Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
31/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
REVOGAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 03/01/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 56º, Nº1, E 64º, Nº 1, DO C. PENAL
Sumário: 1. Tal como na revogação da suspensão da pena, também a revogação da liberdade condicional só deve ter lugar em última ratio, ponderado que seja que a prisão constitui a única forma de conseguir as finalidades da punição.
2. Antes de decretar a revogação da liberdade condicional, há que proceder à audição do arguido em obediência ao princípio do contraditório.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO

No Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, Pº 965/95.2TXCBR-A, o Mmº juiz proferiu em 02.11.18, o seguinte despacho:
“ Processo instaurado para apreciação da revogação de liberdade condicional concedida a A....
II
Pronunciou-se a Magistrada do Ministério Público pela revogação, nada alegou a defensora.
Processo o próprio e sem nulidades, instruído com todas as diligências úteis e possíveis.
Nada impede seja proferida decisão.
III
A A..., que se encontrava preso no estabelecimento prisional de Coimbra, foi concedida, por sentença de 20 de Julho de 1999, liberdade condicional, pelo período decorrente até 21 de Janeiro de 2001, vinculado, além do mais, a manter boa conduta, fixar residência em Esgueira, Aveiro, aceitar o acompanhamento do Instituto de Reinserção Social e apresentar-se periodicamente aos respectivos técnicos.
Durante a liberdade condicional, concretamente a partir de Dezembro de 1999, o arguido deixou de ser localizado. Ele foi condenado, a 22 de Dezembro desse ano, por crime de condução sem carta, praticado em Tondela.
IV
Estatui o artº 40 nº 1 do Código Penal que "a aplicação das penas (...) visa (...) a reintegração do arguido na sociedade". Ademais, o condenado foi condicionalmente libertado porque, oportunamente, e em obediência ao disposto no artº 61 nº 2 alínea a) do mesmo Código, foi formulado o juízo de que seria "fundadamente de esperar (que o arguido, uma vez em liberdade, se comportaria) de modo socialmente responsável, sem cometer crimes".
De acordo com todos os factos apurados, é inegável que o arguido desrespeitou as injunções que se lhe impuseram, e não se mostrou merecedor da aposta genérica inerente ao instituto da libertação antecipada. Refere o artº 56 nº 1 alínea a) do Código Penal, que a suspensão da execução da pena "é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos”. E, agora ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 2 do artº 64 do mesmo Código, tal regime é aplicável à liberdade condicional, cuja revogação "determina a execução da pena de prisão ainda não cumprida.
Nestes termos, entendo dever ser proferida decisão de revogação da liberdade condicional, em conformidade.
Nos termos expostos, revogo a liberdade condicional concedida ao arguido A....”.
É deste despacho que, inconformado, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo que:
1ª No Código de Processo Penal vigente, a regra é a liberdade e a prisão a excepção;
2ª O escopo da liberdade condicional é "fortalecer as esperanças de uma adequada reintegração social do recluso, sobretudo daquele que sofreu um afastamento mais prolongado da colectividade";
3ª O despacho recorrido violou o artigo 35° do Código Penal, uma vez que a conduta do condenado configura a existência de um verdadeiro estado de necessidade desculpante;
4ª Violou ainda o despacho recorrido o artigo 56° do Código Penal, uma vez que não se encontram preenchidos os requisitos necessários à revogação da liberdade condicional;
5ª Optando pela revogação da liberdade condicional em prejuízo de medidas menos gravosas, violou o despacho recorrido o artigo 55° do Código Penal, assim como os princípios da adequação e proporcionalidade.
6ª Também não se descortina que, segundo as alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 56°, a infracção da regra relativa à residência seja de tal modo grave que justifique a revogação (vide Ac. Rel. Coimbra de 11/12/2003, proc. 3867/03 - 58 Secção);
7ª Entendemos que o arguido deve ser restituído à liberdade, embora com a advertência de não voltar a mudar de residência sem autorização, colocando-se de novo sob a tutela do IRS, até que possa ser reapreciada a possibilidade de colocação em liberdade definitiva.
Respondeu o MP, defendendo a manutenção do despacho recorrido.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do improvimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

A questão a apreciar consiste em saber se a decisão de revogação da liberdade condicional merece censura.
Vejamos.
Por despacho proferido em 99.07.20, foi concedida ao recorrente a liberdade condicional, tendo-se aí consignado:
“... Conceder a liberdade condicional ao arguido A..., pelo período decorrente até 21/01/2001.
Tal concessão ficará subordinada ao cumprimento das seguintes obrigações:
a) Fixar residência em Zona Industrial, Lixeira – Esgueira – Aveiro, não podendo alterá-la sem prévia autorização do Tribunal de Execução das Penas de Coimbra;
b) Manter boa conduta e dedicar-se ao trabalho com assiduidade, zelo e competência, determinantes de uma condigna produtividade em termos quantitativos e qualitativos;
c) Aceitar tutela do Instituto de Reinserção Social, devendo apresentar-se aos técnicos deste Instituto no prazo de dez dias, a contar da libertação e, subsequentemente, conforme aí lhe for determinado....”.
Tendo sido esta a decisão que concedeu a liberdade condicional ao arguido, viria a mesma, como vimos, a ser revogada cerca de três anos depois, por a partir de Dezembro de 1999, o arguido ter deixado de ser localizado e por ter sido condenado em 22 de Dezembro desse mesmo ano, pela prática de crime de condução sem carta.
Serviu ainda de suporte ao referido despacho um relatório elaborado pelo IRS dois anos e meio antes, isto é em 00.03.15, onde consta:
“Após a sua libertação, A... desenvolveu alguma actividade profissional na área da construção civil.
Compareceu nesta equipa de Reinserção social com a regularidade estipulada pelos técnicos, até Dezembro do ano transacto.
Posteriormente, e como não voltasse a comparecer nestes serviços, conforme fora estabelecido, efectuamos diligências junto do seu local de residência tendo sido informados por familiares, nomeadamente um irmão, que igu7almente se encontra em liberdade condicional, que A... se terá deslocado para a zona de Tondela, para passar o Natal com familiares, não mais tendo regressado.
Neste contexto, desconhecemos qual o actual paradeiro do libertado”.
Vejamos então se a medida adoptada pelo tribunal “a quo” é a correcta.
Estabelece o artº 64º nº 1 CP que é correspondentemente aplicável à revogação da liberdade condicional e extinção da pena o disposto no nº 1 do artigo 56º e no artigo 57º, respectivamente, isto é o regime de revogação da suspensão e extinção da pena.
Assim de harmonia com o disposto no artº 56º nº 1, são fundamentos da revogação da liberdade condicional do condenado:
“ a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela ser alcançadas.”.
Significa isto que o não cumprimento das obrigações impostas na decisão que concedeu a liberdade condicional não desencadeia necessariamente a revogação da mesma.
Com efeito pretendendo-se lutar contra a pena de prisão, tal revogação só pode ter lugar em última ratio.
Na verdade, nos termos do Artº 56º nº 1 a) CP, a revogação só se impõe se o condenado “ infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social”.
Assim face a um incumprimento culposo das condições impostas na decisão que concedeu a liberdade condicional, o tribunal tem de ponderar se a revogação constitui a única forma de conseguir as finalidades da punição.
Como diz Figueiredo Dias [Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 357.]“ Correcto seria que, qualquer que houvesse sido a natureza do incumprimento culposo das condições de suspensão, esta só fosse revogada se um tal incumprimento revelasse que as finalidades que estavam na base da suspensão já não poderiam, por meio desta, ser alcançadas; ou dito por outra forma, se nascesse dali a convicção de que um tal incumprimento infirmou definitivamente o juízo de prognose que esteve na base da suspensão, é dizer, a esperança de, por meio desta, manter o delinquente, no futuro, afastado da criminalidade”.
Ora constituindo a revogação da liberdade condicional e o consequente cumprimento da pena de prisão, a medida mais radical, parece-nos que, aquela opção só pode ser exercida quando outra não atingir tal desiderato.
Sucede que no caso vertente, dos elementos constantes dos autos não resulta minimamente comprovada a violação grosseira dos deveres impostos ao recorrente, aquando da concessão da liberdade condicional.
É que por um lado o relatório elaborado pelo IRS, que esteve na base da decisão revogatória proferida em 02.11.18, datava de 00.03.15 e, portanto não traduzia a evolução da personalidade do arguido, pois já haviam decorrido cerca de dois anos e meio até ao momento em que foi proferida a decisão de revogação e por outro o facto do arguido ter sido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação, não é suficientemente gravoso para justificar tal revogação, assim como o facto de ter deixado de residir no local autorizado pelo tribunal só por si não permite concluir que a socialização em liberdade se tornou impossível.
Acresce que o arguido não foi previamente ouvido com vista a indagar as razões de tal conduta, devendo sê-lo, em obediência do princípio do contraditório, ou já que mais não fosse, quando se procedeu à sua detenção.
Há pois que aquilatar de uma forma sólida e segura da idoneidade do arguido para continuar a merecer o benefício de prosseguir em liberdade até ao decurso do prazo da pena de prisão.
Resulta assim do exposto que a decisão recorrida padece manifestamente de insuficiente fundamentação que permita concluir pela violação grosseira dos deveres impostos ao recorrente, bem como não se mostra respeitadora do princípio do contraditório, impondo, por isso a sua revogação.

DECISÃO

Nestes termos, e com os expostos fundamentos, acordam os Juizes deste Tribunal da Relação, em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando-se a sua substituição por outra que dê ao arguido a oportunidade para se pronunciar, ordene a realização, pelo IRS, de inquérito sobre a situação do arguido no que concerne à sua integração social bem como à aquisição de demais elementos que permitam a final, apurar se houve ou não violação grosseira por parte do arguido dos deveres impostos aquando da concessão da liberdade condicional.
Restitua-se, de imediato, o recorrente à liberdade, passando os competentes mandados de libertação.
O arguido passará entretanto a fazer apresentações quinzenais no posto policial mais próximo da área da sua residência.
Sem custas.