Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1754/19.6T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: TRANSMISSÃO SINGULAR DE DÍVIDAS
REQUISITOS LEGAIS
DECLARAÇÕES DE VONTADE
Data do Acordão: 10/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO DO TRABALHO DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 217º E 595º C. CIVIL.
Sumário: 1. A transmissão singular de dívidas pode ocorrer sob a forma de assunção de dívida que consiste no ato através do qual um terceiro (assuntor) se vincula perante o credor a efetuar a prestação devida por outrem (artigo 595.º do C.C.).

2. Constituindo uma exigência legal para a transmissão a título singular de uma dívida, a existência de um contrato entre o antigo e o novo devedor (alínea a) do n.º 1 do artigo 595.º do CC), certo é que têm de existir duas declarações de vontade (uma do antigo e outra do novo devedor) e que podem ser expressas ou tácitas (artigo 217.º do CC).
3. Tendo o sócio maioritário R. afirmado, em reunião, que em virtude da sociedade não ter capacidade financeira assume as dívidas que se encontram neste momento na empresa e na qual foi previamente aprovada a dissolução da Ré, encontrando-se também presente o outro sócio, foi celebrado um acordo entre a Ré dissolvida e o sócio liquidatário R., posto que, a este cabia representar a vontade daquela Ré (artigo 152.º o CSC), não sendo, por isso, exigível uma declaração expressa da vontade desta, assunção de dívida ratificada pela credora ao exigir a prestação àquele R. (artigo 595.º, n.º 1, a), do CC).
Decisão Texto Integral:







Acordam[1] na Secção Social (6ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

A..., residente em ..., com o patrocínio do Ministério Público, intentou a presente ação de processo comum contra

P..., residente em ...,

S..., residente em ... e

B..., Ldª, com sede em ...

alegando, em síntese que:

A Ré B... foi dissolvida e encontra-se em liquidação e o R. P,,, era seu sócio; o seu contrato de trabalho cessou por motivo de encerramento da empresa em 30/11/2018; a Ré não lhe pagou a quantia total de € 5.345,54 respeitante a retribuições; o R. P... assumiu pagar as dívidas da empresa, entre as quais, as dívidas “ao pessoal”, ou seja, aos trabalhadores; a A. era a única trabalhadora da Ré B...; por força da assunção da dívida por parte do R. P..., este é devedor da quantia supra referida; a Ré S... é também responsável pela satisfação das retribuições salariais devidas à A. pelo facto de ser casada com o primeiro R., tratando-se as prestações que reclama de dívida contraída em proveito comum do casal.

Termina, dizendo que a presente ação deve ser julgada procedente, por provada e, em consequência:

A.  Serem os primeiro e segundos réus condenado, a título principal, a pagarem à autora €5.245,54 referentes a salários, subsídios de féria e subsídios de Natal em atraso; ou, caso o pedido não proceda,

B. Ser a terceira ré condenada subsidiariamente a pagar à autora a referida quantia.

C. Mais deverão os réus ser condenados a pagarem à autora juros de mora, à taxa legal (4%), sobre todas as peticionadas quantis, a contar do vencimento.”

*

Os Réus contestaram alegando, em sinopse, que:

A Ré S... é completamente estranha à relação laboral e não é sócia da Ré B... e não se trata de um dívida contraída e comunicável ao casal; o R. P... nunca assumiu a dívida da Ré B... face à A., não constando da ata da reunião a identificação do credor nem o valor da mesma; a A. é parte ilegítima e, ainda, que os RR. não são devedores dos valores reclamados pela A..

Terminam, requerendo que sejam consideradas procedentes as exceções deduzidas e improcedente e não provada a ação e, em consequência, sejam os RR. absolvidos de todo o peticionado.

A A. respondeu à contestação, concluindo pela improcedência das exceções invocadas e como na petição inicial.

Foi proferido o despacho saneador de fls. 44 e segs., tendo sido julgadas improcedentes a exceções de ilegitimidade passiva e ativa invocadas pelo A. e pelos RR., respetivamente.

Procedeu-se a julgamento conforme consta da ata de fls. 51.                  

De seguida, foi proferida a sentença de fls. 53 e segs. e cujo dispositivo é o seguinte:

Nestes termos, e em face do exposto, decido julgar a ação parcialmente procedente, e, em consequência,

1. Condeno o primeiro réu P... a pagar à autora a quantia de €5.245,54 referente a salários, subsídios de férias e subsídios de Natal em atraso;

2. Condeno o primeiro réu a pagar à autora juros de mora, à taxa legal (4%), sobre todas as peticionadas quantias, a contar do vencimento;

3. Absolvo a segunda ré, S... do pedido contra ela deduzido;”

O R., notificado desta sentença, veio interpor recurso que concluiu da forma seguinte:

...                                                                     

A A. apresentou resposta, concluindo que:

Deverá, assim, julgar-se improcedente o recurso e, ao invés, manter-se, na íntegra, a douta sentença recorrida”.

  Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

  II – Questões a decidir:

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C. na redação da Lei n.º 41/2013 de 26/06), com exceção das questões de conhecimento oficioso.

Assim sendo, cumpre apreciar a questão suscitada pelo R. recorrente, qual seja:

- Se não ocorreu a assunção da dívida da sociedade Ré em liquidação para com a A. por parte do R. recorrente, não sendo o mesmo responsável pelo pagamento à A. da quantia de € 5.245,54.                                                                                                                     III – Fundamentação

a) Factos provados

1) A ré B..., Lda. – doravante designada por B..., Lda. processual – dedicava-se à atividade de captação, divulgação, desenvolvimento e implementação de ideias de negócio, assim como de consultoria, formação, projetos de investimento e intermediação financeira.

2) Encontra-se presentemente dissolvida e em liquidação, o que sucede desde 19.12.2018.

3) O réu P... era seu sócio.

4) A autora foi admitida ao serviço da ré no dia 1 de março de 2017.

5) Mediante contrato de trabalho celebrado por escrito, no dia 28 de fevereiro de 2017, e por tempo indeterminado.

6) A autora foi contratada para desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de chefe administrativa.

7) Embora sempre exercesse atividade própria de consultoria, designadamente fazia planos de negócios, parcerias com pequenos produtores e compra e venda de empresas.

8) Atividade esta que exerceu, sempre sob as ordem, direção e fiscalização do legal representante da ré B..., Lda.

9) Fazendo-o, até final de agosto de 2018, no escritório que a empregadora ré tinha ao dispor no edifício do Centro de Empresas Inovadoras, em x... e, a partir dessa data, nas instalações da empresa I...

10)O que ocorreu, ininterruptamente, entre a data do início do contrato e 30 de novembro de 2018.

Caixa de texto: 411)A autora trabalhava de segunda a sexta-feira, das 9 horas às 17:30 horas, com uma hora de intervalo para almoço.

12)Auferia, ao longo da execução do contrato, a retribuição base ilíquida mensal de €993,00, acrescida de €4,50 de subsídio de alimentação por dia de trabalho efetivo.

13)Retribuição que era paga à autora mediante transferência bancária.

14)Até ao último dia do mês a que respeitava.

15)O contrato de trabalho cessou por motivo de encerramento da empresa, no dia 30 de novembro de 2018.

16)A ré B..., Lda. não pagou à autora, na data do respetivo vencimento, a totalidade da retribuição base, subsídio de alimentação, subsídio de férias e subsídio de Natal referente aos anos e meses que se indicam na tabela infra, valores esses já deduzidos dos correspondentes descontos para a segurança social e IRS:

17)Ano de 2017:

      Período de referênciaRetribuição
líquida a


pagar

Já pago pela réRetribuição  em

   dívida

     Salário de novembro€896,77 €896,77
Salário de dezembro + subsídio de férias vencido em 01.01.2017 +

subsídio de Natal de 2017

€2.492,31

€2.492,31


18)Ano de 2018:

       Período de referênciaRetribuição

líquida a


pagar

Já pago pela réRetribuição  em


dívida

Salário de janeiro€900,77€400,77€500
Salário de fevereiro€900,77€400,77€500
Salário de março€900,77€400,77€500
Salário de abril€900,77€400,77€500
Salário de maio€900,77€400,77€500
Salário de junho€900,77€400,77€500
Salário de julho€900,77€400,77€500

Salário de setembro€900,77€400,77€500
Salário de Outubro€900,77€400,77€500
Salário de novembro + subsídio de férias vencido em 01.01.2018 +

subsídio de Natal de 2018

€2.504,31€1.004,31€1.500

19)A retribuição ainda paga pela ré B..., Lda. à autora, na data do respetivo vencimento, é, pois, de €9.889,08.

20)Porém, nas datas que se indicam na tabela infra, a ré Bys, Lda., por conta da retribuição em dívida acima indicada, entregou já à autora as seguintes quantias:

DataQuantia
03.01.2018€896,77
02.02.2018€500,00
04.04.2018€896,77
02.05.2018€500,00
30.05.2018€500,00
Maio 2019€1.250

21)Perfazendo o montante total de €4.543,54.

22)A ré B..., Lda. encontra-se dissolvida e entrou em processo de liquidação.

23)Sendo liquidatário da sociedade o réu P...

24)Até à presente data, não foi ainda efetuado registo do encerramento da liquidação na Conservatória do Registo Comercial competente.

25)A dissolução da sociedade foi decidida pelos sócios da ré por deliberação datada de 30 de novembro de 2018, sendo nessa reunião também aprovadas as contas e o balanço do exercício final, reportados à data da dissolução – cfr. Doc. nº 24.

26) Nessa mesma reunião, o sócio maioritário P..., aqui primeiro réu, assumiu pagar as dívidas da empresa, entre as quais, as dívidas “ao pessoal” – cfr. doc. nº 24

27)A autora era a única trabalhadora da ré B..., Lda.

28)A ré B..., Lda. não tinha qualquer ativo patrimonial.

29)A segunda ré, S..., é casada com o primeiro réu – cfr. doc nº 25.

30)Sendo o produto do trabalho auferido pelo réu marido, enquanto sócio e gerente da ré B..., Lda., com a prossecução da atividade levada a cabo por esta sociedade, integrado na economia comum do casal.

31)A autora foi declarada insolvente por decisão judicial datada de 19 de junho de 2017, transitada em julgado, proferida no âmbito do processo de insolvência de pessoa singular nº ..., que correu termos no Juízo de Comércio do Fundão da Comarca de Castelo Branco – cfr. doc. nº 26.

32)Nesse processo, em que foi deferida a exoneração do passivo restante, determinou-se, além do mais, o seguinte:

- que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que a devedora [aqui autora] venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário…;

- fixando-se, por ora, como rendimento disponível para a insolvente tudo o que exceder, em cada mês, o montante mensal equivalente a dois salários mínimos nacionais, acrescido dos subsídios de férias e de natal nos meses em que estes são processados.

- a devedora fica obrigada a exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregada, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apta – cfr. doc nº 27.

33)O salário da autora é inferior a dois salários mínimos nacionais.

34)A autora não tinha outros rendimentos para além da retribuição do trabalho prestado para a ré Bys.                

b) - Discussão

Apreciando a questão suscitada pelo R. recorrente:

- Se não ocorreu a assunção da dívida da sociedade Ré em liquidação para com a A. por parte do R. recorrente, não sendo o mesmo responsável pelo pagamento à A. da quantia de € 5.245,54.                    

Alega o R. recorrente que:

- Da ata da assembleia geral da B..., Lda datada do dia 30/11/2018 cujas deliberações foram reduzidas a escrito e juntas como doc.24 da P.I., consta no seu ponto dois que o sócio, ora recorrente, disse que “…assume as dívidas que se encontrem neste momento na empresa…” (30/11/2018), de entre as quais descreveu “ao pessoal o valor em dívida”.

- Da ata não consta que a antiga devedora a B..., Lda tenha aceitado a declaração negocial do recorrente.

- Estamos perante uma simples declaração unilateral do sócio da referida sociedade, através da qual reconhece várias dívidas devidamente especificadas não se referindo à recorrida, em particular, nem identificando a respetiva causa da dívida.

- O recorrente nada negociou com a recorrida (A.) e que emitiu uma simples declaração dirigida à B..., lda.

- A declaração do sócio, ora recorrente, segundo a qual passava para ele, designadamente, a dívida da A., não se ajusta à figura dos contratos, princípio do contrato, que pressupõe o acordo bilateral dos contraentes, pelo que tal declaração não configura uma assunção de dívida, que, precisamente, implica um contrato entre o antigo e o novo devedor, nos termos referidos no art. 595º, nº1, al. a) do CC.

- Assim, considera o recorrente que o tribunal “a quo” fez errada interpretação do disposto no art. 595º, nº1, al. a)do CC e consequentemente os arts.236º e 238º do C.C., pois o declaratário da declaração do recorrente não é a A./recorrida, mas a R., B..., lda.

- Face à forma vaga da declaração constante da ata, incerta, ilíquida e à vontade real do A., à míngua de outros factos provados que possam permitir ao julgador retirar dos comportamentos do recorrente que pretendia assumir uma dívida de tal montante, deve-se absolver o recorrente por inexistir comportamentos concludentes que permitam utilizar a disciplina dos arts. 236º e 238º do C.C. (teoria da impressão do destinatário) nos termos alcançados pelo tribunal “a quo”.

A este propósito consta da sentença recorrida o seguinte:

Excluídas tais normas e formas de responsabilização do réu, enquanto gerente, para com os credores da sociedade e assim para com a autora, resta, segundo se crê, apreciar a declaração por este feita e datada de 30 de novembro de 2018, ao assumir pagar as dívidas da empresa, entre as quais, as dívidas “ao pessoal”.

A este respeito, dos fatos provados resulta que:

A ré B..., Lda. encontra-se dissolvida e entrou em processo de liquidação.

Sendo liquidatário da sociedade o réu P...

Até à presente data não foi ainda efetuado registo do encerramento da liquidação na Conservatória do Registo Comercial competente.

A dissolução da sociedade foi decidida pelos sócios da ré por deliberação datada de 30 de novembro de 2018, sendo nessa reunião também aprovadas as contas e o balanço do exercício final, reportados à data da dissolução – cfr. Doc. nº 24.

Nessa mesma reunião, o sócio maioritário P..., aqui primeiro réu, assumiu pagar as dívidas da empresa, entre as quais, as dívidas “ao pessoal” – cfr. Doc. nº 24

A autora era a única trabalhadora da ré B..., Lda.

A ré B..., Lda. não tinha qualquer ativo patrimonial.

É pois, neste contexto de dissolução e liquidação da sociedade que tem de ser interpretada a declaração negocial da autoria do 1º réu, com obediência às regras consagradas nos artigos 236.º e 238.º, ambos do Código Civil.

Como é sabido, nos termos do n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.

Assim, de harmonia com a regra estabelecida naquele n.º 1, em caso de divergência das partes, a declaração negocial deve ser interpretada no sentido que um declaratário normal, com base em todas as circunstâncias por ele conhecidas ou suscetíveis de o serem, podia e devia entender como sendo a vontade do declarante.

É a chamada teoria da impressão do destinatário que, pelo seu carácter eminentemente objetivista, se entende ser aquela que dá “tutela plena à legítima confiança da pessoa em face de quem é emitida a declaração” (cfr., MOTA PINTO, ob. cit., p. 444).

Este critério objetivista da interpretação é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjetivista: é o que sucede quando o declaratário conheça a vontade real do declarante, caso em que a declaração valerá de acordo com essa vontade (artigo 236.º, n.º 2, do Código Civil).

Não destacando a lei quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação, deverão ser havidas como tal todas aquelas que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz teria efetivamente considerado.

Entre elas salienta VAZ SERRA, “os termos do negócio, os interesses nele compreendidos, o seu mais razoável tratamento, o objetivo do declarante, as negociações preliminares e os usos” (RLJ, Ano 111.º, p. 120).

Ora, tendo em conta o preceituado no citado artigo 236.º e conjugando essa disciplina jurídica com a matéria de facto dada como provada, entende-se, adiantando desde já conclusões, que a declaração do 1º réu vale como uma assunção de dívida feita perante a antiga devedora, a sociedade B..., que a credora ratificou, designadamente, quando exigiu a prestação do novo devedor, nos termos do 595.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil.

A respeito da assunção de dívida diga-se que o que está em causa não é a aceitação de um crédito, mas, antes, a aceitação por parte de um terceiro (assuntor) do pagamento de um passivo de um devedor perante o credor deste.

Nesta figura jurídica, o credor continua a ser titular do mesmo crédito que detinha sobre o primitivo devedor, operando-se apenas, por força do contrato celebrado entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor ( al. a) do nº1 do art. 595º do C. Civil) ou entre o novo devedor e o credor ( al. b) do nº1 do citado art. 595º ), uma mudança na pessoa do devedor, mas sem que haja alteração do conteúdo nem da identidade da obrigação – Cfr., Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in, “ Código Civil, Anotado”, Vol. I , 3ª ed. revista e atualizada, pág. 579.

De salientar que, de harmonia com o disposto no nº 2 do citado artigo 595º, o primitivo ou antigo devedor só fica exonerado do seu dever de prestar mediante declaração expressa do credor, situação em que estamos perante uma assunção liberatória de dívida. Na ausência de uma tal declaração por parte do credor, o primitivo devedor mantém-se, juntamente com o novo devedor, solidariamente, obrigado perante o credor, existindo, neste caso, uma co-assunção ou assunção cumulativa de dívida do primitivo devedor.

De referir ainda que o credor só deixará de ser o titular do direito de crédito objeto da assunção, quando a dívida for paga (extinção pelo pagamento), ou se o transmitir por cessão ou por outra via a outrem.

Daí a conclusão, que começamos por adiantar, de que a declaração do 1º réu vale como uma verdadeira assunção de dívida feita perante a antiga devedora, a sociedade B..., que a credora ratificou, designadamente, quando exigiu a prestação do novo devedor, nos termos do 595.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil.

A este respeito não pode deixar de se chamar à colação o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.12.2007, disponível em www.dgsi.pt, em que se decidiu que “A declaração negocial do gerente, valendo como uma assunção de dívida, obriga pessoalmente o gerente a pagar a dívida da sociedade”. Pode ler-se em tal aresto, que trata de situação similar à dos autos (sendo a única diferença o fato de a declaração ter nesse caso ser emitida no dia anterior ao da dissolução da sociedade) que: “Com a assunção de dívida (assunção liberatória) o terceiro obriga-se perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, Vol. II, 4.ª edição, 1990, pág. 349).

Através da assunção opera-se uma mudança subjectiva, nomeadamente na pessoa do devedor, mantendo-se sem alteração o conteúdo e identidade da obrigação.

A declaração negocial em referência, no contexto em que foi produzida, não pode valer como uma promessa de liberação ou assunção de cumprimento. Na verdade, estando prevista a dissolução da sociedade para o dia seguinte, como efectivamente sucedeu, não se podia entender, com um mínimo de razoabilidade, que o declarante estivesse apenas a obrigar-se perante o devedor.

Dissolvendo-se a sociedade no dia seguinte, a declaração seria de todo inócua e juridicamente irrelevante, pois face à dissolução da sociedade deixaria de ser possível exigir do assuntor o cumprimento da obrigação, sendo certo que, em caso de promessa de liberação, só a primitiva devedora podia exigir a exoneração prometida (ANTUNES VARELA, ibidem, pág. 351).

Assim sendo, tem de se concluir que, com semelhante declaração de vontade, o apelado N quis assumir pessoalmente o pagamento das dívidas da sociedade dissolvida que, porventura, fossem reclamadas por credores da sociedade.

Neste contexto, tendo a B... ficado devedora da apelante, pelo valor correspondente a €4 070,02, está o apelado N..., por efeito da assunção de dívida, obrigado a pagar à apelante aquele débito.”

E assim, sendo entende-se que no nosso caso, o réu com semelhante declaração de vontade quis assumir pessoalmente o pagamento das dívidas da sociedade dissolvida para com a autora, sendo por isso o mesmo responsável pelo pagamento à autora da quantia de €5.245,54 o que se decidirá.” - fim de citação.

Apreciando:

Conforme resulta do artigo 595.º do C.C, a transmissão singular de dívidas pode ocorrer sob a forma de assunção de dívida que, como refere Almeida Costa, “consiste no acto pelo qual um terceiro (assuntor) se vincula perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem. A ideia subjacente é a da transferência da dívida do antigo para o novo devedor, mantendo-se a relação obrigacional”.[2]

Como se refere no Acórdão do STJ de 28/3/2019, disponível em www.dgsi.pt:

IV. A assunção de dívida é a aceitação por parte de um terceiro (assuntor) do pagamento de um passivo de um devedor perante o credor deste.

V. Na assunção de dívida, o credor continua a ser o titular do mesmo crédito que detinha sobre o primitivo devedor, operando-se apenas, por força do contrato celebrado entre o antigo e o novo devedor ou entre o novo devedor e o credor, uma mudança na pessoa do devedor, mas sem que haja alteração do conteúdo nem da identidade da obrigação.”

Ou, nas palavras de Antunes Varela: “Como o próprio nome indica, a assunção de dívida é a operação pela qual um terceiro (assuntor) se obriga perante o credor a efetuar a prestação devida por outrem.[3]

Como já ficou dito, a assunção de dívida pode, assim, revestir uma de duas modalidades: um contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor (al. a) do n.º 1 do art.º 595.º do CC) ou um contrato celebrado entre o novo devedor e o credor, com ou sem o consentimento do antigo devedor (al. b) do mesmo normativo), sendo que, em ambas as modalidades nos deparamos com a intervenção do credor.

Acresce que, existe uma figura próxima da assunção de dívida, qual seja, a promessa de liberação ou assunção de cumprimento (artigo 444.º, n.º 3, do CC).

Há promessa de liberação, sempre que uma pessoa (promitente) se obriga perante o devedor a desonerá-lo da obrigação, cumprindo em lugar dele, ou seja, efectuando em vez dele a prestação devida ao credor (…)”

A diferença está em que, na promessa de liberação, o terceiro se obriga apenas perante o devedor, só este tendo o direito de exigir dele a exoneração prometida, enquanto na assunção de dívida a obrigação é contraída (imediata ou posteriormente) em face do credor, que adquire assim o direito de exigir do assuntor a realização da prestação devida.”[4]

Por outro lado, constituindo uma exigência legal para a transmissão a título singular de uma dívida, a existência de um contrato entre o antigo e o novo devedor (alínea a) do n.º 1 do artigo 595.º do CC), certo é que têm de existir duas declarações de vontade, duas manifestações de vontade (uma do antigo e outra do novo devedor) e que podem ser expressas ou tácitas (artigo 217.º do CC).

Na verdade, a declaração negocial pode deduzir-se de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.

Pois bem, conforme resulta da matéria de facto provada: a ré B..., Lda. encontra-se dissolvida e entrou em processo de liquidação, sendo liquidatário da sociedade o réu P...; a dissolução da sociedade foi decidida pelos sócios da ré por deliberação datada de 30 de novembro de 2018, sendo nessa reunião também aprovadas as contas e o balanço do exercício final, reportados à data da dissolução; nessa mesma reunião, o sócio maioritário P..., aqui primeiro réu, assumiu pagar as dívidas da empresa, entre as quais, as dívidas “ao pessoal” e a autora era a única trabalhadora da ré B..., Lda.

Assim sendo, como é, facilmente se conclui que foi celebrado um acordo entre a Ré dissolvida e o sócio liquidatário R. ora recorrente, posto que, na citada reunião foi aprovada a dissolução da Ré, encontrava-se também presente o outro sócio, sendo que ao R. liquidatário ora recorrente cabiam os deveres, poderes e a responsabilidade dos membros do órgão de administração da sociedade (artigo 152.º o CSC), ou seja, entre outros, representar a vontade da Ré dissolvida, não sendo, por isso, exigível uma declaração expressa da vontade da Ré posto que, conforme resulta da ata de fls. 19 e 20, o R. ora recorrente “afirmou que em virtude da sociedade não ter capacidade financeira assume as dividas que se encontram neste momento na empresa”.

Desta forma, não assiste razão ao recorrente quando alega que estamos perante uma simples declaração dirigida à sociedade Ré, posto que, pese embora não conste da citada ata uma declaração expressa desta no sentido de aceitar a declaração do sócio maioritário, face a tudo o que ficou dito, a mesma deduz-se dos citados factos, ou seja, do facto de o ora R. recorrente ser o liquidatário representante daquela e de a mesma não ter capacidade financeira.

Mas o recorrente alega, ainda, que a declaração do sócio não se refere à recorrida nem identifica a respetiva causa da dívida.

Na verdade, conforme resulta da matéria de facto provada, na citada reunião, o sócio maioritário P..., aqui primeiro réu, assumiu pagar as dívidas da empresa, entre as quais, as dívidas “ao pessoal”, sendo que a autora era a única trabalhadora da ré B..., Lda.

Ora, tendo em conta o sentido normal da declaração expresso no artigo 236.º do CC, a declaração do sócio maioritário R., ora recorrente, não pode deixar de ser entendida no sentido de o mesmo assumir o pagamento das dívidas aos trabalhadores, que é como quem diz, à A. que era a única trabalhadora da Ré, sendo que, a causa da dívida só pode ser a relação de trabalho existente entre as mesmas.

Como se decidiu no acórdão da RL de 19/12/2007, citado na sentença recorrida, a propósito de um caso idêntico ao dos presentes autos e que acompanhamos:

Nos termos da materialidade provada, resulta que, no dia 28 de Agosto de 2003, o apelado N declarou, na qualidade de sócio e gerente da B, designadamente, que “em função da escritura celebrada em 29/08/2003, de dissolução da (…) B (…), assumo como liquidatário todos os valores, activo e passivo da sociedade, considerando que o balanço da mesma encontra-se sem qualquer valor”.

Por outro lado, a B, Lda., foi dissolvida por escritura pública lavrada no dia 29 de Agosto de 2003, tendo o facto sido registado.

É dentro deste contexto que tem de ser interpretada a declaração negocial da autoria do apelado N, com obediência às respectivas regras consagradas nos artigos 236.º e 238.º, ambos do CC.

Assim, tal declaração negocial vale como uma assunção de dívida feita perante a antiga devedora, a B, que o credor ratificou, designadamente, quando exigiu a prestação do novo devedor - art. 595.º, n.º 1, alínea a), do CC.

Com a assunção de dívida (assunção liberatória) o terceiro obriga-se perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, Vol. II, 4.ª edição, 1990, pág. 349).

Através da assunção opera-se uma mudança subjectiva, nomeadamente na pessoa do devedor, mantendo-se sem alteração o conteúdo e identidade da obrigação.

A declaração negocial em referência, no contexto em que foi produzida, não pode valer como uma promessa de liberação ou assunção de cumprimento. Na verdade, estando prevista a dissolução da sociedade para o dia seguinte, como efectivamente sucedeu, não se podia entender, com um mínimo de razoabilidade, que o declarante estivesse apenas a obrigar-se perante o devedor.

Dissolvendo-se a sociedade no dia seguinte, a declaração seria de todo inócua e juridicamente irrelevante, pois face à dissolução da sociedade deixaria de ser possível exigir do assuntor o cumprimento da obrigação, sendo certo que, em caso de promessa de liberação, só a primitiva devedora podia exigir a exoneração prometida (ANTUNES VARELA, ibidem, pág. 351).

Assim sendo, tem de se concluir que, com semelhante declaração de vontade, o apelado N quis assumir pessoalmente o pagamento das dívidas da sociedade dissolvida que, porventura, fossem reclamadas por credores da sociedade.

Neste contexto, tendo a B ficado devedora da apelante, pelo valor correspondente a € 4 070,02, está o apelado N, por efeito da assunção de dívida, obrigado a pagar à apelante aquele débito.”

Também não vemos, ao contrário do alegado pelo recorrente, como é que a declaração supra referida do sócio maioritário pode ser vista como uma mera promessa de liberação, posto que a Ré antiga devedora, representada por aquele, acabara de ser dissolvida.

Em suma, estamos perante uma assunção de dívida por parte do R. ora recorrente, transmissão que ocorreu por acordo entre o antigo (sociedade Ré) e o novo devedor (sócio liquidatário) e ratificada pela A. credora ao exigir a prestação a este (artigo 595.º, n.º 1, a), do CC) e, em consequência, o R. recorrente é responsável pelo pagamento da quantia peticionada pela A. a título de créditos laborais, no montante total de € 5.245,54, tal como se decidiu na sentença recorrida. 

Pelo exposto, improcedem as conclusões do R. recorrente.

Assim, na total improcedência do recurso, impõe-se a manutenção da sentença recorrida em conformidade.

IV – Sumário[5]

1. A transmissão singular de dívidas pode ocorrer sob a forma de assunção de dívida que consiste no ato através do qual um terceiro (assuntor) se vincula perante o credor a efetuar a prestação devida por outrem (artigo 595.º do C.C.).

2. Constituindo uma exigência legal para a transmissão a título singular de uma dívida, a existência de um contrato entre o antigo e o novo devedor (alínea a) do n.º 1 do artigo 595.º do CC), certo é que têm de existir duas declarações de vontade (uma do antigo e outra do novo devedor) e que podem ser expressas ou tácitas (artigo 217.º do CC).

3. Tendo o sócio maioritário R. afirmado, em reunião, que em virtude da sociedade não ter capacidade financeira assume as dívidas que se encontram neste momento na empresa e na qual foi previamente aprovada a dissolução da Ré, encontrando-se também presente o outro sócio, foi celebrado um acordo entre a Ré dissolvida e o sócio liquidatário R., posto que, a este cabia representar a vontade daquela Ré (artigo 152.º o CSC), não sendo, por isso, exigível uma declaração expressa da vontade desta, assunção de dívida ratificada pela credora ao exigir a prestação àquele R. (artigo 595.º, n.º 1, a), do CC)

V – DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, na improcedência do recurso, acorda-se em manter a sentença recorrida.                                                   

Custas a cargo do R. recorrente.

                                                                     Coimbra, 2020/10/23

                                                                                               (Paula Maria Roberto)

                                                                                     (Ramalho Pinto)

                                                                                   (Felizardo Paiva)

                                                                                                                                                                                                                                                                 


***



[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Ramalho Pinto
                        Felizardo Paiva

[2] Direito das Obrigações, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 566 e segs.
[3] Das obrigações em geral, vol. II, 4.ª edição, Almedina, pág. 349.
[4] Antunes Varela, obra citada, pág. 351.
[5] O sumário é da responsabilidade exclusiva da relatora.