Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1742/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO DE ANDRADE
Descritores: INJÚRIA
DOLO
CRIME DE RESISTÊNCIA
COACÇÃO DE FUNCIONÁRIO
ELEMENTOS
Data do Acordão: 06/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 181º, N.º 1, 184º, 132º, N.º 2, AL. J) E 347º, DO C. PENAL
Sumário: I- O crime de injúrias não exige a verificação do impropriamente chamado dolo específico. É tão-somente necessário que o agente queira com o seu comportamento ofender a honra ou consideração alheias ou preveja essa possibilidade de forma que a mesma lhe pudesse ser imputada dolosamente, nada mais.
II- No crime do art.º 347º do CP a ameaça tem que ser pré-ordenada como forma de oposição ao exercício das funções por parte do agente da autoridade e tem que ser idónea, em termos de causalidade adequada, a obter o resultado pretendido pelo agente. Tanto a resistência eficaz com a resistência ineficaz estão compreendidas na ofensa típica. A violência não tem que consistir numa agressão física, bastando a simples hostilidade idónea a coagir, impedir ou dificultar a actuação legítima do funcionário.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Findo o inquérito preliminar o digno magistrado do MºPº deduziu acusação contra o arguido A..., melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática de: - um crime de injúria agravada previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 181º, nº 1, 184º, 132º, nº 2, al. j) do C. Penal; e de: - um crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo artigo 347º do mesmo diploma.
Notificado da acusação, o arguido requereu a abertura da instrução sustentando não se mostrarem indiciados os pressupostos dos crimes por que foi acusado.
Realizada a instrução, após o debate instrutório, foi proferido, pela Mª Juíza de Instrução Criminal, despacho de não pronúncia, determinando o arquivamento dos autos.
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Recorre o digno magistrado do MºPº do aludido despacho de não pronúncia, concluindo a respectiva motivação com as seguintes CONCLUSÕES:
I — Nas diligências probatórias efectuadas em sede de instrução e plasmadas na fundamentação da decisão instrutória não resultaram elementos de prova susceptíveis de afastar os indícios recolhidos em sede de inquérito que constam da acusação pública proferida e que constituem o objecto do processo.
II — As expressões “só poderia ser você, o cabo B...” e “vocês andam-me a perseguir e isto é uma perseguição” proferidas pelo arguido ao ofendido, Furriel da Guarda Nacional Republicana, são susceptíveis de ofender a honra e consideração devidas a este, designadamente a sua dignidade profissional, por conterem um juízo explicito de que o mesmo pratica actos contrários aos deveres inerentes ao exercício das suas funções, com abuso de poder.
III — As expressões “já lá tenho em casa umas multas suas, mas isto vai acabar, não duvide, vou lá falar com o vosso comandante para ver se vocês deixam de me autuar”, “vou lá falar com ele e vou fazer todo o tipo de queixas a vosso respeito” e “isto não vai ficar assim porque eu sei bem como lhe estragar a vida, sei como se estraga a vida a um militar, vou-me vingar e bem, não se esqueça que a vingança é terrível”, proferidas pelo arguido ao Furriel B..., implicam uma ameaça do arguido de que iria desencadear procedimentos de natureza criminal e disciplinar contra o ofendido, visando causar neste receio de que tal ocorresse com o intuito de que este se abstivesse de prosseguir com os autos de procedimento contra-ordenacional que se encontrava a elaborar.
IV — Estando tais factos indiciariamente assentes, tal justifica a decisão de pronunciar o arguido pela comissão de um crime de injúria agravada e por um crime de coacção sobre funcionário p. e p. respectivamente, pelo n.º 1 do artigo 181º e artigo 184º, com referência à alínea j) do n.º 2 do artigo 132º, todos do Código Penal, e do artigo 347º, também do Código Penal.
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Não foi apresentada resposta.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. Mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual se pronuncia no sentido de que o recurso deve obter provimento.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos, tendo-se procedido a julgamento, em conferência, mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre apreciar e decidir.
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O fundamento do despacho de não pronúncia em recurso não consiste em que a prova produzida durante a instrução tivesse, de alguma forma, infirmado aquela que fora reunida durante a fase de Inquérito. Não assentando a decisão em qualquer meio de prova produzido durante a instrução, nem fazendo referência a que a prova recolhida na instrução tenha abalado, de alguma forma, a prova indiciária recolhida no inquérito. Pelo contrário a fundamentação da decisão recorrida é relativa apenas à qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, partindo do pressuposto que a matéria de facto descrita na acusação está indiciada, mas é insuficiente para preencher os elementos dos dois crimes imputados ao arguido.
Com efeito o douto despacho recorrido pondera a este respeito: “a questão que nos é submetida reconduz-se a saber se no decurso do inquérito foi reunida prova da qual resultem indícios de facto suficientes para a submissão a julgamento pela prática de um crime de injúria agravada e um crime de resistência e coacção sobre funcionário”.
Concluindo, no que toca ao crime de injúria, que “a terem sido proferidas todas aquelas expressões pelo arguido A..., as mesmas mais não representam do que um desabafo (...) das palavras mencionadas na acusação pública não logramos retirar qualquer indício de qualquer intenção injuriosa tal como entendemos dever definir-se a injúria”. E, relativamente ao crime de coacção, que “da factualidade descrita na acusação (…) igualmente não se retira o primeiro dos elementos acima apontados com pertencentes ao tipo de ilícito (…) que o fim da acção do arguido foi o de ele se opor ao exercício pelo funcionário das suas funções, ou seja, opor-se o agente à concretização da actividade do Estado. Não só não encontramos elementos suficientes à afirmação deste fim, como os que se contêm na acusação são manifestamente insuficientes à sua comprovação, tendo em conta que o furriel B... não pode considerar-se, já o dissemos, atentas as suas específicas funções, um homem médio, e sim um homem preparado para gerir situações de crise, como a que está subjacente aos autos, ou, até, outras, bem mais difíceis”.
A decisão instrutória recorrida procede à análise dos pressupostos dos crimes imputados ao arguido, concluindo que as expressões descritas na acusação representam um mero “desabafo” sem qualquer “intenção injuriosa”. E que na acusação pública não existem elementos suficientes para a afirmação de que “o fim da acção do arguido foi o de se opor ao exercício, pelo funcionário, das suas funções”.
Assenta pois no plano estritamente jurídico, sem qualquer referência a que a prova produzida na instrução tenha alterado a base probatória indiciária da acusação, o mesmo é dizer, sem questionar que se mostra indicada a matéria objectiva reportada na acusação.
Assim, não tendo sido postos em causa, durante a instrução, a decisão de pronúncia ou não pronúncia, como foi equacionado pela decisão recorrida, tem por base a matéria de facto descrita na acusação.
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A matéria de facto descrita na acusação, indiciada, é a seguinte:
- No dia 6 de Outubro de 2004, cerca das 10 horas e 15 minutos, no IP 5, em Taboeira, área da comarca de Aveiro, B..., furriel da Guarda Nacional Republicana, a prestar serviço no Destacamento de Trânsito de Aveiro, procedia à fiscalização do veículo tractor de mercadorias de matrícula nº 03-91-SG, utilizado pela sociedade “C...”, da qual são sócios e gerentes os progenitores do arguido.
- Nessa ocasião, o arguido compareceu naquele local, apercebendo-se de que o Furriel B..., em consequência daquela acção de fiscalização, havia detectado várias infracções e procedia à elaboração dos autos de notícia por contra-ordenação respeitantes às mesmas;
- Desagradado com tal facto, o arguido, dirigindo-se ao Furriel B..., disse-lhe: “Só poderia ser você, o cabo B...”, “Já lá tenho em casa umas três ou quatro multas suas, mas isto vai acabar, não duvide; vou lá falar com o vosso comandante para ver se vocês deixam de me autuar “, “Vou lá falar com ele e vou fazer todo o tipo de queixas a vosso respeito”, “Vocês andam-me a perseguir e isto é mesmo perseguição” e “Isto não vai ficar assim porque eu sei bem como lhe estragar a vida; sei como se estraga a vida a um militar; vou-me vingar e bem; não se esqueça que a vingança é terrível”;
- Ao proferir tais expressões, pretendeu o arguido afirmar que o Furriel B... praticava actos contrários aos deveres das suas funções e com abuso dos poderes às mesmas inerentes, o que é atentatório da sua honra pessoal e da sua dignidade profissional.
- Mais pretendeu o arguido dar a entender ao Furriel B... que seria capaz de contra ele desencadear procedimento criminal e disciplinar, sem qualquer fundamento real, e assim o prejudicaria na sua carreira de militar da Guarda Nacional Republicana, o que fez com o intuito de lhe causar receio de que tal mal prometido se concretizasse, por forma a levá-lo a abster-se de dar seguimento aos autos de contra-ordenação que havia elaborado.
- O Furriel B... estava devidamente uniformizado com a farda da Guarda Nacional Republicana e faziam-se transportar num veículo daquela corporação devidamente identificado, o que o arguido viu, bem sabendo que o mesmo pertencia àquela Guarda e se encontrava no exercício das respectivas funções;
- O arguido agiu de modo livre, consciente e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
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Nos termos do artigo 308º, n.º1 do Código de Processo Penal, Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Por sua vez o art. 283°, n° 2, do C. P. Penal estabelece que "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".
A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de condenação a que se refere o art. 283º é uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz apenas deve pronunciar o arguido, quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha praticado os factos constitutivos do crime do que os não tenha praticado.
No juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa, nomeadamente da protecção contra intromissões abusivas na esfera dos seus direitos salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 27º da Constituição da República.
Luís Osório (Comentário ao Código de Processo Penal Português, vol. IV, p. 411) refere que devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia, a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado.
Para a pronúncia, e não obstante não ser necessária a certeza da existência da infracção, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes, para que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade no que respeita aos factos que lhe são imputados (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 31 de Março de 1993, C.J., Tomo II, pág. 66).
A prova carreada para os autos deve ser avaliada fazendo não só a leitura isolada de um ou outro meio de prova, mas relacionando-os e conjugando-os entre si e em confronto com as princípios do conhecimento científico, da razão e da lógica e com as regras da experiência comum, daquilo que é normal acontecer em circunstâncias idênticas da vida real, tendo presentes as motivações do comportamento humano.
Tendo em conta, no caso, dada a natureza da instrução, não só a prova produzida nesse fase, mas também a prova produzida durante o inquérito, que a instrução visa confirmar ou infirmar.
Com efeito postula o art. 286º, nº 1 do C. P. Penal que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Sendo certo que, como observou CASTANHEIRA NEVES (Lições de Processo Penal policopiadas, p. 39) “na apreciação da suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.
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A questão que se coloca no caso, como se referiu é aquela que foi equacionada no despacho recorrido, ou seja, estabelecer se a matéria de facto descrita na acusação, a comprovar-se em julgamento, é susceptível de preencher os elementos típicos dos crimes. O mesmo é dizer se o despacho recorrido tem bom fundamento quando decide, em face da matéria indiciada, que as expressões tidas por injuriosas pela acusação constituem “mero desabafo” e aquelas outras tidas na acusação como integradoras do crime de coacção são inadequadas a obter o resultado típico do crime de coacção.
O despacho recorrido assenta em dois postulados fundamentais:
- quanto ao crime de injúria que as expressões descritas na acusação representam um mero “desabafo” sem qualquer “intenção injuriosa”; e
- quanto ao crime de coacção, que na acusação pública não existem elementos suficientes para a afirmação de que “o fim da acção do arguido foi o de se opor ao exercício, pelo funcionário, das suas funções”. Com o argumento de que o visado se encontrava no exercício das suas funções e como tal “preparado para gerir situações de crise, como a que está subjacente aos autos, ou, até, outras, bem mais difíceis”.
No que toca a crime de injúria, com relevo para a apreciação do recurso, importa salientar que o crime de injúria não exige a verificação do impropriamente chamando dolo específico.
Com efeito, como observa Maia Gonçalves (CP Anotado, 15ª ed., p. 601), já na vigência do C. Penal de 1886 a exigência do dolo específico assentava num equívoco, que era o de considerar como dolo específico elementos que, ou estavam integrados no dolo genérico (directo necessário ou eventual) ou que faziam parte do tipo de ilícito.
Sendo certo que já então a doutrina mais generalizada e a jurisprudência dominante se entendia ser tão-somente necessário que o agente quisesse cm o seu comportamento ofender a honra ou consideração alheias ou previsse essa possibilidade de forma que a mesma lhe pudesse ser imputada dolosamente, nada mais.
Entendimento agora consagrado sem margem para dúvidas já sustentado, no domínio do C.P. 1886, pela doutrina mais autorizada – v.g. Beleza dos Santos, RLJ, ANO 92, p. 196 e sgs.. E que recolhe a quase unanimidade da doutrina actual – cfr. Faria Costa, Comentário Conimbricence, tomo I, 612; Maia Gonçalves, CP Anotado, 15ª ed., p. 601.
Necessário é pois que o dolo revista qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C:”
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O crime de resistência ou coacção a funcionário (art. 347º do CP) consiste em “empregar violência ou ameaça grave contra membro das forças militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções...”.
Trata-se de um crime de execução vinculada uma vez que não pode ser realizado por mais nenhum meio a não ser o emprego de ou de ameaça.
Constitui assim elemento essencial do tipo a utilização de ameaça grave conta membro das forças de segurança para se opor ao exercício das funções. A ameaça tem assim que ser pré-ordenada como forma de oposição ao exercício das funções por parte do agente da autoridade. E tem que ser idónea, em termos de causalidade adequada, a obter o resultado pretendido pelo agente.
No entanto, “Diferentemente do que sucede no crime de coacção do art. 154º não se torna necessário que à adequação do meio, se siga um comportamento coagido. Tanto a resistência eficaz como a resistência ineficaz estão compreendidas na ofensa típica. Trata-se de um crime material, uma vez que deve exigir-se, para a consumação, um resultado intermédio: que a acção violenta ou ameaçadora tenham atingido, de facto o seu destinatário (…) da parte do agente exige sempre uma actuação constrangedora; mas essa actuação pode pretender levar o sujeito passivo a agir ou deixar de agir”- Cristina Líbano Monteiro, Comentário, Tomo III, p. 342.
Verificando-se a ameaça grave sempre que a acção afecte a segurança e tranquilidade da pessoa a quem se dirige e seja suficientemente séria para produzir o resultado pretendido. A violência a que se alude não tem que consistir numa agressão física, bastando a simples hostilidade idónea a coagir, impedir ou dificultar a actuação legítima do funcionário. O bem jurídico protegido não tem natureza eminentemente pessoal, assentando antes o seu escopo na autonomia funcional do Estado. Assim o crime é único, ainda que seja vários os funcionários visados com a coacção – STJ de 17.05.2001, SASTJ n.º50, p. 91.
Se não há o emprego de violência (vis phisica, vis corporalis) ou de ameaça (vis compulsiva) limitando-se o indivíduo à inacção, à atitude ghândica, à fuga ou tentativa de fuga, à oposição branca, à manifestação verbal de um propósito de recalcitrância, à simples imprecação de males (vg. praga) não se integra a resistência – Cristina Líbano Monteiro, Comentário, Tomo III, p. 342-343, citando Nelson Hungria.
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Estando em causa expressões verbais ou meras palavras, não traduzidas em actos de violência física, quer nos factos relativos ao crime de injúria, quer nos relativos ao crime de coacção, na determinação da sua adequação para produzir o resultado típico, surge como essencial a ponderação do respectivo contexto ou as circunstâncias concretas do caso conhecidas do agente.
Na verdade, como refere Faria Costa, no Comentário Conimbricence, tomo I, p. 612, referindo-se ao crime de injúria, “o cerne da determinação dos elementos objectivos tem sempre de se fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Residindo aqui um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo.
Na formulação de Eduardo Correia (Direito Criminal, I vol., p. 257) “para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e una acção não basta que a realização concreta daquele se não possa estabelecer sem esta; é necessário que, em abstracto, a acção seja idónea para causar o resultado; que o resultado seja uma consequência normal, típica, da- acção. O processo lógico deve ser de prognose póstuma, ou seja, de um juízo de idoneidade referido ao momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado não se tivesse ainda verificado, isto é de um juízo ex ante. Este juízo deve ser feito segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas da situação... segundo as regras da experiência normais e as circunstâncias concretas em geral conhecidas, não se devendo porém abstrair, para a sua determinação, das circunstâncias que o agente efectivamente conhecia”.
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Relativamente ao crime de injúria, refere o despacho recorrido que se trata de mero “desabafo”, sem intenção de injuriar.
No entanto o mero desabafo é, pela sua natureza, neutro, mera reacção (exclamativa), a quente, a uma situação aparentemente injusta ou inesperada. Ou como refere Nelson Hungria, no excerto acima transcrito, à mera “inacção, atitude ghândica, fuga ou tentativa de fuga, oposição branca, manifestação verbal de um propósito de recalcitrância, simples imprecação”.
No entanto no caso em apreço, não estamos perante uma mera exclamação ou impropério. Pelo contrário há uma focalização na pessoa do visado, com evidente personalização (você cabo B...), para além de se lhe imputar uma actuação objectivamente grave e ilícita de abuso de funções.
Por outro lado, no aludido contexto de apuramento das “circunstâncias concretas em geral conhecidas e circunstâncias que o agente efectivamente conhecia” importa salientar que o requerimento de abertura da instrução trazia implícito que a empresa em nome de quem o arguido se apresentava arguido estava a ser objecto de autuações mais ou menos infundadas ou arbitrárias por parte da GNR, mais especificamente do “cabo B...”. No entanto, apesar de tal “suspeição”, não foi aduzido qualquer elemento de prova que aponte, ou indicie sequer ao de leve, a arbitrariedade ou aparência de injustiça de qualquer autuação levada a cabo pelo visado. Não podendo assim sustentar-se, em termos de adequação social, que pudesse tratar-se de uma reacção, em estado de exaltação, como eventual “retorsão” ou “direito à indignação” contra um acto aparentemente injusto.
Muito menos pode sustentar-se, em termos de prova indiciária, que se tratou de uma reacção instantânea à actuação do visado, com a qual o arguido tivesse sido “surpreendido”. Pelo contrário verifica-se que o arguido não era condutor, nem viajava, sequer, no veículo autuado.
De onde resulta que se deslocou propositadamente ao local com a finalidade específica de se intrometer e obviar ao exercício da missão dos agentes que procediam à autuação.
Repare-se aliás no teor do auto de notícia que refere que este tipo de actuação do arguido já tinha acontecido em outras ocasiões em que não chegou a ser autuado, mas que pela insistência e repetição, desta vez foi entendia como traduzindo clara vontade de intimidar e coagir os autuantes para deixarem de autuar as viaturas da empresa.
Pelo que sendo posta em causa, em forma de suspeita, atribuindo-lhe comportamentos não de parcialidade para mais estando as suspeitas vagamente aduzidas plenamente contrariadas pelos elementos de prova trazidos aos autos pelo próprio arguido, são objectivamente injuriosas.
Sendo certo que, como Refere Faria Costa (Comentário Conimbricence, t..I, p. 612 2) “Qualquer aprendiz da maledicência e muito particularmente o senso comum sabem que a insinuação, as meias verdades, a suspeita, o inconclusivo são a maneira mais conseguida de ofender quem quer que seja. Basta que nos capacitemos de que à meia verdade é sempre difícil responder ou contra-argumentar racionalmente e por isso, a ressonância desonrosa, ligada à ofensa, multiplica-se com credibilidade, porquanto ali há um pouco de verdade”.
Entendendo-se assim que no contexto da ocorrência, os factos (não isolados, mas vistos ainda inseridos na globalidade da actuação imputada ao arguido) serão suficientes para preencher os elementos objectivos do crime de injúria.
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No que concerne ao crime de ameaça, afirma o douto despacho recorrido que não se retira da acusação “que o fim da acção do arguido foi o de ele se opor ao exercício pelo funcionário das suas funções, ou seja, opor-se o agente à concretização da actividade do Estado”.
No entanto consta além do mais dos parágrafo 4º e 5º da acusação que o arguido: “pretendeu dar a entender ao furriel B... que seria capaz de contra ele desencadear procedimento criminal e disciplinar, sem qualquer fundamento real, e assim o prejudicaria na sua carreira de militar da Guarda Nacional Republicana, o que fez com o intuito de lhe causar receio de que tal mal prometido se concretizasse, por forma a levá-lo a abster-se de dar seguimento aos autos de contra-ordenação que havia elaborado”.
Estabelecendo assim a acusação claramente a relação de causa/efeito entre a conduta do arguido e a intenção de condicionar a actuação do visado no exercício das suas funções. Para além da objectividade da ameaça – não só a ameaça de procedimento criminal e disciplinar sem fundamento, como ainda de prejudicar a carreira, como bem sabia fazer, além de ameaças de outras vinganças não descriminadas mas “terríveis”.
Devendo a adequação se vista dentro do contexto do “diferendo” que já tinha tido outras ocorrências, do arguido para com as autuações da GNR aos camiões da empresa, cujos antecedentes são referidos no auto de notícia e se evidenciam da leitura da sentença judicial de que foi junta cópia (fls. 104-107) pelo arguido com o requerimento de abertura da instrução.
Acresce que os autos de contra-ordenação de que juntou cópia aos autos se encontram todos eles devidamente fundamentados em termos de facto e de direito, sem que o seu teor ou os factos ali descritos hajam sido postos minimamente em causa.
Por outro lado o local da actuação é “ IP5”, onde a patrulha se encontrava isolada, ao contrário do arguido que, para além da solidariedade do condutor do camião, empregado da empresa, ali se deslocou acompanhado, como resulta de depoimentos de outros empregados da empresa, produzidos na instrução.
A autuação não estava finda, mas em curso, o que confere perspectivas de a sua actuação ainda poder demover o comandante da patrulha, ou pelo menos demovê-lo de autuar a empresa, ou “fechar os olhos” em situações futuras.
Os autos de contra-ordenação de que juntou cópia aos autos se encontram todos eles devidamente fundamentados em termos de facto e de direito, sem que o seu teor ou os factos ali descritos hajam sido postos minimamente em causa.
A quantidade de viaturas autuadas por contra-ordenações identificadas pelo arguido nos documentos que juntou na instrução e descritas na sentença que o condenou pelo crime de coacção evidenciam que se trata de empresa de amplos recursos, o que associado à pertinácia do arguido deixa antever a sua capacidade para levar a cabo a vingança anunciada.
A que acresce a imprecisão das ameaças - vingança indiscriminada, para além da participação infundada aos superiores hierárquicos, o que mesmo não tendo fundamento obrigava sempre o visado a justificar-se, sendo certo que perante suspeições não descriminadas a possibildiade de defesa do visado fica limitada, ficando sempre a “suspeição”
O despacho recorrido tem ainda como pressuposto que as expressões dirigidas ao “cabo B...” não são adequadas a produzir o resultado típico, porquanto “se encontrava no exercício das suas funções e como tal preparado para gerir situações de crise, como a que está subjacente aos autos, ou, até, outras, bem mais difíceis”.
Resultando do exercício de funções como que com um estatuto de imunidade reforçada que tornava, no caso, o ofendido imune à ameaça.
No entanto, para além da gravidade objectiva das ameaças (vingança terrível, queixas sem fundamento, bem sabendo como dar cabo da vida ao visado por outras acções não especificadas) e da intensidade do propósito, como alega o digno recorrente, a especial “defesa” do visado, conferida pelo seu estatuto e pelos meios de que dispõe (vg. arma, estando em causa qualquer arremesso de exaltação momentânea de cidadão indefeso) fica despida de fundamento em casos, como o dos autos, em que a ameaça não se situa no âmbito desse “escudo” ou do estatuto do visado, nem da possível defesa imediata.
No Estado de Direito Democrático o exercício da autoridade não confere estatuto de imunidade, mas, pelo contrário, obriga ao cumprimento estrito da legalidade. Devendo a legitimação democrática merecer respeito acrescido ao cidadão. Não só porque exercido em nome da legalidade democrática, como ainda porque o Estado de Direito assegura o direito de defesa contra quaisquer arbitrariedades.
Acresce que, pertencendo o visado à classe de sargentos (furriel) da Brigada de Trânsito da GNR, pelo posto que ocupa exigem-se-lhe elevados níveis de objectividade, legalidade e isenção.
Entendendo-se assim que os factos tal como emergem do inquérito/acusação, não contrariados na instrução, preenchem os elementos do tipo objectivo também do crime p no art. 347º do CP
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Relativamente aos pressupostos do tipo subjectivo dos crimes, para além do que se adiantou supra acerca do crime de injúria, verifica-se que o arguido conhecia bem o comandante da patrulha a quem se dirigiu, tanto que o tratou logo por “você, o cabo B...”.
E logo quando se lhe dirigiu “despromoveu-o” - do posto de furriel que efectivamente é o seu, a cabo, mudando-o de categoria, o que aponta para a clara vontade de o desconsiderar. Não sendo inócua, em termos de cidadão comum tal “despromoção”, sabido o significado do comando, em função do posto, nas forças militarizadas.
O que, associado à intensidade da vontade (deslocação ao local, antecedentes) e à gravidade objectiva das imputações permite concluir que o arguido quis efectivamente ofender a honra e consideração do visado.
Acresce, no que toca ao crime de coação que foi o próprio arguido que juntou aos autos, com o requerimento para instrução, a já referida cópia de sentença judicial (cfr. fls. 104-107) que o havia condenado pela prática de um crime de coação sobre funcionário p e p pelo art. 347º, na pessoa de um outro agente da autoridade. Sendo certo que a actuação ali descrita é muito semelhante à descrita na acusação deduzida nos presentes autos. E nessa sentença são descritas várias autuações da empresa “C...” todas elas devidamente justificadas, após julgamento público, como exercício amplo do contraditório.
O que evidencia não só o bom fundamento das autuações – que o arguido não pôs sequer em causa – como ainda que o arguido tinha um “saber de experiência feito” sobre os elementos do tipo de crime. Não podendo refugiar-se no desconhecimento ou sequer na dúvida sobre os mesmos.
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Conclui-se assim que no contexto dos factos {sem que a matéria descrita na acusação tivesse sido posta em causa, sendo reforçada pelos elementos juntos pelo arguido - condenação anterior por crime de coação, identificação de várias autuações por contra-ordenações da firma C... -, local isolado (IP5), teor expresso das ameaças e imprecisão de outras aspectos em que poderiam consistir, intensidade da vontade do manifestada no facto de o arguido se ter deslocado ao local propositadamente para afrontar a patrulha, antecedentes comportamentos do arguido} as expressões “só poderia ser você, o cabo B... (…) vocês andam-me a perseguir e isto é uma perseguição” são adequadas a ofender a honra e consideração devidas ao visado, por conterem um juízo explícito de que o mesmo praticara actos contrários aos deveres inerentes ao exercício das suas funções, traduzindo actuação dolosa por parte do arguido, bem sabendo que ofendia o visado na sua honra e consideração.
E que as expressões “já lá tenho em casa umas multas suas, mas isto vai acabar, não duvide (…) isto não vai ficar assim porque eu sei bem como lhe estragar a vida, sei como se estraga a vida a um militar, vou-me vingar e bem, não se esqueça que a vingança é terrível”, proferidas pelo arguido dirigindo-se ao “cabo B...”, visando causar neste receio de vingança assim condicionando a sua actuação futura para com a empresa em nome de quem o arguido se apresentava, com esse objectivo declarado, surgem como adequadas a produzir o resultado típico, também de forma dolosa.
Pelo que, mostrando-se indiciariamente verificados os pressupostos dos crimes, mantendo-se a prova indiciária em julgamento, a condenação do arguido se apresenta altamente provável, devendo ser pronunciado.
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Nestes termos delibera-se conceder provimento ao recurso, julgando-o procedente, revogando-se a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra que pronuncie o arguido nos termos em que vem acusado pelo digno magistrado do MºPº. -------
Sem custas, dado não ter havido oposição.