Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2207/04.2TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
ERRO
PRESUNÇÃO DE CULPA
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 247º, 251º, 289º, Nº 1, 799º, Nº 1, E 913º DO C. CIV..
Sumário: I – A venda de coisa defeituosa pressupõe que a coisa vendida enferme de vícios ou careça de qualidades enunciadas no artº 913º do CC, quer a coisa entregue corresponda ou não à prestação a que o vendedor se encontra adstrito.

II – Constituem defeito não só os vícios físicos ou materiais – deficiências de fabrico ou de construção, deficiências internas – como também a falta de qualidades, quer as que foram asseveredas, explicita ou implicitamente pelo vendedor, quer as necessárias à realização do fim a que o bem em causa se destina.

III – Consubstancia uma situação de cumprimento defeituoso a venda de um veículo automóvel em que o vendedor assegurou ter 136.000 kms e a classificação de bom em todos os “intens” considerados – motor, caixa de velocidades, direcção, embraiagem e travões -, mas relativamente ao qual o comprador veio posteriormente a constatar que tinha 270.000 kms percorridos e não desenvolvia em termos de arranque e velocidade.

IV – A informação da quilometragem efectivamente percorrida por um veículo usado, objecto de venda, consubstancia uma informação que, para a generalidade das pessoas, se apresenta como determinante na decisão de comprarem ou não.

V – Comprovados esses defeitos, cabe ao vendedor ilidir a presunção de culpa que o onera, nos termos do artº 799º, nº 1, do C. Civ..

VI – Na situação apurada ocorre o chamado erro-vício, reportado ao objecto do negócio, ou seja, erro referente às qualidades pressupostas pelo comprador (na decisão de comprar) relativamente ao objecto vendido, erro esse que conduz à anulação do contrato, nos termos dos artºs 247º e 251º do C. Civ..

VII – Nos casos de anulabilidade resultante de erro do comprador, mediante o qual este adquire a coisa por preço superior ao do valor desta, a medida da restituição (recíproca) – artº 289º, nº 1, C.Civ. -, em caso em que já não é possível a restituição da coisa em espécie, não se fará simplesmente em função do preço, mas sim em medida correspondente ao valor da coisa, considerada a realidade do elemento em que erroneamente se baseou o comprador ao tomar a decisão de contratar.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório:

A) - 1) - A... e mulher B...., residentes em....., intentaram, em 19/08/2004, no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, contra “C... ”, com sede ...., acção declarativa, com processo ordinário, alegando, em síntese, que:

- Adquiriram à Ré, em 18/2/2004, a viatura D...., de Dezembro de 2001, pelo preço de € 33.000, sendo parte do mesmo correspondente a retoma recebida pela Ré da viatura E... , de Janeiro de 2001, a qual foi valorizada em € 16.000;

- Na data da sua aquisição, a viatura Mercedes tinha marcados no quadrante 67.033 km, tendo a Ré garantido que os quilómetros eram “reais”, ou seja, que correspondiam aos efectivamente feitos, assim como a respectiva ficha de inspecção apresentava a quilometragem de 61.891 km em 22 de Agosto de 2003;

- Desde a data de recepção, a viatura evidenciou vários sinais de desgaste anormal, do que foi dado conhecimento à Ré que reportou a respectiva reparação para a primeira assistência/revisão à viatura nas suas oficinas, com excepção dos travões;

- Vindo a ser substituídos, em 8/3/2004, nas oficinas da Ré, os discos de travagem da frente, foi-lhes prestada a informação de que os discos que ali se encontravam não eram de origem, mas sim da concorrência;

- Não lhes foram fornecidos pela Ré os documentos da viatura bem como as chaves duplas, apesar de terem sido solicitados;

- Solicitaram junto de outro concessionário da marca Mercedes - Benz informações sobre o historial da viatura, vindo a obter a informação de que esta teria efectuado, em Dezembro de 2002, uma revisão em concessionário da Mercedes na Alemanha, tendo sido registados, nessa data, 126.000 km, do que deram conhecimento à Ré que veio a confirmá-la através da pesquisa que efectuou na presença dos Autores à respectiva base de dados da marca;

- Vieram a ter conhecimento, em 10/08/2004, que a referida viatura havia circulado como táxi;

- A Ré não procedeu de boa fé na conclusão do negócio já que sabia a proveniência do veículo e todo o seu historial, tendo vendido coisa defeituosa, que bem conhecia, sendo que eles, AA., caso conhecessem a viciação da quilometragem da viatura na ocasião em que a adquiriram, não fariam o contrato em causa, nem entregariam para pagamento a quantia efectivamente paga, nem a viatura E... já referida;

- A actuação da Ré provocou-lhes prejuízos patrimoniais que correspondem ao montante total pago (€ 33.000), acrescido de todas as despesas suportadas com a viatura, nomeadamente com seguros - € 837,09 -, com o contrato de mútuo e acréscimo de juros, imposto de selo, despesas sobre o capital mutuado, penalização pela rescisão antecipada do contrato de mútuo e de outras não passíveis de simples cálculo aritmético, a liquidar em execução de sentença, assim como lhes causou incómodos e perturbações no seu quotidiano pessoal, profissional e familiar, além de danos na imagem profissional de cada um dos Autores, os quais computaram em montante global não inferior a € 16.000.

Concluindo, formularam o pedido nos seguintes termos:

«Deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e em consequência ser declarada anulada a compra e venda da viatura D..., nos termos e com os efeitos dos artigos 913° e ss., 908° e 909°, 247° e 252°, 253° e 254°, tudo conjugado com as disposições dos artigos 227°, n° 1 e 762°, n.° 2 do Código Civil e ser a Ré condenada a:

A)Restituir aos AA. a quantia de € 33.000,00 (trinta e três mil euros), acrescido de todas as despesas suportadas pelos AA. até à presente data com a viatura, nomeadamente com seguros - € 837,09 -, com o contrato de mútuo e acréscimo de juros, imposto de selo, despesas sobre o capital mutuado, penalização pela rescisão antecipada do referido contrato de mútuo e de outras que não são passíveis de simples cálculo aritmético à presente data e que deverão ser remetidas para liquidação em execução de sentença, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal de 4%, contados desde a data da celebração do negócio em 18-02-2004 até ao seu efectivo e integral pagamento;

B) Pagar aos AA. quantia não inferior a € 16.000,00 (dezasseis mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação da Ré para contestar até efectivo e integral pagamento;

C)Nas custas, procuradoria condigna e demais despesas,

OU EM ALTERNATIVA:

D) Entregar aos AA. uma viatura nova, da mesma marca, de iguais características e com os mesmos extras de equipamento e a receber daqueles a de D...;

E) Pagar aos AA. quantia não inferior a € 16.000,00 (dezasseis mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação da Ré para contestar até efectivo e integral pagamento;

F) Nas custas, procuradoria condigna e demais despesas.».

2) - Contestando, além de excepcionar o abuso do direito relativamente ao pedido formulado em alternativa pelos Autores, a Ré defendeu-se por impugnação, sustentando, em síntese:

- Que o contrato firmado entre as partes diz respeito à venda de uma viatura usada e que o negócio foi precedido de várias conversas com o Autor marido que teve oportunidade de experimentar a viatura prolongadamente, por várias vezes, nunca tendo sido decisivo, nas negociações havidas, a quilometragem da viatura mas sim as condições em que a mesma estava ao nível da chapa, pintura e motor;

- Que a viatura usada havia sido adquirida à firma “F... ”, que a importou da Alemanha e que, após a sua recepção, foi submetida pela Autora a um completo diagnóstico que determinou a substituição de vários componentes;

- Que, sendo ela, ora Ré, completamente alheia a qualquer viciação do conta-quilómetros, se bastou com a informação constante do documento aduaneiro pois a consulta ao histórico só acontece, como excepção, quando algo de suspeito ou dúvida razoável esteja presente, o que não foi o caso.

Concluindo pela improcedência da acção, deduziu a Ré, ainda, o incidente de intervenção principal provocada da firma “ F...” a quem havia adquirido a viatura.

3) - Indeferido que foi o deduzido chamamento da mencionada firma, veio tal decisão a ser confirmada por esta Relação, em 09/11/2005, no âmbito de recurso de Agravo interposto pela Ré.

4) - Foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes e elaborada a base instrutória.

Por despacho de fls. 184 e ss., foi decidido aditar uma alínea à matéria de facto assente e alterar a redacção da constante na alínea f).

B) - 1) - Prosseguindo os autos os seus ulteriores termos, veio a ter lugar a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova, após o que foi proferida sentença (em 09/12/2008), decidindo, na parcial procedência da acção, «…declarar a anulabilidade do contrato de compra e venda do veículo de D..., condenando-se a Ré a restituir aos Autores a quantia de 17.000 € (dezassete mil euros) bem como o veículo de E... ou, caso a mesma não seja possível, o montante de 16.000 € (dezasseis mil euros), devendo os Autores restituir à Ré o veículo de D... ou, caso a mesma não seja possível, o montante de 33.000 € (trinta e três mil euros), sendo que estas obrigações recíprocas de restituição devem ser cumpridas simultaneamente nos termos do artigo 290.º do Código Civil…».

2) - Inconformados com tal sentença, dela recorreram os AA., bem assim como, subordinadamente, a Ré, recursos esses admitidos como apelações, com efeito meramente devolutivo.

C) - Na douta alegação de recurso que ofereceram, os Autores apresentaram as seguintes conclusões:

[…]

Finalizaram pedindo a revogação da sentença.

D) - No que concerne ao recurso subordinado da Ré, rematou esta as respectivas e doutas alegações, com as seguintes conclusões:

[…]

E) - Em face do disposto nos art.ºs 684º, nºs. 3 e 4, 690º, nº 1 do CPC [1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2., “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr. Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586)[2].

Assim, as questões que cumpre solucionar no presente recurso consistem em saber:

- Se ocorre a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC;

- Se é de proceder à alteração da matéria de facto em que se fundamentou a douta sentença recorrida;

- Se, em face da factualidade que se tenha como provada, é correcta a parcial procedência da acção, nos termos decididos na sentença recorrida.

II - Fundamentação:

[…]

B) –

[…]

3) - Se, em face da factualidade que se tem como provada, é correcta a parcial procedência da acção, nos termos decididos na sentença recorrida.

Perante a matéria de facto que a 1.ª Instância deu como provada e que, como se viu, não diverge daquela que este Tribunal tem por assente, discorreu assim o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”:

«“Um dos efeitos do contrato de compra e venda consiste na obrigação de entrega da coisa - artigo 879.º, b) - e, devendo os contratos ser pontualmente cumpridos - artigo 406.º, n.º 1 - o cumprimento daquela obrigação só será perfeito se a coisa for entregue sem defeitos intrínsecos, estruturais e funcionais; caso a coisa padeça daqueles defeitos, estamos perante venda de coisa defeituosa - artigo 913.º.”

(…)

“…se a Ré não sabia - e não ficou provado que soubesse - a diferença de quilometragem da viatura, poderia e deveria saber - usando a normal diligência - que esta viatura já em Dezembro de 2002 registava 126.461 km, como, aliás, os Autores vieram a saber, apesar de não terem acesso, ao invés da Ré, a tal base de dados, junto de outro concessionário da marca.

Daqui resulta pois que a viatura adquirida pelos Autores à Ré não tinha as características asseguradas por esta porque a viatura havia já percorrido, pelo menos, 126.461 km quando é certo que a Ré havia incutido aos Autores a convicção de que a mesma apenas havia percorrido 67.033 km, como falsamente registava o conta-quilómetros, facto este que era do inteiro desconhecimento dos Autores dado que só dele vieram a ter conhecimento após a entrega da viatura.

Estamos, desta forma, perante uma situação de cumprimento imperfeito da obrigação de entrega porquanto «resulta da lei que o vendedor tem, não só a obrigação de entregar a coisa (art. 879.º, al. b)), mas também a de entregar uma coisa isenta de vícios ou defeitos, quer de vícios jurídicos (art. 905.º e segs.) quer de vícios materiais (art. 913.º e segs.).»( )”

(…)

“…conclui-se que estamos perante uma situação de venda de coisa defeituosa (falta de qualidades asseguradas pelo vendedor), a que é aplicável o regime previsto no artigo 913.º, o qual remete para a secção anterior, sendo o contrato anulável por erro, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade - artigo 905.º.”

(…)

“Uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para o negócio conforme a finalidade económica ou jurídica deste. A essencialidade do erro tem de ser analisada sob o aspecto subjectivo do errante e não sob qualquer outro().

No caso dos autos, tendo presente os factos provados, nomeadamente o descrito em 22), não pode deixar de concluir-se pela essencialidade para os Autores (compradores/declarantes) do objecto (quilometragem) sobre que incidiu o erro determinante da vontade.

Acresce que o erro dos Autores é desculpável porquanto qualquer pessoa medianamente informada ou avisada, que pretendesse adquirir um veículo automóvel à Ré, representante oficial da marca Mercedes, não iria pensar que ao veículo usado e apresentado para venda ao público teria sido alterada a quilometragem para bastante menos.

Por outro lado, entendemos que a Ré (declaratária) conhecia ou, ao menos, não devia ignorar a essencialidade para os Autores de uma das qualidades do veículo, a saber a respectiva quilometragem.”

(…)

“O negócio (compra e venda) celebrado pelas partes é, pois, anulável nos termos dos artigos 247.º e 251.º., sendo os efeitos da declaração de anulação os previstos no artigo 289.º, ou seja, deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado, o que implica a entrega, por parte dos Autores, do veículo em apreço e a entrega, por parte da Ré, do veículo entregue pelos Autores que foi aceite como retoma bem como da quantia de 17.000 €, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”».

Brevitatis causa”, quanto à anulabilidade do contrato, diremos que concordamos, no essencial, com o entendimento que, nesse sentido se seguiu na sentença recorrida e que está desenhado nos trechos que da mesma acima se transcreveram.

Vejamos. Escreveu-se no Acórdão desta Relação de 24/06/2008 (Apelação n.º 367/05.4TBALB-A.C1)[3], subscrito pelo ora relator, enquanto tal:
«A venda de coisa defeituosa pressupõe que a coisa vendida enferme de vícios ou careça de qualidades enunciadas no art.º 913º do CC, quer a coisa entregue corresponda ou não à prestação a que o vendedor se encontra adstrito.
Constituem defeito, não só aos vícios físicos ou materiais - deficiências de fabrico ou de construção, deficiências internas - como também a falta de qualidades, quer as que foram asseveradas, explicita, ou implicitamente pelo vendedor, quer as necessárias à realização do fim a que o bem em causa se destina.
No caso “sub judice”, afigura-se, de facto, consubstanciar cumprimento defeituoso a venda do veículo automóvel em causa, pois que:
- a venda reportava-se a um veículo - de marca BMW - que se anunciou ter 136.906 Km, bem como a classificação de bom (B) em todos os “itens” considerados, ou seja, estava classificado desse modo com respeito ao motor, à caixa de velocidades, à direcção, à embraiagem e aos travões, sendo que, afinal, conforme o comprador veio a constatar após o levantamento da viatura, esta possuía, efectivamente, 270.000 Km e não desenvolvia em termos de arranque e velocidade (…).
Ou seja; O Opoente ofereceu o preço aceite de € 18.348,75, por um veículo com 136.906 Km e com a classificação de “bom” quanto ao estado de funcionamento do motor, da caixa de velocidades, da direcção, da embraiagem e dos travões - órgãos ou componentes essenciais de um veículo automóvel - e veio a constatar, que afinal, aquela viatura tinha 270.000 Km percorridos - quase o dobro, pois, do anunciado e assinalado no conta-quilómetros - com problemas de arranque e de velocidade, com necessidade de substituição de peças que respeitavam, designadamente, ao motor e aos travões.
Não temos dúvida, pois, que a viatura automóvel em causa padecia de defeitos que o desvalorizavam e não possuía as qualidades asseguradas pelo vendedor.
(…)
Enfim, sempre se dirá que a desvalorização resultante da diferença entre a quilometragem anunciada e apresentada no conta-quilómetros do veículo aquando da venda e aquela que se veio a apurar que, efectivamente, a viatura possuía, escapa, de todo, àquela argumentação baseada no “desgaste normal de um veículo usado[4].
(…)
Comprovados os defeitos, cabia à Exequente ilidir a presunção de culpa que a onerava, nos termos do art.º 799º, n.º 1, do CC, o que não fez.

Na verdade, presume-se a culpa do devedor se a coisa entregue padecer de defeito (art.º 799.º, n.º 1, do CC), competindo ao comprador a prova deste (art.º 342, n.º 1, do CC). É o que, aliás, refere Pedro Soares Martinez [5], que, aliás, adianta: “Provado o defeito e não tendo sido ilidida a presunção de culpa do vendedor, do regime geral do incumprimento das obrigações decorre o direito de o comprador recusar a entrega da coisa defeituosa”».
Versando a relevância, na compra de um veículo automóvel usado, da discrepância entre a quilometragem efectiva desse veículo e aquela que o mesmo aparentava possuir, escreveu-se no Acórdão da Relação do Porto de 10/05/2004 (Apelação n.º 0452150)[6]:«…não pode considerar-se irrelevante para o comum das pessoas, que se proponham adquirir uma viatura usada, o número de quilómetros que a mesma possa ter realmente percorrido, isto é, não é de aceitar que não haja uma diferença e bastante acentuada entre duas viaturas usadas que, apesar de aparentarem as mesmas características e estado de conservação, apresentem diferente quilometragem efectivamente percorrida, designadamente quando uma apresenta 45.000 Kms. e a outra 100.000 Kms. realmente percorridos, porquanto, como é público e notório, o desgaste global da viatura aumenta com o maior número de quilómetros percorridos…».
Respeitando esta mesma matéria, mas já aferindo a sua projecção no domínio do erro conducente à anulabilidade do contrato de compra e venda - mais precisamente o erro por referência às qualidades pressupostas (na decisão de comprar) relativamente ao objecto - salienta-se no Acórdão desta Relação de 23/01/2007 (Apelação n.º 53/2001.C1)[7]: «”Ao erro sobre os motivos determinantes da vontade, o chamado erro-vício, reportado ao objecto do negócio - o objecto foi aqui o veículo vendido pela R. - se refere o artigo 251º do CC, e ao erro sobre os motivos não reportado à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio se refere o artigo 252º do CC, distinguindo nestes motivos (nos diversos da pessoa e do objecto) os de carácter geral (artigo 252º, nº 1) e os referidos à base do negócio (artigo 252º, nº 2), sendo que de ambas as disposições - da verificação dos respectivos facti species - decorrem as seguintes três situações de anulabilidade negocial: no caso do artigo 251º (erro quanto à pessoa ou ao objecto), “[…] desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro” (artigo 247º do CC, ex vi do disposto nos artigos 251º); no caso do artigo 252º, nº 1 (erro respeitante a outros motivos), “[…] se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo” (artigo 252º, nº 1); no caso previsto no artigo 252º, nº 2 (erro respeitante a outros motivos reportados à base do negócio), bastando o conhecimento das partes, sem necessidade de acordo entre elas[ Esta articulação entre as três hipóteses previstas nas duas disposições legais é explicitada por António Menezes Cordeiro, por referência à interpretação dos nossos tribunais superiores, nos seguintes termos: “[…] a lei admite a relevância do erro da vontade quando recaia sobre a pessoa do destinatário ou sobre o objecto do negócio; reportando-se a outro elemento, terá de haver acordo quanto à essencialidade; referindo-se, todavia, à base do negócio, tal acordo é dispensado, bastando o conhecimento das partes” (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 834).] [ À irrelevância, “[…] por princípio […]”, dos motivos do negócio, cumpre “[…] subtrair […] aqueles motivos que, porque comuns a ambas as partes (ao menos no plano virtual) e essenciais na formação, no conteúdo e na execução contratuais, se devam afinal incluir no conteúdo contratual, quando não mesmo na sua causa” (Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, “Causa Objectiva e Motivos Individuais no Negócio Jurídico”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. II, Coimbra, 2006, p. 457).].
(…)
“…importará sublinhar, num segundo passo argumentativo, que da resposta ao quesito 6º - “[o] motor desse veículo foi visto em Outubro de 2000, quando o contador marcava 51.000Km, apresentando os cilindros um desgaste (ovalização) que aparentava ter percorrido entre 100.000 a 150.000Km -, desta resposta, dizíamos, decorre ter-se constatado que essas qualidades, ou como já se disse neste Acórdão, as características esperadas num carro com 3.000Km, estavam ausentes, sendo que essa ausência é temporalmente projectável - em função da quantificação aproximativa do desgaste[ Como correspondente a 100.000 a 150.000Km, quando só deveria corresponder, nesse momento, a 51.000Km.] - ao momento da conclusão do negócio.
2.4. Valem as considerações antecedentes, que no essencial convergem na caracterização do erro com as da Sentença recorrida, para demonstrar que a afirmação de ter existido um erro-vício relevante na aquisição da viatura é correcta, expressando adequadamente a formação da vontade da Apelada relativamente à compra daquela viatura.”».
No caso tratado no Acórdão da Relação do Porto de 27/06/2005 (Apelação n.º 0553018), refere-se: «…não sofre dúvida que o veículo adquirido pela A. tinha, já, à data (08.06.02) da respectiva aquisição por esta, pelo menos, 165.846 kms percorridos, em vez dos assegurados 108.983 kms, o que constitui um vício que desvaloriza, indubitavelmente, o veículo adquirido, em termos objectivos, para além de consubstanciar a venda de coisa que não tinha as qualidades asseguradas pelo vendedor, com repercussão directa no estado da coisa vendida (art. 913º, nº1).
Paralelamente, a A. só adquiriu o mesmo veículo porque, erradamente, confiou no seu bom estado e kms pelo mesmo, até então, aparentemente, percorridos (Cfr. al. i) de 2 supra).
Finalmente, o R. - apelado conhecia, perfeitamente, ou, pelo menos, não devia ignorar a essencialidade, para a declarante - A., do elemento - estado e kms, até então, percorridos pelo veículo adquirido - sobre que incidiu o respectivo erro. Bastando, para tanto, trazer à colação o facto provado e acolhido em n) de 2 supra, para onde se remete.
Ou seja, presentes se mostram todos os requisitos condicionantes do exercício, pela A., do respectivo direito a obter, judicialmente, a anulação do questionado negócio, com referência ao preceituado nos já mencionados arts. 913º, nº1, 905º, 251º e 247º, com a implicação constante do art. 289º, nº1, por si sós determinantes da procedência da respectiva pretensão.».
No caso “sub judice” é manifesta, já que é enorme, a discrepância entre a quilometragem que o veículo D... apresentava no quadrante (67.033 km), em 18/02/2004, na ocasião da sua venda aos AA., e aquela que, realmente, possuía (mais de 126.461 km, que foram os registados em Dezembro de 2002, numa revisão em concessionário da Mercedes na Alemanha).
Ora, pese embora tudo o que a Apelante Ré alega em contrário, o certo é que da matéria que se tem como provada resulta que a quilometragem apresentada no quadrante respectivo aquando do negócio foi essencial para os AA. tomarem a decisão de lhe adquirir o veículo em causa (cfr. ponto 22)).
Por outro lado, embora não se haja provado que a Ré conhecesse a discrepância da quilometragem apresentada no quadrante do veículo e aquela, muito superior, que o automóvel possuía, não pode deixar de se entender que a Ré não podia ignorar a essencialidade que representava na decisão dos AA de comprar o veículo, aquela quilometragem que este aparentava ter.
Uma informação como essa - a da quilometragem -, consubstancia uma informação que, para a generalidade das pessoas, se apresenta como determinante na decisão de comprarem ou não certo veículo, mesmo que se trate de um veículo usado, pois, aferindo, em face dela, a razoabilidade do preço pedido, relacionam-na ao desgaste das componentes da viatura, em particular, ao do respectivo motor e, enfim, à expectativa de “vida útil” desta. Ao exposto acresce, no presente caso, que a conduta da Ré – ao incutir nos AA a convicção de que os quilómetros que a viatura apresentava correspondiam aos efectivamente percorridos - indicia a suposição, por parte desta, de que tal elemento seria essencial para que os AA. tomassem a decisão de adquiri-lhe o veículo em causa.
Diga-se, a propósito, que causa estranheza que uma concessionária de uma reputada marca de automóveis diga, como faz a Ré nas suas doutas alegações, ainda que reportando-se à comercialização de um usado: «Quem compra um qualquer livro (ou automóvel), não tem que se preocupar em averiguar se a obra é plagiada ou enferma de qualquer vicio.
Sendo o veículo - para a Ré - objecto de uma retoma, ainda que, imediatamente antes, importado, não lhe era exigível averiguar o seu histórico ou, inclusive, a sua proveniência.».
Estamos, pois, no presente caso, como se entendeu na sentença recorrida e à semelhança do concluído, também, nos citados Acórdãos de 23/01/2007 e de 27/06/2005, perante o chamado erro-vício, reportado ao objecto do negócio, ou seja, mais especificamente, perante erro referente às qualidades pressupostas pelos AA. (na decisão de comprar) relativamente ao objecto vendido pela Ré - o veículo automóvel D... - erro esse que, pelos motivos já expostos, conduz à anulação do contrato, termos dos artigos 247º e 251º do CC, posto que, conforme o correctamente perspectivado pela 1.ª Instância, se verificam, no caso, os requisitos da anulabilidade.
Haverá, contudo, que precisar os efeitos resultantes da anulação do contrato, atento o peticionado, em 1.ª linha, pelos AA., evidenciando que estes discordam da alternativa encontrada na sentença, para o caso de não lhes ser possível - como parece suceder, de facto, já que, por intermédio do seu ilustre mandatário, em audiência, declararam tê-lo vendido na pendência da acção - a restituição do veículo comprado, em contraponto com a restituição, por banda da Ré, da importância deles recebida (17.000 €) e do veículo que deles aceitou, como retoma, ou o valor equivalente a este (16.000 €), se a restituição em espécie não fosse possível.
Insurgem-se os AA., com razão, adiantamos já, com a circunstância de essa alternativa à restituição do veículo D..., ter sido fixada na sentença, como sendo a da entrega do montante de 33.000 €, ou seja, o valor do respectivo preço, sendo que, conforme se provou, esse preço foi acordado e aceite por eles no pressuposto - que veio a verificar-se não corresponder à realidade - de que o veículo possuía a quilometragem que apresentava no quadrante respectivo.
A discordância dos AA. assenta, pois, na obrigação que se lhes impõe de restituíram o valor do preço que acordaram quanto a um veículo que pensavam ter 67.033 km na ocasião da venda, em 18/02/2004, quando, na verdade, o mesmo possuía, já em Dezembro de 2002, mais de 126.461 km.
Vejamos.
Como já explicitámos “supra” aos AA. seria possível, se acaso tivessem pretendido valer-se apenas do regime da venda de coisas defeituosas, obter a redução do preço do veículo adquirido à Ré, sendo inquestionável, que o valor de tal veículo, atendendo à sua real quilometragem (mais de 126.46 km), seria manifestamente inferior àquele a que correspondeu o preço acordado no pressuposto de que o mesmo tinha apenas 67.033 km.
Esta circunstância, pese embora estarmos no âmbito da restituição resultante da anulação do contrato, por erro, não pode deixar de ser contemplada, sendo inadequada a solução que não o faça.
Não há dúvida que, nas mais das vezes, o efeito decorrente da anulação do contrato concretiza-se mediante a restituição recíproca, por parte dos contraentes, das respectivas prestações, ou, não sendo viável a restituição em espécie ou “in natura”, pela restituição em sucedâneo patrimonial ou em valor (art. 289º, n.º 1, do CC).
Casos haverá, contudo, em que a situação não se resumirá - não contando, agora, com o do direito de indemnização que em certas situações a lei prevê, concomitantemente - a uma compensação entre os contraentes por via da apontada restituição.
Nos casos - como é o nosso - de anulabilidade resultante de erro do comprador, mediante o qual este adquire a coisa por preço superior ao do valor desta, a medida da restituição - estamos a tratar hipótese em que já não é possível a restituição da coisa em espécie ou “in natura”- não se fará simplesmente em função do preço, mas sim, em medida correspondente ao valor da coisa, considerada a realidade do elemento em que erroneamente se baseou o comprador ao tomar a decisão de contratar.
O Prof. Castro Mendes, embora a propósito de coisa que o adquirente consome antes da anulação, concretiza hipótese semelhante àquela que acima se enunciou, deste modo: «Da circunstância de ambas as partes deverem restituir podem resultar fenómenos de compensação (art. 847.º).
Assim, A compra por 100$00 a B uma coisa consumível, sendo o acto anulável, e consome-a. A anulação em regra não terá efeitos práticos: o dever de B restituir os 100$00 é compensado com o de A restituir o valor da coisa, que normalmente coincide com o preço.
Mas suponhamos que a anulabilidade resulta de erro - erro do vendedor, B, que resultou de atribuir a uma coisa no valor de 500$00 o preço de 100$00; ou erro do comprador, A, em virtude do qual comprou por 100$00 algo que valia só 20$00. Nestes dois casos, respectivamente, A e B devem restituir à contraparte 400$00 e 80$00.»[8].
Assim, no caso “sub judice” a obrigação de restituição dos AA., atento o referido quanto ao erro, com repercussão no valor do veículo, não implicará, por parte destes, a entrega do valor equivalente ao preço pelo qual acordaram comprá-lo, mas sim o valor que, na ocasião do negócio, seria o do veículo em causa, se considerada fosse a quilometragem de 126.46 km, ao invés dos 67.033 km que apresentava no respectivo quadrante.
Ora, não há nos autos, a nosso ver, elementos assentes que, com segurança, permitam, ainda que com recurso à equidade, fixar esse valor, pelo que terá de se relegar a sua liquidação para momento posterior, nos termos dos art.ºs 661.º, n.º 2 e 378, n.º 2 e ss., do CPC[9].
Não se tendo provado que a Ré soubesse não corresponderem à realidade os quilómetros que o veículo em causa apresentava no quadrante, não é a circunstância de se haver provado que aquela incutiu nos Autores a convicção de que esses quilómetros correspondiam aos efectivamente percorridos por essa viatura, suficiente a dar como assente ter havido, por parte da ré, com tal actuação, intenção de induzir ou manter em erro os AA.
A factualidade apurada não permite, assim, qualificar a actuação da Ré como dolosa, motivo pelo qual carece de sentido o apelo que os AA fazem à consideração, no que concerne ao conteúdo da obrigação de indemnização da Ré, do preceituado no art.º 908°, do CC.
O citado art.º 908º, do CC contempla a indemnização de todo o prejuízo que o comprador não sofreria se a compra e venda não se tivesse realizado, a indemnização do chamado interesse contratual negativo ou de confiança.
O art.º 909º, que, prevendo a obrigação de o vendedor indemnizar o comprador, ainda que não tenha havido culpa por parte daquele, é o aqui aplicável, limita a indemnização aos danos emergentes do contrato, o que excluindo, desde logo, os lucros cessantes, não abarca, também, os prejuízos que não sejam os sofridos directamente em consequência do erro determinante da anulação do negócio[10].
Assim, não podendo, de facto, considerar-se como directamente emergentes do contrato anulado, os gastos suportados pelos AA. por força do contrato de mútuo que, para aquisição do veículo, paralelamente celebraram, bem assim como as despesas que tiveram, decorrentes do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que firmaram, afigura-se-nos correcto o entendimento seguido pelo Mmo. Juiz do Tribunal “a quo” ao julgar improcedente o pedido formulado a esse título.
Acresce que, prejuízo, na realidade, não se vislumbra ter decorrido para os AA., com a realização dos mencionados contratos de mútuo e de seguro automóvel e pagamento das respectivas prestações e prémios, já que dos elementos existentes nos autos não resulta que daí não tenham, os AA., retirado contrapartidas, antes se depreendendo o contrário, pois que ainda utilizaram o veículo e, segundo o que da acta de 12/02/2008 consta, terão procedido à respectiva venda (cfr. II – 2)-A)-1) e 42), “supra”).
No que concerne ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais que os AA. formularam, o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”, julgou-o improcedente, referindo, para além do mais, o seguinte: «No que diz respeito à matéria dos alegados danos não patrimoniais foram levados à base instrutória os artigos 36º a 43º, sendo que o artigo 36º obteve resposta afirmativa e os restantes obtiveram respostas negativas (vide decisão sobre a matéria de facto de fls. 478 a 480).
Neste particular apurou-se apenas que a Ré, com a sua actuação, causou aos Autores incómodos e perturbações no seu quotidiano pessoal, profissional e familiar
Assim, ponderando a matéria contida nos referidos artigos e aquilo que ficou provado em julgamento, dir-se-á que a factualidade apurada não assume a gravidade necessária ao merecimento da tutela do direito.
Na verdade, só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que afectem profundamente os valores ou interesses da personalidade física ou moral.
No caso, não ocorre uma grave lesão de valores não patrimoniais pelo que o dano sofrido pelos Autores (incómodos e perturbações), não sendo suficientemente relevante, não se mostra ressarcível no âmbito do artigo 496.º, n.º 1( ).
Deste modo, inexistindo dano merecedor de tutela legal, não ocorre a obrigação de indemnização com base na responsabilidade civil contratual a imputar à Ré pois que falta um dos pressupostos dessa responsabilidade acima enunciados.»
Ora, da matéria alegada pelo AA. relativamente aos danos não patrimoniais que invocam, destaca-se a constante dos quesitos que ora se transcrevem:
«36) A Ré com a sua actuação causou aos AA incómodos e perturbações no seu quotidiano pessoal, profissional e familiar?
37) Bem como lhes provocou danos na sua imagem profissional?
38) Designadamente ao Autor marido, porquanto tais factos ocorreram no meio em que desenvolve a sua actividade de Advogado?
39) Tornando-se do domínio público, com consequências de difícil avaliação?
40) A imagem de segurança que o Autor marido pode e deve transmitir ao universo de clientes presentes e/ou potenciais, ficou abalada com tal situação?
41) Ao perpassar a ideia de que este se deixa enganar pela concessionária oficial da marca que mais segurança transmite ao mercado?
42) A Autora mulher, [..........], também viu abalada a sua imagem profissional, em razão da conduta da Ré?
43) Por lhe ser exigível uma maior exigência na negociação e conclusão dos negócios?».
Desta matéria, como bem salienta o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”, apenas se provou que a Ré, com a sua actuação, causou aos Autores incómodos e perturbações no seu quotidiano pessoal, profissional e familiar.
Ora, o n.º 1 do art.º 496.º do C.C. dispõe que "na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.".
Os danos não patrimoniais excluídos da tutela do direito a que se reporta o citado preceito legal, são, no dizer de Vaz Serra (in exposição de motivos, BMJ n.º 83 - citado pelo Cons. Rodrigues Bastos em “Das Obrigações em Geral”, vol. II, pág. 119), os “...destituídos de gravidade que justifique a compensação pecuniária deles...”.
A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo, tendo em conta o circunstancialismo de cada caso, e não por padrões subjectivos resultantes de uma sensibilidade embotada ou especialmente requintada; por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem patrimonial ao lesado (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2.ª edição, vol. I, Almedina, Coimbra, 1973, págs. 486 e 487).
É ao autor (art.º 342, n.º 1 do CC) que compete alegar e provar os factos integradores da gravidade do dano não patrimonial que pretende ver reparado (Crf. Acórdão do STJ de 03/12/98, Revista n.º 1061/98 )[11].
Ora, no caso “sub judice” os autores não lograram provar factos que, concretizando o provado quanto aos incómodos e perturbações no seu quotidiano pessoal, profissional e familiar, permitissem concluir que tais incómodos e perturbações apresentavam a gravidade que legitimaria a tutela do direito enquanto danos não patrimoniais, e consequentemente, a atribuição de uma indemnização compensatória.
Em Acórdão de 08/03/2001 (Revista 187/2001 - 6.ª Secção), o STJ, ponderando a prova que a aí autora fizera de que o atraso na execução de uma moradia lhe causara angústia e tensão nervosa, concluiu “...não ter ficado minimamente caracterizado, em concreto, o grau desse estado de angústia e de tensão nervosa, nem os efeitos e consequências que determinaram”, o que significou, no entender do Supremo, que não se provara que o estado de angústia e de tensão nervosa revestisse um grau de suficiente gravidade que justificasse a tutela do direito, mediante a concessão à autora de uma compensação pecuniária.
No presente caso dir-se-á o mesmo, “mutatis mutandis” quanto à falta de caracterização susceptível de possibilitar atribuir relevância digna da tutela do direito, aos aludidos incómodos e perturbações causados no quotidiano pessoal, familiar e profissional dos AA..
Assim, em síntese conclusiva, poder-se-á afirmar, quanto a este aspecto: “Provando-se que a actuação da Ré causou incómodos e perturbações no quotidiano pessoal, familiar e profissional do autor, mas não se logrando provar factos que caracterizem tais incómodos e perturbações, não se pode ter como assente que estes revistam um grau de suficiente gravidade que justifique a tutela do direito, mediante a concessão ao autor de uma compensação pecuniária”.
Do exposto resulta, pois, que bem decidido foi julgar improcedente o pedido formulado pelos AA. relativo aos invocados danos não patrimoniais.
Não se podendo condená-la no pagamento de juros de mora desde a data da celebração do negócio, como era pedido, pois que mora não existia então, nem existe ainda, atento o decidido quanto à necessidade de liquidação do valor a entregar-lhe pelos Autores (art.º 805º, n.º 3, do CC) e a simultaneidade, referida na sentença, de cumprimento das recíprocas obrigações de restituição (artigo 290º, do CC), a Ré, no entanto, caso em mora venha a cair, ou seja, depois de liquidado, em definitivo, o referido valor do veículo D..., se não cumprir a sua obrigação de restituição, deverá pagar juros de mora aos AA. à taxa peticionada de 4%, embora que tão só desde essa ocasião e sobre os montantes de 17.000 € (dezassete mil euros) e de 16.000 €, neste último caso, pois, apenas se não lhe for possível a restituição do veículo de E... (art.ºs 804º, 806º, n.ºs 1 e 2 e 559º, todos do CC, e art.º 662º, n.º 1, do CPC).

Concluindo: Improcedendo o recurso subordinado da Ré, a Apelação dos AA. procede, embora que parcialmente, de acordo com o que acima se explanou.

III - Decisão:

Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso subordinado e, na parcial procedência da Apelação dos Autores, decidem:

Mantendo-se a declaração de anulabilidade do contrato, bem assim como a condenação da Ré a restituir aos Autores a quantia de 17.000 € (dezassete mil euros) bem como o veículo de E... ou, caso a mesma não seja possível, o montante de 16.000 € (dezasseis mil euros), revogar a sentença impugnada, na parte em que determina que os Autores, caso não lhes seja possível restituir à Ré o veículo de D..., restituam a esta o montante de 33.000 € (trinta e três mil euros), decidindo-se agora que o montante a restituir à Ré pelos AA., em substituição da entrega do dito veículo, seja aquele que, de acordo com o acima exposto, se apurar em incidente de liquidação subsequente.

Mais condenam a Ré no pagamento de juros de mora sobre as quantias a restituir aos AA., à taxa de 4% ao ano, mas apenas, após a mencionada liquidação, caso venha a ocorrer o circunstancialismo acima assinalado e, então, desde essa ocasião e até efectiva restituição.

Custas da Apelação principal, a cargo de AA. e Ré, na proporção, respectivamente, de 10/% e 90%.

Custas do recurso subordinado, pela Apelante Ré.


[1] Os preceitos deste Código citados no presente Acórdão, reportam-se, salvo indicação em contrário, à redacção que antecedeu a introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[2] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que abaixo se assinalarem sem menção de origem de publicação.
[3] Confirmado por Acórdão do STJ de 18/12/2008 (Revista n.º 08B4008).
[4] Sublinhado agora.
[5] Direito das Obrigações, Parte Especial (2.ª edição) - Compra e Venda - pág. 136.
[6] Consultável, como os restantes Acórdãos da Relação do Porto “infra” citados sem menção de publicação de origem, no endereço www.dgsi.pt/jtrp.nsf .
[7] Consultável, como os restantes Acórdãos da Relação de Coimbra “infra” citados sem menção de publicação de origem, no endereço http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf .
[8] Direito Civil - Teoria Geral, II, vol., pág. 443, de harmonia com as lições do ano jurídico 1978/1979, edição de 1995 da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa.
[9] Como refere o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”, os AA, através do seu ilustre mandatário, informaram em audiência de julgamento ter já vendido o veículo pelo preço de 19.000 €, não tendo sido junto, todavia, qualquer documento comprovativo até ao encerramento da discussão da causa. Não pode, assim, para o efeito que agora se trata, relevar esse valor.
[10] Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 30/09/1993 (Apelação n.º 9250360).
[11] Acórdão com sumário consultável na página da Internet do STJ, em “http://www.stj.pt/?idm=46”.