Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1086/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: PROVA PERICIAL
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
INDEMNIZAÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/13/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 18.º, N.º 3 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, ARTIGOS 309.º E 408.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A convicção do julgador sobre os factos forma-se, livremente, com base nos elementos de prova, globalmente, considerados, sem vinculação estrita às conclusões dos exames periciais, se houver elementos de prova que contrariem a factualidade sobre que assentaram tais exames, quer os carreados pela acusação, quer pela defesa, ou, oficiosamente, com subordinação ao princípio do contraditório.
2. O acto de privação injustificada da liberdade, proveniente de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, só por um Juiz pode ser determinado e, consequentemente, só ao Estado pode ser exigida a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, com o consequente dever de indemnizar o lesado pelos danos sofridos.

3. Não estando em causa a injustificação da prisão preventiva, já que, na ocasião, não constava ainda dos autos o relatório da autópsia, que o autor considerou inquinado de erro grosseiro, e não podendo qualquer um dos réus praticar actos que só ao poder judicial competem, inexiste fundamento legal para os condenar no pedido de pagamento da indemnização solicitado pelo autor.

4. O prazo de um ano para a propositura da acção de indemnização, com fundamento em prisão preventiva injustificada, tendo em conta a simplicidade da apreensão da questão e dos elementos necessários a carrear para o processo, não se revela, desproporcionado ou, desadequadamente, exíguo, não violando a extensão ou o alcance do conteúdo essencial do direito, nem o princípio da igualdade.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A..., viúvo, capataz da construção civil, residente em Brincos, freguesia de Abiúl, concelho de Pombal, interpôs recurso de apelação da decisão que, nos autos com processo ordinário que instaurou contra o Instituto de Medicina Legal–Delegação de Pombal, B... e C..., ambos peritos médico-legais da Delegação do Instituto de Medicina Legal de Pombal, com sede em Pombal, julgou procedente a excepção peremptória da prescrição e, em consequência, absolveu os réus do pedido, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª – A sentença recorrida considerou não existir o direito de o recorrente ser indemnizado pelos prejuízos que sofreu em virtude da privação ilegal da liberdade em consequência do erro crasso e grosseiro, cometido pelos ora recorridos, nas conclusões plasmadas no relatório médico pelos mesmos elaborado e requerido pelo Tribunal que condenou aquele a pena detentiva da liberdade;
2ª – Daí o inconformismo do recorrente com a assunção fáctica eleita pelo Tribunal a quo.
3ª - A douta decisão está inquinada por uma deficiente caracterização e percepção do que na realidade foi pedido na acção pelo recorrente.
4ª - Isto porque o recorrente na presente acção não demandou o Estado Português investido no seu ius imperium relativamente à sua função jurisdicional, mas os ora recorridos pelo facto de no exercício das suas funções técnicas gozarem de independência e autonomia técnico-científica, sendo deste modo responsáveis pelas perícias e pelos pareceres por si efectuados.
5ª – E face ao teor do relatório médico dos recorridos, nunca poderia ser outra a decisão do Ex° Sr. Dr. Juiz a quo, devido à impossibilidade de livre apreciação do juízo técnico, científico ou artístico.
6ª - Isto porque de acordo com o que o art. 157° textua: "Finda a perícia, os peritos procedem à elaboração de um relatório, no qual mencionam e descrevem as suasrespostas e conclusões devidamente fundamentadas e que não podem ser contraditadas".
7ª - O que está configurado na causa de pedir e concretizado no pedido da presente acção é baseado no erro na apreciação da factualidade por parte dos recorridos.
8ª - Esse erro foi o facto originador da privação da liberdade do recorrente.
9ª - A conduta dos recorridos plasmada no seu relatório médico configura um erro grosseiro e intolerável por parte destes.
10ª - O erro diz-se grosseiro quando é indesculpável, quer pela falta de conhecimento quer por negligência.
11ª - A intervenção em juízo dos peritos justifica-se porque a apreciação dos factos, muitas vezes, exige conhecimentos técnicos específicos.
12ª - Esses conhecimentos técnicos não fazem nem têm de fazer parte do universo cultural geral e específico de qualquer julgador.
13ª - É subtraída à livre convicção do magistrado o juízo técnico, científico e artístico inerente às perícias.
14ª - A matéria pericial constitui um auxiliar do instrutor ou julgador do processo.
15ª - O Mº Juiz que proferiu a decisão privadora da liberdade do recorrente remeteu a sua decisão para o exame pericial e relatório pericial elaborado e da responsabilidade dos recorridos.
16ª - Foi unicamente com base no erro notório e grosseiro dos recorridos que o Digníssimo Magistrado aplicou pena privativa da liberdade ao recorrente.
17ª - A existência do erro foi reconhecida pelo recorrido B..., autor do relatório do exame médico-legal, em Tribunal ao afirmar que se tinha enganado num termo técnico.
18ª - Nunca foi intenção do recorrente, com a instauração da presente acção, demandar o Estado Português investido no seu Ius Imperium e relativamente à sua função jurisdicional.
19ª - Como o Mº Sr. Juiz a quo a configura na sua sentença, isto é, no termos dos arts. 225° e 226° do CPP, é que a acção teria de ser intentada contra o Estado Português.
20ª – Isto porque a Jurisprudência é quase unânime em considerar como acto de gestão pública do Estado oexercício da função jurisdicional.
21ª - É convicção do recorrente que a privação da sua liberdade sempre seria aplicada por qualquer juiz face ao teor dos erros grosseiros dos recorridos e que o julgador não tinha obrigação de conhecer, e por isso entende serem estes os únicos responsáveis pela mesma.
22ª - Única razão por que o Estado Português não foi demandado na presente acção.
23ª - No exercício das suas funções técnicas os peritos gozam de independência e autonomia técnico científica sendo responsáveis pelas perícias e pelos pareceres por si efectuados.
24ª - Não entendeu o Mº Juiz a quo o pedido da presente acção que se baseia na responsabilidade civil por factos ilícitos e negligentes dos recorridos e confundiu a mesma com uma qualquer acção intentada contra o Estado Português nos termos dos arts. 225° e 226° do CPP.
25ª - Diz a sentença recorrida: "O direito de indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada, extingue-se por prescrição, ao cabo de um ano a contar da libertação do detido ou preso ou do trânsito em julgado da decisão final do processo, consoante se baseie no n° 1 ou nº 2 do art. anterior (art. 226° do CPP)".
26ª - Foi com base no prazo estipulado no art. 226° do CPP que o Tribunal a quo fez improceder a acção no despacho saneador.
27ª - Assim, o Tribunal não reconheceu nem apreciou o direito ao pedido de indemnização por privação ilegal ou injustificada efectuada pelo recorrente face aos factos ilícitos praticados pelos recorridos no seu relatório médico-legal.
28ª - Por estas mesmas razões andou mal o Mº Sr. Dr. Juiz a quo ao aplicar o art. 226° do CPP, porquerelativamente à extinção pelo decurso do tempo do direitoà indemnização estabelecida pelo art. 225° do mesmodiploma legal, apenas deverá ser considerado o prazo deprescrição de 3 anos do art. 498° do C. Civil, aplicável poranalogia (art. 10° n° 1 do C. Civil) a esta situação.
29ª - Aliás, mesmo que se entendesse ser o art. 226° do CPP aplicável in casu, o prazo de prescrição ali contido revela-se demasiado exíguo e desproporcionado quando comparado com o prazo do art. 498° do C. Civil, tanto mais que se torna necessário dar importância à gravidade que assume a privação ilegal da liberdade.
30ª – O prazo prescricional do artigo 498° do Cod. Civil só começa a correr após o conhecimento do direito que assiste ao seu beneficiário.
31ª - O conhecimento do direito equivale à consciência da possibilidade legal de ressarcimento dos danos.
32ª - O parecer do médico que sempre assistiu o recorrido demonstra que o mesmo esteve impossibilitado de conhecer o direito indemnizatório que lhe assistia até Março de 2002.
33ª - A presente acção deu entrada em 19 de Novembro de 2002 e por isso, tempestivamente.
34ª - O estabelecimento de um prazo para o exercício de um direito constitucionalmente consagrado, somente pode limitar a sua concretização na medida em que perante o valor atendível o faça de modo proporcional e racional, não o extirpando de conteúdo ou amputando o seu alcance, conforme o faz o preceito em crise.
35ª - Preceito este - art. 226° do CPP - que contraria em muito a Lei Constitucional, a Constituição material e o entendimento que hoje se deverá fazer do Estado no seu papel de relacionamento com os cidadãos e na sua função de garante dos direitos dos mesmos, sendo por isso inconstitucional ao afrontar o n° 3 do art. 18° da CRP.
36ª - Pelo que razões meramente economicistas não deverão bastar para que a Lei imponha uma tão profunda limitação de direitos e mais do que isso são valores civilizacionais adquiridos, património de uma nação moderada, civilizada e justa.
37ª - Não tem razão de ser a aplicação ao caso sub júdice do art. 226° do CPP, apenas devendo ser considerado o prazo de prescrição de 3 anos do art. 498° do C. Civil.
38ª - Assim, não prescreveu o direito do recorrente a ser indemnizado pelos recorridos face à sua conduta negligente na elaboração do relatório médico-legal que levou à sua prisão.
Nas suas contra-alegações, os réus entendem que deve ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se a decisão apelada.
Com interesse relevante para a apreciação do mérito da apelação, há que reter a seguinte factualidade:
1 – Por acórdão proferido, no dia 6 de Abril de 2000, o autor foi condenado, como autor, por comissão, de um crime de homicídio voluntário, previsto e punido, pelo artigo 131º, do Código Penal, na pena de doze anos de prisão, por acórdão proferido no processo comum colectivo, com o nº 11/2000, que correu termos, no 2º Juízo, do Tribunal Judicial de Pombal – Documento de folhas 36 a 50.
2 – O autor esteve preso, preventivamente, à ordem do processo, referido em 1, desde 25 de Outubro de 1999 até 30 de Novembro de 2000 – Documentos de folhas 16 a 32, 71 a 83 e 84 a 97.
3 – Tendo, nesta última data, sido restituído á liberdade, em consequência de acórdão absolutório do crime pelo qual estava acusado, proferido em nova audiência de discussão e julgamento, por força da anulação do julgamento anterior e do respectivo acórdão, aludido em 1, determinada pelo Tribunal da Relação de Coimbra - Documentos de folhas 71 a 83 e 84 a 97.



4 – Do acórdão absolutório, referido em 3, não foi interposto recurso, tendo o mesmo transitado em julgado, em 15 de Dezembro de 2000 – Documento de folhas 84 a 97.
5 – Na fundamentação sobre a decisão da matéria de facto, o acórdão condenatório, mencionado em 1, considerou as declarações do arguido, os depoimentos de Bruno e Alcino Antunes, filhos do arguido e da vítima, de Almerinda, Manuel e Emanuel Carrasqueira, Olinda e Madalena Santos, Almerinda Rodrigues, Lucinda Morgado, Bruno Freire, Cristóvão Carvalho, Teresa Domingues, Maria Antunes, Dr. Adelino Correia, José Mota, Abílio Alves, Arlindo Martins e Maria Correia – Documento de folhas 36 a 51.
6 – E ainda o depoimento do ora réu, Dr. B..., médico que realizou a autópsia e que esclareceu que “a causa da morte foram as várias lesões apresentadas pela vítima, que eram contemporâneas e recentes, que o edema epidural fora provocado por agressão violenta, que com normalidade conduz à morte, não relacionando a ocorrência desta com os hábitos alcoólicos da vítima”, a que tudo acresce o relatório da autópsia e as fotografias de folhas 115 a 127, confirmadas e reconhecidas pelo arguido - Documento de folhas 36 a 51.
7 - Na fundamentação sobre a decisão da matéria de facto, o acórdão absolutório, mencionado em 3, considerou, nomeadamente, o depoimento do ora réu, Dr. B..., médico que realizou a autópsia, e que esclareceu a possível causa da morte, que o hematoma era subdural e não epidural, e da Profª. Drª Maria do Rosário Antunes, especialista em medicina legal, que criticou o relatório da autópsia – Documento de folhas 84 a 97.



8 – Aliás, no acórdão absolutório, ficou provado que do relatório da autópsia “consta, ainda, apresentar a vítima uma TAS de 0,66 g/l”, que “ o sr. Dr. B..., um dos peritos que a realizou, fez dele constar [deseja, no entanto, salientar que se tratava de uma pessoa com hábitos alcoólicos e por isso mesmo com alteração dos factores de coagulação, isto é, qualquer traumatismo origina uma hemorragia mais abundante]”, que “foi por lapso escrito nesse relatório tratar-se de hematoma epidural, pois que, na verdade se tratava de hematoma subdural” – Documento de folhas 84 a 97.
9 – Porém, no acórdão absolutório, já não foi considerado como demonstrado “que as lesões verificadas no corpo da vítima e descritas no relatório da autópsia tenham resultado de agressão do arguido, levadas a cabo, nomeadamente, no dia 15-8-1999”, que “qualquer agressão perpetrada pelo arguido na cabeça da vítima lhe tenha causado, nomeadamente, hematoma epidural ou subdural – Documento de folhas 84 a 97.
10 – A petição inicial da presente acção deu entrada em juízo, em 19 de Novembro de 2002 – Documento de folhas 2.
11 – O relatório da autópsia foi junto aos autos, em 7 de Outubro de 1999, e o interrogatório judicial, no final do qual foi determinada a prisão preventiva do autor, teve lugar, no dia 26 de Outubro seguinte – Documentos de folhas 31, 32 e seguintes do processo comum colectivo com o nº 11/2000.

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.



As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão do prazo de prescrição do direito à indemnização por privação da liberdade.
II – A questão da constitucionalidade do prazo do exercício do direito à indemnização por privação da liberdade.

I

DO PRAZO DA PRESCRIÇÃO

A responsabilidade das entidades públicas encontra-se consagrada na norma do artigo 22º, da Constituição da República (CR), ao estatuir que “o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.
Concretizando este princípio geral, consagra o artigo 27º, nºs 1, 2, 3, b) e 5, da CR, que ninguém pode ser, total ou parcialmente, privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória ou, excepcionalmente, por exemplo, em caso de prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, sob pena de, em caso contrário, o Estado ficar constituído no dever de indemnizar o lesado.
Assim sendo, a lei ordinária, através do disposto no artigo 225º, do Código de Processo Penal (CPP), acabou por prever duas modalidades típicas de privação de liberdade geradoras de indemnização, por danos sofridos pelo lesado, reportando-se o nº 1 a “quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal” e o seu nº 2 a “quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia”.
Por seu turno, o artigo 226º, nº 1, ainda do CPP, estipula que “o pedido de indemnização não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido um ano sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado ou foi definitivamente decidido o processo penal respectivo”.
Nas alegações de recurso, o autor observa que não prescreveu o seu direito a ser indemnizado, enfatizando, explicitamente, que não demandou o Estado Português, investido no seu «ius imperium», relativamente à sua função jurisdicional, mas antes os ora recorridos, face à sua conduta negligente, na elaboração do relatório médico-legal que levou à sua prisão.
Neste particular, registe-se que o Tribunal «a quo» julgou improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva dos réus, declarando-os a todos partes legítimas, e a excepção dilatória da incompetência do tribunal, em razão da matéria, declarando o Tribunal comum, materialmente, competente, por decisões que não foram objecto de recurso e que, consequentemente, transitaram em julgado, nos termos do preceituado pelos artigos 671º, nº 1 e 673º, do CPC.
Peticionando o direito à indemnização pelos danos decorrentes da prisão preventiva, contra a qual pretende reagir, em virtude de ter sido privado, de cerca de treze meses de liberdade, na sequência do acórdão que, em repetição do julgamento anterior, o absolveu da autoria material do crime de homicídio voluntário, o autor demanda, não o Estado, a quem pertence, em exclusivo, a função de administrar a justiça, através dos Tribunais, nos termos do disposto pelo artigo 202º, nºs 1 e 2, da CR, mas antes o Instituto de Medicina Legal (Delegação de Pombal) e dois dos peritos médicos que, por fazerem parte dos quadros privativos dos seus funcionários, subscreveram o relatório da autópsia da vítima, sujeito passivo do crime de homicídio voluntário, pelo qual o autor viria a ser detido, preso, preventivamente, pronunciado e condenado, em primeira instância, antes da interposição do recurso que permitiu ao Tribunal da Relação anular o primeiro julgamento e determinar a sua repetição.
Com efeito, a função jurisdicional, como já se disse, compete aos órgãos de soberania designados Tribunais, que julgam, de acordo com a Constituição e a Lei, atento o estipulado pelos artigos 202º, nºs 1 e 2 e 203º, da CR, 1º, 3º e 4º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, e 8º, nº2, do Código Civil (CC), encontrando-se ainda os Juízes vinculados pela prova produzida, pelos juízos de valor legais, atento o preceituado pelo artigo 4º, nº 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, e pelos ditames da sua própria consciência.
Em matéria de prova, dispõe o artigo 127º, do CPP, que, em princípio, “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, com ressalva das situações em que a lei dispuser, diferentemente, como acontece com a prova pericial, que tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, e cujo juízo se presume subtraído à livre apreciação do julgador, muito embora a convicção deste possa divergir daquele juízo pericial, desde que fundamentada( STJ, de 25-10-95, BMJ nº 450, 333; STJ, de 9-5-95, CJ (STJ), Ano III, T2, 189; STJ, de 15-6-93, BMJ nº 428, 448; STJ, de 5-5-93, BMJ nº 427, 441.), nos termos das disposições combinadas dos artigos 151º e 163º,nº 1 e 2, do mesmo diploma legal.
Efectivamente, o valor da prova pericial penal vincula o critério do julgador, que só a pode rejeitar com fundamento numa crítica material da mesma natureza( Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 153.), ou seja, dito de outro modo, se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, já o juízo científico ou parecer, propriamente dito, só é susceptível de uma crítica, igualmente, material e científica( Figueiredo Dias, Processo Criminal, 1971, 202.).
Considerando a necessidade de evitar que o princípio da livre apreciação da prova não resvale em arbitrariedade, o único meio de prova admissível, quando a percepção ou a apreciação dos factos exija especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, é o da prova pericial.
Ora, se a definição da causa de morte é um daqueles factos cuja percepção exige especiais conhecimentos técnicos e, sendo certo que constituem conclusões do relatório da autópsia que…. “as agressões perpetradas pelo arguido na cabeça da vítima causaram-lhe, nomeadamente, hemorragia epidural, que foi causa directa e necessária da sua morte…”, a conclusão de que se deve presumir a intenção de matar não representa um juízo técnico-científico, mas apenas um juízo de probabilidade sobre essa intenção( STJ, de 3-7-96, CJ (STJ), Ano IV, T2, 214; STJ, de 2-9-95, CJ (STJ), Ano III, T3, 191.).
Porém, a convicção do julgador sobre os factos forma-se, livremente, com base nos elementos de prova, globalmente, considerados, sem vinculação estrita às conclusões dos exames periciais, mesmo nos casos de alienação mental, se houver elementos de prova que contrariem a factualidade sobre que assentaram tais exames( STJ, de 9-3-94, BMJ nº 435, 626.).
E isto porque o juízo técnico, científico ou artístico não tem um valor probatório pleno, e, nem sequer, talvez, um valor de prova legal bastante, um valor, presuntivamente, pleno, ligado a uma presunção natural, que pode ceder perante contraprova( Leal Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal Anotado, 1996, 1º, 642.), mas antes e, tão-só, que a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial é bastante para que o relatório pericial não se imponha ao julgador( Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 153 e 154.).
Assim sendo, os peritos são auxiliares do julgador, formulando um parecer sobre o valor ou significado dos meios de prova que examinaram, não podendo substituir-se-lhe na apreciação da prova, intervindo na prova real, que não julgam( Maia Gonçalves, Jornadas de Direito Processual Penal, 208.), pelo que é inaceitável uma adesão automática e mecânica às conclusões do relatório pericial da autópsia, sem a produção e exame crítico das demais provas carreadas, pela acusação e pela defesa, em apreciação na audiência de discussão e julgamento, e ainda de todas aquelas cujo conhecimento, oficiosamente ou a requerimento, ao Tribunal se afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, nos termos do disposto pelo artigo 340º, todas subordinadas ao princípio do contraditório, em conformidade com o artigo 327º, nº 2, ambos do CPP.
E tudo isto para dizer que, sem embargo de todas as deficiências técnico-científicas que, oportunamente, foram assacadas ao relatório da autópsia, não foi este o único elemento de prova, embora muito importante, de que o Tribunal se serviu, no primeiro julgamento, para condenar o ora autor numa pena de doze anos de prisão.
Por outro lado, o dever de indemnizar do Estado pode ser encarado, de um ponto de vista formal, enquanto previsão de responsabilidade pelos danos resultantes de medidas detentivas, na hipótese de ilegalidade, isto é, quando são violadas as normas legais relativas à sua aplicação ou manutenção, a que alude o artigo 27º, nº 5, da CR, ou, numa perspectiva de controlo material, que acontece quando se prevê que a responsabilidade existe, em todos os casos em que o indivíduo é sujeito a medidas privativas de liberdade, de índole penal, verificando-se todos os requisitos legais e processuais da aplicação da medida de coacção, inexistindo qualquer falta dos serviços da Administração da Justiça, mas que vem a terminar com uma decisão que torna esse sacrifício, materialmente, injustificado, sendo certo que as exigências de justiça e de equidade levam o Estado a assumir o dever de ressarcir um detido, claramente, inocente( Luís Catarino, A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, 347.).
De facto, tendo o autor sido absolvido, com decisão transitada em julgado, é inquestionável que a inocência não ocorre apenas após a prolação do acórdão, mas antes desde o momento da sua detenção.

Porém, sabido que a apreciação dos pressupostos de facto de que depende a prisão preventiva é da competência do Juiz do processo, apresentando-se como inquestionável, quer a competência funcional, quer o quadro normativo legal em que o Tribunal se moveu, a causa de pedir da acção situa-se, manifestamente, no nº 2, do artigo 225º, o que significa que não se coloca a questão da ilegalidade da prisão preventiva, mas antes da sua alegada injustificação concreta, dependente de eventual erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto em que se baseou.
E o erro tem de ser grosseiro, no sentido de indesculpável, escandaloso, crasso ou supino, o designado «error intolerabilis», aquele em que não teria caído uma pessoa dotada de normal inteligência e circunspecção( Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 234 e 239.), absurdo, contra manifesta evidência, demonstrativo de que não houve o mínimo de cuidado, por parte de quem decidiu( Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 3ª edição, 328.).
No caso em apreço, muito embora não se evidencie, minimamente, a comissão de um erro grosseiro, aquando do acto inicial de decretamento da medida da prisão preventiva, não é de excluir a hipótese de tal erro poder ter sido cometido, no decurso do período em que se manteve essa situação, especialmente, a partir do momento em que foi junto aos autos o relatório da autópsia, o qual pela sua gravidade, penosidade e anormalidade, e até pelo seu prolongamento, por cerca de treze meses, poderia vir a ser merecedor da tutela do direito, para fins indemnizatórios.
Tendo-se por adquirido que foi legal a prisão preventiva do autor e bem assim como justificada a decisão jurisdicional que a determinou, até à data do início da primeira audiência de discussão e julgamento, já o mesmo se não pode afirmar, posteriormente, porquanto sustentada, a partir de então, também, para além da restante prova produzida, no relatório da autópsia, inquinado por erro nos pressupostos de facto em que se basearam as conclusões quanto à definição da causa de morte, de natureza grosseira, por assentar num erro grave da actividade investigatória do Estado.
Porém, o réu Instituto de Medicina Legal–Delegação de Pombal faz parte da administração indirecta do Estado, atento o disposto pelos artigos 2º, nº 1 e 3º, nº 1, da Lei nº 3/2004, de 15 de Janeiro, detendo personalidade jurídica, não se confundindo com a pessoa jurídica Estado, como sujeito de direito( STA, de 24-4-96, BMJ nº 456, 240.), e goza de plena capacidade judiciária.
Por outro lado, não pode, nem tal é concebível, limitado como está à actividade administrativa, praticar actos de natureza judicial, no âmbito da acção penal, que é uma função, exclusivamente, cometida aos Tribunais, pelo ordenamento constitucional, como se disse, não lhe sendo, consequentemente, aplicável o estatuído pelo artigo 225º, nº 2, do CPP, que abrange a prisão preventiva injustificada, por erro grosseiro, na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, que é a hipótese que aqui interessa considerar, e que só pode ser decidida por um Juiz, a quem, em exclusivo, pertence apreciar os seus pressupostos e determinar a sua aplicação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 202º, nº 1, 204º, 210º, 212º e 213º, todos do CPP.
Por seu turno, os réus B... e C..., ligados ao réu Instituto de Medicina Legal–Delegação de Pombal, por contrato individual de trabalho, nos termos do disposto pelos artigos 37º, nº 1 e 45º, nº 3, do DL nº 96/01, de 26 de Março, e pelo despacho nº 6825/02, de 15 de Março, publicado no DR, IIª série, de 3 de Abril de 2002, não podem ser responsabilizados pelos actos de perícia médico-legal integrantes da actividade investigatória do Estado, pelos quais não responde a própria entidade empregadora.
Quer isto dizer, em suma, que o acto de injustificada privação da liberdade do autor, proveniente de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, só por um Juiz pode ser determinado e, consequentemente, só ao Estado pode ser exigida a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, com o consequente dever de indemnizar o lesado pelos danos sofridos.
Não estando em causa a injustificação da prisão preventiva, já que, na ocasião, não constava ainda dos autos o relatório da autópsia, e não podendo qualquer um dos réus praticar actos que só ao poder judicial competem, inexiste fundamento legal para os condenar no pedido de pagamento da indemnização solicitada pelo autor.
Finalmente, e, mesmo que assim não fosse, não podendo o pedido de indemnização, em caso algum, ser proposto, depois de decorrido um ano sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado ou foi, definitivamente, decidido o processo penal respectivo, considerando que o acórdão absolutório transitou em julgado, no dia 15 de Dezembro de 2000, enquanto que a petição inicial deu entrada em juízo, em 19 de Novembro de 2002, prescreveu o correspondente direito, por não ter sido exercido, no prazo legal, nos termos do preceituado pelo artigo 226º, nº 1, do CPP, com a consequente absolvição dos réus do pedido, atento o disposto pelos artigos 493º, nºs 1 e 3 e 496º, ambos do CPC.




II

DA CONSTITUCIONALIDADE DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO

Sustenta o autor que o prazo constante do artigo 226°, do CPP, a ser aplicável, «in casu», é inconstitucional, por afrontar o artigo 18°, nº 3, da CR.
Porém, o autor, na réplica, ao ser confrontado com a excepção da prescrição, invocada pelos réus na contestação, entendeu aplicável o normativo em causa à situação concreta, mas com a consideração de que o prazo começa a correr quando o direito puder ser exercido, a que alude o artigo 306º, nº 1, do CC, o que só se teria verificado menos de um ano antes da data da propositura da acção, não levantando, então, a questão da inconstitucionalidade da norma.
Dispõe o artigo 226º, nº 1, do CPP, que “o pedido de indemnização não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido um ano sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado ou foi definitivamente decidido o processo penal respectivo”.
Ao nível da responsabilidade civil extracontratual, onde se situa a causa de pedir da acção, ao contrário do que sucede com a responsabilidade civil contratual, com excepção do caso das prescrições presuntivas, atento o estipulado pelos artigos 309º e seguintes, o legislador consagrou prazos prescricionais de duração inferior, como decorre do preceituado pelo artigo 498º, todos do CC.
No caso concreto do pedido de indemnização derivada de prisão preventiva injustificada, a lei consagrou o prazo de um ano para o exercício do respectivo direito pelo seu titular.

Com efeito, são os valores da certeza e da segurança jurídicas que justificam a fixação dos prazos, de modo a que certas situações não se mantenham, por muito tempo, em estado de indefinição, em virtude das naturais exigências do interesse público.

Por outro lado, só existe violação dos direitos fundamentais quando o prazo, por desadequado ou desproporcionado, dificultar, gravemente, o exercício concreto desses direitos, inviabilizando-o ou tornando-o, particularmente, oneroso, uma vez que, em tal caso, estar-se-ia perante uma restrição aos mesmos, e não em face de um simples condicionamento do seu exercício.

Porém, no caso dos autos, nem sequer ao autor era difícil dispor dos elementos necessários para a propositura da presente acção, sendo certo, outrossim, que o prazo de um ano nem sequer se revela curto, de modo a necessitar de uma especial justificação a certeza do mesmo.

Aliás, o princípio da igualdade não proíbe a fixação de regimes de prazos diferenciados, pressupondo, tão-só, o tratamento idêntico das situações que sejam, essencialmente, iguais, mas sem impor uma igualação completa dos prazos para o exercício do direito de acção com efeitos indemnizatórios, designadamente quando estão em causa hipóteses de indemnização que a lei subordinou a pressupostos específicos.

Assim sendo, o prazo de um ano, tendo em conta a simplicidade da apreensão da questão e dos elementos necessários a carrear ao processo, não se revela, desproporciona ou, desadequadamente, exíguo, razão pela qual se não mostra violado o disposto no artigo 18º, nº 3, nem o princípio da igualdade, consagrado pelo artigo 13º, ambos da Constituição da República( TC nº 247/02, de 4-6-2002, DR, IIª Série, de 22-7-2002.).

Pelo exposto, improcedem, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações do apelante.


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CONCLUSÕES:

I - A convicção do julgador sobre os factos forma-se, livremente, com base nos elementos de prova, globalmente, considerados, sem vinculação estrita às conclusões dos exames periciais, se houver elementos de prova que contrariem a factualidade sobre que assentaram tais exames, quer os carreados pela acusação, quer pela defesa, ou, oficiosamente, com subordinação ao princípio do contraditório.
II - O acto de privação injustificada da liberdade, proveniente de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, só por um Juiz pode ser determinado e, consequentemente, só ao Estado pode ser exigida a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, com o consequente dever de indemnizar o lesado pelos danos sofridos.
III - Não estando em causa a injustificação da prisão preventiva, já que, na ocasião, não constava ainda dos autos o relatório da autópsia, que o autor considerou inquinado de erro grosseiro, e não podendo qualquer um dos réus praticar actos que só ao poder judicial competem, inexiste fundamento legal para os condenar no pedido de pagamento da indemnização solicitado pelo autor.
IV – O prazo de um ano para a propositura da acção de indemnização, com fundamento em prisão preventiva injustificada, tendo em conta a simplicidade da apreensão da questão e dos elementos necessários a carrear para o processo, não se revela, desproporcionado ou, desadequadamente, exíguo, não violando a extensão ou o alcance do conteúdo essencial do direito, nem o princípio da igualdade.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar, inteiramente, a douta decisão recorrida.

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Custas pelo autor.

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Notifique.