Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
275/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: ACÇÃO POPULAR CÍVEL
ABUSO DE DIREITO
POÇOS
MINAS
ABERTURA EM PRÉDIO PARTICULAR
EXISTÊNCIA DE FONTE PÚBLICA ABASTECIDA PELAS MESMAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS
Data do Acordão: 12/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SÃO PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 334º; 1344º, Nº 1; 1394º, NºS 1 E 2, E 1396º DO C. CIV. LEI Nº 85/95, DE 31/08.
Sumário: I – No âmbito do direito de propriedade estão contidas as águas subterrâneas, as quais constituem uma parte componente do respectivo prédio enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou por negócio jurídico.

II – Nesse âmbito encontra-se o específico direito conferido ao proprietário de, em termos gerais, abrir minas ou poços no seu prédio e de nele fazer escavações e de, muito especialmente, nele fazer esse tipo de obras (poços ordinários ou artesianos, minas ou escavações) destinadas à captação de águas subterrâneas – artº 1394º, nºs 1 e 2, do C. Civ.

III – No Artº 1396º do C. Civ. está ínsito que as águas subterrâneas que afluem às fontes públicas são necessárias às comunidades locais que delas se servem ou utilizam, isto é, este normativo pressupõe que as referidas águas são necessárias aos usos das populações ou comunidades locais, não bastando que sejam apenas úteis, pois só assim se compreende a razão de ser das restrições impostas ao proprietário que explora águas subterrâneas no seu próprio prédio e ainda que para seu próprio uso.

IV – Para obviar a situações que se nos deparariam como clamorosamente injustas, a nossa lei consagrou a figura do abuso de direito, de que uma das suas manifestações mais evidentes e conhecida é a proibição do conhecido princípio de “venire contra factum proprium” – artº 334º do C. Civ..

V – O instituto do abuso do direito tem aplicação nas acções populares, apesar de nestas acções se visar acautelar direitos de carácter comunitário, já que a titularidade do direito que se exerce ou visa defender através de uma acção judicial não constitui condição sine qua non para o funcionamento desse instituto jurídico.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. O autor, A..., veio instaurar contra os réus, B... e sua mulher C..., acção popular cível, com forma de processo sumário, alegando para o efeito, e em síntese, o seguinte:
No lugar de Germinade, freguesia de Carvalhais, do concelho de S. Pedro do Sul, onde o autor reside, os réus procederam à abertura, no subsolo de um pequeno terreno anexo à sua habitação, de um furo artesiano para captação e exploração de águas subterrâneas.
Furo esse que, todavia, atingiu o veio através do qual era (e é) alimentado um chafariz de água ali existente, desde há muito, para abastecimento público, provocando, desse modo, uma acentuada diminuição do caudal da água que chega ao referido chafariz, colocando-o mesmo em iminente risco de estancar ou secar, causando, com tal, grave prejuízo aos habitantes de Germinade.
Pelo que terminou pedindo a condenação dos RR a encravarem ou obstruírem o aludido furo que efectuaram, por forma a não provocar a diminuição do respectivo caudal daquele chafariz.

2. Na sua contestação os RR, defenderam-se, em síntese, começando por negar a existência de qualquer chafariz público no lugar Germinade que abasteça de água os seus habitantes, sendo que a ‘fonte’ de água existente próximo da casa do A. apenas lançaria, através de um cano de plástico, as águas da chuva que caiem no prédio rústico onde tal “fonte” estaria colocada.
Todavia, e em qualquer circunstância, negaram que a abertura do furo por si levada a efeito tenha provocado qualquer diminuição do caudal de água, pelo que terminaram por pedir a improcedência da acção.

3. No despacho saneador afirmou-se a validade e a regularidade da instância, a que se seguiu a elaboração da selecção da matéria de facto, sem que tivesse sido objecto de qualquer censura.

4. Mais tarde, e após a instrução do processo (que incluiu a realização de uma perícia), teve lugar a realização do julgamento – com a gravação da audiência.

5. Seguiu-se a prolação da sentença, que, a final e com base no instituto do abuso de direito, julgou a acção improcedente, absolvendo os RR do pedido.

6. Não se conformando com tal sentença, o A. dela interpôs recurso, o qual foi recebido como apelação.

7. Nas correspondentes alegações de recurso, o autor concluiu as mesmas nos seguintes termos:
“1ª- Para que se verifique e declare a existência de abuso do direito, primordial se torna declarar o direito que se diz exercido de forma ilegítima.
2ª- A simples faculdade concedida a qualquer cidadão, posto que possuidor de requisitos próprios, para defesa de bem ou serviço destinado ao suprimento de carências do meio social, não constituindo direito integrado no património individual de cada um, não é possível quando exercida da aplicação do artº 334 do C. Civil.
3ª- Actuando em representação e na defesa do bem comum, não se apresenta a defender um direito subjectivo próprio com conteúdo económico ou fim social diferente do que legalmente lhe é destinado.
4ª- O particular não é, com efeito, dono do bem ou serviço público que permanece com o seu destino e finalidade.
5ª- A própria defesa destina-se à realização dessa finalidade.
6ª- Não se mostra abusivo o seu exercício, até porque não exorbita da consideração e respeito pela boa-fé, pelos bons costumes ou fim social de tal faculdade.
7ª- Ao reclamar perante os tribunais a observância do disposto no artº 1396 do C. Civil, não podem os moradores de certa povoação, ainda que representados, incorrerem na aplicação do indicado preceito.
8ª- Porque não afirmam ou reclamam um direito, antes intentam preservar um beneficio que retiram do bem, sem que esse bem possa ser considerado propriedade de um ou inclusivamente de todos. Basta-lhes o uso que defendem, para o fim social dele.
9ª- Não é legítimo extrair da conduta exercida em certo processo concluir pelo abuso do direito, sem que tal presunção se apoie e assente em factos ou razões que do processo fiquem a constar.
10ª- Não há nestes autos razões ou factos concludentes da existência de tal excepção.
11ª- A simples presunção pessoal, ainda que de respeitar, não é, de modo algum, a justificar uma conclusão que tem de reunir confiança, credibilidade e justiça.
12ª- É abusiva a presunção do M. julgador.
Na consequência, a douta sentença que julgou esta causa ofendeu por erro de interpretação e aplicação do disposto no artº 334 do C. Civil.”

8. Contra-alegararam os RR, pugnando pela improcedência do recurso, tendo ainda, à cautela (vg. a titulo subsidiário) e ao abrigo do disposto no artº 684-A do CPC, impugnado a decisão proferida sobre a matéria de facto no que concerne à resposta dada aos quesitos 4º e 5º (defendendo que os mesmos fossem dados totalmente como não provados), levantando ainda a ideia de o A. ser sancionado como litigante de má fé.

9. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II- Fundamentação
A) De facto
Pelo tribunal da 1ª instância foram dados como assentes, por provados, os seguintes factos:
1 – O A. é residente no Lugar de Germinade, freguesia de Carvalhais, concelho de S. Pedro do Sul.
2 – Os Réus são donos de um terreno anexo à sua residência, no Lugar de Germinade, freguesia de Carvalhais, concelho de S. Pedro do Sul, inscrito na matriz sob o artigo 1338.
3 – No ano de 1999 os Réus abriram no subsolo daquele seu terreno um furo artesiano.
4 – Tal furo está licenciado pelos serviços do Ministério do Ambiente.
5 – No Lugar de Germinade existe, pelo menos desde 1928, uma fonte ou chafariz de caudal contínuo, na qual qualquer pessoa ou animal, querendo, pode beber, e que assim tem sido esporadicamente utilizada.
6 - A água que aflui à fonte ou chafariz referido em 5 provém de nascente subterrânea.
7 - A construção da estrutura que serve de fonte foi da iniciativa da Câmara Municipal de S. Pedro do Sul.
8 - Apenas uma captação ininterrupta das águas subterrâneas, através do furo artesiano referido em 3, poderá fazer diminuir o caudal que aflui à fonte referida em 5, à razão de cerca de 4% por cada hora de utilização ininterrupta na habitação e jardim da casa dos Réus, das águas captadas no dito furo artesiano.
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B) De direito
1.Delimitação do objecto do recurso.
1. Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artºs e 684, nº 3, e 690, nº 1, do CPC), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (cfr. nº 2 – finé - do artº 660 do CPC).
Se é certo que o tribunal deve resolver todas que as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (a não ser aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras), todavia, e tal como vem sendo dominantemente entendido, o vocábulo “questões” (referido naquele normativo) não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a derimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
1.1 Ora, compulsando as conclusões da motivação do presente recurso e, neste caso, ainda as próprias contra-alegações dos réus (aqui à luz do disposto no artº 684-A, do CPC), verifica-se que as questões que importa aqui apreciar serão as seguintes:
a) Da existência e aplicação, ou não, ao caso dos autos do instituto de abuso de direito.
b) Da impugnação da decisão da matéria de facto (vg. quesitos 4º e 5º da BI) – e a apreciar apenas, face ao disposto no artº 684-A do CPC, no caso de a resposta à questão anterior ser totalmente negativa, devendo extrair-se daí então, após a sua decisão, as necessárias consequências jurídicas, em termos do destino do mérito da causa.
c) Da litigância de má fé pelo autor.
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2. Quanto à 1ª questão
Do abuso de direito
No seu recurso defende o autor que, ao contrário da conclusão a que se chegou na sentença recorrida, não ocorrem os pressupostos do instituto do abuso de direito e, a existirem, nem tal instituto ser aplicável ao caso dos autos (acção popular).
Vejamos.
É sabido que, como princípio geral, a propriedade sobre imóveis abrange não só o espaço aéreo correspondente à sua superfície, como também o seu subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico (artº 1344, nº 1, do C. Código Civil - diploma ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente um normativo sem a indicação da sua origem).
E nesse direito de propriedade estão, assim, contidas as águas subterrâneas, que constituem uma parte componente do respectivo prédio, enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico.
Direito de propriedade esse que é dotado de garantia constitucional, muito embora, como é sabido, o seu exercício esteja sujeito a limitações legais de vária ordem (cfr. artº 63, nº 1, da CRPort.).
No âmbito desse direito, encontra-se o específico direito conferido ao proprietário de, em termos gerais, abrir minas ou poços no seu prédio e de nele fazer escavações (cfr. artº 1344), e de, muito especialmente, nele fazer esse tipo de obras (poços ordinários ou artesianos, minas ou escavações) destinadas à captação de águas subterrâneas, as quais poderão, inclusive, levar à diminuição do caudal de águas públicas e particulares (cfr. artº 1394, nºs 1 e 2). Todavia, estabelece-se ali uma das limitações a tal direito, ao estatuir-se, no nº 2 do último normativo, que essa diminuição do caudal da água não pode prejudicar o que a esse propósito se encontra disposto no artº 1396.
Estatui o referido artº 1396 que “o proprietário que, ao explorar águas subterrâneas, altere ou faça diminuir as águas de fonte ou reservatório destinado a uso público é obrigado a repor as coisas no estado anterior; não sendo isso possível, deve fornecer, para o mesmo uso, em local apropriado, água equivalente àquela de que o público ficou privado”.
Ora, compulsando a matéria factual apurada, facilmente se conclui que a conduta dos réus se integra na previsão de tal normativo legal.
Na verdade, os réus ao abrirem, no subsolo de um terreno anexo à sua residência, um furo artesiano, provocaram com tal uma diminuição do caudal de águas que aflui, por via de nascente subterrânea, a uma fonte (ou chafariz) que existe no lugar de Germinade, da freguesia de Carvalhais, do Concelho de S. Pedro do Sul, a qual se destina ao uso público. Há assim um nexo causal entre a conduta de captação de água por parte dos réus, levada cabo no seu terreno, e a diminuição do caudal de água que, subterraneamente, aflui à dita fonte.
A questão que, desde logo, se coloca é se, no caso dos autos, tal conduta deve imediata e automaticamente fazer desencadear o mecanismo de reacção previsto na 2ª parte de tal normativo para esse tipo de situações, ou seja, serem os réus condenados, tal como pediu o autor, a encravarem ou obstruírem o aludido furo que efectuaram, ou seja, a taparem-no novamente, de molde a repor a situação existente antes da sua abertura (sendo que no caso, por não se colocar a situação ali configurada, não será de recorrer ao mecanismo subsidiariamente previsto, como último recurso, no final de tal normativo).
Questão que, a nosso ver (e ao contrário da anterior), não se apresenta de resposta fácil, já que, desde logo, passa por saber se, in casu, deve considerar-se como abusivo o exercício daquele direito que o autor pretende fazer valer nesta acção, em termos de fazer desencadear a referida reacção, e mais concretamente ao pretender que seja tapado o dito furo aberto pelos RR.
E com tal entramos no instituto do abuso de direito (ao qual o srº juiz a quo recorreu para julgar improcedente a acção e absolver os RR do pedido e contra a aplicação do qual se insurge o A.).
Teçamos, antes de mais, umas breves considerações sobre tal figura.
Como escreve Baptista Machado (in “RLJ, Ano 119-232”) “dentro da comunidade das pessoas responsáveis (ou imputáveis), a toda a conduta é inerente uma “responsabilidade” – no sentido de “um responder” pelas pretensões de verdade, de rectitude ou de autenticidade inerentes à mensagem que essa conduta transmite...Desta “autovinculação” inerente à nossa conduta comunicativa derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interacção que o próprio direito não pode tutelar. Já que sem a sua observância nem essa ordem de convivência nem o direito seriam possíveis...Do exposto podemos também concluir que o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrém”.
Foi para obviar situações que se nos deparariam como clamorosamente injustas que a nossa lei consagrou o abuso de direito, de que uma das suas manifestações mais evidentes e conhecidas é a proibição do conhecido princípio de venire contra factum proprium, e a que o prof. Antunes Varela entende estar ligado através da fórmula “manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé”, de que fala o artº 334 do Código Civil.
Tal figura jurídica encontra-se, assim, e como é sabido, consagrada no citado normativo legal.
Aí se dispõe que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A concepção legal adoptada, no nosso ordenamento jurídico, de abuso de direito é objectiva. Na verdade, não é necessária a consciência de se atingir com o seu exercício a boa fé, os bons costumes, ou o fim social ou económico do direito conferido, basta que os atinja. Isto não significa, todavia, que ao conceito de abuso de direito sejam alheios de todo, pelo menos em determinadas circunstâncias, factores subjectivos.
Todavia, exige-se, em quaisquer das circunstâncias, que o excesso seja manifesto. Ou seja, os tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. E para isso, isto é, para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na comunidade, sendo que no que respeita, porém, aos limites impostos pelo fim social ou económico do direito em causa haverá que atender aos juízos positivamente consagrados na lei (vidé, por todos, e para mais desenvolvimento, os profs. Pires de Lima e Antunes Varela , in “Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., págs. 296 e ss.”; o prof. Coutinho de Abreu, in “Do Abuso do Direito, Coimbra 1983, págs. 55 e ss” e o prof. Almeida Costa, in “RLJ, Ano 129, pág.61 e ss”).
No fundo, podemos dizer, e citando o prof. Menezes Cordeiro, (in “Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo”, Almedina, 2006, pág. 63”), que o abuso de direito e a boa fé a ele subjacente representam, assim, sempre uma válvula do sistema: permitem corrigir soluções que, de outro modo, se apresentariam contrárias a vectores elementares.
Postas estas considerações, analisemos, agora, mais de perto, o caso em apreço.
Aqui não estão em causa os limites impostos pela boa fé ou os bons costumes, mas poderão já estar os limites impostos pelo fim social (sobretudo este) ou económico do direito que se pretende fazer valer.
Senão vejamos.
Como escrevem os profs. Pires de Lima e A. Varela (in “Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed. revista, Coimbra Editora, pág. 330”) a restrição imposta, pelo acima citado artº 1396, ao proprietário não constitui uma servidão (por não se encontrar adstrita às necessidades de qualquer prédio), mas uma verdadeira limitação ao direito de propriedade, em prol do uso público que se faça das águas da fonte ou reservatório – seja para abastecimento de povoações, seja para lavagem de roupas, seja para bebedouro de animais, etc. -, e sem que tal uso esteja dependente de qualquer prazo de duração. No mesmo sentido, vidé ainda Tavarela Lobo, in “Manual do Direito de Águas, Vol. II, Coimbra Editora, págs. 89/91”, e onde se faz uma maior concretização do conceito de uso público de águas (e que aqui nos dispensamos de desenvolver por não estar em causa).
Porém, está ínsito a tal normativo que as águas, subterrâneas, que afluem às fontes públicas são necessárias às comunidades locais que delas se servem ou utilizam. Ou seja, tal normativo pressupõe que a referidas águas são necessárias aos usos das populações ou comunidades locais, não bastando que sejam apenas úteis, pois só assim se compreende a razão de ser das restrições impostas ao proprietário que explora águas subterrâneas no seu próprio prédio e ainda que para o seu próprio uso.
Ora, tendo presente tal, reportando-nos ao caso sub júdice, verifica-se, face aos factos dados como assentes (e que não foram objecto de impugnação por parte do A./apelante), o seguinte:
Que estamos na presença de uma fonte cuja água que ali aflui se destina, fundamentalmente, à dessedentação de pessoas e animais do lugar de Germinade; que se trata de uma fonte de caudal contínuo e que só esporadicamente é utilizada para aquele fim (cfr. nº 5).
Da conjugação desses factos retira-se, desde logo, a conclusão que a esmagadora maioria daquela água que aflui à referida fonte, e que depois dela brota, “se perde”, já que ficará abandonada sem que lhe seja dado um fim social ou economicamente útil (pelo menos dos factos dados como assentes não resulta a prova do contrário, desconhecendo-se, pois, se algum fim depois lhe é dado).
Por outro lado, resulta ainda que mesmo numa situação de plena ou de máxima utilização daquelas águas subterrâneas pelos RR, através do referido furo artesiano, traduzida numa ininterrupta captação das mesmas, tal apenas poderá fazer diminuir o caudal que aflui à dita fonte à razão de cerca de 4% por cada hora dessa utilização na habitação e jardim da casa daqueles (cfr. nº 8). Situação essa que - tal como decorre da própria fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto e bem assim do próprio relatório pericial junto aos autos e que nessa parte foi preponderante para a respectiva resposta que originou tal facto (tal como ali se reconhece) - mesmo assim ocorre na época do ano (o período estival ou de Verão) em que, como notoriamente é sabido, mais baixo ficam os níveis friáticos, ou seja, em que mais se nota a escassez daquele precioso líquido aqui em causa, e que em termos concretos, e segundo os cálculos ali efectuados, estaremos a falar de uma diminuição de cerca 61 litros de água por hora, num total de 1530 litros que então são brotados da fonte em tal época do ano e quando não ocorre aquela plena captação e utilização das referidas águas subterrâneas pelos RR (= 20 litros x 47 segundos : 60 segundos x 60 minutos).
Diminuição de caudal esse que se nos afigura, assim, só por si pouco significativo, mas muito mais ainda se tivermos também em consideração, por um lado, a esporádica utilização que é feita de tal água, por outro, que a mesma apenas se destina dessedentação de pessoas e animais do lugar de Germinade (onde já existe, como se extrai da própria fundamentação daquela decisão da matéria de facto, rede pública de abastecimento de água canalizada e através da qual, ou de poços próprios, a maioria dos seus moradores são servidos), e, por outro ainda, que por mais gastadores que sejam os RR decorre das regras da experiência da vida que, atento o destino acima assinalado que dão às referidas águas, ficarão sempre muito distantes daqueles quantidades que resultam daquela experiência feita à base de uma utilização ininterrupta dessas águas subterrâneas, a qual, mesmo a verificar-se, só ocorreria durante um período bastante limitado de tempo diário.
E nesses termos, e por tudo isso, ter-se-á de considerar, tal como se concluiu na sentença recorrida, que a repercussão na diminuição sofrida no caudal da água que aflui à dita fonte ou chafariz, por força das obras de captação de água subterrânea levadas a cabo pelos RR, se apresenta ou configura quasi como irrelevante, em nada afectando as reais necessidades dos moradores do lugar de Germinade. Será que foi devido a tal que a presente acção não foi patrocinada pelos lídimos representantes dos moradores desse lugar (vg. pela junta de freguesia)?
Desse modo, e considerando, por um lado, que as obras de exploração e captação de águas subterrâneas levadas a efeito pelos RR (cujo furo foi, aliás, licenciado pelos serviços do Ministério do Ambiente – cfr. nº 4 dos factos assentes) foram feitas no seu prédio e que se destinam aos seus gastos domésticos (ou também ao seu uso agrário, para quem, numa visão mais rígida e apertada, entenda que a irrigação de simples jardins não se inclui naquele conceito – vidé, a propósito, Tavarela Lobo, “Ob. cit. pág. 29”), e, por outro, que, caso não existisse tal diminuição do caudal, as águas ora em falta acabariam sempre abandonadas ou perdidas (ou “deitadas fora”, na expressão feliz da sentença recorrida), caso fossem novamente “canalizadas” para a dita fonte, somos, assim, levados a concluir que o direito que nesta acção se pretende fazer valer (no sentido de os RR serem condenados a encravarem ou obstruírem o aludido furo que efectuaram, ou seja, a taparem-no novamente, de molde a repor a situação existente antes da sua abertura) é abusivo, por exceder, no caso, manifestamente os limites impostos pelo seu fim social, e nessa medida é ilegítimo.
A questão que ora se coloca (e que foi posta pelo apelante) é se o instituto do abuso de direito é aplicável às acções populares, ou seja, se funciona nesse tipo de acções?
Defende o autor que não, por não ser titular do direito que com esta acção se visa proteger ou salvaguardar.
Vejamos.
Perfunctoriamente (dado que no caso a caracterização da natureza desse tipo de acção se mostra pacífica) diremos tão só que a acção popular vem sendo considerada como uma das mais importantes conquistas processuais para a defesa de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, e que tem por objecto, antes de mais (em embora não se esgote neles), a defesa dos chamados interesses difusos, enquanto interesses de toda uma comunidade, que tanto pode ser de âmbito nacional, como regional ou mesmo local. Interesses esses que são da mais diversa índole, e que têm, nomeadamente, a ver com a defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do consumo de bens e serviços, do património cultural e do domínio público.
Acção essa que, entre nós, têm a sua consagração no artº 52, nº 3, da CRPort., tendo, em termos gerais, obtido a sua regulamentação através da Lei 83/95 de 31/8.
Nesta última lei se regula a acção, quer no âmbito da jurisdição administrativa (participação popular em procedimentos administrativos ou contencioso administrativo), quer no âmbito da jurisdição (judicial) comum, visando a prevenção, a cessação ou perseguição judicial das infracções previstas naquele citado normativo da nossa Carta Fundamental.
O âmbito daqueles interesses difusos que com tal acção se visam tutelar aparece ali, embora numa tendência que se pretende globalizante, enumerado de forma meramente exemplificativa, e de que é exemplo disso a expressão adverbial “designadamente” empregue no nº 2 do artº 1 daquela lei.
Grosso modo, podemos ainda dizer que muito embora a lei atribua legitimidade processual a qualquer pessoa singular (para além das instituições ou entidades ainda referidas no actual artº 26- A do CPC) – desde que se encontre no gozo dos seus direitos civis e políticos - para intentar tal acção popular, todavia, os direitos que com ela se visam tutelar deverão ter um carácter comunitário, ou seja, um valor pluri-subjectivo e os interesses devem assumir um cunho-meta individual. Na verdade, correspondendo os interesses difusos a interesses juridicamente reconhecidos e tutelados, cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma comunidade ou grupo, não são, assim, os mesmos susceptíveis de apropriação individual por qualquer um dos seus membros. Vídé, sobre a Acção Popular, para mais e melhor desenvolvimento, que o caso aqui nos dispensa, os profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Anotada, 3ª ed., pág. 281 e ss”; Nuno Sérgio Antunes, in “O Direito de Acção Popular no Contencioso Administrativo Português, Lex. 1997, págs. 27 e ss”; Luiz Lingnau Silveira, PGA, in “BMJ 448, págs. 11 a 35”; Robin de Andrade, in “A Acção Popular no Direito Administrativo Português, pág. 4 e ss” e Ac. do STJ. de 20/10/2005, in “CJ, Acs. do STJ, Ano XIII, T3, pág. 82 e ss”.
Posto isto, e debruçando-nos mais de perto sobre o caso em apreço, diremos que é indiscutível estarmos perante uma acção popular cível.
É também indiscutível que o autor, para além de ter legitimidade para instaurar a presente acção, não se pode apropriar individualmente do bem ou direito acima referido por não ser seu titular exclusivo, já que o mesmo pertence globalmente, ou seja, como um todo, a toda a comunidade daquele lugar de Germinade (e da qual ele faz parte).
Mas será que isso é impeditivo de aqui poder funcionar o instituto de abuso de direito?
Entendemos que não, e pelas seguintes razões:
A tal propósito passaremos a citar o prof. Menezes Cordeiro (in “Ob. cit. págs 33, 76 e 77”).
Não há no abuso de direito ...necessariamente um direito subjectivo. (...). Abuso do direito é, como temos repetido, uma mera designação tradicional, para o que se poderia dizer “exercício disfuncional de posições jurídicas”. Por isso, ele pode reportar-se ao exercício de quaisquer situações e não, apenas, ao de direitos subjectivos. De facto e em boa hora, cada vez menos surgem afirmações de inaplicabilidade do regime do abuso de direito..por não haver um direito subjectivo. Esta figura foi, todavia, paradigmática na elaboração do instituto: donde o discurso sempre usado. (...) O abuso do direito, nas suas múltiplas manifestações, é um instituto puramente objectivo. Quer isto dizer que ele não depende de culpa do agente nem, sequer, de qualquer específico elemento subjectivo”. (sublinhado nosso)
Resulta pois do exposto, que a titularidade do direito que se exerce ou visa defender através de uma acção judicial não constitui condição sine qua non para o funcionamento do instituto do direito. Ou seja, e ao contrário do defendido por uma tradicional e ultrapassada corrente de opinião, a aplicabilidade do instituto de abuso de direito não pressupõe necessariamente a titularidade (directa) do direito daquele que o exerce ou visa exercer.
É o que acontece precisamente, no caso sub júdice, com o autor, pois, como vimos, não é titular (directo) do bem ou do direito que existe e que com esta acção visou salvaguardar, mas num exercício que se revelou abusivo.
Alias, estando na génese ou razão da criação desse instituto o funcionar como uma válbula de correcção de situações que moralmente se revelariam injustas com a “aplicação cega” do direito, entendimento contrário ao agora perfilhado conduziria a que as acções populares funcionassem sempre como a única “coutada” cuja entrada estava vedada ao referido instituto – possibilitando, assim, a criação de soluções que se revelassem moral e eticamente injustas à luz dos mais elementares princípios gerais do direito -, sendo certo que nada existe na lei que expressa e especialmente afaste esse instituto de tal tipo de acções.
Por outro lado, e mesmo que assim não se entendesse, como vêm defendendo as correntes mais hodiernas, o abuso de direito é aplicável não só ao exercício do direito susbstantivo, como também ao exercício do direito de acção judicial (cfr. o prof. Menezes Cordeiro, in “Ob. cit. págs 85 e ss).
Abuso do direito de acção esse que, assim, atentas as razões acima explanadas, sempre então teria de se considerar ocorrer no caso presente.
Aliás, e voltando um pouco atrás, não deixa de ser curioso que a citada Lei 85/95, que regulamenta a acção popular, permita a qualquer cidadão que a ela tenha recorrido não só dela desistir, como inclusivé nela transigir (não obstante, como se viu, não ser titular (directo) do direito que através dela visa exercer ou salvaguardar, sendo certo ainda que as sentenças proferidas em tais acções, após o seu trânsito, têm eficácia geral, mesmo, em relação àqueles que, podendo fazê-lo, nelas não intervieram, e uma vez verificados os demais requisitos legais previstos (cfr. artºs 16, nº 3, e 19, nº 1, da citada Lei).
Assim, pelo exposto, ter-se-á de julgar improcedente o recurso, e confirmar a sentença recorrida.
E desse modo, fica, assim, prejudicado o conhecimento da 2ª questão acima elencada (cfr. artº 684-A, nºs 1 e 2, e 660, nº 2 – 2ª parte –, do CPC).
Quanto à 3ª questão, e relacionada com a hipótese colocada pelos réus de o autor estar a litigar com má fé, e como tal ser condenado, diremos, tão somente, o seguinte:
É sabido que, como regra, o instituto do abuso de direito e da litigância de má fe´ não coincidem e nem se confundem, muito embora possam ter áreas de confluência, nomeadamente ao nível das consequências, sendo que nessa altura o último, como instituto especial, prevalece sobre aquele primeiro, que é um instituto geral (vidé, o prof. Menezes Cordeiro, in “Ob. cit. pág. 93”).
O instituto da má fé encontra-se contemplado e definido no artº 456 do CPC, aqui aplicável neste tipo de acções por força do estatuído no artº 20, nº 4, da citada Lei 85/95.
Enquanto as als. a) e b) do citado normativo legal se reportam à chamada má fé material/substancial (directa ou indirecta), já as restantes alíneas têm a ver com a má fé processual/instrumental.
Resulta assim, desde logo, de tal normativo legal, que a litigância de má fé pressupõe, uma actuação dolosa ou com negligência grave - em termos da intervenção na lide -, consubstanciada, objectivamente, na ocorrência de alguma das situações, atrás transcritas, previstas nas diversas alíneas do seu nº 2.
Por outro lado, afigura-se-nos oportuno aqui lembrar o acordão do STJ de 16/1/2002 (in “Rec. Agr. nº 3520/01, 4ª sec., Sumários, pág. 57”) ao defender que “a sustentação de teses controvertidas, bem como a interpretação de regras de direito, ainda que especiosamente feitas, pode consubstanciar uma lide temerária ou ousada, mas não integra a litigância de má fé, pois que tal não basta para que se presuma uma actuação dolosa ou com culpa grave”. (Vidé ainda, em sentido idêntico, entre outros, Ac. do STJ de 10/01/2002, in “Rec. Rev. nº 3805/01, 7ª sec. , Sumários, 1/2002” e “Ac. RP de 1/10/92, in “CJ Ano XVII, T4-242”).
Aplicando, agora, tais conceitos e ensinamentos ao caso sub júdice, é manifesto que os elementos que nos fornecem os autos não permitem concluir que o autor tenha actuado in casu com má fé, quer na modalidade má fé material, quer na modalidade de má fé instrumental.
O direito que o autor veio fazer valer a esta acção existia, só que não foi reconhecido devido ao facto de se ter considerado que in casu o seu exercício se apresentava abusivo.
Por outro lado, o facto de as teses (no plano jurídico) por si defendidas não terem obtido provimento, tal não basta para que se presuma uma actuação dolosa ou com culpa grave da sua parte.
Enfim, não se vislumbram razões para condenar o autor como litigante de má fé.
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença da 1ª instância.
Custas pelo autor/apelante, mas cujo montante se fixa em um décimo daquelas que normalmente seriam devidas (cfr. artº 446 do CPC e artº 20, nº 3, da citada Lei nº 85/95).
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Após os autos baixarem à 1ª instância, deverá providenciar-se pelo cumprimento do disposto no artº 19, nº 2, da citada Lei nº 85/95.