicada pode permitir o esclarecimentos dos factos investigados e tornar desnecessária a quebra do sigilo bancário.

Assim, sem prejuízo de ulteriormente se verificar a necessidade de levantamento do sigilo, neste momento processual não se verifica o requisito da imprescindibilidade que encontrou consagração expressa na actual redacção do art. 135º nº 3 do Código de Processo Penal, pelo que não é admissível a requerida quebra do sigilo.

III – DECISÃO

Nestes termos, por neste momento não se verificar o requisito da imprescindibilidade, profere-se a presente decisão sumária de rejeição da solicitada quebra de sigilo bancário.

Não são devidas custas.


Coimbra, 21 de Janeiro de 2009

(elaborado, revisto, rubricado e assinado pelo relator)

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(Jorge Simões Raposo)



[i] Designadamente, o art.13º-A do Decreto-Lei 454/91 de 28.12, com a redacção do Decreto-Lei 316/97 de 19.11 (regime jurídico do cheque sem provisão), o art.19º do Decreto-Lei 325/95 de 2.12 (branqueamento de capitais), art. 60º do Decreto-Lei 15/93, de 22.01 (tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas) e o art. 2° n° 2 da Lei 5/2002 de 11.1.
[ii] Apesar do sigilo bancário, o recibo de qualquer transferência bancária fornece ao depositante elementos sobre a identidade do titular da conta…
[iii] Tendo o cuidado de atender às várias moradas possíveis.