Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
296/02. 3GAILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: HOMICÍDIO INVOLUNTÁRIO
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS

CONDUÇÃO SOB EFEITO DO ÁLCOOL
NEGLIGÊNCIA
IMPUTAÇÃO OBJECTIVA
Data do Acordão: 06/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÍLHAVO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 15.º E 137.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I. – O tipo de crime de homicídio involuntário pressupõe que:
- o agente assuma um comportamento comissivo ou omissivo;
- esse comportamento viole o dever (objectivo e subjectivo) de cuidado;
- a verificação do resultado morte de uma pessoa;
- a imputação desse resultado à conduta do agente.
II. – O juízo de censura, nos crimes negligentes representa a relação do agente com o facto injusto, ao ser-lhe imputado como seu e que, embora não directamente querido, era previsível sendo que em razão dessa previsibilidade deveria o agente actuar com o cuidado a que está obrigado e é capaz para evitar a produção do facto injusto.
III. – Para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica, sendo indispensável que possa imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente. O mesmo é dizer que a responsabilidade só se verifica quando existe nexo de causalidade entre a conduta do agente e o evento ocorrido.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

AA veio interpor recurso da sentença que o condenou, pela prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de 3 anos, na condição de o arguido demonstrar nos autos a entrega, no prazo de 4 meses a contar do trânsito em julgado da sentença, através de cheque, da quantia de € 2.500,00 ao Centro Hospitalar de Coimbra, Hospital Pediátrico, Serviço de Oncologia.

As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da sua motivação de recurso onde refere que:

A- Através do presente recurso pretende-se impugnar a d. decisão prolatada não só quanto à matéria de facto dada como provada, mas também quanto às consequências jurídicas daí extraídas, isto é, a sua condenação.

B- O arguido acabou por ser condenado pela prática de um crime de homicídio, não porque a acusação tenha demonstrado a sua versão dos factos, mas antes porque aquele não logrou provar a sua.

C- Na medida em que não existiu qualquer testemunha presencial dos factos, o arguido foi condenado porque não conseguiu provar que o acidente se tenha dado da forma que alegou.

D- Além da violação do art. 137° do Cód. Penal, foi também violado o princípio in dubio pro reo plasmado no art. 32°, n.º 2 da Constituição.

E- Foi excessivamente valorizado o facto de o arguido conduzir com uma taxa de álcool no sangue superior à permitida, ao ponto de se defender que a mesma contribuiu para a produção do sinistro, quando também nenhuma prova foi feita nesse sentido.

F- Foram incorrectamente julgados os pontos de facto constantes de 1.4 e 1.5, 1.6, 1.9, 1.10, 1.11 (ao referir-se nestes pontos que o embate se deu conforme consta em 1.4).

G- Ninguém assistiu ao acidente, pelo que nenhuma testemunha corroborou os factos que constam da d. acusação.

H- Por essa razão, o tribunal a quo para dar como provados os factos relativos à dinâmica do acidente socorreu-se da "conjugação de diversas provas circunstanciais, analisadas à luz das regras da experiência comum" (cfr. fls. 5 da d. sentença).

I- Essas provas circunstanciais consistiram:

1 - na análise de fotografias juntas aos autos (as quais não são do local, nem data do acidente);

2 - num croquis elaborado por um militar da GNR que não presenciou o acidente;

3 - no depoimento de duas testemunhas (uma delas o militar da GNR) que referiram os locais onde se encontravam os veículos após o acidente, mas que não o presenciaram.

J- Ora, com o devido respeito que é, e sempre será, muito, a prova produzida é demasiado frágil e ambígua para permitir o grau de certeza necessário à condenação, pelo que, no mínimo, impunha-se que o tribunal ficasse num estado de dúvida razoável que o impedisse de condenar o arguido.

K- Acresce que, o tribunal não valorizou (nem sequer referiu) um elemento de prova que confirmou no local do acidente: a existência de uma tampa de saneamento, na faixa onde circulava o motociclo, alguns metros antes do local acidente (cfr. acta da audiência de discussão e julgamento de 16/03/2007, a fls. 206 dos autos).

L- Com efeito (e o arguido refere-o da na sua defesa, cfr contestação e suas declarações em audiência) atento o sentido de marcha em que seguia o motociclo, existia (e existe) uma tampa de saneamento sem alcatrão a cobri-la, ou seja, rebaixada em relação à estrada 5 ou 6 centímetros.

M- Assim, pelo que pensa o arguido (pois no momento do impacto não estava a olhar para o motociclo), o acidente deu-se da seguinte forma: o motociclo bate na tampa, ou desvia-se dela para a esquerda, e descreve uma trajectória curva entre a tampa e o local do embate,

N- isto é, bate na tampa de saneamento (ou desvia-se dela para a esquerda), invade a faixa contrária, e começa a regressar à sua mão.

O- Sucede que, apesar de estar a regressar à sua mão, não o conseguiu fazer completamente porque, alguns metros à frente, estava parado, junto ao eixo da via, o veículo do arguido,

P- o qual estava oblíquo em relação à E.N. 109 (fazia com o meio da estrada um ângulo de 450, cfr. declarações do arguido gravadas na cassete n.º l , lado A, de rotações 129 a 2359 e do lado B de rotações 6 a 297).

Q- Assim, e porque o motociclo vinha animado de grande velocidade, esse embate fez recuar o automóvel alguns metros para trás, arrastando-o no sentido da trajectória (de regresso à sua mão) que aquele (o motociclo) descrevia.

R- O motociclo pesa cerca de 200 kg (era uma Honda Hornet de 900 cm3, cfr. se pode constatar das fotografias e do auto de ocorrência), ao que se soma o peso do seu tripulante - 66 Kg - cfr. relatório de autópsia junto a fls. 26 e sgts. dos autos.

S- Assim, um conjunto de 2 corpos, com o peso total de cerca de 260 Kg, a circularem uma velocidade que o arguido estima em cerca de 120 Km/hora poderiam facilmente arrastar para trás o seu veículo (um Peugeot 106 de 2 lugares, que pesa cerca de 700 Kg), até porque algum estribo do motociclo poderá ter ficado preso no automóvel, que estava parado e desengatado (cfr. declarações do arguido já acima referidas).

T- Além disso, precisamente por vir a descrever essa trajectória curva de regresso à sua mão é que se compreende que o motociclo e o seu tripulante tenham acabado por ficar na "sua" hemi-faixa de rodagem.

U- E também por essa razão (excesso de velocidade do motociclo e regresso à sua mão) se compreende que, após o embate no veículo automóvel, o condutor do motociclo ainda tenha ido embater no gradeamento metálico do jardim da casa de VB , o qual ficou em forma de "V" (cfr. declarações desta testemunha, no local, registas na acta de fls. 207), e ainda arrancado um dos pilares metálicos desse gradeamento que estava chumbado ao murete.

V- Assim, porque o acidente também pode ter ocorrido da forma que se descreve, não é líquido que possa ter sido (apenas) da forma descrita na d. sentença.

W- Por essa razão, os restantes argumentos expendidos na d. sentença, também se encaixam na versão do acidente que aqui se refere.

X- Destarte, podendo o acidente ter-se dado da forma que se acaba de descrever, igualmente, à semelhança do que se diz na d. sentença (cfr. fls. 5, último parágrafo, da mesma):

a) o depósito de gasolina ficaria amolgado à esquerda;

b) a carenagem à esquerda ficaria toda partida;

c) toda a zona frontal (forqueta, guiador e braços da suspensão) ficariam torcidos para a direita;

d) ficariam marcas de tinta branca, da cor do veículo conduzido pelo arguido, no que restou do guarda-lamas dianteiro, lado esquerdo, que ficou partido.

Y- Igualmente, quanto à posição final dos veículos, após o embate, poderia ser a mesma também nesse cenário.

Z- Acresce que, estando o automóvel parado de forma oblíqua em relação à via, o embate do motociclo, ao regressar à sua mão, seria, igualmente ao longo da frente daquela, da direita para a esquerda (para quem está dentro do automóvel), razão pelo qual os danos provocados neste seriam os mesmos num cenário ou noutro.

A1- Quanto à inexistência de vestígios de travagem, igualmente esse facto nada permite concluir para que o acidente se tenha dado de uma maneira ou de outra,

B1- Assim, e com todo o respeito, não existem factos provados para dar como certo, sem margem para quaisquer dúvidas, que o acidente se tenha dado da forma que consta da d. acusação.

C1- Por outro lado, o tribunal a quo, ao invocar as "regras da experiência comum", deveria também ter atentado no seguinte:

1- para o gradeamento do jardim de VB ter sofrido um impacto que o levou a ficar em forma de "V" e a partir um dos pilares metálicos, então é porque o "objecto" que o atingiu, já após um primeiro impacto num automóvel, vinha animado de grande velocidade;

2- para o automóvel ter recuado alguns metros para trás (pois sua frente ficou cerca de 2 metros afastada, para norte, da entrada da Rua AB), então é porque o motociclo vinha a grande velocidade (bem mais do que os 50 Km/hora permitidos no interior da localidade);

3- se o arguido não esperava encontrar trânsito àquela hora, então também o condutor do motociclo o não esperaria;

4- o acidente deu-se no dia 23 de Junho de 2001, tendo o condutor do motociclo, que tinha 21 anos (cfr. relatório de autópsia), carta apenas desde o dia 27 de Maio anterior, ou seja há menos de 30 dias (cfr. participação de acidente de viação de fls. 2 dos autos);

5- o certificado de seguro do motociclo ainda era provisório, o que demonstra que aquisição do motociclo era recentíssima (cfr. participação de acidente de viação de fls. 2 dos autos);

6- da conjugação das alíneas d) e e) supra, resulta que o sinistrado era jovem e com pouca experiência de condução daquele tipo de veículos, em concreto, do que tripulava.

D1- Assim, da conjugação de todos esses factos, o tribunal não poderia ter decidido como decidiu, sendo seu dever, caso não entendesse aderir à tese do arguido, absolvê-lo com recurso ao princípio in dubio pro reo.

E1- A existência de uma tampa de saneamento, alguns metros antes do acidente, na hemi-faixa em que circulava o motociclo impunham decisão diversa da recorrida, e resulta demonstrada:

1- pela a inspecção feita ao local, onde se constatou a sua existência no local referido pelo arguido e pelas testemunhas de defesa, cfr. resulta da acta de audiência de julgamento de 16 de Março de 2007, a fls. 206 dos autos.

2- pelas declarações da testemunha LV cujo depoimento foi gravado na cassete n.º 1, lado B, da rotação 1410 a 2256;

3- pelas declarações da testemunha VB, cujo depoimento consta da cassete n.º 1, lado B, da rotação 2258 a 2359 e da cassete n.º 2, lado A, da rotação n.º 6 a 1238:

4- pelas declarações do arguido VV declarações do arguido gravadas na cassete nº1, lado A, de rotações 129 a 2359 e do lado B de rotações 6 a 297;

F1- Igualmente, impunha decisão diversa da recorrida o facto de o motociclo transitar a grande velocidade, o que se constata:

1- pelo resultado do impacto no gradeamento do jardim da casa de VB, cfr. declarações desta testemunha na cassete e rotações já acima referidas e ainda acta de julgamento de fls. 206 dos autos.

2- por o automóvel ter recuado alguns metros para trás (pois sua frente ficou cerca de 2 metros afastada, para norte, da entrada da Rua AB, mais propriamente com a roda direita da frente alinhada com a esquina do muro da casa de VB, cfr. declarações desta testemunha na cassete e rotações já acima referidas e ainda acta de julgamento de fls. 206 dos autos.

G1- Por outro lado, e em conjugação com o acima referido, impunha também, decisão diversa da recorrida, o facto de sinistrado ser um jovem e com pouca experiência de condução daquele tipo de veículos, em concreto, do que tripulava, o que se constata:

1 - da conjugação da data do acidente (dia 23 de Junho de 2001), com a antiguidade da sua carta de condução (27 de Maio de 2001), cfr. participação de acidente de viação de fls. 2 dos autos;

2 - da verificação da idade do condutor do motociclo - tinha 21 anos - cfr. relatório de autópsia;

3 - da análise do certificado de seguro do motociclo, que era ainda provisório, o que demonstra que a sua aquisição era recentíssima, cfr. participação de acidente de viação de fls. 2 dos autos).

H1- Em suma, o tribunal a quo apreciou mal as provas que tinha à sua disposição, tendo feito uma interpretação da dinâmica do acidente, que deu com provada, sem que a mesma esteja assente em factos indubitáveis ou corroborados por testemunhas.

I1- Por isso, com o devido respeito, que é muito, errou ao condenar o arguido pela prática do crime de homicídio por negligência p.p. no art. 137° do Cód. Penal, quando o deveria ter absolvido,

J1- fosse porque não existiam factos suficientes para dar como provada a prática desse ilícito,

K1- fosse porque não aplicou, quando se impunha que o fizesse, o princípio in dubio pro reo consagrado no art. 32°, n.º 2 da Constituição, que assim foi violado.

Termos em que, e nos mais de direito, revogando-se a d. sentença sob recurso e absolvendo-se o arguido se fará Justiça

Respondeu o MºPº junto do Tribunal “a quo” defendendo a confirmação da decisão recorrida.

Nesta instância também o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Os autos tiveram os vistos legais.

II- FUNDAMENTAÇÃO

Da decisão recorrida consta o seguinte (por transcrição):

1- Da instrução e discussão da causa, resultam provados os seguintes factos com interesse para a decisão:

1.1. No dia 23 de Junho de 2002, pelas 6:40 horas, o arguido conduzia a viatura, ligeira de mercadorias, de matrícula 00-00-XX, na Rua de Camões (EN 109), em Ílhavo, no sentido Ílhavo - Vagos, na hemi-faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha.

1.2. O arguido conduzia o seu veículo sendo portador de uma taxa de álcool no sangue de 1,61 g/l, tendo sido julgado e condenado no âmbito do processo sumário n.º 281/02.5GAILH, do 2° Juízo deste Tribunal, pela prática de crime de condução em estado de embriaguez.

1.3. Na mesma rua, mas em sentido contrário, ocupando a metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, seguia a vítima, JJ, com 21 anos de idade, conduzindo o motociclo de matrícula 17-38-OT.

1.4. Ao chegar ao entroncamento que a Rua de Camões faz com a Rua Capitão …, o arguido efectuou manobra de mudança de direcção para a esquerda, a fim de entrar naquela artéria, e foi embater com a parte frontal do seu veículo na parte lateral da frente esquerda do motociclo conduzido pela vítima, que naquele momento transitava em frente ao entroncamento.

1.5. Em virtude de tal embate, a vítima foi projectada do veículo, indo cair, no sentido de Ílhavo, a cerca de l0 metros de distância.

1.6. Em consequência do embate, a vítima, JJ, sofreu as lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e abdominais melhor descritas no relatório de autópsia, cujo teor aqui se dá por reproduzido, as quais foram causa directa, necessária e adequada da sua morte, que veio a ocorrer dia 25 de Junho de 2005, pelas 0:10 horas, nos Hospitais da Universidade de Coimbra.

1.7. A via onde ocorreu o embate é asfaltada, tem 6 metros de largura, configurando uma recta com boa visibilidade.

1.8. Na data e hora do acidente o dia já tinha nascido e estava luminoso, e o tempo estava seco.

1.9. A viatura conduzida pelo arguido ficou com a parte frontal completamente destruída.

1.10. O motociclo conduzido pela vítima ficou com o depósito da gasolina amolgado à esquerda, a carnagem à esquerda partida e toda a zona frontal (forqueta, guiador e braços da suspensão) torcidos para a direita, evidenciando o embate sofrido na sua esquerda, sendo visíveis marcas de tinta branca, da cor do veículo conduzido pelo arguido, deixadas no que restou do guarda-lamas dianteiro, lado esquerdo, que ficou partido.

1.11. Ao conduzir da forma descrita, sabendo que antes de iniciar a condução tinha ingerido uma quantidade de bebidas alcoólicas que impediam o discernimento e lucidez necessários ao exercício da condução rodoviária e, tendo avistado o veículo da vítima a aproximar-­se, não lhe cedendo a passagem e efectuando a manobra de mudança de direcção quando o veículo conduzido pela vítima estava próximo do seu, o arguido revelou uma total e completa falta de cuidado que o dever geral de previdência aconselha e que podia e devia ter para evitar um resultado que, de igual modo, podia e devia ter previsto.

1.12. O arguido é solteiro, mantendo relacionamento estreito com os pais, tem o 110 ano de escolaridade e é funcionário bancário na Irlanda, para onde emigrou em Dezembro de 2006, auferindo vencimento mensal de 1.640,00 €.

1.13. O arguido é titular de carta de condução há dezassete anos.

1.14. Do seu certificado de registo criminal consta apenas a aludida condenação pela prática de crime de condução em estado de embriaguez, em pena de multa, já extinta.

2. Não resultaram provados quaisquer outros factos susceptíveis de influírem na decisão da causa que não se encontrem acima discriminados, que estejam em contradição com aqueles, ou resultem excluídos em face daqueles, ou ainda alegação de matéria de direito, conclusiva ou irrelevante. Designadamente, não se provou que:

2.1.        Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, a vítima imprimia ao motociclo velocidade superior a 120 km/h;

2.2.        O aludido motociclo saiu da hemi-faixa de rodagem em que seguia (a da esquerda atento o sentido de marcha do arguido) e foi embater no veículo automóvel deste, fazendo-o rodar cerca de 90° no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio;

2.3.        O condutor do motociclo, ao passar por cima da tampa de saneamento a alta velocidade, perdeu o controlo do seu veículo e/ou o equilíbrio, o que o levou a despistar-se e a afastar-se da trajectória em que vinha, indo embater no automóvel, o qual se encontrava parado na faixa de rodagem contrária.

Motivação de facto

1. O Tribunal formou a sua convicção positiva com base na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento globalmente considerada.

1.1. No que concerne à dinâmica do embate, atendeu-se essencialmente ao seguinte:

 Nas declarações que prestou, o arguido sustentou que não teve qualquer responsabilidade na produção do acidente uma vez que, tendo avistado a aproximadamente 50 metros de distância o motociclo conduzido pela vítima, em sentido de marcha contrário ao seu, imobilizou a sua viatura, em posição ligeiramente obliquada, com a roda da frente esquerda próxima do traço do eixo da via, para mudar de direcção à esquerda, para a Rua Capitão AB; olhou para a esquerda e não chegou a olhar para sua direita porque, entretanto, foi embatido pelo dito motociclo, em consequência do que a sua viatura rodou e foi arrastada para trás 3 ou 4 metros. Atribuiu assim a responsabilidade ao condutor do motociclo, alegando que este se terá desviado de uma tampa de saneamento, rebaixada em relação ao pavimento da via, localizada na hemi­-faixa de rodagem direita, atento o sentido de marcha daquele, e terá perdido o controlo da viatura embatendo no seu veículo automóvel.

 Pese embora não tenham sido ouvidos quaisquer outros testemunhos presenciais, uma vez que ninguém assistiu aos factos e a vítima, infelizmente, faleceu, a versão do arguido mostra-se comprometida pela conjugação de diversas provas circunstanciais, analisadas à luz das regras da experiência  comum, que infra sintetizaremos.

 Assim, da análise das fotografias juntas aos autos é visível que toda a frente da viatura automóvel do arguido se encontra embatida, de forma homogénea, e que o motociclo ficou com o depósito da gasolina amolgado à esquerda, a carnagem à esquerda partida e toda a zona frontal (forqueta, guiador e braços da suspensão) torcidos para a direita, evidenciando o embate sofrido na sua esquerda, sendo visíveis marcas de tinta branca, da cor do veículo conduzido pelo arguido, deixadas no que restou do guarda-lamas dianteiro, que ficou partido.

 Ademais, se tivesse sido o motociclo a embater com a sua frente na frente do veículo do arguido, além de os danos neste veículo ficarem mais localizados, e não tão dispersos, também o mesmo ficaria em posição paralela à via, e não perpendicular como ficou.

Acresce que, conforme resulta do croquis, cujo teor foi confirmado pela testemunha AP militar da GNR que tomou conta da ocorrência e o elaborou, e do depoimento da testemunha VB, que vive na casa próxima do local de embate - e que afirmou que o cenário que encontrou quando veio à rua, depois de ter ouvido o barulho do embate, se aproxima do reflectido no croquis, designadamente o facto de a frente da viatura automóvel  se encontrar praticamente apontada para o gradeamento do muro da sua casa ­o corpo da vítima ficou prostrado junto ao muro daquela casa, o que evidencia que esta circulava dentro da hemi-faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha, pois caso se tivesse desviado da tampa de saneamento e invadisse a hemi-faixa de rodagem destinada à circulação da viatura do arguido, o corpo teria sido projectado mais para o eixo da via.

Também do croquis e depoimento da testemunha Alípio Pires resulta que não havia no pavimento quaisquer vestígios de travagem, o que evidencia que a vítima não terá tido tempo de esboçar qualquer reacção em face da forma súbita e inopinada como o arguido efectuou a manobra de mudança de direcção, obstruindo a sua passagem.

 Na verdade, pese embora o arguido tenha afirmado que imobilizou a sua viatura e alinhou a sua frente pela esquina do muro da casa da testemunha VB para poder verificar se vinha algum carro da Rua Capitão AB pois, pese embora em tal rua seja permitida a circulação apenas no sentido de marcha que o arguido pretendia encetar, à excepção dos moradores - facto confirmado pelas testemunhas e percepcionado pelo Tribunal na inspecção que  realizou -, em face da alegação por parte do arguido que conduziu apesar de ter consumido bebidas alcoólicas porque confiava que àquela hora houvesse pouco trânsito, é fácil de antever que também terá confiado que não vinha ninguém da referida Rua …e que tinha tempo de nela entrar antes de a vítima chegar ao entroncamento.

1.2. No que concerne às lesões sofridas pela vítima, analisaram-se o relatório da autópsia e as cópias das fichas clínicas.

1.3. Relativamente às condições pessoais do arguido, atendeu-se às declarações deste e ao depoimento das testemunhas LV  VB, respectivamente pai e vizinho daquele.

1.4. No que se refere aos antecedentes criminais, considerou-se o certificado de registo criminal junto aos autos.

2. Determinante da convicção negativa foi, além do que acima se expôs, na medida em que evidencia o contrário, a falta de prova bastante sobre os factos não provados.

APRECIANDO

Perante as conclusões da motivação, no presente recurso vem impugnada a matéria de facto dada como assente na sentença recorrida, considerando que foi efectuada errada apreciação da prova e, pugnando pela sua absolvição, alega o recorrente que tal matéria de facto é insuficiente para sustentar a condenação que lhe foi imposta, pelo que deveria o tribunal a quo ter feito uso do princípio in dubio pro reo.

Vem o recorrente questionar a apreciação da prova produzida em audiência, impugnando parte da matéria de facto que foi dada como assente na decisão recorrida, concretamente, os pontos 1.4, 1.5, 1.6, 1.9, 1.10 e, 1.11 (ao referir-se nestes pontos que o embate se deu conforme consta em 1.4).

Para tanto alega que, não tendo existido qualquer testemunha presencial dos factos, foi condenado porque não conseguiu provar que o acidente se tenha dado da forma que alegou.

Procura o recorrente demonstrar que não tendo havido nenhuma testemunha que corroborasse os factos que constam da acusação, a prova produzida é demasiado frágil e ambígua para permitir o grau de certeza necessário à condenação, pelo que, no mínimo, impunha-se que o tribunal ficasse num estado de dúvida que o impedisse de condenar o arguido.

Assim, ao impugnar parte da factualidade dada como provada, concretamente a forma como ocorreu o acidente, considera o recorrente que o Tribunal deveria ter extraído da prova produzida uma conclusão diferente em relação aos factos, concluindo pela sua absolvição.

Contrariamente ao invocado pelo recorrente a versão dos factos vertida na acusação resultou efectivamente provada, face à prova produzida em audiência conjugada com as diversas provas circunstanciais, as quais estão juntas aos autos e tendo sido analisadas em conformidade com as regras da experiência comum, se revelaram essenciais e esclarecedoras (como salienta a Magistrada do MP na sua resposta). Acresce que, foi também essencial para a boa decisão da causa a inspecção judicial ao local determinada pela Mmª Juiz, em sede de audiência, tendo em vista a tomada de esclarecimentos ao arguido e às testemunhas.

Com efeito, os factos ocorreram cerca das 6.40h e não foram presenciados por ninguém. 

Ora, na contestação que apresentou o arguido apresentou uma versão dos factos quase diametralmente oposta à descrita na acusação, no que respeita à dinâmica do acidente, designadamente que se encontrava parado e que foi embatido pelo motociclo que circulava com excesso de velocidade, concluindo ter sido a vítima a causadora do acidente. Acontece que esta tese não resultou provada, a qual apenas foi sustentada pelo arguido.

Ainda a propósito da versão do arguido, cumpre-nos registar o seguinte:

Declarou o arguido em audiência que viu o motociclo antes do embate; e que a 1ª vez que o viu ainda não tinha chegado ao entroncamento, encontrando-se o motociclo um bocado distante; que teve de parar para poder entrar na rua; que olhou para a esquerda e para o espelho, e já não olhou para a direita porque houve o embate. Acrescentou ainda que parou à espera que o motociclo passasse, o qual se encontrava a cerca de 50m (fls. 3, 4 e 13 do apenso de transcrição).

Estas declarações do arguido suscitam-nos algumas dúvidas porque não são compatíveis com a actuação de um condutor previdente. Os factos ocorreram a uma hora certamente com pouco trânsito (6.40h), e se como diz, teve de parar para que o motociclo passasse, devendo ser essa a primeira atenção/preocupação do arguido, não se compreende porque não manteve o olhar no motociclo (em vez de ter olhado para a esqª e para o espelho), que já estava tão perto e viria em excesso de velocidade (caso em que se teria apercebido das razões de ter sido embatido, como alegou).

Como resulta da fundamentação da matéria de facto a prova produzida foi globalmente avaliada. O Tribunal a quo avaliou os meios de prova produzidos em conjugação com as regras da experiência comum.

Assim, atendeu o tribunal:

- às fotografias da viatura e motociclo, juntas aos autos, onde é visível o local do embate, em toda a frente da viatura automóvel do arguido e parte lateral esquerda do motociclo;

- ao croquis (de fls. 41) elaborado pela testemunha AP, militar da GNR, que em audiência confirmou representar o mesmo o que observou quando chegou ao local, designadamente o local e posição em que se encontravam a viatura e o motociclo, onde estava o corpo da vítima e a ausência de rastos de travagem; tendo esta test. registado apenas um lapso no croquis quanto à mancha de sangue deixada pelo motociclista, tendo feito constar que pertencia ao condutor do veículo n.º 1 que era a do arguido (al. g) do croquis) (fls. 23 e 24 do apenso de transcrição); da sua experiência, não hesitou esta testemunha em afirmar que se fosse o motociclo a bater no carro, os estragos que a moto apresentaria não seriam aqueles (fls. 28);

- também a testemunha VB declarou em tribunal que o croquis corresponde ao que observou quando chegou ao local (fls. 43 do apenso de transcrição).

Ao analisar esta prova não se suscitaram ao tribunal quaisquer dúvidas quando considerou que foi o arguido que cortou a trajectória do motociclo, impedindo que o seu condutor pudesse efectuar uma manobra de modo a evitar o embate.

Por outro lado, e contrariamente ao que argumenta o recorrente, quanto à tampa de saneamento existente na faixa de rodagem onde circulava o motociclo, o tribunal pronunciou-se sobre a mesma na “Motivação” quando analisando criticamente o croquis e o depoimento da test. VB adquiriu a convicção de que «o motociclo circulava dentro da hemi-faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha, pois caso se tivesse desviado da tampa de saneamento e invadisse a hemi-faixa de rodagem destinada à circulação da viatura do arguido, o corpo teria sido projectado mais para o eixo da via».

Ainda um outro argumento utilizado pelo recorrente, de que a vítima teria pouca experiência na condução daquele tipo de veículos (por ter obtido a licença de condução havia cerca de um mês e ser recente a aquisição do motociclo), não foi suficiente para abalar a convicção do tribunal; para além de não ter resultado provado, o apontado circunstancialismo não é sinónimo de inexperiência; como é do conhecimento geral, e em especial dos que trabalham nos tribunais, são frequentes as condenações por condução sem habilitação legal.

Afigura-se-nos pois, que o recorrente, que acaba por impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, se esqueceu da regra da livre apreciação da prova prevista no art. 127º do CPP. Princípio este que, embora seja válido em todas as fases processuais, é na fase de julgamento que assume particular relevo, apoiado pelos outros dois princípios da apreciação da prova: o da oralidade e o da imediação.

Diz ainda o recorrente que foi excessivamente valorizado o facto de conduzir com uma taxa de álcool no sangue superior à permitida. Ora, sobre esta questão, como não podia deixar de ser, o tribunal teve em consideração a TAS que o arguido registava, de 1,6 g/l, já num momento posterior, aquando da subsunção dos factos ao direito, ao qualificar como negligência grosseira a conduta do arguido.

Estabelece o artigo 137º, n.º 1 do Código Penal que “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Acrescentando o n.º 2 que “Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos”.

Como facilmente se compreende, o bem jurídico protegido por esta norma é a vida humana, a vida de outra pessoa.

E, como resulta deste preceito, o tipo de crime pressupõe que:

- o agente assuma um comportamento comissivo ou omissivo;

- esse comportamento viole o dever (objectivo e subjectivo) de cuidado;

- a verificação do resultado morte de uma pessoa;

- a imputação desse resultado à conduta do agente.

Ou seja, recaindo sobre o agente « um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado » (art. 10º do CP), para que se possa imputar a alguém uma conduta negligente, o artigo 15º do CP exige que ela tenha violado quer o dever objectivo, quer o dever subjectivo de cuidado.

Ainda neste artigo 15º se considera a “culpa consciente” – na alínea a) – quando o agente prevê a possibilidade de realização do facto ilícito e tem dela consciência; ou seja «a representa». E, na alínea b) trata-se da “culpa inconsciente”, quando o agente não previu, não teve consciência, «não representa» a possibilidade de realização do facto ilícito.

Por sua vez, a negligência grosseira implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também ao nível do tipo de ilícito, verificando-se naqueles casos em que o agente revela uma atitude particularmente censurável de leviandade o de descuido perante o comando jurídico-penal ([1]).

Deste modo, para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica, sendo indispensável que possa imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente. O mesmo é dizer que a responsabilidade só se verifica quando existe nexo de causalidade entre a conduta do agente e o evento ocorrido.

Determinada acção ou omissão será causa de certo evento se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava à face da experiência comum como adequada à produção do referido evento, havendo fortes probabilidades de o originar ([2]).

Se bem que a adequação só acontecerá num prognóstico objectivo “a posteriori” feito pelo Juiz .

A existência de nexo causal entre a acção ou omissão do agente e o resultado produzido, se é condição necessária da imputação objectiva, não o é suficientemente; é ainda necessário que o evento seja objectivamente previsível como consequência da violação do dever objectivo de cuidado, ou seja, da diligência objectiva, diligência que toma, em relação a cada espécie de crime, o sentido do cuidado exigido para evitar o mal desse crime ([3]).

O juízo de censura, nos crimes negligentes como nos crimes dolosos, representa a relação do agente com o facto injusto, enquanto lho imputa como seu e por isso que no dolo o facto é imputado ao agente enquanto previsto e querido (art. 14º), e na negligência lhe é imputado enquanto, embora não directamente querido, era previsível e em razão dessa previsibilidade deveria o agente actuar com o cuidado a que está obrigado e é capaz para evitar a produção do facto injusto (art. 15º) ([4]).

Atendendo à factualidade dada como provada verificamos que a conduta do arguido preenche efectivamente os requisitos acima enunciados.

E, conforme a factualidade descrita haverá de concluir-se que o arguido não procedeu de acordo com as normas de prudência gerais, infringindo o preceituado nos artigos 35º, n.º 1 e 44º, n.º 1 do Código da Estrada (na redacção dada pelo DL n.º 265-A/2001), já que, como se refere na sentença recorrida “ Ao chegar ao entroncamento que a Rua de Camões faz com a Rua Capitão … , o arguido efectuou manobra de mudança de direcção para a esquerda, a fim de entrar naquela artéria, e foi embater com a parte frontal do seu veículo na parte lateral da frente esquerda do motociclo conduzido pela vítima, que naquele momento transitava em frente ao entroncamento.  Em virtude de tal embate, a vítima foi projectada do veículo, indo cair, no sentido de Ílhavo, a cerca de l0 metros de distância. Em consequência do embate, a vítima,  sofreu as lesões (…), as quais foram causa directa, necessária e adequada da sua morte.”.

In casu não se questiona, pois, a relação de causalidade entre o comportamento do arguido, violador do dever de cuidado, e a morte de JJ, impondo-se a sua condenação pela prática do crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal

Foi o arguido condenado na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.

Face às alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4-9, o período da suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, como dispõe o n.º 5 do art. 50º (de aplicação imediata por, em concreto, se mostrar mais favorável ao arguido – art. 2º, n.º 4).

Em consequência, a pena imposta ao arguido ficará suspensa, na sua execução, pelo período de 18 meses, mantendo-se a condição imposta na sentença recorrida.

III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.

- Fixar em 18 (dezoito) meses o prazo da suspensão da execução da pena imposta ao arguido nestes autos, ao abrigo do disposto no n.º 5 do art. 50º do CP.


[1] - cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 113.
[2] - Galvão Teles, in Manual do Direito das Obrigações.
[3] - Cavaleiro Ferreira, in Lições de Direito Penal, 1992, pág. 304.
[4] - Germano Marques da Silva, in Problemas Fundamentais de Direito Penal (Homenagem a Roxin), pág. 151.