Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
204/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: FACTOS INSTRUMENTAIS
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTIGO 264º, Nº 2 DO CPC
Sumário:

I - Para que os factos sejam instrumentais é necessário que tenham uma relação com os factos principais, de tal maneira que, a partir daqueles, se possa chegar a estes.
II – Assim, determinados factos podem ser instrumentais numa acção e não o serem numa outra - serem até os factos principais ou serem factos irrelevantes.
III – Podendo ser factos instrumentais, pela sua natureza e potencial relação com outros factos, só podem ser tomados em conta, nos termos do disposto no artigo 264º, nº 2 do CPC, se estes - os principais - tiverem sido alegados.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório.
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3. Pedido: declaração de nulidade e sem efeito dos negócios vertidos nas escrituras públicas de compra e venda juntas como documentos 1, 2 e 6, com a Petição inicial (P.i.), e cancelamento de quaisquer registos prediais que tenham sido efectuados tendo como título as referidas escrituras.
4. Causa de pedir: o primeiro réu marido, por si e na qualidade de procurador da esposa, declarou vender ao segundo réu marido os prédios ou fracções identificados na P.i. mas, contrariamente ao nelas declarado, não houve pagamento nem recebimentos dos preços delas constantes, não se quis fazer qualquer compra e venda, mas apenas se teve em vista ocultar uma doação a favor da ré M, filha dos primeiros réus e irmã dos primeiros e segundos autores, para os quais se declarou transmitir a propriedade de tais prédios, através da escritura referida no artigo 16º da P.i., tudo isto com vista a prejudicar os demais filhos dos primeiros réus, dada a inexistência de outros bens que estes possam receber a título de herança.
5. Os segundos e terceiros réus contestaram, alegando que os conteúdos das referidas escrituras correspondem à realidade, designadamente que os preços nelas referidos foram pagos e estabelecidos de acordo com os valores de mercado então em vigor, negócios que foram realizados com o acordo de todos, não se tendo em vista encobrir qualquer doação a favor dos terceiros réus.
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7.1. Desta decisão recorreram os autores, concluindo as suas Alegações pela forma seguinte:
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7.1.2. As respostas que foram dadas não resultam do alegado pelas partes nem com outros que tenham qualquer conexão com estes (alíneas c), d) e e) das Conclusões).
7.1.3. Nem constituem nenhuma das situações excepcionadas no artigo 264º do CPC: a) o nº 1 é irrelevante para esta questão; b) não são factos notórios bem do conhecimento do tribunal pelo exercício das suas funções, não caem soba previsão do artigo 665ºe não são factos instrumentais resultantes da instrução e discussão da causa; c) não são factos complementares ou concretização de outros que hajam sido oportunamente alegados (alíneas f) a l das Conclusões).
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7.1.6. Toda a restante matéria deve ser mantida e, consequentemente, concluir-se pela existência de simulação, por estarem verificados os respectivos requisitos, e pela nulidade (alíneas r) a y) das Conclusões).
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7.1.8. Mas mesmo que o tribunal entenda que não há fundamento para a alteração da matéria de facto como defendem os recorrentes, deve concluir-se na mesma pela procedência da acção, nos termos já referidos, por não se verificarem os elementos típicos da dação em cumprimento (alíneas bb) a vv) das Conclusões).
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II – Fundamentação.
9. Factos provados.
«A) Por escritura pública de compra e venda celebrada no dia 26/11/81, pelo Notário do 3.o Cartório da Secretaria Notarial de Coimbra, o 1.o R. marido, por si e na qualidade de procurador de sua esposa, declarou vender ao 2.o outorgante (o aqui 2.o R. marido), pelo prêço de 148.750$00, e que dele já recebeu, o direito e acção à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de J, ..., e o 2.o Réu marido declarou aceitar o contrato de compra e venda aí referido, nos termos aí exarados -... .
B) No mesmo dia 26/11/81 e perante o mesmo Notário foi celebrada outra escritura de compra e venda em que o 1.o Réu marido, também por si e na qualidade de procurador de sua esposa, declarou vender ao 2.o outorgante (o aqui 2.o R. marido), pelo prêço total de 34.582$00 e que dele já recebeu, nove oitenta e quatro avos indivisos de cada um dos prédios aí referidos, no total de onze, ... e o 2.o R. marido aí declarou aceitar tal contrato de compra e venda, ... .
C) A 3.a Ré M, que é casada com o 3.o Réu, é filha dos 1.os RR ... .
D) O 2.o R. marido é tio do 3.o R. marido - ... .
E) Através de escritura pública celebrada em 09/04/87, no 2.o Cartório da Secretaria Notarial de Coimbra, os 2.os RR declararam vender ao 3.o R. marido o direito sobre os mesmos bens descritos na escritura junta de fl.s 13 a 24, pelo prêço total declarado de 100.000$00 - ... .
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G) O 1.o A. marido e a 2.a A. mulher são filhos dos 1.os RR - ... .
H) Os 1.os RR tinham várias dívidas, de montante não exactamente apurado, mas não inferior a 1.291.770$00, resultantes das suas actividades, designadamente de uma oficina que o 1.o Réu teve, de rendas de casa e dinheiros que já haviam recebido por conta da venda dos terrenos em causa, dívidas essas que foram pagas pelos 3.os RR, face ao que, como recompensa, foram outorgadas as escrituras referidas em A) e B); [1]
I) Naquela altura, tais direitos, no seu conjunto, valiam bastante mais do que o preço constante de tais escrituras.
J) Nem os 1.os RR quiseram vender os direitos ali descritos.
L) Nem o 2.o R. marido os quis comprar.
M) Tendo o 2.o R. marido servido apenas de “testa de ferro” para dar cobertura àquele negócio, razão pela qual foi outorgada a escritura referida em E).
N) O direito referido nesta escritura, por si só, valia, já na ocasião, largas dezenas de milhar de contos.
O) Aquando das vendas referidas em F) foram sempre os 3.os RR que negociaram, limitando-se os 2.os RR a comparecer para assinar a escritura pública respectiva, ou passando procuração a favor da 3.a Ré mulher.
P) Todos os RR nesta acção actuaram concertadamente com vista a lesar os demais herdeiros dos 1.os RR.
Q) Os direitos objecto dos negócios das escrituras referidas em A) e B) eram os únicos com valor patrimonial que os 1.os RR possuíam.
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S) Também o negócio referido na escritura mencionada em E) não foi querido pelos outorgantes, que não pagaram nem receberam o prêço declarado na mesma.
T) Tal escritura foi a forma de fazer reverter a favor dos 3.os RR os bens objecto da mesma.
U) Tanto os AA como os 1.o e 3.os RR, os 1.os RR sabiam que os 1.os RR estavam em má situação económica, resultante das actividades destes.
V) Os AA não só nunca deram o seu acordo aos negócios referidos, como nem deles, na ocasião, tiveram conhecimento, dado que tudo sempre foi efectuado à sua revelia e de forma sigilosa.
X) E quando deles tomaram conhecimento, manifestaram a sua oposição, que veio a culminar com a instauração da presente acção».
10. O Direito.
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Portanto, passaremos à questão da qualificação dos factos constantes das respostas como instrumentais.
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10.2.2.3. Os factos constantes das respostas aos números 1 e 5, em princípio, pela sua natureza e potencial relação com outros factos, são efectivamente instrumentais.
Se está em causa a entrega de dinheiro ou de uma coisa em substituição daquela prestação para restituição de quantia mutuada, o facto do devedor ter dívidas pode permitir chegar àqueles factos; logo este é instrumental daqueles.
Se está em causa a declaração de que determinada pessoa não tem dívidas e de que nada recebeu, por mútuo, do demandado, estamos perante o thema decidendum e não de facto instrumental.
Se está em causa a validade ou nulidade formal de determinado mútuo, o facto do mutuário ter dívidas nem é facto principal nem instrumental, é irrelevante no plano dessa relação jurídico-processual.
Assim, em princípio, se os réus pugnam pela improcedência da acção e, da discussão da causa, resultou a existência de dívidas dos primeiros réus para como os terceiros, tais factos podem levar a concluir que houve um pagamento, o que pode pôr em causa os factos alegados pelos autores-recorrentes: onde estes dizem que houve uma doação, conclui-se, da discussão, que não foi doação, mas uma forma de pagar o que se devia.
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10.3. Contudo, os factos que estão em análise, no contexto do que foi alegado pelas partes, excedem o que é permitido pelo nº 2, do artigo 264º do CPC. Não é suficiente os factos terem a estrutura e poderem ter a função de factos instrumentais para serem aceites como resposta e resposta adequada. É ainda necessário que o sejam em concreto, o que só acontece quando tais factos se destinem a provar outros factos, que sirvam «para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes», como bem disseram os recorridos.
De uma forma genérica, diremos que a consideração de factos instrumentais não pode levar-nos para fora do processo e constituir um “inventário” das relações contratuais e económicas das partes; quer das relações que estão definidas, quer daquelas que estão envoltas em interrogações.
10.3.1. Os autores afirmaram que os réus não quiseram vender nem receberam dinheiro, contrariamente ao que consta da escritura: artigo 7º da P.i.: «os negócios de compra e venda declarados efectivamente não existiram»; artigo 9º da P.i.: «no caso concreto os 1ºs. RR não transmitiram para os 2ºs. a propriedade de quaisquer coisa ou direito»; artigo 10º da P.i.: «nem deles receberam as quantias que foram declaradas nas escrituras, como sendo os preços, nem quaisquer outras quantias ao mesmo título».
Os réus impugnaram, disseram que não, que aquelas afirmações não eram verdadeiras [2].
Dentro deste campo factual o que se discutia é se houvera ou não venda e entrega de dinheiro; neste contexto, se se apurasse que aquela premissa menor [3] era falsa (como os réus alegavam), a pretensão improcedia.
Mas, fora deste campo, estava o facto da venda ter servido para pagamento de dívidas, facto esse que não foi alegado pelos réus, na sua Contestação. Então, a admiti-lo, estaríamos perante facto instrumental (existência de dívidas) com ausência de factos principais (a venda dos bens destinou-se a pagar um empréstimo), sendo que aqueles vivem na órbita destes. Os factos instrumentais servem para chegar aos factos principais, mas, daí não podemos pensar que da sua prova deriva imediatamente a solução jurídica do caso [4]. Conforme ensina Castro Mendes, «questões instrumentais são as que servem apenas como forma de decidir, servem apenas na medida em que permitem solucionar as fundamentais, sem se integrarem no âmbito e limite destas»[5]. Por outro lado, a relevância dos factos instrumentais não leva ao afastamento dos outros princípios processuais. Não tendo havido aquela referida substituição, para que os réus discutissem a nova relação processual, deveriam ter deduzido ou a excepção ou um pedido autónomo, de forma a resolver os vários problemas de forma unitária; o processo civil tem formas para tal fim e o processo civil tem por finalidade dar ordem e disciplina à discussão dos conflitos. Ainda voltaremos a esta questão [6].
Se, da discussão da causa, sobrevem a existência de dívidas e uma forma de pagamento traduzida na entrega de bens, estamos no campo das excepções: é verdade que o que consta da escritura não corresponde à realidade, não houve a venda de um bem nem o pagamento do respectivo preço, mas (característico das excepções) a entrega dos bens - através de um contrato de compra e venda - destinou-se ao pagamento de dívidas [7]: «o réu que invoca uma excepção peremptória não impugna a veracidade dos factos alegados pelo autor, mas opõe ao objecto por este definido um outro objecto cuja procedência obsta à produção dos efeitos pretendidos pela parte activa» [8].
Ora, os réus não alegaram um facto principal de que os apurados na discussão fossem instrumentais.
10.3.2. Veja-se o que se passou na primeira instância: o autor veio dizer que havia uma simulação; como há dação em cumprimento, improcede o pedido; saiu-se do objecto inicial, para se introduzir uma nova questão, esquecendo-se a anterior. Da nova, não temos pretensões nem sequer contornos definidos e a velha, que não ficou consumida por aquela, ficava por resolver:
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10.3.3. Falámos lá atrás da ofensa do princípio da preclusão. Dir-se-á que, precisamente, a inovação introduzida no nº 2, do artigo 264º do CPC, veio limitar esse princípio [9].
Limitar, mas não prejudicar, tanto mais que a inovação se refere aos factos instrumentais e não aos essenciais: «a eliminação da preclusão em sede de factos (meramente) instrumentais não significa ...» [10]; em sede de factos instrumentais, mas já não em sede de factos essenciais, onde permanece intacto o princípio do dispositivo: se é certo que «não implica, ..., preclusão a circunstância de a parte não ter, ..., alegado logo nos articulados certo facto meramente instrumental - não relevante para o preenchimento e substanciação das pretensões e da defesa ...» [11], já o é a falta de alegação dos factos essenciais, «os que concretizando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor ou do reconvinte, ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa ...» [12]. Na verdade, mantém-se o efeito da preclusão relativamente aos «factos necessários para a constituição da causa de pedir (ou da excepção), ou seja, os factos sem cuja alegação não se pode afirmar que está preenchido o ónus de apresentação da causa de pedir (ou de contestação por excepção)» [13], sendo sempre necessário que as partes aleguem «satisfatoriamente o núcleo fáctico essencial, integrador da causa de pedir» [14] «ou da excepção deduzida» [15] [16].
Ora, como já trás dissemos, os réus nada disseram de essencial a que estes factos instrumentais adiram; defenderam-se, aliás, por mera impugnação. Se a inovação processual visou a aproximação da verdade material, ou seja, alcançar a justa composição do litígio [17], nunca poderia introduzir um meio de surpreender a parte contrária nem de alterar, sem resolver, o litígio introduzido pelo demandante. Não é possível que a consideração dos factos instrumentais venha paralisar um direito que se quer accionar hoje, remetendo as partes para um futuro mais ou menos distante, a propósito de situações que estão muito longe de ser claras; estava descoberta uma maneira para o que deveria excepcionar se guardar para a surpresa da parte final, do que deveria reconvir, ficar quieto enquanto a parte contrária não superasse as dificuldades próprias e as alheias. Por isso, mais do que um non liquet, a que o anterior Acórdão se referiu, falaríamos em denegação de justiça, no sentido de que quem tem o ónus de “movimentar” um processo pode acabar por ficar paralisado pelas dúvidas, inconsistentes e vagas, que a parte contrária lhe pode levantar.
Portanto, continuamos a falar de preclusão porque nos referimos aos factos essenciais, relativamente aos quais continua a haver momentos próprios para serem alegados.
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27 de Abril de 2004.


[1] - depois da alteração da matéria de facto, esta alínea desaparece e é substituída pela seguinte matéria: «os primeiros réus não receberam dos segundos réus as quantias que foram declaradas nas escrituras, como sendo os preços, nem quaisquer outras quantias ao mesmo título».
[2] - cf. artigos 9º (assim, não se entendem as afirmações feitas nos arts. 7º a 9º da P.i.), 10º (aliás, se a afirmação do art. 7º é uma mera conclusão) e 11º (a que é feita no art. 9º é contrária à lei e à doutrina sem qualquer fundamento).
[3] - os primeiros réus não quiseram aquilo que realmente declararam.
[4] - cf. Dr. António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, 1997, II vol., pág. 136.
[5] - Do Conceito de Prova em Processo Civil, Dissertação de Doutoramento, Edições Ática, pág. 153.
[6] - no nº 10.3.3..
[7] - Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex, 1995, pág. 164: «constituem exemplos de excepções extintivas ..., a dação em cumprimento e pro solvendo ...».
[8] - obra citada na nota anterior, pág. 160. Sublinhámos.
[9] - cf. Dr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Dezembro de 1999, pág. 200, anotação ao artigo 264º, e Dr. Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, Ediforma, Setembro de 1999, 15º edição, pág. 349, anotação ao artigo 264º.
[10] - Dr. Lopes do Rego, obra citada, pág. 201. Sublinhámos.
[11] - ibidem. Sublinhámos.
[12] - obra citada, na nota anterior, pág. 200. Sublinhámos.
[13] - Miguel Teixeira de Sousa, Apreciação de Alguns Aspectos da Revisão do Processo Civil - Projecto, ROA, ano 55º, II, pág. 360.
[14] - o demandante.
[15] - o demandado.
[16] - Dr. Lopes do Rego, obra citada, pág. 202. No mesmo sentido Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 72.
[17] - Dr. Abílio Neto, obra e local citados.