Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
509/21.2T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FEITAS NETO
Descritores: INTERESSE EM AGIR
PROMITENTE COMPRADOR
POSSE
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ DO TRIBUNAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1251.º, 1253.º, 1263.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 2.º, N.º 2, 130.º, 576.º, N.º 1, 577.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I) A falta de interesse em agir (ou de interesse processual) pressupõe a ausência de conflito, real ou potencial, com a consequente desnecessidade da inerente tutela judicial da posição jurídica que é sustentada pelo requerente/autor nesse conflito (real ou meramente potencial).

II) Para que o promitente comprador adquira posse sobre o bem prometido vender torna-se indispensável que, na sequência da celebração do contrato promessa e da tradição da coisa que dele é objecto, esse promitente passe a actuar como possuidor, com o corpus e animus que identificam tal exercício, o que pode resultar de acordo, expresso ou tácito, ou de uma inversão do título de posse.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

P… SILVA intentou no Juízo Local Cível da Covilhã, Comarca de Castelo Branco, um procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra A… e M…, alegando em síntese:

É dono e legítimo possuidor de determinado prédio urbano que identifica, composto de rés-do-chão e dois andares, sito na Rua …, União de Freguesias…, …; é ainda parte integrante do mesmo um logradouro com a área aproximada de 76,50 m2, situado a sul, na confinância com a Rua …; por seu turno. os Requeridos são donos de outro prédio urbano, sito na Avenida …., da mesma União de Freguesias, prédio este que confina a nascente com o prédio do Requerente; o logradouro está delimitado a sul, junto à Rua …, por um muro com pilares, uma porta em ferro para acesso a pé e um portão de duas folhas, também em ferro, para acesso de veículos; há mais de 20 anos que, por si e antepossuidores, o Requerente vem exercendo actos de posse sobre tal prédio, de forma pública, pacífica e ininterrupta, na convicção de que é seu legítimo dono; em Agosto de 2020, quando veio a Portugal em gozo de férias, o Requerente deparou-se com o aludido portão com uma fechadura, fechado à chave, e a caixa do correio que aí existia mudada e soldada na porta de acesso a pé; em Março de 2021 os Requeridos procederam à pintura da porta e do portão, dos muros, gradeamento e pilares, e, em Abril do mesmo ano, à colocação de um cadeado no portão; sente-se o Requerente com medo no caso de tentar obstaculizar os actos turbadores da sua posse.

Citados, os Requeridos deduziram oposição, defendendo-se por excepção, arguindo a ilegitimidade e falta de interesse em agir do Requerente, e, bem assim, a caducidade da providência pelo decurso do prazo de um ano subsequente à turbação e ao esbulho. Por impugnação, alegaram que o logradouro em causa é comum, na proporção de metade para Requerente e Requeridos, tendo sido estes que instalaram os esgotos e electricidade e procederam à respectiva pavimentação, ficando então acordado que o logradouro pertencia exclusivamente aos Requeridos, e que o Requerente teria apenas o acesso a pé através do mesmo.

Terminam com a procedência da oposição e a improcedência do procedimento.

A final foi prolatada decisão que restituiu provisoriamente ao Requerente a composse do logradouro sul identificado no ponto 1 dos factos provados, que confronta com a Rua …, devendo em 48 horas os Requeridos remover a fechadura e o cadeado que colocaram no portão por forma a permitir igualmente o estacionamento e trânsito de veículos do Requerente ou pessoas da sua confiança; mais devendo os Requeridos abster-se de impedir e/ou perturbar o estacionamento ou trânsito de veículos do Requerente ou pessoas da sua confiança.

Inconformados, deste veredicto recorreram os Requeridos, recurso admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida, sem qualquer espécie de impugnação:

1. Por escritura pública de compra e venda outorgada a 21.1.1998 no Cartório Notarial da Covilhã, o requerendo, no estado de solteiro, comprou o prédio urbano para habitação composto de rés do chão com duas divisões, casa de banho e despensa, 1.º andar com três divisões assoalhadas, cozinha e casa de banho, 2.º andar com duas divisões e casa de banho, com logradouro de 76,50m2, sita na rua de …, n. º 8, União das freguesias de …, concelho de …, inscrita na matriz sob o art. 4719.º e descrito na Conservatória do registo predial da … com o n.º 1111.

2. O prédio mencionado em 1) está inscrito na Conservatória do Registo Predial da … a favor do requerente pela Ap. 57 de 1997.12.02.

3. Na escritura aludida em 1. consta que o prédio identificado no art. 1.º tem “a superfície coberta de cento e seis vírgula cinco metros quadrados e logradouro de setenta e seis metros vírgula cinco metros quadrados, sito na Avenida … contígua à Travessa … (……)”.

4. O requerente casou-se no dia 22 de fevereiro 2014 no regime da separação de bens, embora já vivesse em união de facto com a esposa desde o ano de 2004.

5. Os requeridos são donos e legítimos possuidores do prédio urbano, onde funciona o Hotel …, sito na Avenida …., União das freguesias …., concelho de … inscrita na matriz sob o art. 4989.º e descrita a favor do requeridos na Conservatória do Registo Predial de … com o n. º 1100.

6. O prédio urbano identificado no ponto 1 e 5 constituíam um conjunto predial urbano, correspondente a uma pensão (pensão …, hoje hotel …, hoje propriedade dos requeridos) e um prédio urbano de rés do chão (hoje casa de rés do chão, 1.º e 2.º andar do requerente) inscritos na matriz sob os artigos 339 e 1231 respetivamente e descrito na Conservatória do Registo Predial da …com o n. º 160.

7. Tal conjunto predial tinha a seguinte composição, situação, confrontações e área: Prédio urbano, sito na Avenida … contígua à Travessa …, que confronta de norte com …, sul com rua, nascente com rua e … e poente com Jardim de …, composto por edifício de rés do chão com 30 m2 e edifício de rés do chão, primeiro andar, águas furtadas e sótão, com a área coberta de 200 m2 e logradouro com 100 m2.

8. Em 1986, os então proprietários deste conjunto predial, AJ… e CG…, pretenderam realizar obras no prédio urbano identificado no ponto 1.

9. Para tanto apresentaram um processo de licenciamento na Câmara Municipal da …, a que foi atribuído o n. º 483/86.

10. Por escritura de justificação outorgada no dia 18 de julho de 1997 no Cartório Notarial de …, AJ… e mulher CG…, procederam à retificação da área do aludido conjunto predial onde declararam “Que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, de um prédio urbano sito na Avenida da …, contigua à Travessa …, na freguesia da …, composto por edifício de rés do chão com logradouro, com a área coberta de cento e seis metros quadrados e meio e descoberta de setenta e seis metros quadrados e meio.” (…) “Que adquiriram este prédio por compra que fizeram em mil novecentos e oitenta e seis a JM… e esposa MM… (….). Que da referida escritura e bem assim da descrição predial consta apenas a área de trinta metros quadrados relativa ao primeiro edifício sem logradouro ( …) o que, com certeza se deve a erro de medição, uma vez que o prédio sempre teve a mesma implantação e configuração com as áreas constantes da identificação supra, não tendo qualquer alteração de confrontações que aumentassem ou diminuíssem a sua área. Que não obstante o lapso do título quanto às áreas, sempre se considerou, por todos os sujeitos contratuais que o mesmo prédio teria as áreas que são referidas como corretas e não as que constam do título de aquisição e do registo predial” 11. Com fundamento na referida escritura, através da apresentação n. º 29 de 05- 09-97, AJ… e CG…, requereram a desanexação do prédio urbano identificado no ponto 1 (hoje propriedade do requerente) relativamente ao prédio urbano propriedade dos requeridos (descrito com o n. º 1100), na Conservatória do Registo Predial da …

12. Para tanto, declararam complementarmente ao seu requerimento o seguinte: “Declara-se, complementarmente, que o edifício de rés do chão, inscrito na matriz sob o artigo 339, tem a superfície coberta de 106, 50 m2 e o logradouro de 76, 50 m2 e que o edifício de rés do chão, 1.º andar, águas furtadas e sótão, inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo 1231, tem a superfície de 216 m2 e o logradouro de 457, 7 m2.”

13. Em consequência da referida desanexação, o prédio urbano do requerente passou a ter a descrição com o n. º 1111 e a Pensão … (hoje propriedade dos requeridos), continuou com a descrição n. º 1100.

14. Em 21.1.1998 o requerente comprou a AJ…  e mulher CG… o prédio aludido em 1. constando na referida escritura que o prédio urbano tinha a superfície coberta de 106, 50 m2 e logradouro de 76, 50 m2, sito na Avenida da … contígua à Travessa …, atualmente Rua de ….

15. Por sua vez, no mesmo dia e no mesmo cartório, os requeridos compraram o prédio urbano identificado no ponto 5.º.

16. Em frente à fachada principal do prédio urbano identificado em 1 existe um logradouro com a área aproximada de 76, 50 m2 situado a sul, e que confina com a rua ….

17. Logradouro que constitui o único acesso a pé e com veículos automóveis até à casa do requerente.

18. O logradouro encontra-se delimitado a sul (junto à rua …) por muro, pilares, grades, porta (para acesso a pé) com cerca de 1, 20 de largura e um portão (para acesso com veículos automóveis) com duas portas e cerca de 3 metros de largura, em ferro.

19. A norte, o logradouro encontra-se delimitado pelo prédio urbano identificado no ponto 1.º; A poente pelo prédio urbano correspondente ao hotel …, propriedade dos requeridos; E a nascente por casa particular de rés do chão e 1.º andar. 20. No subsolo do aludido logradouro sul encontra-se implantada a conduta para escoamento das águas pluviais do telhado da casa do requerente, e as condutas para alimentação de água e escoamento de águas residuais da casa do requerente aludida em 1, encontrando-se no pavimento caixas de acesso às mesmas.

21. O contador da água situa-se no logradouro, dentro de um pequeno anexo em ferro, tendo sido o requerente a pagar a respetiva ligação da água.

22. Existe uma torneira na fachada, ao nível do rés do chão da casa do requerente, que deita direta e imediatamente para o logradouro e onde se encontra ligado um tubo que permanece sobre o logradouro.

23. Quando o requerente comprou a casa e até agosto de 2020 (data em que os requeridos retiraram a caixa), a caixa de correio da sua casa encontrava-se acoplada no portão que permite o acesso com veículos ao logradouro.

24. O interruptor da campainha da casa do requerente situa-se do lado esquerdo da porta de entrada a pé para o logradouro.

25. As escadas de acesso ao 1.º andar da casa do requerente foram construídas no logradouro sul.

26. A varanda de acesso ao 1.ª andar, as três janelas e três portas da fachada principal da casa deitam direta e imediatamente para o logradouro.

27. O requerente encontra-se a residir e trabalhar em França desde 1967, vindo habitualmente a Portugal apenas durante 3 semanas no mês de agosto.

28. Há mais de 30 anos que o requerente e antepossuidores do prédio urbano identificado no art. 1.º, fazem uso do mesmo, designadamente para habitação e utilizam o respetivo logradouro situado a norte e sul.

29. Desde 1998 o requerente cuida e mantém o aludido logradouro situado a sul, cuidando o canteiro de rosas implantado no logradouro junto às escadas de acesso ao 1.º andar, oferecido pelos requeridos, sendo a mulher do requerente quem sempre plantou e cuidou das flores nesses plantadas.

30. Ali vivendo, dormindo, confecionando refeições, criando e educando os seus filhos, sempre que vêm passar férias a Portugal e fazendo obras de manutenção e melhoramento. 31. Sempre que vinham a Portugal, o requerente, seus amigos e familiares estacionavam os seus veículos automóveis no logradouro sul, entrando para o efeito com os seus veículos pelo portão do logradouro.

32. Nos meses de agosto, o requerente: a) Instalava uma pequena piscina insuflável no logradouro sul para diversão da sua filha; b) Colocava mesas e cadeiras no logradouro sul tomarem refeições e oferecer lanches aos seus amigos; c) Lavava o seu carro no logradouro sul; d) lavavam os tapetes para limpar os pés colocados junto à escada de acesso ao 1.º andar e à porta de entrada para o rés do chão.

33. É o requerente e sua mulher que limpam o pavimento em pedra do logradouro sempre que vêm a Portugal, designadamente varrendo e lavando o mesmo, utilizando a torneira de água aludida em 13.

34. Em ano anterior a 2003, os requeridos executaram obras de requalificação do hotel. 35. Sabendo desse facto, e no sentido de aproveitarem a presença de trabalhadores da construção civil no local, o requerente solicitou então aos requeridos (sua irmã e cunhado) que mandassem pavimentar o logradouro, revestir o muro que delimita a nascente o logradouro sul e as escadas de acesso ao 1.º andar, bem como a parede onde se encontra hoje a roseira, com pedra de granito serrada.

36. Após uma inundação em casa do requerente, este mandou abrir duas valas e deixar um acesso com tampas metálicas às diversas condutas de águas pluviais, residuais e para consumo doméstico.

37. Em março de 2021, o requerente mandou lavar com jato de água o pavimento do logradouro sul, lavagem a que os requeridos e seus filhos assistiram, não tendo manifestado qualquer oposição por esse facto.

38. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o requerente mandou depositar diversos móveis para venda no logradouro e na presença dos requeridos, sem que estes tenham manifestado qualquer oposição.

39. Todos aos aludidos atos foram exercidos desde há mais de 20 anos, publicamente, de forma pacifica, sem oposição de ninguém, de boa fé, e ininterruptamente na convicção de que possui o referido prédio e seu logradouro sul na qualidade de proprietário.

40. No mês de agosto de 2020, os requeridos colocaram uma fechadura e fecharam à chave o portão para acesso com veículos automóveis ao logradouro.

41. Até então, o portão nunca tinha tido fechadura, podendo ser aberto apenas com uma alavanca.

42. O requerente, quando chegou a Portugal, em Agosto desse ano, para passar férias, viu-se impedido pelos requeridos de aceder ao seu logradouro com veículos automóveis, impedimento que se mantém até à presente data, não tendo entregue a chave do portão ao requerente, passando os requeridos a estacionar, contra a vontade do requerente, o veículo automóvel com a matrícula … e outros no local.

43. Também no mês de agosto de 2020, os requeridos retiraram a caixa de correio do requerente fixada no portão que permite o acesso a veículos e soldaram a mesma na porta de acesso a pé.

44. No mesmo mês os requeridos recusaram-se a entregar as chaves da casa do requerente aludido em 1. o que obrigou este a mudar as fechaduras da sua casa.

45. Em Março de 2021, sem autorização dos requeridos, os requeridos pintaram: a) o portão de acesso ao logradouro com veículos, as grades e o anexo onde se encontra o contador da água da casa do requerente; Os muros e pilares onde estão fixadas as grades e portão de acesso com veículos; c) O topo desses pilares; d) Os três vasos propriedade do requerente.

46. Antes da factualidade aludida no ponto anterior a portão de acesso com veículos, as grades e contador da água eram de cor castanha.

47. Em data não concretamente apurada do mês de abril de 2021 os requeridos colocaram um cadeado no portão de acesso com veículos ao logradouro, não entregando chaves ao requerente.

48. O requerente é irmão da requerida mulher e cunhado do requerido marido. 49. Eram os requeridos que tomavam conta da casa identificada no ponto 1 na sua ausência, tendo a chave da sua casa e chegaram a arrendar quartos a estudantes da U….

50. Sempre que o requerente vinha passar férias a sua casa com a família no mês de agosto, quer requerente quer requeridos utilizavam o logradouro, entrando a pé pelo mesmo e estacionando veículos.

51. Por razões pessoais as relações de amizade entre o requerente e sua irmã, cunhado e sobrinhos foi-se deteriorando.

52. Motivo pelo qual, em 2019, o requerente resolveu colocar à venda o prédio urbano aludido em 1.

53. Tendo chegado a propor a compra à sua irmã e cunhado, aqui requeridos, que não mostraram interesse na sua aquisição.

54. A partir do momento em que o requerente colocou a casa à venda, os requeridos passaram a incomodar os agentes imobiliários e potenciais compradores que visitavam a casa.

55. Por contrato promessa de compra e venda celebrado no dia 01 de fevereiro de 2021, o requerente prometeu vender o imóvel identificado no ponto 1.

56. O promitente comprador tomou imediata posse do 1.º e 2.º andar do imóvel, conforme clausula sexta do contrato promessa.

57. Em consequência, o requerente obrigou-se a deixar devoluto o 1.º e 2.º andar, por forma a permitir que o promitente comprador possa arrendar os respetivos quartos a estudantes.

58. O requerente teve assim necessidade de retirar os móveis e objetos situados no 1.º andar e sótão para o rés do chão, tendo o estacionamento dos veículos dos requeridos dificultado o transporte dos móveis e objetos.

59. O promitente comprador comprou móveis para o 1.º andar. E devido ao fecho do portão à chave com cadeado, este viu-se impedido de entrar com veículos no logradouro para descarregar os móveis.

60. A Rua …, contigua ao logradouro, é uma rua de sentido único, o que obriga constantemente o requerente e promitente comprador a remover o veículo que transporta os móveis sempre que pretendem fazer cargas ou descargas, quando um veículo pretende transitar na referida rua.

61. O requerente sente medo de eventuais represálias por parte dos requeridos se procurar impedir os requeridos das ações supra descritas.

62. Os requeridos e seus filhos, num tom intimidatório e persistente, afirmam perante o promitente comprador e outras pessoas que têm realizados trabalhos na casa, que o logradouro lhes pertence.

63. Queixando-se sempre que o requerente manda executar trabalhos no logradouro, que lhe estão a sujar a casa e os carros que nele estacionam, desincentivando potenciais compradores a comprar a casa.

64. Tirando fotografias às pessoas que vão à casa e estão no logradouro, sem o seu consentimento.

65. Estão armazenados no rés do chão diversos móveis, de grande dimensões e peso, que se situavam no 1.º andar e sótão, móveis que se encontram à venda e alguma já vendidos, sendo que a impossibilidade de acesso ao logradouro impede a retirada de tais móveis.

66. O promitente comprador, por sua vez, pretende realizar obras de melhoramento ao nível do rés do chão, assim que o mesmo estiver desocupado com os móveis que ali se encontram para venda, necessitando de descarregar materiais de construção no logradouro.

67. Em dia que já não é possível determinar do mês de abril, os requeridos guardaram no interior do rés do chão do seu prédio urbano, vedações metálicas.

68. Em caso de incêndio na casa de habitação do requerente, ficam os bombeiros impossibilitados de aceder ao logradouro para melhor combater o mesmo.

69. Com o fecho do acesso a veículos ao logradouro pelos requeridos, quer os veículos dos bombeiros voluntários, quer o veículo de primeiros socorros, encontram-se impedidos de chegar ao logradouro para operações de socorro.

70. Em 09/08/1996 os Requerente e Requeridos na qualidade de promitentes compradores outorgaram contrato promessa de compra e venda com o Sr.  AJ… e mulher, no qual prometeram comprar os prédios do Requerente e Requeridos id. a 1. E 5 dos factos provados.

71. Da cláusula sexta do aludido contrato consta o seguinte: “O primeiro outorgante obriga-se a discriminar o rendimento do prédio que é objecto de negociação, no sentido de formação de dois prédios ou de duas fracções distintas com a seguinte formação e destinação: a) A parte que é constituída pela moradia inacabada, logradouro de 33,5 m2 e a quota de metade no logradouro comum será transmitida ao outorgante P… b) A parte composta pelo edifício da pensão, logradouro desta com a área de 414.70 m2 e a quota de metade no logradouro comum será transmitida ao outorgante A….”

72. Ao Requerente foi vendido um logradouro com a área de 33,50 m2 situado atrás do seu prédio, e aos Requerente e Requeridos foi vendido, em comum e partes iguais, o logradouro comum situado à frente da moradia do requerente e contiguo com o prédio dos Requeridos.

73. Os requeridos fizeram obras numa das caixas de esgoto situada no logradouro sul.

74. Os requeridos fazem as cargas e descargas semanais de bens que transacionam o seu estabelecimento comercial de café e hotelaria para o armazém situado ao nível do logradouro, pelo logradouro em causa.

75. Com entrada de carros ou carrinhas de distribuição no aludido logradouro pela rua de São Salvador.

76. O armazém já ali existe pelo menos desde a data da construção do edifício, sendo que dessa parte do imóvel dos requeridos deitam duas portas e uma janela para o logradouro. 77. Atualmente, no armazém, os requeridos têm também materiais de construção de uma obra que têm em curso nas proximidades do Hotel.

78. Em 2006, os requeridos ligaram o saneamento do Hotel ao serviço de saneamento público.

                                                          

                                                                       *

A apelação.

Nas conclusões com que encerram a respectiva alegação, os Requeridos/apelantes levantam as seguintes questões[1]:

Falta de interesse em agir do Requerente;

Ilegitimidade do Requerente;

Caducidade da providência.

Condenação autónoma em custas pelo incidente relativo a documentos juntos pelo Requerente.

O Requerente contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido.

Apreciando.

Sobre a pretensa falta de interesse em agir por banda do Requerente.

Excepcionam os Requeridos e ora apelantes a falta de interesse em agir do Requerente e apelado, ao que percebemos apenas porque “(…) se alguns móveis seus ali estão [no logradouro] estão armazenados a aguardar venda e, como resulta das fotografias juntas pelo Requerente, tais móveis podem entrar e sair de acordo com a conveniência do Requerente pelo portão mais pequeno.”.

Ora, nada isto configura a excepção inominada da falta de interesse em agir.

A falta de interesse em agir (ou de interesse processual) pressupõe a ausência de conflito, real ou potencial, e, consequentemente, a desnecessidade da inerente tutela judicial da posição jurídica que é sustentada pelo requerente/autor nesse conflito (real ou meramente potencial). É uma justificação para a utilização da arma judiciária, para recorrer ao processo (v. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 79). Trata-se, por outras palavras, de apurar da necessidade do demandante instrumentalizar o processo alcançar a definição de uma relação jurídica que se apresenta como concretamente controvertida.

Sucede que o Requerente/apelado identificou um concreto dissenso com os Requeridos sobre a propriedade e posse do logradouro localizado a sul do seu prédio, dissenso que conduziu, além do mais, à colocação de uma fechadura e de um cadeado num portão de acesso ao dito logradouro, dificultando ou impedindo o respectivo uso e fruição pelo Requerente.

Tanto basta para que se tenha por verificado o interesse processual em agir do Requerente/apelado.

Ilegitimidade do Requerente.

Começam os apelantes por arguir a ilegitimidade do Requerente pelo facto de a posse do imóvel de que se arrogam donos ter sido transmitida para J… em consequência do contrato-promessa de compra-e-venda que aquele com este celebrou em 01 de Fevereiro de 2021 (cfr. o facto provado em 55 a 57 e o alegado em 100 e seguintes da p.i.).

Mas sem fundamento.

Desde logo porque, sem mais, o contrato-promessa de compra-e-venda não transmite a posse da coisa vendida ao promitente-comprador.

Como é hoje entendimento pacifico, para haver posse jurídica efectiva, e não uma posse precária em nome do promitente vendedor, ou uma simples detenção do promitente comprador, torna-se indispensável que, na sequência da celebração do contrato promessa, e da tradição da coisa que dele é objecto, esse promitente passe a actuar como possuidor, com o corpus e animus que identificam tal exercício. O que pode resultar de convenção/acordo, expresso ou tácito, para a transferência da posse em termos idênticos ao do verdadeiro dono – acordo que normalmente anda ligado ao pagamento integral do preço – ou então de uma inversão do título de posse decorrente da prática reiterada e pública dos actos materiais que revelem um comportamento típico do proprietário (cfr. neste sentido, entre outros, o Ac. da Rel. do Porto de 20.01.2009, disponível em www.dgsi.pt).

Resulta da alegação do Requerente – e da matéria provada (factos provados em 56 a 58) – que, nos termos do contrato promessa, o promitente comprador apenas ficou autorizado a tomar posse do 1º e 2º andar, andares que o Requerente deixou devolutos de forma a permitir ao promitente comprador o arrendamento dos quartos a estudantes.

Ou seja, não houve qualquer acordo ou convenção que abrangesse a posse do promitente comprador também relativamente ao rés-do-chão do imóvel ou do logradouro em discussão nestes autos (sito a sul).

Daí que a legitimidade activa do Requerente se funde na sua própria posse jurídica e efectiva do logradouro, posse que expressamente alegou, e que, de resto, não cedeu ao aludido promitente comprador (e que, por conseguinte, nunca deixou de ter).

Improcede, assim, a excepção em apreço.

Da caducidade do direito de acção do Requerente.

              

Nesta questão está em apreço o saber se transcorreu o prazo de um ano imposto pelo art.º 1282 do C. Civil para a instauração da acção de manutenção ou restituição de posse, prazo que se conta do “facto da turbação ou do esbulho, ou do conhecimento dele quando praticado a ocultas”.

Na decisão recorrida considerou-se que tal prazo foi observado, porquanto, tendo sido aplicada a fechadura no portão e o mesmo fechado à chave pelos Requeridos, em Agosto de 2020, o esbulho consumou-se nesse mês, enquanto a instauração do presente procedimento ocorreu quando menos de um ano passara sobre esse momento – mais exactamente em Abril de 2021.

Contrapõem os Requeridos que o Requerente “reconhece que o esbulho que alega teve início em 2019”.

Porém, compulsada a petição inicial, não é isso que dela emerge.

O que aí se afirma é que desde 2019, após o Requerente colocar à venda o seu prédio, “os Requeridos passaram a incomodar os agentes imobiliários e potenciais compradores que visitavam a casa”, “chegando a alegar que a casa não estava à venda e que o logradouro sul lhes pertencia”, “afastando assim potenciais compradores” – cfr. os artigos 88 a 92 da p.i..

Não há nisto qualquer esbulho ou turbação da posse do Requerente, porque os terceiros atingidos pelas afirmações nada têm que ver com a posse do proprietário.

Em suma, esta questão não tem fundamento.

A condenação em custas do incidente do desentranhamento dos documentos.

Também almejam os apelantes ver revogado o segmento decisão que os condenou em custas autónomas pelo indeferimento do requerido desentranhamento dos documentos juntos com o req. inicial sob os nºs 45 e 48.

Todavia, não reagem ao indeferimento do desentranhamento (que é o que substancialmente motiva a condenação).

Coisa diversa é a passagem da certidão requerida, pretensão que é independente do desentranhamento e que não vemos motivo para negar.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida, sem prejuízo de dever ser atendido o requerimento de extracção de certidão para fins disciplinares oportunamente formulado pelos Requeridos.

Custas pelos apelantes.

                             Coimbra, 9 de Novembro de 2021       

    

                                               (Freitas Neto – Relator)

                                    (Paulo Brandão)

                                    (Carlos Barreira)       

 


[1][1] O segmento da sentença em que esta considera não existir infracção disciplinar na junção aos autos de correspondência trocada entre advogados não envolve uma verdadeira questão recursiva já que, segundo os próprios Requeridos, por a competência para apreciar tal matéria pertencer apenas à Ordem dos Advogados, não pode a decisão do tribunal recorrido surtir qualquer efeito no aludido âmbito (disciplinar).