Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3356/16.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
MASSA INSOLVENTE
Data do Acordão: 02/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JC CÍVEL LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 605º, 610º E 616º, Nº 4 DO C. CIVIL; 127º DO CIRE.
Sumário: I – A legitimidade processual para deduzir pedido de impugnação pauliana corresponde à posição de atual credor de obrigação civil prejudicado pelo acto impugnado.

II - Nos termos do art.º 616º, n.º 4, do C. Civil os efeitos da impugnação apro­veitam apenas ao credor que a tenha requerido.

III – O artº 127º do CIRE ao remeter para o regime da impugnação pauliana geral, que determina que os seus efeitos aproveitem unicamente ao credor impugnante, deter­mina sem qualquer margem para dúvidas a ilegitimidade da massa insolvente para a sua dedução.

IV - Representando a massa insolvente o universo dos credores da insolvente não pode a mesma instaurar ação de impugnação pauliana cujos efeitos só a si poderiam aproveitar.

V - O facto do CIRE prever um modo especial de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente não afasta a possibilidade de poder ser declarada judicialmente a nulidade de negócios jurídicos efectuados pelo devedor.

VI - A consagração do meio expedido de resolução dos negócios efectuados nos termos e limites temporais referidos no art.º 120º do CIRE não afasta essa possibilidade nem tal se compreenderia uma vez que os actos resolúveis não se configuram, nem são havidos, como actos inválidos, seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista substancial, atendendo naturalmente à inexistência de vícios que os afectem.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora intentou a presente acção, pedindo:
- a declaração de ineficácia em relação a si da doação efectuada pelo 1º ao 2º Réu, condenando-se este a restituir o bem ao 1º Réu;
Ou
- a declaração de nulidade da doação efectuada e consequente restituição a si do prédio urbano objecto da mesma.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:
- O 1º Réu foi declarado insolvente por sentença de 18.12.2014.
- No respectivo processo de insolvência encontram-se reconhecidos créditos no valor total de €1.212.704,05, tendo a maioria dos mesmos origem em avales prestados pelo insolvente em data anterior àquela em que efectuou a doação ao 2º Réu.
- Na data da concessão dos créditos referidos foi relevante a sua situação patrimonial que era integrada, quanto ao 1º Réu, pelo prédio que em 14.3.2012 doou ao 2º Réu, reservando para si o direito de usufruto.
- No processo de insolvência não foram encontrados quaisquer bens imoveis propriedade do 1º Réu, só tendo sido penhorado o usufruto do prédio doado.
- Ao doar o prédio ao 2º Réu, seu filho, o 1º Réu pretendeu evitar a recuperação dos créditos dos seus credores.
- O 1º Réu ao declarar doar o prédio ao 2º Réu teve exclusivamente em vista evitar a penhora do seu património e não a vontade de transmitir o bem.

Os Réus contestaram, excepcionando a legitimidade da Autora para os pedidos formulados, impugnado ainda a versão dos factos apresentada na p. inicial.
Concluíram pela procedência da excepção.
A Autora respondeu à excepção invocada, defendendo a sua improcedência.

Foi proferida decisão que julgou a causa nos seguintes termos:
Nos termos e fundamentos expostos,
1. Julgo verificada a falta de legitimidade da Autora MASSA INSOLVENTE DE J... para pedir a declaração de ineficácia do negócio jurídico de doação em relação àquela,
2. Com consequente absolvição dos Réus J... e D... da instância.
3. E julgo verificada a impossibilidade da lide relativamente ao pedido subsidiário de declaração de nulidade do mesmo negócio por simulação,
4. Com consequente extinção da instância.
A Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
Considerando que:
- O negócio doação cuja nulidade/ineficácia se pretende data de 14.03.2012 o pedido de insolvência (apresentação) data de 18.12.2014, ou seja mais de 2 anos depois.
- A resolução daquele negócio a favor da massa não é nem nunca foi um meio à disposição do AJ nos presentes autos.
Assim:
A) Quanto ao pedido principal de impugnação pauliana
1. Encontrando-se consagrado o denominado princípio da plenitude da instância falimentar e não estando ao dispor do AJ um meio como a resolução do negócio, salvo melhor opinião, não faz sentido advogar a ilegitimidade do AJ para interpor a presente acção de impugnação pauliana.
2. E consequentemente prejudicar o colectivo dos credores, em favor de um só credor que, de forma expedita, intente a mesma e exacta acção em benefício próprio.
3. Não esta a génese de todo o processo falimentar.
4. Não é este o espírito da Lei, que pretende, de modo equitativo, ainda com privilégios específicos de alguns credores, ratear entre todos os credores o valor do património do insolvente, beneficiando o colectivo em detrimento do individual.
5. Termos em que andou mal a douta sentença quando julgou verificada a excepção de ilegitimidade da A para propor a presente acção de impugnação pauliana, impondo-se a sua revogação, mais se ordenando o prosseguimento dos autos.
PARA QUANDO ASSIM SE NÃO ENTENDA, NO QUE NÃO SE CONCEDE:
B) Quanto ao pedido subsidiário de nulidade por simulação do negócio
6. A única questão reside em saber se o único meio ao dispor da AJ, em prol da defesa do interesse comum, é a resolução em benefício da massa ou se além desse pode lançar mão da acção de nulidade, em particular quando já não tem aquele meio ao seu dispor.
7. O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 16.06.22015, nos autos 529/10.TBRMR.S.C1, in www.dgsi.pt” é claro sobre esta questão:
Mas, salvo o devido respeito, não nos parece que a previsão de um único instituto com vista à resolução de actos prejudiciais à massa e a eliminação da possibilidade de o administrador de insolvência recorrer à acção pauliana abarque também a eliminação da possibilidade de o administrador instaurar acção com vista à declaração de nulidade de actos praticados pelo devedor.
- Em primeiro lugar, porque – reafirmamos – a legitimidade do administrador para invocar tal nulidade continua a encontrar apoio no art. 286º do CC, onde se estabelece o princípio ou regra geral em matéria de legitimidade para esse efeito.
E, em segundo lugar, porque não nos parece consentâneo com o pensamento do legislador e com a ordem jurídica em geral que, estando em causa um acto nulo, se limitasse profundamente a possibilidade de destruir os seus efeitos, por iniciativa da massa insolvente e do administrador da insolvência, aos casos em que é possível a resolução em benefício da massa insolvente.
8. É que:
(…) os actos resolúveis em benefício da massa insolvente são apenas os actos prejudiciais à massa que tenham sido praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência (art. 120º do CIRE) e tal resolução tem que ser efectuada em prazo curto e nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência (art. 123º do CIRE).
Ora, a entender-se que os actos nulos apenas poderiam ser atacados pelo administrador da insolvência por via desse instituto, tal significaria que os actos e negócios nulos praticados antes do período temporal ali definido ou aqueles que apenas viessem ao conhecimento do administrador depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência como é o caso dos autos - ficaram a salvo e não poderiam ser atacados em benefício da massa insolvente; a declaração de nulidade desses actos ficaria, assim, dependente da actuação dos credores ou de qualquer outro interessado e fora da disponibilidade do administrador da insolvência, situação que não se adequa à regra legalmente consagrada segundo a qual a nulidade, além de poder ser declarada oficiosamente pelo tribunal, é invocável a todo o tempo e por qualquer interessado.
9. Além do mais:
(…) a limitação temporal inerente à resolução em benefício da massa insolvente não causará muita estranheza relativamente aos actos que poderiam ser susceptíveis de impugnação pauliana, na medida em que esta sempre estaria temporalmente limitada por via da caducidade prevista no art. 618º do CC. Não nos parece, porém, que tal limitação seja adequada quando está em causa um acto nulo, porquanto a nulidade pode e deve ser invocada e declarada a todo o tempo, como determina o art. 286º do CC.
10. De onde concluímos que não podendo o AJ resolver a favor da massa um acto Nulo, pode o mesmo em nome e representação da massa, a todo o tempo, intentar acção que vise a declaração de nulidade do mesmo
11. Impondo-se, assim, a revogação da decisão aqui em crise, na parte em que absolveu da instância os RR relativamente ao pedido subsidiário, devendo os autos prosseguir para apreciação desse pedido
Conclui pela procedência do recurso.

Os Réus responderam, defendendo a confirmação da decisão.
1. Do objecto do recurso
 Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões apresentadas cumpre averiguar se a Autora detém legitimidade para os pedidos formulados.
2. Dos factos
 Com interesse para a decisão deste recurso importa considerar aos factos acima referidos
3. O direito aplicável
3.1 Da impugnação pauliana
A primeira questão que se coloca neste recurso resume-se a apurar se a massa insolvente tem legitimidade para instaurar acções de impugnação pauliana nos termos do art.º 610º e segs. do C. Civil, uma vez que a decisão recorrida julgou a recorrente parte ilegítima para a formulação desse pedido e aquela discorda dessa posição.
A legitimidade processual para deduzir pedido de impugnação pauliana corresponde à posição de actual credor de obrigação civil prejudicado pelo acto impugnado. [1]
Nos termos do art.º 616º, n.º 4, do C. Civil os efeitos da impugnação apro­veitam apenas ao credor que a tenha requerido.
Por sua vez o CIRE, contrariamente ao que acontecia na vigência do CPREF, quando no seu art.º 159º, n.º 1, no seguimento do regime falimentar anterior, dispunha que julgada procedente a impugnação pauliana, os bens ou os valores correspondentes revertem para a massa falida, no art.º 127º remete expressamente para a disciplina do artigo 616º do Código Civil, que confere ao credor, julgada procedente a impugnação, o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.
Esta remissão do CIRE para o regime da impugnação pauliana geral, que determina que os seus efeitos aproveitem unicamente ao credor impugnante deter­mina sem qualquer margem para dúvidas a ilegitimidade da massa insolvente para a sua dedução.                             Representando a massa insolvente o universo dos credores da insolvente não pode a mesma instaurar acção de impugnação pauliana cujos efeitos só a si poderiam aproveitar.
Consta do preâmbulo do CIRE, Parágrafo 4, do DL 53/2004, de 18.3.
A finalidade precípua do processo de insolvência – o pagamento, na maior medida possível, dos credores da insolvência – poderia ser facilmente frus­trada através da prática pelo devedor, anteriormente ao processo ou no decurso deste, de actos de dissipação da garantia comum dos credores: o património do devedor ou, uma vez declarada a insolvência, a massa insolvente. Importa, portanto, apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham ainda na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostram prejudiciais para a massa.
 A possibilidade de perseguir esses actos e obter a reintegração dos bens e valores em causa na massa insolvente é significativamente reforçada no presente diploma.
No actual sistema, prevê-se a possibilidade de resolução de um conjunto restrito de actos, e a perseguição dos demais nos termos apenas da impugnação pauliana, tão frequentemente ineficaz, ainda que se presuma a má-fé do terceiro quanto a alguns deles. No novo Código, o recurso dos credores à impugnação pauliana é impedida, sempre que o administrador entenda resolver o acto em benefício da massa. Prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – a «resolução em benefício da massa insolvente» -, que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudi­ciais a esse património.”.
Não permitindo a lei no regime geral da impugnação pauliana que os seus efeitos aproveitem a credores não impugnantes, é de concluir que não tendo a massa falida essa característica a mesma não tem legitimidade activa para instaurar esse tipo de acções. [2]
O legislador ao não consagrar no CIRE um regime especial para a acção de impugnação pauliana, em ruptura com os regimes anteriores, visou, sem quaisquer dúvidas, dar prevalência ao exercício do direito de resolução em benefício da massa de determinados actos prejudiciais do património do falido - direito que só pode ser exercido pelo administrador de insolvência -, subdividindo esse direito de resolução em duas modalidades quanto aos seus pressupostos, regulando os seus efeitos desenvolvidamente e a sua articulação com a acção de impugnação pauliana, a qual viu, de um modo significativo, reduzida a oportunidade da sua utilização quando o devedor tenha sido judicialmente declarado insolvente.
Tendo o legislador expressado de uma forma clara e inequívoca a sua vontade quanto ao regime da impugnação pauliana, não o diferenciando para o processo de insolvência não é permitido o recurso à analogia nem a interpretação extensiva.
Improcede, desde modo, o recurso interposto no que respeita à legitimidade para o pedido de impugnação pauliana.
3.2 Da declaração de nulidade da doação
A Autora formulou o pedido subsidiário consistente na declaração de nulidade da doação efectuada pelo 1º ao 2º Réu, condenando-se este a restituir o bem ao 1º Réu.                                Relativamente a este pedido a decisão sob recurso entendeu que decretada a insolvência do devedor ocorre uma impossibilidade de formular tal pedido, o que conduz necessariamente à extinção da instância por impossibilidade da lide.
Fundamentou esta conclusão no entendimento de que, consagrando o CIRE um regime específico de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente e, consequentemente, dos credores da insolvência – o instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente - os mecanismos legais a que o Administrador de Insolvência pode e deve recorrer são aqueles que resulta exclusivamente do regime específico previsto no CIRE, por isso, no caso concreto em apreciação, a Autora deveria ter exercido a resolução em benefício da massa insolvente.
Vejamos:
Dispõe o art.º 605º do C. Civil:
1 - Os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, quer estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração de nulidade, não sendo necessário que o cato produza ou agrave a insolvência do credor.
2 – A nulidade aproveita não só ao credor que a tenha invocado como a todos os demais.
A declaração de nulidade de um negócio jurídico tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente – art.º 289º, nº 1, do C. Civil.
O negócio simulado é nulo – art.º 240º, nº 2, do C. Civil.
Em apreciação de questão idêntica consta do acórdão[3] deste Tribunal que seguimos de perto:
De facto, ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, não é verdade que a propositura de acção com vista à declaração de nulidade de actos praticados pelo devedor esteja reservada aos credores. O art. 605º do CC – no qual se baseou a decisão recorrida – não tem esse alcance nem consente tal interpretação.
Na verdade, a nulidade, além de poder ser declarada oficiosamente pelo tribunal, pode ser invocada por qualquer interessado. É isso que se dispõe no art. 286º do CC e interessado para esse efeito será – como referem Pires de Lima e Antunes Varela[1] - o “…o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica como prática, seja afectada pelo negócio”.
O art. 605º do citado diploma, ao dispor que “os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, quer estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o acto produza ou agrave a insolvência do devedor”, veio apenas tornar expresso – esclarecendo algumas dúvidas que até então se suscitavam e de que nos dão conta Pires de Lima e Antunes Varela[2] - que os credores são titulares de um interesse relevante para efeitos de invocação da nulidade de actos praticados pelo devedor e que tal interesse não depende da anterioridade do crédito relativamente ao acto cuja nulidade se pretende invocar e não depende da circunstância de este acto ter produzido ou agravado a situação de insolvência do devedor.
Mas, se é verdade que os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, nos termos da citada disposição legal, já não é verdade que tal faculdade lhes esteja reservada em exclusivo, já que, de acordo com o disposto no art. 286º do citado diploma, tal faculdade pertence a qualquer pessoa que demonstre ter interesse na declaração de nulidade.
Ora, ao que nos parece, a massa insolvente e, como tal, o administrador de insolvência, no âmbito das funções que lhe estão atribuídas, tem interesse na declaração de nulidade de um contrato de compra e venda celebrado pelo devedor insolvente (como é o caso do acto em causa nos autos), providenciando, dessa forma, pela restituição à massa insolvente dos bens que nela se deveriam encontrar por ser nulo o acto em que assentou a transferência da respectiva propriedade.
Importa notar, aliás, que a nulidade desse contrato – por alegada simulação – poderia ser invocada pelos próprios simuladores entre si, como determina o art. 242º, nº 1, do CC, e, portanto, ela poderia ser invocada, contra a aqui Ré, pela devedora insolvente. Ora, assumindo o administrador da insolvência a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (art. 81º, nº 4, do CIRE) e porque a declaração de nulidade de um negócio de compra e venda celebrado pelo insolvente tem evidente interesse para a insolvência – possibilitando a recuperação de bens que pertencem à massa insolvente – parece que, também por essa via, estaria assegurada a legitimidade do administrador da insolvência na invocação da nulidade desse negócio.
E nada encontramos no CIRE que seja susceptível de ser interpretado no sentido de estar vedado ao administrador da insolvência a propositura de acção com vista à declaração de tal nulidade e no sentido de lhe retirar a legitimidade que, por efeito da aplicação da regra geral consagrada no art. 286º do CC, lhe deverá ser reconhecida.
O facto do CIRE prever um modo especial de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente não afasta a possibilidade de poder ser declarada judicialmente a nulidade de negócios jurídicos efectuados pelo devedor. A consagração do meio expedido de resolução dos negócios efectuados nos termos e limites temporais referidos no art.º 120º do CIRE não afasta essa possibilidade nem tal se compreenderia uma vez que os actos resolúveis não se configuram, nem são havidos, como actos inválidos, seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista substancial, atendendo naturalmente à inexistência de vícios que os afectem.
Do que se trata aqui é de, em razão dos interesses supremos da generalidade dos credores da insolvência, sacrificar outros interesses havidos como menores (os de que contratam com o devedor insolvente e eventualmente os dos que negoceiam com aqueles, portanto todos os terceiros em relação ao devedor insolvente) em função do empobrecimento patrimonial daqueles credores, por via da prática de actos num dado período temporal, designado como suspeito, que precede a situação de insolvência.
A finalidade prosseguida é, pois, a da reintegração no património do devedor (ou melhor da massa insolvente) para efeito da satisfazer os direitos dos credores. [4]
A entender-se que com a declaração de insolvência ficava precludida a possibilidade de ser declarada a nulidade de negócios nulos praticados pelo devedor, mesmo fora dos limites temporais exigidos pelo CIRE para a resolução, estava a dar-se uma protecção não pretendida pela ordem jurídica aos mesmos e contraditória com o vício de que enfermam.
… a entender-se que os actos nulos apenas poderiam ser atacados pelo administrador da insolvência por via desse instituto, tal significaria que os actos e negócios nulos praticados antes do período temporal ali definido ou aqueles que apenas viessem ao conhecimento do administrador depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência ficaram a salvo e não poderiam ser atacados em benefício da massa insolvente…[5]
Assim, concluindo-se que o Administrador da Insolvência tem legitimidade para instaurar acção de declaração de nulidade por simulação em que interveio o devedor impõe-se a procedência do recurso quanto ao pedido subsidiário.
Pelo exposto, julgando-se parcialmente procedente o recurso revoga-se a decisão recorrida, na parte respeitante ao pedido subsidiário, devendo os autos prosseguir para apreciação desse pedido, confirmando-se no que respeita ao pedido de impugnação pauliana.
Custas do recurso por recorrente e recorrido na proporção de ½.
                        Tribunal da Relação de Coimbra, em 12/02/2019
                                               Sílvia Pires
                                      Jaime Carlos Ferreira
                                           Jorge Arcanjo


[1] João Cura Mariano in Impugnação Pauliana, 2ª ed., pág. 286, Almedina.
[2] Neste sentido João Cura Mariano, ob. citada, pág. 288 e os acórdãos do T. R. C. de 11.3.2014 e 10.7.2014 relatados, respectivamente por Luís Cravo e Arlindo Oliveira, ambos acessíveis em www.dgsi.pt .


[3] Acórdão de 16.5.2015 relatado por Catarina Gonçalves e acessível em www.dgsi.pt.
Em sentido contrário os acórdãos do T. R. P. de 8.7.2015 relatado por Carlos Querido e do T. R. E. de 5.5.2016 relatado por Albertina Pedroso, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.

[4] Gravato de Morais in Resolução em Benefício da Massa Insolvente, ed. 2008, pág. 47, Almedina.
[5] Acórdão relatado por Catarina Gonçalves acima citado.