Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1862/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
SUA FUNDAMENTAÇÃO. LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ - CONDENAÇÃO: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 01/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÁGUEDA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS. 653º, Nº 2 ; E 3º, Nº 3, DO CPC .
Sumário: I – A fundamentação da decisão sobre a matéria de facto tem a ver com a análise crítica das provas e bem assim com a especificação dos fundamentos tidos como decisivos para a convicção do julgador .
II – A falta de motivação da decisão de facto não consubstancia uma nulidade do artº 668º do CPC , isto é, não conduz à nulidade da sentença ou à anulação do julgamento, levando apenas a que o tribunal da Relação, a requerimento das partes, faça remeter os autos à 1ª instância a fim de aí ser suprida tal deficiência .
III – Com a nova redacção do artº 3º, nº 3, do CPC, consagrou-se o princípio da proibição das decisões surpresa, o que implica que deva sempre ser facultada às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre qualquer questão que as possa afectar e de que ainda não tenham tido a possibilidade de o ter feito, designadamente no que respeita a uma decisão sobre litigância de má fé .
Decisão Texto Integral:
Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. O MºPº intentou a pre-sente acção declarativa constitutiva, com forma de processo ordinário, contra o réu, A..., pedindo que fosse declarado que a menor B... é filha do mesmo e que fosse ordenado o averbamento de tal facto no assento de nascimento da menor.

Para o efeito, e em síntese, alegou que a dita menor é fruto de relações sexuais mantidas entre a mãe dela e o réu, não existindo qualquer impedimento legal que obste a tal reconhecimento.

2. Na sua contestação, o réu defendeu-se, em síntese, negando tal paternidade, e bem assim que tivesse mantido qualquer relacionamento sexual com a dita mãe da menor e sobretudo durante o período legal de concepção desta.

3. No despacho afirmou-se a validade e a regularidade da lide, tendo-se, depois, procedido à elaboração da selecção da matéria de facto, sem que tivesse sido objecto de qualquer censura.

4. Após a instrução do processo – na qual se inclui a realização de um exame hematológico, envolvendo o menor, a sua mãe e o réu, e em cujo relatório, junto a fls. 116/119, se acabou concluindo por uma probabilidade de 99,999998% de o último ser o pai da primeira -, procedeu-se à realização do julgamento – com a gravação da audiência.

4.1 A resposta aos diversos pontos da base instrutória teve lugar, sem que tivesse então merecido qualquer reclamação das partes.

5. Seguiu-se a prolação da sentença onde, a final, se decidiu nos seguintes termos:

Pelo exposto, julgo a acção procedente, declarando que a B... é filha do réu A...e ordeno o aver-bamento, ao assento de nascimento da menor, desta paternidade e respectiva avoenga paterna.

Custas pelo réu (incluindo o pagamento dos exames de sangue).

Como litigante de má fé, o réu vai condenado em 1000€.”

6. Não se tendo conformado com tal sentença decisória, o réu dela interpôs recurso, o qual foi recebido como apelação.

6.1 Nas correspondentes a alegações de recurso que apresentou, o réu conclui as mesmas nos seguintes termos:

1- A sentença que não contenha os fundamentos de facto que levaram à decisão, como é o caso dos autos, é nula – ex vi al. b) do nº 1 artº 668º do Código de Processo Civil.

2- Outrotanto se diga quanto à resposta dada aos quesitos que apenas contém uma mera enunciação, sem qualquer sentido crítico, dos meios de prova que serviram para formar a convicção do juiz, pois, tal não é suficiente para efeitos do disposto no artº 653º nº 2 do C.P.C.

3- Quanto à condenação do apelante como litigante por má fé, esta constitui uma “decisão surpresa”, que é imposta ao apelante sem prévia notificação, não se lhe dando a possibilidade de se pronunciar a esse propósito e explanar as razões que levaram à conduta por si assumida no decurso do iter processuale.

4- O Tribunal a quo sustenta a condenação Sub Júdice na norma do artº. 456 do Código de Processo Civil. Esta norma, em que assentou tal condenação, ao ser aplicada sem se fazer cumprir a tramitação desenhada nos artºs. 3º e 3º-A, ambos do C.P.C., está ferida de ilegalidade e mesmo de inconstitucionalidade por desrespeito dos Artºs. 13º; 18. nº. 1 e 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa e, também, do artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (...).

5- A sentença em crise, condenou em custas o apelado, sem fundamentar, resultando, daí, igualmente, a sua nulidade – ex vi Artºs. 16º do CCJ e 158º, 666º nº 3 e 668 nº 1 al. b), todos do C.P.C.”

7- Nas contra-alegações apresentadas pelo MºPº, através do ilustre procurador adjunto da comarca, pugnou-se pela improcedência total do recurso.

8- O srº juíz que proferiu a sentença recorrida ao serem-lhe aos autos conclusos para efeitos do disposto no artº 668, nº 4, do CPC, pronunciou-se no sentido de não enfermar a mesma dos vícios de nulidade que lhe são apontados no recurso.

9- Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


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II- Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso.
Como é sabido, são as conclusões das alegações do recurso que delimitam e definem o âmbito do objecto do mesmo (cfr. artºs 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, do CPC).
1.1 Ora compulsando tais conclusões do recurso verifica-se que a única grande questão que importa aqui a apreciar consiste em saber se a sentença recorrida enferma, ou não, do vício de nulidade previsto no artº 668 nº 1, al. b), do CPC, quer na parte que diz respeito à questão de fundo ou mérito da causa, quer na parte da mesma que condenou o réu-apelante como litigante de má fé e bem assim ainda na parte em que o condenou nas custas do processo.
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2. Os Factos
Pela 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 17/8/99 nasceu, na freguesia de Macinhata do Vouga, concelho de Águeda a menor B... (cf. doc. de fls. 8).

2. Do facto do seu nascimento foi lavrado, na Conservatória do Registo Civil de Águeda em 31/8/99, o assento de nascimento, com o n.° 333 (cf. mesmo doc.).

3. Desse assento apenas se faz menção da maternidade da menor B... constando ser esta filha de C... (cf . mesmo doc).

4. Consta ainda do referido assento ser a mãe de B... casada, ao tempo do nascimento desta (cf. mesmo doc.).

5. Na sequência da declaração da mãe que a B... não era filha do seu marido, foi instaurada a competente acção, tendente ao afastamento da presunção de paternidade do marido da mãe (cf. doc. fls. 11 e 12).

6. Foi proferida, em 20/10/99, pela Conservatória do Registo Civil de Águeda, decisão do Conservador na qual se declarou que a menor B... não beneficiou da posse de estado em relação ao marido da sua mãe (cf. doc. de fls. 8 v.°).

7. Esta decisão foi, em 10/11/99, averbada, sob o nº. 1, ao assento de nascimento de B...(cf. doc. 8v'°).

8. Não existem quaisquer relações de parentesco ou afinidade entre a mãe da menor B... e o réu A... (cf. docs. de fls. 9 e 10).

9. Por despacho judicial, proferido no processo de averiguação oficiosa de paternidade relativa à menor B..., foi julgada viável a propositura desta acção (cf. doc. de fls. 12 e v.°).

10. C... (da Silva), mãe da menor B..., encontra--se divorciada de D..., por divórcio decretado por sentença de 25/10/99 (cf. doc de fls. 10). – factos estes que foram logo dados como assentes, na selecção da matéria de facto, face ao teor dos documentos autênticos ou autenticados atrás referidos; sendo que os restantes, e que a seguir vão ser indicados, resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
11. A mãe da menor e o réu iniciaram, antes de Abril de 1998, um relacionamento amoroso e sexual. (resultante da resposta dada a quesito 1º, e a cuja peça e respectivos quesitos se referirão os nºs indicados doravante no final de cada facto)
12.O réu A..., no decurso do seu envolvimento com a Maria Helena, frequentava assiduamente o Café Diana, onde a mãe da menor trabalhava. (3º)

13.Deixando de o frequentar após a saída da mãe da menor desse Café. (4º)

14.Posteriormente, e com a continuação do seu envolvimento com a Maria Helena, passou o réu a frequentar assiduamente a padaria onde aquela trabalhava, em Águeda. (5º)

15.O réu, durante o período que durou o relacionamento amoroso, dava boleia à mãe da menor, dirigindo-se ambos para motéis e outras unidades hoteleiras, para se relacionarem sexualmente. (7º e 8º).

16. Já em Abril de 1998, o marido da Maria Helena se envolvera em acesa discussão com o réu, no mercado de Águeda, o que foi presenciado por várias pessoas. (9º)

17. Mais tarde, o marido da mãe da menor abandonou o lar conjugal, não mantendo qualquer contacto sexual com a Maria Helena desde pelo menos Abril de 1998. (10º)

18. O réu A..., conjuntamente com a Maria Helena, deslocaram-se a Moimenta da Beira, por duas vezes, contactando com os pais da Maria Helena, como se fossem namorados. (11º)

19. Foi em consequência das relações sexuais havidas com A... que se deu o nascimento da menor B.... (16º)
20. E todos quantos conhecem a Maria Helena, a menor e o Réu A..., só a este atribuem a paternidade da menor. (17º)

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3- O Direito
3.1 Da nulidade da sentença
Como resulta das conclusões de recurso, nesta acção de investigação de paternidade, o réu-apelante não ataca directamente a sentença, proferida pelo tribunal a quo, quanto à solução substantiva final a que chegou quanto à questão de mérito ou de fundo em si discutida, mas antes, digamos assim, por via indirecta e quanto a algumas questões formais ou laterais, respeitantes à mesma.
Assim, e como resulta da síntese que acima deixámos exarada, a invocada nulidade da sentença, feita à luz do disposto no artº 668, nºs 1 al. b) e 3, do CPC, abrange três aspectos ou partes da mesma e que respeitam ao seguinte:
a) Nulidade da sentença referente à parte da questão do fundo ou mérito da causa.
b) Nulidade da sentença na parte em que condenou o réu nas custas do processo.
c) E nulidade da sentença na parte em que condenou o réu como litigante de má fé.
Apreciemos então cada uma daquelas (sub)questões.
3.1.1 Da nulidade da sentença referente à parte da questão do fundo ou mérito da causa.
Quanto a essa parte da sentença, o réu-apelante ataca a mesma entendendo que tal vício, de nulidade, decorre, por um lado, da falta de fundamentação de facto que conduziu à decisão final (sobre o mérito da causa), e, por outro, da falta de fundamentação, pelo srº juíz do tribunal a quo, da prova em que se baseou para dar os factos como provados, e mais concretamente ainda na ausência da análise critica dessa prova em que alicerçou a sua convicção.
Preceitua o artigo 668, nº 1 al. b), do CPC que “é nula a sentença quando não específique os fundamentos de facto e direito que justifiquem a decisão”.
Vem sendo dominantemente entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores que esse vício (de nulidade de sentença) só ocorre quando houver falta absoluta ou total de fundamentos ou de motivação (de facto ou de direito em que assenta a decisão), e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, insuficiente, medíocre ou até errada. Essa fundamentação porventura deficiente, incompleta ou até errada poderá afectar o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas nunca poderá, assim, determinar a sua nulidade. (Neste sentido vidé, entre outros, Ac. STJ de 19/03/02, in “Rev. Nº 537/02-2ª sec., Sumários, 03/02”; Ac. RC de 16/5/2000 in “www.dgsi.pt/jtrc”; Ac. STJ de 13/01/00, in “Sumários, 37-34”; Ac. RLx de 01/07/99, in “BMJ 489-396”; Ac. STJ de 22/01/98, in “BMJ 473-427”; Ac. STJ de 06/06/89, in “BMJ 388-580”; Ac. STJ de 15/11/85, in “Rec. nº 1214, Acord. Doutrin., 293-640”; Ac. STJ de 05/01/84, in “BMJ 333-98”; Ac. STJ de 13/10/82, in “BMJ 320-361”; Ac. RP de 08/07/82, in “BMJ 319-343”; Ac. RC de 14/11/80, in “BMJ 303-279”; e Ac. RLx de 10/03/80, in “BMJ 300-438”).
Como é sabido, não se pode confundir a motivação da sentença (artº 659 do CPC) com a fundamentação a que se reporta o artº 653, nº 2, do mesmo diploma legal.
Aquela desdobra-se em fundamentação de facto e fundamentação de direito.
Esta última, tem a ver com falta de motivação da prova, ou seja, a falta de análise critica das provas e bem assim da especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, e que, a verificar-se, não consubstancia a nulidade prevista no citado artº 688, ou seja, não conduz à nulidade da sentença ou à anulação do julgamento mas levando tão somente a que o Tribunal da Relação, a requerimento da parte, faça remeter os autos à 1ª instância afim de aí ser suprida tal deficiência omissíva (cfr. artº 712, nº 4, do CPC, e nesse sentido vidé ainda, por todos, Ac. RC de 2/3/99, in “www.dgsi.pt/jtrc”; Ac do STJ de 10/1/2002, in “Rev . nº 2705/01, 2ª sec., Sumários 1/2002”; Ac do STJ de 10/1/2002, in “Rev . nº 3294/01, 7ª sec., Sumários 1/2002”, Lopes do Rego in “Comentários ao Código de Processo Civil, Liv. Almedina, pág. 434” e Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil Anotado, 2º Vol., Coimbra Editora, pág. 628”).
Posto isto, começaremos por dizer que, salvo o devido respeito, se nos afigura que o apelante parece confundir a nulidade em causa com o erro de julgamento (ou da decisão).
No que concerne à 1ª, e como já atrás se deixou expresso, a fundamentação (neste caso de facto) porventura deficiente, incompleta ou até errada poderá afectar o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas nunca poderá, assim, determinar a sua nulidade.
Ora calcorreando a sentença da 1ª instância não se vislumbra, antes pelo contrário, que a mesma enferme, no caso em apreço, de absoluta falta de fundamentação. Na verdade, a referida sentença encontra-se devidamente fundamentada, quer em termos de facto (com a especificação dos factos nos termos em que supra deixámos descritos), quer mesmo de direito (que o apelante não pôs, aliás, em crise no seu recurso).
Aliás, devemos dizer que temos mesmo algumas dificuldades em entender – ou talvez não... – como se invoca tal falta de fundamentação viciosa da sentença.
No que concerne ao 2º vício invocado (que a existir, como já deixámos expresso, nunca poderia levar à nulidade da sentença ou à anulação do julgamento, mas tão só, e quando muito, à baixa dos autos à 1ª instância para suprimento de tal deficiência), traduzido na alegada falta de fundamentação ou motivação da prova, a conclusão a que chegamos é mesma.
Na verdade, vejamos como o srº juiz a quo fundamentou a decisão sobre a matéria de facto:
Fundamentação (1 a 17): diga-se desde já que não se dá qualquer valor ao depoimento da mãe da menor. Estando ela obviamente interessada na procedência da acção e correspondendo os factos quesitados de 1 a 17 à versão que ela apresentou, é evidente que ela não os poderia deixar de confirmar na íntegra. Quanto ao depoimento da cunhada Idalina, do marido António, da tia Elvira e, por fim, da filha Patrícia, o respectivo depoimento não é tomado em conta na parte que respeita àquilo que “sabem” por a mãe da menor lhes ter contado. Por tudo isto, tendo em conta o depoimento da testemunha Idalina considerou-se provado apenas o que consta como tal da resposta aos quesitos 1, 3, 4, 7 e 8 (1ª parte) e 17: Tendo em conta o que disse a testemunha António considerou-se provado apenas o que consta como tal da resposta aos quesitos 1, 3, 4, 5, 7 e 8, 9, 10 e 17. Tendo em conta o que disse a testemunha Elvira considerou-se provado apenas o que consta como tal da resposta ao quesito 11. E tendo em conta o que disse a testemunha Patrícia considerou-se provado apenas o que consta como tal da resposta aos quesitos 1, 3, 4, 5, 7 e 8 (1ª parte) e 17. O relacionamento sexual resulta da conjugação destes depoimentos com as regras da experiência comum das coisas e com o facto provado em 16.
Não se considerou pois relevante tudo aquilo que estas testemunhas disseram ainda sobre a parte restante de 1, 7, 8, 10 e 11 nem o que elas disseram sobre os quesitos 2, 6 e 12 a 15.
A prova do quesito 16 resulta, de forma evidentíssima, do exame cujo relatório consta de fls. 116 a 119, exame esse que nenhum depoimento testemunhal pôs minimamente em causa, conjugado com as regras da experiência comum das coisas, dado não haver nenhum indício que a fecundação tenha ocorrido por outras vias que não através de relações sexuais de cópula completa e que estas não tenham tido lugar no período normalmente antecedente ao nascimento. O valor deste tipo de exame é em muito superior ao que resultaria de qualquer outra prova produzida no mesmo ou em sentido contrário e convence-me, sem margem para quaisquer dúvidas, de que o nascimento da menor resultou da fecundação da sua mãe pelo réu no período legal da concepção.
Quesito 18: não provado.
Fundamentação: as considerações do despacho certificado a fls. 12, não sendo parte da decisão, não fazem caso julgado. E nenhuma outra prova foi feita nesse sentido.
Quesitos 19 e 20: não provado.
Fundamentação: a 1ª testemunha do réu disse que pensava que sim, mas logo disse não saber precisar o período a que respeitava o que contava, o que depois confirmou expressamente. Ou seja, aquilo que contava podia ter acabado antes, por exemplo, de Out98. A 2ª testemunha do réu, depois de ter respondido afirmativamente a estes quesitos, esclareceu depois que nem sequer sabia onde é que o réu vivia com a mulher e que tinha dito que sim porque pressuponha que, sendo o réu casado com a mulher, vivessem juntos! E para além desta não foi produzida qualquer outra prova.
Quesitos 21 e 22: não provado.
Fundamentação: ninguém o disse.
Quesito 23: não provado.
Fundamentação: a 1ª testemunha disse que via passar o réu e a mulher juntos, mas a ressalva feita acima abrange este facto.
Quesitos 24 e 25: não provado.
Fundamentação: ninguém o disse.
Quesito 26: não provado.
Fundamentação: a 1ª testemunha disse que sim, mas a ressalva feita acima abrange este facto.
Quesitos 27 a 31: não provado.
Fundamentação (27 a 31): nenhuma das testemunhas do réu teve coragem de dizer fosse o que fosse neste sentido”.
Afigura-se-nos, assim, que tal fundamentação ou motivação, muito embora possa não ser um modelo a seguir em termos de perfeição, todavia, cumpre, a nosso ver, suficientemente,o estatuído, a tal propósito, no citado artº 654, nº 2, do CPC.
Razão essa pela qual, e quanto a essa parte, se julga improcedente o recurso.

3.1.2 Da nulidade da sentença na parte em que condenou o réu nas custas do processo.
O réu alicerça essa sua pretensão anulatória no argumento de a sentença não ter fundamentado a sua condenação nas custas do processo.
Quid iuris?
Como resulta do acima exarado, no final da sentença o srº juiz a quo limitou-se, na realidade, a condenar o réu nas custas do processo.
Mas será que no caso, e a esse respeito, era exigível ao srº juíz que tivesse fundamentado tal condenação?
Com o devido respeito, a afigura-se-nos que não, e pelo seguinte:
Nos termos do disposto no artº1 do CCJ (na redacção anterior à actual dada pelo DL nº 324/2003 de 27/12, aqui aplicável, nessa parte, por força do disposto nos artºs 14 e 16, deste último diploma) “as custas compreendem a taxa de justiça e os encargos” (nº 1), estando os processos “sujeitos a custas, salvo se forem isentos por lei” (nº 2).
Constitui princípio ou regra geral do nosso ordenamento jurídico-processual, em matéria de responsabilidade tributária, que a parte que decai na acção é responsável pelo pagamento das custas, ou seja, e numa linguagem comum, a parte que perde é que paga as custas do processo.
Regra essa que se encontra consagrada no artº 446 do CPC ao estatuir que “a decisão que julgue a acção ....condenará em custas a parte que a elas houver dado causa...”(nº 1), entendendo-se que “dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for” (nº 2). – sublinhado nosso
Ora no caso em apreço havia apenas duas partes, de um lado o MºPº, e de outro lado o réu, sendo que o tribunal a quo decidiu, a final, julgar a acção (totalmente) procedente.
Logo, a condenação do réu (que decaiu totalmente na acção) na responsabilidade do pagamento das custas é um efeito automático da própria lei, pelo que o juiz não tem que fundamentar essa decisão.
E tanto mais que a taxa de justiça devida é fixa e não variável (como parece entender o apelante ao citar, a propósito, o artº 16, do CCJ, o qual manifestamente é aqui inaplicável, uma vez, que o seu campo de aplicação se situa na decisão de questões incidentais estranhas ao desenvolvimento normal da lide).
Só assim não poderá suceder quando, por ex., ocorre a situação prevista, no nº 3 daquele normativo legal, ou seja, quando existam várias partes no processo (vários reús e/ ou vários autores), ficando todas ou algumas delas vencidas, havendo, todavia, diferença sensível quanto à participação de cada uma delas na acção.
Desse modo, e sem necessidade de mais considerações, também nessa parte não ocorre nulidade da sentença, pelo que igualmente, quanto a tal questão, o recurso terá de naufragar.

3.1.3 Da nulidade da sentença na parte em que condenou o réu como litigante de má fé.
Como fundamento dessa arguida nulidade invoca o réu tratar-se de uma “decisão surpresa”, sem que lhe tenha sido dada oportunidade de previamente se pronunciar sobre tal questão e de se defender em relação a ela, em clara violação, além do mais, do disposto no artºs 3, nº 3, e 3-A do CPC.
Vejamos se quanto a essa questão assiste ou não razão ao réu-apelante.
Preceitua o artº 3, nº 3, do CPC, que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo licito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” (sublinhado nosso).
Por sua vez, estatui o artº 3-A do CPC que “o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais”.
Como é sabido, todo o nosso ordenamento processual civil, à semelhança do que sucede com quasi todos do mundo civilizado, tem como pano de fundo o princípio do contraditório, o qual se encontra espelhado em diversos normativos específicos ao longo do diploma, tal como se pode observar, nomeadamente, dos artºs 264, nº 3, 266, nº 2, 508, nº 4, 690, nº 5, 725, nº 2 e 787.
Com a reforma do Código de Processo Civil, efectuada pelo DL nº 329-A/95 de 12/12, e sobretudo, no que a este aspecto diz respeito, pelo DL nº 180/96 de 25/9, ampliou-se e sedimentou-se ainda mais esse princípio (do contraditório) através da nova da nova redacção dada ao artº 3, nº 3, e da criação do artº 3-A acima citados e transcritos, transformando-o numa das pedras basilares em que assenta todo o Código de Processo Civil.
Com a nova redacção do citado artº 3, nº 3, consagrou-se definitivamente o principio da proibição das “decisões surpresa”. O que implica que deva sempre ser facultada às partes a oportunidade de, antes de a decisão ser proferida, se pronunciarem sobre e qualquer questão que as possa afectar e que ainda não tenham tido possibilidade de o ter feito, mesmo tratando-se de questões meramente de direito e que sejam de conhecimento oficioso. Só assim não será em casos de manifesta desnecessidade (de ser respeitado o principio do contraditório e do direito de defesa), por se tratar de questão simples e incontroversa.
Por sua vez, o citado artº 3-A, consagra, desde logo, outro principio estruturante do nosso Código de Processo Civil, que é o princípio da igualdade (processual) das partes, e no qual radica, no fundo, o próprio principio do contraditório, de que atrás falámos.
Ora postas estas considerações e debruçando-nos sobre o caso em apreço deparamo-nos com a seguinte factualidade:
Na sentença final, em consequência da procedência da acção e pelas razões ali aduzidas, condenou-se, à luz do disposto no artº 456 do CPC, o réu, como litigante de má fé, numa multa de 1.000 €.
Porém, tal condenação ocorreu sem que alguma vez, ao longo do processo, tal questão tenha sido suscitada e sem que o srº juiz do tribunal a quo tenha previamente ouvido o réu, dando-lhe a possibilidade de se pronunciar ou de se defender a esse propósito, isto é, de dizer o que entendesse por conveniente sobre essa intenção de o vir a considerar e, consequentemente, a condenar como litigante de má fé.
Questão essa que, é hoje pacifico, é de conhecimento oficioso (vidé, por todos, Ac. RLx de 4/11/98 in “www.dgsi.pt/jtrl” e Ac. STJ de 6/6/2002 in “www.dgsi.pt/jstj”).
Ora tem vindo dominantemente a ser entendido pela nossa jurisprudência e doutrina que a condenação de alguém como litigante de má fé naquelas condições, acabadas de descrever (sem dar ao visado a possibilidade de se pronunciar e defender a esse propósito), torna a respectiva decisão ilegal, e mesmo, para outros, ferida de inconstitucionalidade - nomeadamente, por violação do conteúdo genérico do direito fundamental de acesso aos tribunais, que tem implicado em si a proibição da indefesa -, por violação dos artigos 3, nº 3, e 3-A do CPC, e bem assim dos artigos 13, 18, nº 1, e 20, nº 4, da CRP e ainda do artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos do Homem. (Vidé, a propósito, e no sentido acabado de defender, Ac. do STJ de 24/2/2002 in “Rev. Nº 813/03-2ª sec., Sumários, 4/2002”; Ac. do STJ de 17/12/2002 in “Rev. Nº 3992/02-6ª sec., Sumários, 12/2002”; Ac. do STJ de 28/2/2002 in ““www.dgsi.pt/jstj”; Ac. RC de 2/3/99 in ““www.dgsi.pt/jtrc”; Ac. do STJ de 30/9/2004 in “www.dgsi.pt/jstj”; Ac. TC nº 440/94 in “BMJ nº 438-84”; Ac. TC nº 605/95 in “BMJ nº 451-573”; Lopes do Rego in “Ob. cit. págs. 17 a 27” e Lebre deFreitas in “Ob. cit. vol. 1º, pags.6 a 102”).
Logo, a sentença recorrida ao condenar o réu como litigante de má fé, sem previamente lhe comunicar essa intenção e lhe dar a possibilidade de se pronunciar a tal propósito, conheceu de uma questão que não podia, nesse momento, conhecer, por ser ilegal, e como tal é, nessa parte, nula, à luz do disposto no artº 668, nº 1 al. d) - 2ª parte -, do CPC, (e não da al. b) do nº 1 do citado normativo como defendia o apelante), o que se declara. (vidé, nesse sentido, Ac. do STJ de 28/2/2002 in “www.dgsi.pt/jstj” e Lopes do Rego in “Ob. cit. pág. 24”).
E nesses termos julga-se, quanto a tal questão, procedente o recurso, revogando-se a douta sentença na parte em que condenou o réu como litigante de má fé, devendo, todavia, a esse propósito, os autos baixar à 1ª instância, para que seja cumprido o disposto no artº 3, nº 2, do CPC, após o que deverá, quanto referida questão, decidir-se em conformidade.
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em:
a) Em conceder parcial provimento ao recurso (de apelação), declarando-se nula a sentença recorrida na parte em que condenou o réu como litigante de má fé (e, consequentemente, revogando a mesma nessa parte), devendo, todavia, e no que a essa questão diz respeito, os autos aquando da baixa à primeira instância, serem feitos conclusos ao srº juiz de Circulo a fim de ser dado cumprimento ao disposto no artº 3, nº 2, do CPC, e, uma vez respeitado o principio do contraditório, ali consignado, decidir em conformidade.
b) Manter, quanto ao demais, a sentença proferida na 1ª instância.
Custas (do recurso), pelo réu e pelo autor-apelado (o MºPº), na proporção do respectivo decaímento, e que para o efeito se fixa em 2/3 para o primeiro e 1/3 para o segundo – muito embora este último delas esteja isento (artº 2, nº 1 al. a), do CCJ) e no que concerne ao primeiro se deva ter em consideração o benefício de apoio judiciário que entretanto lhe foi concedido – cfr. fls. 195/196 -, e de que, assim, goza até ao momento.

Coimbra,