Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
19/09.6 YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: ESCUSA
JUIZ TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO E ALVO DE DENÚNCIA
Data do Acordão: 02/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGOS 43º, 45º CPP
Sumário: Corre sério risco de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, pelo que existe fundamento de escusa nos casos em que o juiz titular se encontra arrolado como testemunha de acusação além ter sido alvo de denúncia pelo arguido, entretanto arquivada.
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 19/09.6 YRCBR (400).

Processo comum singular n.º 1.685/05.7 TALRA, do Tribunal Criminal de Leiria (1.º Juízo).


*

Acordam, em conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

*

I – Relatório.

M..., Juiz de Direito, em funções como titular do Tribunal Judicial de Leiria, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 43.º, n.ºs 1 e 2 e 45.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal [CPP], formular pedido de escusa no aludido Processo Comum Singular n.º 1685/05.7 TALRA e seus apensos, nos termos e com os seguintes fundamentos:

Foi-me distribuído o Processo Comum Singular n.º 1685/05.7 TALRA em que é arguido o cidadão F…;

Realizado o julgamento, veio este arguido a ser condenado em pena de multa, decisão da qual recorreu, tendo vindo esse Tribunal da Relação a negar provimento a esse recurso, confirmando a decisão recorrida;

Sucede que, entretanto, em sede de execução da decisão final transitada, o arguido requereu a substituição do pagamento da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade, pretensão objecto de indeferimento, por despacho judicial entretanto transitado em julgado;

O arguido carreou entretanto para os autos diversos escritos que, no entender do tribunal, consubstanciavam matéria criminal, tendo o signatário, em consequência, determinado a extracção de certidão dos mesmos e envio para os serviços do Ministério Público;

Após isso, e na sequência da extracção dessa certidão, o arguido veio a ser acusado pelo Ministério Público pela prática de dois crimes de difamação agravada no âmbito do Processo Comum Singular n.º 3314/07.5 TALRA que corre termos pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande;

Encontra-se agendado para o próximo dia 21.01.2009 o julgamento do arguido no âmbito destes autos, onde o signatário se encontra arrolado como testemunha da acusação;

Após prolação da acusação contra o arguido no âmbito do indicado Proc. CS n.º 3314/07.5 TALRA, o arguido apresentou queixa criminal contra o signatário, por eventual prática do crime de abuso de poder, dando origem, em consequência, ao Processo de Inquérito n.º 1/2008 da PGD de Coimbra;

Neste processo, onde o signatário foi constituído arguido e interrogado nessa qualidade, veio a ser proferida, pela Ex.ma Procuradora-geral Adjunta, decisão final de arquivamento;

A minha intervenção como juiz do processo criminal em referência (e correspondente apenso de execução), em face de todas estas vicissitudes acabadas de expor, constitui uma circunstância que gera desconfiança sobre a minha imparcialidade, nomeadamente pelo arguido, principal visado pelas decisões que ainda venha a proferir nestes autos;

Entende-se que, objectivamente, conhecendo-se a circunstância de o arguido ter proferido queixa criminal contra o signatário (desconhecendo-se se, entretanto, requereu ou não a abertura de instrução contra o referido despacho de arquivamento) e de se encontrar agendado para breve julgamento onde o signatário irá figurar como testemunha de acusação, tal constituem circunstâncias que constituem motivo sério e grave aptas a gerar a indicada desconfiança sobre a minha imparcialidade no âmbito dos presentes autos a cuja escusa se dirige.”

Junta documentos para prova do descrito e termina solicitando escusa para intervir nos subsequentes actos processuais que se vierem a tornar necessários exequibilizar nos autos em causa (e seus apensos).

O pedido mostra-se tempestivamente apresentado, sendo este Tribunal Superior o competente para a sua apreciação, visto o disposto no artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do CPP.


*

II – Fundamentação.

2.1. Demonstram os autos os factos objectivos invocados pelo Ex.mo juiz requerente, nomeadamente que:

- Lhe foi distribuído o Processo Comum Singular n.º 1685/05.7 TALRA, sendo aí arguido F...;

- Por sentença adrede proferida, foi o dito arguido condenado em pena de multa, decisão essa confirmada após recurso interposto pelo mesmo.

- Já em fase de execução de tal decisão final transitada, o arguido requereu a substituição do pagamento da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade, pretensão objecto de indeferimento, por despacho judicial também entretanto transitado em julgado.

- O arguido carreou entretanto para os autos diversos escritos que, no entender do tribunal, consubstanciavam matéria criminal, tendo o requerente, em consequência, determinado a extracção de certidão dos mesmos e seu envio para os serviços do Ministério Público.

- Em consequência do que veio o arguido a ser acusado pelo Ministério Público pela prática de dois crimes de difamação agravada, isto agora já no âmbito do Processo Comum Singular n.º 3314/07.5 TALRA que corre termos pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande;

- Nesses autos mostra-se agendado para o dia 21.01.2009 o julgamento do arguido, sendo que neles o ora requerente se encontra arrolado como testemunha da acusação.

- Após prolação da acusação contra o mencionado F…no âmbito do indicado Proc. CS n.º 3314/07.5 TALRA, apresentou ele queixa criminal contra o requerente, por eventual prática do crime de abuso de poder, facto determinante da abertura do Processo de Inquérito n.º 1/2008 da PGD de Coimbra.

- Aqui, o requerente foi constituído arguido e interrogado nessa qualidade, sendo proferida pela Ex.ma Procuradora-geral Adjunta, decisão final de arquivamento.

2.2. O incidente de escusa não deixa de ser um afloramento da exigência de um processo equitativo, contemplado no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa [CRP][1], que transpôs para o nosso ordenamento constitucional o que já estava consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Com efeito, dispõe-se no artigo 6.º, n.º 1 deste instrumento, na sequência do artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa e publicamente, …por um tribunal independente e imparcial” – no mesmo sentido apontando, aliás, o artigo 14.º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos.

Um processo equitativo exige uma transparência de procedimentos, mediante os quais a posição de qualquer interveniente processual não deve surgir afectada por nenhuma circunstância que o possa favorecer ou desfavorecer.

Como garante desse processo exige-se igualmente que quem julgue seja também equitativo, o que significa isento em relação aos interesses em conflito e justo na realização do direito.

Assim e seguindo de perto a jurisprudência do TEDH, podemos dizer que a garantia de imparcialidade do juiz e do tribunal constitui um dos elementos estruturantes do processo penal enquanto processo equitativo – veja-se a propósito Vincent Berger, em “Jurisprudence de la Cour Européene des Droits de L’Homme” (1998), com particular incidência no processo penal, p. 210 e ss.;

Ireneu Cabral Barreto, em “Convenção dos Direitos do Homem (1999), p. 154 e ss.; Christina Ashton & Valerie Finch, em “Humans Rights & Scots Law” (2002), p. 103 e ss.; Jean-François Renucci, “Traité de Droit Européen Des Droits de L’Homme” (2007), p. 406 e ss..

Esta imparcialidade, tanto pode ser vista, sob o ponto de vista subjectivo, como objectivo.
A primeira perspectiva ou dimensão, também designada por imparcialidade pessoal, diz respeito à posição pessoal do juiz, relativamente àquilo que o mesmo pensa, no seu foro interior, sobre um certo facto ou circunstância, que possa favorecer ou desfavorecer um interessado na acção.

A segunda, apelidada de imparcialidade funcional, corresponde às aparências (orgânicas, funcionais ou quaisquer outras) que possam perturbar negativamente a imagem do juiz e do tribunal, de modo a suscitar dúvidas ou receios, concretamente justificados, quanto à decisão a proferir.

Como se considerou no Ac. do STJ de 13 de Abril de 2005, divulgado em www.dgsi.pt, que seguiu de perto a jurisprudência do TEDH, “a gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que num interessado – ou, mais rigorosamente, num homem médio colocado na posição do destinatário da decisão – possam razoavelmente suscitar-se dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão”, acrescentando que “As aparências são, neste contexto, inteiramente de considerar, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente (“sério e grave”) para impor a prevenção”.

A propósito tem-se entendido, como antes sucedeu no Ac. do STJ de 5 de Abril 2000 [CJ (S) I/244], que “Só deve ser deferida escusa ou recusado o juiz natural quando se verifiquem circunstâncias muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção”.

Essa seriedade e gravidade do (s) motivo (s) causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, têm de ser avaliados de modo objectivo, partindo-se para o efeito do senso e experiência comuns – também, a propósito, o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 10 de Julho de 1996 [CJ IV/62].

2.3. No caso em apreço, estaria em causa a possível aparência de provável parcialidade do Ex.mo Juiz requerente, decorrente de, tendo-se sentido visado por escritos carreados para os autos mencionados, haver denunciado o arguido F…, por causa disso submetido a julgamento, no qual o mesmo Magistrado deporá (ou depôs já) como testemunha de acusação, além ter sido alvo de denuncia pelo mesmo, entretanto arquivada. Tudo adornaria o Magistrado num manto de suspeita sobre a imparcialidade que lhe era imposta para ponderar qualquer decisão contendendo com a execução da pena aplicada ao arguido.

Isto é, controvertida a vertente objectiva, por via da qual, reafirma-se, o que se impõe indagar e garantir é se o juiz, por virtude de considerações de carácter orgânico ou funcional não apresenta qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir, como também se não permite que aparente essa possibilidade, fazendo jus à máxima de que não basta ser, é preciso parecer. A visão que se tem do exterior, do exercício da actividade jurisdicional, é um tópico relevante e considerado pela jurisprudência na densificação do conteúdo «imparcialidade objectiva», dando relevância ao adágio anglo-saxónico «justice must not only be done; it must also be seen to be done».

Relevam a este propósito as intervenções anteriores do juiz «em fase anterior do mesmo processo», ou intervenção «noutro processo», falando-se com propriedade de contaminação objectiva – artigo 43.º, n.º 2, do CPP –.

Delimitando ainda mais o conceito e conteúdo da imparcialidade podemos dizer que se identifica com o facto de o juiz no exercício da sua função dever ser, mas também aparecer liberto de condicionamentos que possam justificar a suspeita de um qualquer pré-juízo no confronto do objecto do procedimento.

Parafraseando Jonh Rawls[2], um juiz imparcial é aquele cuja situação e carácter lhe permitem julgar sem qualquer predisposição ou preconceito.

No caso, vista a questão na perspectiva do arguido F…, é razoável supor que ele considere que o M.mo Juiz requerente não decidirá imparcialmente, considerando os “incidentes” entre ambos.

Normalmente considerará que a decisão deste será por tal facto mais movida pelo acinte pessoal do que pela legalidade.

Neste contexto, que não é de pura subjectividade, sopesando o risco de aparente banalização do instituto da escusa, impõe-se não permitir que paire qualquer dúvida quanto à imparcialidade da intervenção do Ex.mo requerente.

Ou seja, concluímos, assim, que atentas as vicissitudes processuais ocorridas e seus desenvolvimentos, no caso concreto, a sua intervenção no desenrolar subsequente dos autos, corre sério risco de gerar no arguido desconfiança sobre a sua imparcialidade, pelo que existe fundamento de escusa.


*

III – Decisão.

Tudo considerado, são termos pelos quais se defere ao apresentado pedido de escusa.

Sem tributação.

Notifique.


*

Coimbra, 11 de Fevereiro de 2009



[1] «Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.»
[2] Citado no Ac. da Relação do Porto, de 17 de Setembro pretérito, disponível em www.dgsi.pt.