Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
231/16.1GABBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
INJÚRIA
DEGRADAÇÃO DE CRIME PÚBLICO EM CRIME PARTICULAR
QUEIXA
ACUSAÇÃO PARTICULAR
Data do Acordão: 02/03/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 152º E 181º.1 DO CÓD. PENAL E 48.º, 49º E 50 DO CPP
Sumário: I – A degradação do crime de violência doméstica em crime de injúria, operada no momento da prolação da sentença, não implica a ilegitimidade do Ministério Público para a promoção do processo, não se exigindo, deste modo, supervenientemente, a apresentação de queixa, nem a dedução de acusação particular, pelo ofendido/assistente.

II – De outro modo, seria apresentada, na referida fase processual, à assistente uma exigência de satisfação de uma condição de procedibilidade com a qual não poderia anteriormente contar, porque então inexistente.

III – Só assim não será quando o ofendido emita declaração no sentido de não pretender o prosseguimento do procedimento criminal.

Decisão Texto Integral:




Acórdão da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


 

I – Relatório

1.1.    O arguido T. veio recorrer da sentença proferida pelo Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha (Juiz 1) do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria que o absolveu da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º. 1, al. a), 2, 4 e 5, do Cód. Penal, e o condenou pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º.1 do Cód. Penal, na pena de 95 dias de multa, à taxa diária de 5 euros e ainda no pedido de indemnização civil no montante de 500,00 euros.

       1.2. No recurso em apreciação o recorrente apresentou as seguintes conclusões:

       1ª Questão: Extinção por caducidade do direito de queixa da assistente relativamente aos fatos considerados provados nos nºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 na douta sentença recorrida, com o consequente arquivamento dos autos quanto a esses fatos e quanto ao crime de injúria que o Tribunal a quo considerou que aqueles fatos integravam e pelos quais condenou o arguido:

  a) No caso sub judice, o Tribunal a quo decidiu que as condutas do arguido não integravam a prática de um crime de violência doméstica, mas sim a prática de crime de injúria, crime este pelo qual o Tribunal a quo condenou o arguido.

b) O crime de injúria é um crime particular, e, como tal, exige expressamente a apresentação de queixa como pressuposto do procedimento criminal, e a subsequente acusação particular.

c) A assistente apresentou queixa por violência doméstica no dia 17 de outubro de 2016, por fatos, alegadamente, cometidos em 17.06.2016, 13.09.2016 e 19.09.2016, conforme consta do auto de notícia de fls. 2 e 3 e entre os fatos denunciados está o fato considerado provado no 5.

d) A assistente apresentou a queixa, no dia 17 de outubro de 2016, que deu origem à instauração dos presentes autos, mas não apresentou queixa pelos fatos que o Tribunal a quo considerou provados nos nºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 e que considerou integrarem a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º nº 1 do Cód. Penal.

 e) O procedimento criminal pelo crime de injúria previsto no art.º 181º nº 1 do Cód. Penal, depende de queixa e da subsequente acusação particular (art.º 188º do Cód. Penal).

f) No caso dos autos, nenhuma queixa foi apresentada pela ofendida contra o arguido relativamente aos fatos considerados provados nºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 da douta sentença recorrida.

g) No caso dos autos, admitindo em tese abstrata de raciocínio, que as declarações prestadas pela assistente em 30.01.2018, constantes do auto de inquirição de fls. 216 e seguintes, constituem manifestação da vontade de perseguição criminal do arguido, o certo é que só poderia abranger a actividade desenvolvida nos seis meses anteriores à data de tal inquirição (30.01.2018), uma vez que relativamente aos atos parciais anteriores a esse período de tempo já se mostra extinto por caducidade o direito de queixa, o que obsta a que o arguido possa ser, quanto a eles, criminalmente perseguido.

h) Ora nenhum dos fatos considerados provados nos nºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 da douta sentença recorrida ocorreu no período de seis meses imediatamente anterior ao auto de inquirição de fls. 216 (30.01.2018), e, também, não ocorreu no período de seis meses imediatamente anterior à acusação particular deduzida em 09.07.2018 pela assistente.

i) Pelo que deve concluir-se que se mostra extinto por caducidade o direito de queixa da assistente relativamente aos fatos considerados provados nos nºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 da douta sentença recorrida.

j) Devendo, consequentemente, proferir-se decisão que revogue o decidido na douta sentença recorrida, no segmento que condenou o arguido pela prática de um crime de injúria, sendo substituído por douta decisão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que declare extinto por caducidade o direito de queixa da assistente relativamente aos fatos considerados provados nos nºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 na douta sentença recorrida, determinando o consequente arquivamento dos autos quanto a esses fatos e quanto ao crime de injúria que o Tribunal a quo considerou que aqueles fatos integravam e pelos quais condenou o arguido.

 2ª Questão: Arquivamento dos autos relativamente ao fato considerado provado no nº 5 na douta sentença recorrida, que não pode integrar a prática de um crime de injúria p. e p. pelo art.º 181º nº 1 do Cód. Penal, por ausência de acusação particular e por falta de legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal pelo crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º nº 1 do Cód. Penal na pessoa da assistente:

k) Atribuída natureza particular ao crime de injúria p. e p. pelo art.º 181º nº 1 do Cód. Penal, pelo art.º 188º do C. Penal, a dedução de acusação particular, imposta pelo art.º 50º do C.P.P., constitui pressuposto processual do procedimento criminal respetivo, ou seja, condição positiva daquele mesmo procedimento que, do mesmo modo, condiciona a responsabilidade penal [Taipa de Carvalho, Sucessão de leis penais, 3ª ed. 2008 p.385].

l) Sendo a falta de acusação particular insuscetível de suprimento, a sua verificação na fase de recurso impede o prosseguimento do procedimento criminal pelo crime respetivo, colocando-se a questão após a condenação do arguido em resultado da qualificação jurídica dos factos provados operada na douta sentença recorrida.

m) Aliás, não sendo passível de suprimento a falta de acusação particular, carece o Ministério Público de legitimidade para o prosseguimento do processo pelo referido crime de injúria – art.º 50º do C.P.P., impondo-se o arquivamento dos autos nessa parte.

n) Com a exposta fundamentação, deve proferir-se decisão que conceda provimento ao recurso, decidindo que, por ausência de acusação particular e falta de legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal pelo crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º nº 1 do Cód. Penal na pessoa da assistente, pelo fato considerado provado no nº 5 na douta sentença recorrida, deve determinar-se o arquivamento dos autos nesta sede relativamente àquele fato que não pode integrar a prática de um crime de injúria p. e p. pelo art.º 181º nº 1 do Cód. Penal.

3ª Questão: Proferindo-se decisão que revogue o decidido na douta sentença recorrida relativamente aos fatos considerados provados nos nºs 7 a 21, considerando quanto aos mesmos extinto por caducidade o direito de queixa e decidindo-se o arquivamento dos autos relativamente ao fato considerado provado nº 5, como o arguido requer, deverá proferir-se decisão revogando os segmentos da douta sentença recorrida que condenou o arguido pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º nº 1 do Cód. Penal, e que, consequentemente, condenou o arguido/demandado a entregar à assistente/demandante, a quantia de 500,00 € (quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, sendo substituída por douta decisão que absolva o arguido da prática do crime por que foi condenado, e que o absolva da condenação em indemnização à assistente:

o) Caso seja dado provimento às questões 1 e 2 suscitadas pelo arguido, por falta de fatos, de ilicitude e de dolo do arguido, deve decidir-se que não se mostram preenchidos os elementos objetivos e os elementos subjetivos do crime de injúria, devendo proferir-se decisão que revogue o decidido na douta sentença recorrida e que absolva o arguido do crime por que foi condenado.

p) Sendo no presente recurso dado provimento às questões 1 e 2 suscitadas pelo arguido, como o arguido requer, o pedido de indemnização civil deixa de se fundar na prática de um crime, deixa de existir a prática de um crime de injúria pelo arguido e deixa de existir responsabilidade criminal do arguido.

q) O pedido de indemnização civil deduzido no processo penal deve ter como causa de pedir os mesmos fatos que são pressuposto da responsabilidade criminal pelos quais o arguido foi acusado e pelos quais foi condenado.

r) Para a fixação do "quantum" indemnizatório terá o julgador de se socorrer das regras estabelecidas no Código Civil, designadamente, das contidas nos artigos 483º e seguintes e 562º e seguintes.

s) Desde logo coloca-se a questão da prescrição relativamente ao pedido de indemnização civil, pois todos os fatos considerados provados nos nºs 7 a 21 ocorreram mais de três anos antes de 30.01.2018, da data do auto de inquirição de fls. 216, e, como tal, relativamente aos fatos considerados provados nos nºs 7 a 21 ocorreu prescrição, nos termos do nº 1 do art.º 498º do Cód. Civil, prescrição que o arguido invoca e que tem por consequência a absolvição do arguido do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente.

t) Acresce que o crime de injúria prescreve no prazo de dois anos, nos termos do art.º 118º nº 1 alínea d) do Cód. Penal, pelo que o caso sub judice não beneficia do prazo alargado, previsto no dispõe o nº 3 do art.º 498º do Cód. Civil, para outro tipo de crimes com prazo de prescrição superior a três anos.

u) No caso sub judice, não se verificaram todos os pressupostos da responsabilidade civil, pois os fatos 7 a 21 não podem ser considerados provados, não podem consubstanciar a violação de um direito alheio, não se verificando a ilicitude e a culpa, pressupostos da responsabilidade civil.

v) Pelo que constam provados danos, mas inexistem fatos ilícitos que permitam estabelecer o nexo de causalidade entre os fatos e os danos, pressuposto da responsabilidade civil, pelo que não é possível afirmar que os danos são resultantes de comportamentos do arguido.

w) Dos excertos da douta fundamentação recorrida que se transcreveram, resulta que a douta sentença recorrida relevou, apenas, no contexto em que o fez as publicações na rede social facebook (fatos 7 a 21) para fixar o montante indemnizatório em 500,00 € (quinhentos euros) e para condenar o arguido no pagamento do mesmo.

x) Pois, relativamente ao fato 5, a douta sentença recorrida considerou que o mesmo não reveste relevância criminal, conforme se retira do seguinte excerto da douta fundamentação da douta sentença recorrida: … o casamento caminhou na direção da rutura, a qual veio a ocorrer, tendo a assistente iniciado um novo relacionamento, ou ainda na fase final do seu casamento (de facto) com o arguido ou imediatamente após o seu termo, facto que ofendeu, por sua vez, o arguido, que se sentiu traído e, em face deste sentimento, começou a demonstrar um estilo diferente de hostilidade, mais direta e expressa, a qual se traduziu no tom das mensagens trocadas pelo ex-casal, com acusações e falta de compreensão de parte a parte sem, contudo, revestir matéria criminal.

y) Com a exposta fundamentação, e por não se reunirem todos os pressupostos da responsabilidade civil, deve proferir-se decisão que revogue o decidido na douta sentença recorrida e que, consequentemente, absolva o arguido da prática do crime por que foi condenado e que o absolva da condenação em indemnização à assistente.

z) Pelo que deverá ser proferida decisão que revogue o decidido na douta sentença recorrida relativamente aos fatos considerados provados nos nºs 7 a 21, considerando quanto aos mesmos extinto por caducidade o direito de queixa e decidindo-se o arquivamento dos autos relativamente ao fato considerado provado nº 5, como o arguido requer, deverá proferir-se decisão revogando os segmentos da douta sentença recorrida que condenou o arguido pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º nº 1 do Cód. Penal, e que, consequentemente, condenou o arguido/demandado a entregar à assistente/demandante, a quantia de 500,00 € (quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, sendo substituída por douta decisão que absolva o arguido da prática do crime por que foi condenado, e que o absolva da condenação em indemnização à assistente.

 

1.3 A assistente respondeu ao recurso nos seguintes termos:

 I - O crime de violência doméstica, é um ilícito composto na medida em que integra condutas que em si mesmo já são consideradas crime mas que obtêm uma cominação mais grave em resultado da qualidade especial do autor ou do dever que sobre ele impende.

II - Concorre quase sempre com outras normas incriminadoras, encontrando-se numa situação de concurso aparente de normas relativas aos crimes de ofensas corporais simples, de injúria, de ameaça, de coação, de sequestro simples, de devassa da vida privada, de gravações e fotografias ilícitas e de perseguição.

III - Entendeu a Meritíssima Juiz a quo, que no presente caso concreto não se provou o cometimento do crime de violência doméstica, mas sobejou prova de alguns dos factos que se inserem numa ação típica do crime de injúrias, p. e p. nos termos do artigo 181º n.º 1 do Código de Penal.

IV – E relativamente aos factos que conduziram à condenação do arguido pelo crime de injúrias, verificou-se nos presentes autos o preenchimento de todos pressupostos processuais necessários.

V - Tratando-se do crime de injúrias, um crime de natureza particular, a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pela queixa, constituição de assistente a acusação particular, que são pressupostos da admissibilidade do processo.

VI - Nos presentes autos, e conforme consta do auto de notícia de fls. 2 e 3, a assistente em 13.09.2016 deslocou-se ao Posto da GNR do (…) e efetuou queixa por insultos e ameaças e posteriormente efetuou constituição de assistente e deduziu acusação particular.

VII - A referida acusação particular foi admitida pela Meritíssima Juiz a quo e nela constam os factos n.º 7º a 21º dados como provados na sentença recorrida.

VIII - Sobre os referidos factos ao arguido foi dada a possibilidade de exercer a sua defesa, o que fez.

IX – O conteúdo da queixa define o objeto da investigação, que poderá ser ampliado com novos factos, cujo procedimento criminal também dependa de queixa, se entre estes e os iniciais se verificar conexão ou identidade substantiva, o mesmo é dizer, desde que, neste caso, se mantenha no âmbito da situação denunciada e de proteção do mesmo bem jurídico, o que também se verificou na presente situação.

X – Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto quando decidiu: “Se o queixoso apresenta queixa por crime de ofensa à integridade física e, durante o inquérito, se referenciaram factos suscetíveis de integrar um crime de injúria contra o queixoso, deve entender-se que houve queixa relativamente a este crime se, tendo o Ministério Público notificado o queixoso para, nos termos dos artigos 68 n.º 2, e 246 nº. 4 do Código de Processo Penal, o queixoso vier nesse prazo requerer a sua constituição como assistente (Ac. TRP de 13/10/2004, disponível em www.dgsi.pt.).

XI - E também neste sentido o acórdão da Relação de Coimbra, de 19.12.2006 (Relator: Des. Brízida Martins) quando nele se afirma que “nos crimes semi-públicos e particulares, o objeto do inquérito limita-se ao estrito âmbito da queixa apresentada pelo ofendido, queixa que não pode estender-se a qualquer outro crime que não tenha relação de identidade factual com o crime participado”.

XII - No mesmo sentido o acórdão da mesma Relação, de 19.01.2011 (Des. Orlando Gonçalves) ao afirmar que “o facto descrito na queixa, numa perspetiva naturalístico-normativa, pode ser restringido ou ampliado durante a investigação, desde que neste último caso se mantenha no âmbito da situação denunciada e de proteção do mesmo bem jurídico”.

XIII - Nos presentes autos, a queixa apresentada em 13.09.2016 foi por insultos e ameaças e a condenação do arguido foi por injúrias, verificando-se conexão e identidade subjetiva entre os factos constantes na queixa e os constantes na sentença, bem como a proteção do mesmo bem jurídico.

XIV - O arguido foi condenado por factos praticados a 17.06.2016 e a queixa efetuada a 13.09.2016, pelo que, conclui-se que esta foi efetuada no prazo de 6 meses, nos termos do artigo 115º do Código Penal.

XV - A assistente deduziu acusação particular a folhas 325 e seguintes, por factos que não importaram alteração substancial de os constantes na acusação, ao mesmo tempo que também aderiu à acusação do Ministério Público quanto aos factos nela constantes, nomeadamente, quanto ao facto considerado provado no n.º 5 da douta sentença recorrida.

XVI - E neste sentido, muita da Jurisprudência tem entendido que é reconhecido o cumprimento dos requisitos de legitimidade do ofendido no caso de aquele se ter previamente constituído como assistente e aderido à acusação pública pelo crime de violência doméstica, em que se continham também os factos que se vieram a provar, consubstanciadores de crime na natureza particular.

XVII - Neste sentido: AC TRP, 30-01-2013, relator: Pedro Vaz Pato, AC TRP, 27-04-2016, relator: Vítor Morgado e AC. TRL, 17-06-2015, Relator Graça Santos Almeida (todos in www.dgsi.pt.)”.

XVIII - Entendendo também a referida jurisprudência como desnecessário o cumprimento do preceituado nos artigos 358° ou 359° do Código de Processo Penal.

XIX - E nesse sentido também a Meritíssima Juiz a quo entendeu não haver qualquer alteração da qualificação jurídica criminal a que cumprisse proceder à respetiva notificação para efeitos do disposto no art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.

XX – Em consequência o arguido nada disse ou requereu.

XXI – Entendendo, a Meritíssima Juiz a quo não tendo resultado provados em julgamento, factos susceptíveis de integrar a perpetração de um crime de violência doméstica, o certo é que a ofendida no tempo próprio, apresentou queixa, constituiu-se assistente e o Ministério Público deduziu acusação pela prática de um crime de violência doméstica, acusação esta que a assistente acompanhou, ao mesmo tempo que efetuou acusação particular.

XXII - E o presente caso concreto é em tudo idêntico ao atrás citado Ac. RL de 17.06.2015, de que foi relatora Graça Santos Silva.

XXIII - Entendeu também a Meritíssima Juiz a quo não ser necessário dar cumprimento ao disposto no artigo 358.º n.º 1 do Código de Processo Penal e neste sentido salienta-se o disposto no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2008, in DR, 1ª Série, de 30.07.2008.

XXIV - No presente caso, e considerando a acima relação que existe entre o imputado crime de doméstica e o crime de injúria, não se verifica nenhum elemento de surpresa que determine que seja atribuída ao arguido uma maior amplitude de defesa, e nessa medida, a dispensa do cumprimento do disposto no artigo 358º, nº 3 do Código de Processo Penal.

XXV - No mesmo sentido do aqui defendido, em que estava em causa o crime de violência doméstica, mas em que os crimes sobrantes ou residuais eram os crimes de ameaça e de ofensa à integridade física simples, vide Ac. RG, de 02.11.2015, proc. 77/14.1TAAVV.G1, relatora Manuela Paupério; Ac. RG de 21.10.2013, proc. 353/11.5GDGMR.G1, relator Filipe Melo; e Ac. RP de 28.03.2007, proc. 0710448, relatora Élia São Pedro.

XXVI - Nesta conformidade, entende a assistente que não se verifica qualquer obstáculo legal /processual impeditivo da apreciação da responsabilidade criminal do arguido quanto ao crime de injúria p. e p. pelo arguido 181º do Código Penal.

XXVII - A assistente pediu a condenação do arguido a pagar-lhe a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), para reparação (cível) dos danos que este lhe causara com a sua conduta.

XXVIII - O demandado, foi condenado a pagar á assistente, a quantia de € 500,00 (quinhentos euros).

XXVIX - Estabelece o artigo 400º nº 2, do Código de Processo Penal, que “o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”.

XXX- O artigo 44º, nº 1, da LOSJ (aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26/8), fixou a alçada dos tribunais de primeira instância em € 5.000,00 (cinco mil euros), estatuindo o disposto no nº 3 da mesma norma legal que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi deduzido o pedido de indemnização civil.

XXXI - Assim, entende a assistente não ser admissível recurso da sentença proferida pelo tribunal a quo relativamente ao pedido de indemnização civil, por não se verificar um dos pressupostos exigidos pelo citado artigo 400º do Código de Processo Penal, na medida em que a decisão que se pretende impugnar não é desfavorável para o demandado em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido, uma vez que o  demandado foi condenado no pagamento de €500,00 (quinhentos euros), e esse valor é manifestamente inferior a metade da alçada do tribunal recorrido, que corresponde a € 2500,00 (dois mil e quinhentos euros).

1.4.  O Ministério Público junto ao tribunal da 1ª instância respondeu em termos genéricos e algo lacónicos, manifestando concordância com a decisão sob recurso que considerou “justa, legal, manifestando uma correta aplicação do direito aos factos”.

1.5. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto ao Tribunal da Relação, pronunciou-se nos seguintes termos:

O arguido T. veio impugnar a douta sentença recorrida, que o absolveu da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º. 1, al. a), 2, 4 e 5, do Cód. Penal, e o condenou pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º.1 do mesmo diploma legal, na pena de noventa e cinco dias de multa, à taxa diária de cinco euros, alegando, em síntese, a extinção por caducidade do direito de queixa da assistente relativamente aos factos considerados provados nos nºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 da sentença, bem como o arquivamento dos autos relativamente ao facto considerado provado no nº 5, reclamando em consequência, a sua absolvição.

Pugnado ambas pela sua improcedência, ao recurso responderam, sumariamente, a Exma. Magistrada do Ministério Público na 1ª instância e, doutamente, a assistente C., esta em termos que, pelo seu acerto e eloquência, mais não reclamam que a nossa simples adesão. Sem prejuízo, complementarmente, diremos o seguinte:

Como bem assinala a assistente na sua douta resposta, existe entre todos os factos que fundamentaram a condenação do arguido pelo crime de injúria uma relação de conexão ou identidade substantiva, tendo o último dos quais sido praticado menos de seis antes do presente procedimento criminal se ter iniciado por sua iniciativa, mediante a apresentação de queixa. E, tanto assim é, que o arguido não foi condenando por tantos crimes de injúria quantas as vezes em que proferiu afirmações atentatórias da honra e consideração que eram devidas à assistente, mas pela prática de um único crime, cujo último ato de execução ocorreu no dia 17 de junho de 2016, tendo a queixa sido efetuada menos de três meses após essa data, isto é, muito antes de esgotado o prazo estabelecido pelo art.º 115º.1 do Cód. Penal.

Contudo, ainda que não tivesse sido formalmente apresentada queixa pela assistente e não se considerasse ter sido deduzida a acusação particular exigida pelo art.º 188º.1 do Cód. Penal, nem por isso o arguido deveria deixar de ser condenado pelo crime de injúria. Com efeito,

Não obstante na fase de julgamento, de acordo com a avaliação por si feita da prova produzida em audiência, a Mma. Juiz a quo ter concluído pela não demonstração de todos os elementos constitutivos do crime de violência doméstica, pelo qual o arguido vinha acusado, e, consequentemente, pela alteração da natureza procedimental do crime em causa, que de pública passou a particular, tendo o processo sido iniciado para investigação de um crime de natureza pública e assim prosseguido até à fase de julgamento, qualificação jurídica essa assente nos elementos então conhecidos, para condenar o arguido pelo crime de injúria não seria necessário que a assistente tivesse exercido o direito de queixa ou deduzido acusação particular, por aquela alteração da qualificação jurídica não ter qualquer efeito sobre o procedimento que foi iniciado de forma válida e eficaz. Neste sentido, ainda que versando sobre a alteração da qualificação jurídica como crime público para crime semipúblico, veja-se o recentíssimo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09 de dezembro de 2019, proferido no âmbito do processo 945/17.9GAEPS.G1 (consultável em www.dgsi.pt), cuja doutrina é plenamente aplicável ao caso aqui em apreço.

Ainda no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11 de maio de 2016, proferido no âmbito do processo 771/13.4GCVIS.C1 (consultável em www.dgsi.pt), de que, com a devida vénia, nos permitimos transcrever o seguinte trecho: (segue transcrição do excerto igualmente citado infra.

 


II - Fundamentação de Facto

(transcrição parcial da sentença sob recurso)


SENTENÇA

 I - RELATÓRIO

Em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público deduziu acusação contra T. (…)  imputando-lhe a prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. a), 2, 4 e 5, do Código Penal.


*

A assistente deduziu acusação particular a fls. 325 e ss., por factos que não importaram alteração substancial dos constantes do despacho de acusação e pedido de indemnização civil a fls. 328 e ss.

(…)

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos provados

Com relevância para a decisão da causa, da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

- matéria criminal

1. A assistente e o arguido contraíram matrimónio em 17/04/2009, e residiam na área do (…).

2. Do casamento nasceu um filho em 08 de Julho de 2010, de nome A..

3. O casal separou-se em 27/05/2016.

4. Desde o início da relação que o arguido se revelou, para com a assistente, uma pessoa possessiva e ciumenta.

5. No dia 08/03/2014 – dia da mulher -, o arguido publicou nas redes sociais uma fotografia da assistente limpando os vidros da janela da sala da residência, tendo-se a assistente sentido humilhada com tal publicação.

6. No dia 17/06/2016, ao final da tarde, junto ao Hipermercado Continente, no (…), quando a assistente se achava na sua viatura, acompanhada pelo filho, foi abordada pelo arguido e que, de imediato, lhe disse “Não tens condições morais de educar o meu filho, o que estás a fazer mete-me nojo”

7. Em data concretamente não apurada, após a separação do casal, num café sito no (…), o arguido disse a R. “se fosse contigo já lhe tinhas passado com o carro por cima, ou dado um tiro”.

8. Em data não concretamente apurada, mas seguramente desde o ano de 2010, o arguido possuía dois perfis na rede social facebook, um com o nome de T. e outro com o nome de F..

9. Através da rede social facebook, o arguido envergonhou e humilhou a assistente por várias vezes.

10. No dia 27 de julho de 2010, depois de um amigo do, então, casal ter felicitado arguido e assistente pelo nascimento do filho, o arguido reagiu de modo despropositado acabando por envergonhar a assistente escrevendo que esta tinha “conversas de merda”, quando esta tecia elogios ao arguido e filho.

11. No dia 30 de junho de 2010, o arguido chamou “otária” à assistente.

12. No dia 8 de novembro de 2010, o arguido chamou “chato do caraças” ao seu filho de 4 meses.

13. No dia 17 de abril de 2013, o arguido chamou “sapo” à assistente.

14. No dia 6 de julho de 2013, o arguido ridicularizou a assistente escrevendo “deixa crescer o bigode outra vez”.

15. No dia 24 de julho de 2013, o arguido chamou “bimbos” à assistente e ao seu irmão.

16. No dia 22 de outubro de 2013, o arguido ridicularizou a assistente escrevendo “a dar pelo que ressonaste, ninguém diria que ainda tens sono… loool”.

17. No dia 29 de outubro de 2013 o arguido chamou “lesma” à assistente. 

18. No dia 14 de agosto de 2014, o arguido publicou a fotografa de um burro com a boca aberta, e escreveu no facebook que esta fotografia correspondia “àquela foto da C. a bocejar…ah, no outono…”.

19. Ao ler na rede social facebook as referidas publicações do arguido e ao ouvir familiares, amigos e conhecidos a comentá-las, a assistente sentiu a sua honra e consideração pessoal afetadas.

20. Ao ouvir as palavras injuriosas a assistente sentiu a sua honra e consideração pessoal afetadas.

21. O arguido quis agir como agiu querendo ofender a assistente na sua honra e consideração pessoal.

22. Mais sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei criminal.

23. À data de 28.01.2020 nada constava do Certificado de Registo Criminal do arguido.

24. 

 

B) Factos não provados

Não se provou que:

 (…)


*

C) Motivação da matéria de facto

 

D) Enquadramento jurídico-penal

O arguido vem acusado da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), 2, 4 e 5, do Código Penal.


(…)

Analisada a jurisprudência acima transcrita e, bem assim, outras decisões no mesmo sentido, conclui-se que, para avaliar se estamos em face de um crime de violência doméstica ou, ao invés, de qualquer um dos demais ilícitos compreendidos neste crime de espectro alargado, teremos de examinar se a vítima, no caso concreto, foi desdignificada na sua personalidade e enquanto pessoa humana pelo agressor, se este a colocou numa posição de submissão ou subjugação que determinem a perda da sua dignidade individual e, bem assim, se o agressor colocou a vítima numa posição de domínio e controlo sobre si mesmo. É esta, em suma, a “pedra de toque” que traduz a separação entre o que deve ser considerado violência doméstica e aquilo que, não obstante ocorrido na residência comum e no contexto da vida familiar, traduz simplesmente ofensas físicas ou psicológicas, ou outro qualquer tipo de crime compreendido no de violência doméstica, sem que atinja a gravidade que obrigue à sua aplicação. Volvendo ao caso dos autos, afigura-se-nos que a assistente não foi colocada pelo arguido nesta situação de subjugação, não existia sobre o arguido um domínio sobre a assistente, não determinou, qualquer comportamento do arguido, a perda da dignidade humana da assistente. Simplesmente o arguido efetuou publicações na rede social facebook que a assistente não gostou, com as quais se sentiu ofendida, envergonhada e magoada e esta simples situação não configura, quanto a nós, qualquer situação de violência doméstica, mas sim um crime de injúria.

 E) Escolha e Determinação da Medida Concreta da Pena

 (…)

F) Pedido de indemnização civil

(…)

III - DECISÃO

Pelo exposto, julgo parcialmente procedente por provada a acusação e, em consequência:

1. absolvo o arguido T. da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a), 2, 4 e 5, do Código Penal.

2. condeno o arguido T. pela prática de um crime de injúria, ilícito p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 95 (noventa e cinco) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros).

5. Julgo parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pela assistente e, consequentemente, condeno o arguido/demandado a entregar à assistente/demandante, a quantia de 500,00€ (quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais.

          III – Fundamentação de Direito

          a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).

         b) Reduzindo o arguido, adequadamente, o seu recurso a 3 questões principais, constata-se que a principal questão a apreciar nestes autos (decorrendo as outras questões da solução dada a esta questão), prende-se em saber se  a mudança da natureza do crime público para crime particular, coloca retroactivamente em causa a legitimidade do Ministério Público para iniciar e promover a acção penal, designadamente por não ter ocorrido  queixa ou acusação particular relativamente a alguns dos factos posteriormente integrantes de um crime de natureza particular.

   c) A 1ª questão suscitada pelo recorrente,  relaciona-se com uma pretensa  caducidade do direito de queixa da assistente relativamente aos fatos considerados provados nos nºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 da sentença recorrida; alega nesta parte o recorrente, que tendo a decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância considerado que as condutas do arguido, relativamente às quais a ofendida apresentou queixa, não integravam a prática de um crime de violência doméstica, mas sim a prática de crime de injúria (crime pelo qual  acabou por ser condenado o arguido), e sendo este crime de injúria  um crime particular, tal exigiria a apresentação de queixa e dedução de acusação particular,  o que não ocorreu, uma vez que - acrescenta ainda o recorrente  - a queixa por violência doméstica apresentada no dia 17 de outubro de 2016, se refere apenas aos  cometidos em 17.06.2016, 13.09.2016 e 19.09.2016,  e não aos acima enunciados.

c) Vejamos;

Lido o documento em causa (fls. 2 e 3 do processo), constata-se que o mesmo – intitulado de “auto de denúncia” – corporiza declarações proferidas pela ofendida em 17-10-2016,  no posto da GNR do (…),  descrevendo episódios  ocorridos nos dias 17-6-2016, 13-9-2016 e 19-9-2016, nos quais o denunciado a teria ameaçado, insultado e ofendido (concretizando esses comportamentos),  e comunicando  ainda ao referido órgão de polícia criminal que “tem vindo a ser vítima de violência doméstica por parte do denunciado, seu ex-marido,  sendo que a última ocorrência mais relevante ocorreu no local hora e data acima mencionados (19-6-2016).

d) A partir deste momento, a GNR comunicou ao Ministério Público a notícia do crime (248º do C.P.P.); adquirida a notícia do crime (art 241º do C.P.P.) o Ministério Público iniciou o respetivo procedimento criminal (artigo 48º e 49º do C.P.P. ), que conduziu à dedução, no final do inquérito, de acusação pública (art 283º C.P.P.) pela prática do crime de violência doméstica;  a assistente igualmente deduziu acusação (art 284º C.P.P.), acompanhando o Ministério Público nos factos e na imputação criminal constantes da referida acusação pública, e incluindo ainda outros factos que não importaram alteração substancial daqueles, como foi considerado expressamente pelo juiz de instrução no despacho de pronúncia, em resposta a uma nulidade invocada pelo arguido.

Constata-se assim, que atento o carácter público atribuído pela Lei nº 7/2000, de 27 de Maio ao crime de violência doméstica (152º do Cód. Penal), não era  sequer necessária apresentação de queixa por parte do ofendido;  a denúncia sobre os factos poderia provir de um familiar ou de um órgão  de polícia criminal que tivesse constatado a sua ocorrência, pelo que nenhumas dúvidas podem subsistir relativamente à legitimidade do procedimento levado a cabo pelo Ministério Público que conduziu a dedução da referida acusação, posteriormente confirmada pelo despacho de pronúncia.

e) Proferido despacho de pronúncia confirmando a imputação ao arguido  daqueles factos enquanto integradores de um crime de violência doméstica, realizou-se julgamento, produzindo-se a prova, tendo em sede de sentença, o tribunal recorrido considerado provados boa parte dos factos constantes da acusação pública e da acusação da assistente que a acompanhou.  Todavia, a mesma decisão, acabou por considerar que o comportamento do arguido manifestado naqueles actos, ainda que “manifestamente indigno”, não traduzia a prática de um crime de violência doméstica por não se demonstrar uma “situação de subjugação desta em face daquele ou, do mesmo modo, a coloquem numa situação de vítima perante um domínio (físico ou psicológico) do agressor em relação a si”,  concluindo assim que “a assistente não foi colocada pelo arguido nesta situação de subjugação, não existia sobre o arguido um domínio sobre a assistente, não determinou, qualquer comportamento do arguido, a perda da dignidade humana da assistente.

E acabou assim por concluir que o arguido tinha praticado apenas um crime de injúria (ainda que mediante uma pluralidade de actos que antes tinha sido considerado pelo Ministério Público, pela assistente e pelo Juiz de Instrução, como integrando a prática do crime de violência doméstica), condenando-o em pena de multa pela prática daquele crime, e absolvendo-o da prática do crime de violência doméstica pelo qual vinha pronunciado.

f) A questão está então em saber se a mudança da natureza do crime (no caso de crime público para crime particular), poderá colocar em causa a legitimidade do Ministério Público para iniciar e promover a acção penal, e ainda se essa mesma alteração da natureza do crime  implicará  ab initio a verificação dos requisitos exigidos para a verificação do novo crime com essa diferente natureza, designadamente a apresentação de queixa-crime relativamente a todos os factos considerados como provados, e a dedução da respectiva acusação particular, atenta a natureza do crime de injúrias.

g) A resposta é negativa.

Citamos a este propósito o acórdão desta Relação de Coimbra, igualmente referenciado pelo Ex. Procurador junto a este tribunal, que sintetiza esta questão de uma forma que merece a nossa total concordância:

Sem divergências que hoje se conheçam, a queixa - traduzida na declaração de vontade, manifestada pelo titular do direito respectivo, de que seja instaurado um processo por facto susceptível de integrar um crime - constitui um pressuposto processual positivo, querendo isto significar que, sem a sua apresentação, o Ministério Público carece de legitimidade para a promoção do procedimento criminal. Porém, daqui não se retira sem mais que a referida figura jurídica assuma uma natureza meramente processual. Contra a posição tradicional que considera as normas correntemente integradas no direito processual penal de natureza processual estrita, vêm ganhando nos últimos anos cada vez maior peso as correntes de doutrina e de jurisprudência que partilham uma perspectiva de índole material ou substantiva do direito de queixa, porquanto as normas que lhe são aplicáveis condicionam a punição, a aplicação da pena, contendendo, por isso, directamente com os direitos dos arguidos.

Dispõe o art. 48.º do CPP: (…) E, por sua vez, o artigo 49.º:

«Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo».

Assim, o princípio da oficialidade do processo penal está limitado pelas restrições constantes do artigo supra citado e bem assim do normativo do art. 50.º do CPP, que se refere à legitimidade em procedimento dependente de acusação particular. A punição efectiva de um facto que consubstancie crime semi-público ou particular depende não apenas da verificação dos pressupostos de natureza substantiva, mas também da verificação das condições de natureza processual vertidas nos referidos arts. 49.º e 50.º do CPP, para que o processo penal possa iniciar-se e prosseguir.

No caso dos autos, nenhuma patologia se verifica no surgimento e promoção do processo penal até à fase de julgamento: naquela altura, os elementos disponíveis sugeriam, claramente, a prática de um crime de furto qualificado, cuja natureza pública dispensava o Ministério Público de aguardar qualquer actividade de terceiros para a promoção do processo.

Sucedeu, tão só, que, na fase do julgamento, perante a prova produzida em audiência, o tribunal a quo veio a entender não se verificar a circunstância qualificativa do crime de furto.

Sendo a queixa uma condição de procedibilidade, mas não de prosseguibilidade, uma vez iniciado o processo por iniciativa do Ministério Público, num momento em que o crime indiciado e imputado ao arguido era público, é desnecessária a apresentação de uma queixa cujos (possíveis) efeitos jurídicos já se produziram, quando o crime público se degradou em crime(s) semi-público(s). O curso normal do processo só poderá ser impedido pelo surgimento de um obstáculo - desistência de queixa -, legalmente reconhecido. «Ou seja, por outras palavras: não é a declaração do ofendido no sentido de que o processo prossiga que vai conferir ao Ministério Público a legitimidade para prosseguir o processo que validamente iniciou; é, sim, a eventual vontade do ofendido de que o processo seja extinto o que retira ao Ministério Público a legitimidade para prosseguir com a acção penal» - Taipa de Carvalho, obra cit., pág. 390.

Na feliz expressão do já referido Ac. do STJ de 05-04-2001, «o que já se iniciou legitimamente, iniciado está e permanece» (…) – Ac. desta Relação de Coimbra de 11-5-2016, processo n.º 771/13.4GCVIS.C1, in www.dgsi.pt.

h) Daqui se conclui  - aplicando mutatis mutandis essa doutrina ao caso concreto – que a degradação do crime de violência doméstica em crime de injurias, operada no momento da prolação da sentença, não implica a ilegitimidade do Ministério Público para promover o processo relativamente a um crime que assumia até àquele momento natureza pública, não se exigindo assim supervenientemente a apresentação de queixa, nem ainda a dedução de acusação particular (que neste último caso até ocorreu, ainda que relativamente ao crime de violência doméstica inicialmente indiciado);  de outro modo, seria agora a apresentada à ofendida uma exigência de satisfação de uma condição de procedibilidade que não poderia anteriormente considerar, porque então inexistente  - cfr., ainda neste sentido, a jurisprudência pertinentemente citada pela assistente e pelo Ministério Público, e adicionalmente, João Conde Correia Comentário Judiciário do Código Processo Penal, ed. Almedina, p. 516,  Ac. do Tribunal Constitucional n.º 523/99, D.R. n.º 55/2000, Série II de 2000-03-06, neste último caso colocando-se a situação de um crime público  ter passado a assumir a natureza semi-pública em consequência de alteração legislativa, não se considerando inconstitucional  a condenação do arguido pela prática deste crime apesar de não ter ocorrido queixa crime, e o Ac. da Rel. de Lisboa de 17-6-2015, processo n.º. 48/13.5PFPLD.L1-3, que considerou situação semelhante à apreciada nestes autos; degradação do crime de violência doméstica para crime de injúrias, sem que tenha ocorrido qualquer queixa-crime, nem qualquer acusação particular.

i) Note-se ainda que a previsão de institutos jurídicos como a queixa e a acusação particular, surgem invariavelmente relacionados com crimes de menor gravidade,  em que o interesse público na reacção criminal ao ilícito (de forma a garantir manutenção da paz social e a confiança na ordem jurídica) não surge com a mesma premência  relativamente a crimes mais graves; Coloca-se assim na disponibilidade do ofendido a decisão sobre o procedimento criminal contra o responsável pelo ilícito, assim se protegendo de alguma forma o interesse da própria vítima (v.g. que poderá não ter interesse na tutela do seu direito, por considerar que o acto ilícito não o ofende especialmente, ou por não pretender a publicidade de acontecimentos relacionados com a sua vida privada que o julgamento sempre em alguma medida pressupõe); reduz-se ainda a proliferação de processos e julgamentos por ilícitos que não revestem uma gravidade que torne imperiosa a intervenção da justiça criminal.

j)  Estes institutos não se destinam por isso a proteger  algum interesse do suspeito da prática de algum ilícito,  mas sim a possibilidade de aferição, por parte do ofendido, da melhor forma de tutela dos seus interesses, que pode não passar pelo procedimento criminal e eventual punição do autor do acto ilícito, colocando  a lei na disponibilidade dos ofendidos – enquanto portadores concretos do bem jurídico violado - a decisão relativamente à instauração e prosseguimento do procedimento criminal.

Daqui resulta que a doutrina acima exposta apenas não será aplicável quando resulte dos autos que o ofendido não pretende que o procedimento criminal – iniciado relativamente a um crime que se suponha revestir natureza pública -  se mantenha após a alteração da sua natureza para um crime de natureza semi-pública ou particular.

k) Não é manifestamente o caso dos autos; a notícia do crime relativamente aos factos inicialmente integradores de um crime de violência doméstica partiu da ofendida, e não por exemplo de um vizinho, de um familiar próximo ou de um OPC, considerando aliás o arguido que a mesma apresentou queixa-crime relativamente a alguns dos factos pelos quais foi condenado.

Posteriormente, a mesma ofendida revelou ao longo de todo o processo, de forma reiterada e inequívoca, vontade no sentido de ser desencadeado procedimento criminal contra o arguido quanto aos factos denunciados:

Assim, a ofendida constitui-se assistente, deduziu acusação particular, acompanhando a acusação pública e acrescentando ainda alguns factos a essa mesma acusação (não sendo então sequer obrigada a que o fizesse, atenta a natureza pública do crime então indiciado) e deduziu pedido de indemnização civil, procurando o ressarcimento dos danos sofridos com os actos ilícitos indiciariamente praticados pelo arguido.

E se dúvidas ainda restassem relativamente a essa vontade da assistente (titular do bem jurídico ofendido) em tentar obter a punição do arguido, ainda respondeu ao recurso ora em apreciação, pugnando veementemente pela manutenção da sentença que condenou (ao menos) o arguido pelo crime de injúrias, e no pedido de indemnização civil por aquela deduzido.

l) A partir desta constatação,  falecem todos os argumentos do recorrente, que se prendem com a apresentação ou não regular ou tempestiva da queixa, a qual concluímos não ser necessária; é assim irrelevante a não apresentação de queixa relativamente a alguns dos factos, e por maioria de razão que a queixa apresentada apenas pudesse abranger a actividade desenvolvida nos seis meses anteriores à data da inquirição que o recorrente admite que pudesse constituir uma queixa-crime;  não se pode concluir pela extinção, por caducidade de um direito de queixa que não era então exigível (conclusões a) a j), relativas à 1ª questão).

m) E daqui decorre ainda que os autos não devem ser arquivados  quanto ao fato considerado provado no nº 5 na douta sentença recorrida (relativamente ao qual o recorrente admite que até ocorreu uma queixa, como vimos inexigível no momento da sua apresentação), recusando-se que o mesmo não possa integrar a prática de um crime de injúria por ausência de acusação particular e por falta de legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal por este crime  (conclusões h) a n) da 2ª conclusão).

n) Por razões idênticas, torna-se inútil a apreciação da 3ª questão (conclusões o) a z) que partiam do pressuposto de que seria revogada a sentença, com a pretendida absolvição do arguido/demandado, da condenação no pagamento de uma indemnização à assistente.

IV – Dispositivo 

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido T..

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC´s.             

Coimbra, 3 de Fevereiro de 2021

João Novais (relator)

Elisa Sales (adjunta)