Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2770/06.3TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
DEVER DE INFORMAR
VIOLAÇÃO
EFEITOS
CONTRATO-PROMESSA
SINAL
Data do Acordão: 06/30/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA – 1ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 5º, 6º E 8º DO D. L. Nº 446/85, DE 25/10; 410º E 442º DO C.C.
Sumário: I – Uma cláusula contratual inserida nas condições gerais de um contrato, condições essas pré-determinadas pela Ré e inseridas num texto-modelo revelador de que o mesmo se destina a ser utilizado numa pluralidade de contratos, determina que a sua validade seja apreciada à luz do regime das cláusulas contratuais gerais.

II - Nos art.ºs 5º e 6º do DL nº 446/85, de 25.10, impõe-se à parte que utilize cláusulas contratuais pré-formuladas para uma pluralidade de contratos, indepen­dentemente das pessoas que os venham a subscrever, para serem aceites no seu todo, o dever de comunicação e de informação sobre o conteúdo das mesmas.

III - Não é suficiente a pura notícia da existência de cláusulas contratuais gerais, nem a sua indiferenciada transmissão, exigindo-se que ao aderente sejam proporcionadas condições que lhe permitam, usando de normal diligência, aceder a um real conhecimento do conteúdo dessa cláusulas para formar adequadamente a sua vontade e medir o alcance das suas decisões.

IV - Se não forem proporcionadas essas condições de conhecimento das cláu­sulas contratuais gerais elas são tidas por excluídas do contrato singular – art.º 8º, do DL 446/85.

V - A ausência de prova sobre se uma dada cláusula foi ou não objecto de comunicação prévia à assinatura do texto pela Autora tem de ser resolvida contra a Ré, por ser ela a parte onerada com a sua prova, nos termos do artº 5º, n.º 3, do DL 446/85, de 25.10.

VI - A ausência de prova do cumprimento pela Ré do aludido dever de comunicação da existência da cláusula 3ª à Autora, determina a sua exclusão do contrato – art.º 8º, al. a), do DL 446/85 –, mantendo-se este, de acordo com o estabelecido no art.º 9º, n.º 1, do DL 446/85.

VII - O contrato-promessa consiste na convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato, sendo-lhe aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, pela sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa – art.º 410º, n.º 1, do C. Civil.

VIII - Deste contrato nasce, para o promitente-vendedor, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente à celebração do contrato prometido, ficando cumprida a obrigação quando o devedor realiza a prestação a que está vinculado – art.º 762º, n.º 1, do C. Civil.

IX - No art.º 442º, nº 2, do C. Civil, determina-se que num contrato-promessa, com entrega de sinal, se o não cumprimento do contrato for imputável a quem recebeu o sinal, deve este restitui-lo em dobro.

X - Esta sanção apenas se aplica ao incumprimento definitivo e não a uma situação de simples mora.

XI - O devedor incumpre definitivamente a sua obrigação de celebrar o con­trato definitivo quando por sua culpa a realização da prestação prometida é impossí­vel, ou então se recusa peremptoriamente a realizá-la, não corresponde a uma interpelação admonitória do credor para o fazer, ou deixou que a realização da sua prestação perdesse objecti­vamente interesse.

Decisão Texto Integral:    Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A Autora instaurou a presente acção declarativa com processo ordinário contra a Ré, formulando os seguintes pedidos:
a) Declarar-se que a Ré não cumpriu, de forma definitiva, o contrato promessa de compra e venda celebrado com a Autor em 22 de Fevereiro de 2006, junto aos autos como documento n.º 4:
b) Condenar-se a Ré, por via desse incumprimento, a pagar à Autora a quantia de €23.595,00 euros, correspondente ao dobro da importância que, a título de sinal e por força do aludido contrato esta lhe havia entregue;
c) Condenar-se a Ré a pagar à Autora a quantia total de € 69.016,00, a título de indemnização pelos restantes danos causados e que descreve na petição.
d) Tudo com juros à taxa legal e desde a citação e até efectivo paga­mento.
e) Condenar-se a Ré a suportar o custo da reparação da máquina Pel Job, modelo 25.4, constante da sua factura 1650004, de 15 de Maio de 2006, no montante total de € 4.563,16.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que explora inertes para a construção civil e que comprou à Ré uma mini-escavadora usada, marca Pel Job modelo 25.4, a qual parou, por avaria, no primeiro dia de trabalho. Mais tarde acabaram por fazer outro negócio nos termos do qual a Ré prometeu retomar a máquina pelo mesmo valor e vender à Autora uma outra, o que não chegou a acon­tecer porque a Ré não cumpriu o negócio e vendeu essa mesma máquina a terceiros. Este incumprimento causou-lhe prejuízos, designadamente ao nível da sua activi­dade profissional e daí os pedidos formulados.

Regularmente citada a Ré contestou, impugnando a versão dos factos, apresentada pela Autora e formulando pedido reconvencional.
Em síntese, diz que os factos narrados pela Autora não ocorreram como aquela os relata e que a Ré só soube da alegada avaria passados quase dois anos após a venda, tendo recebido a máquina nas suas instalações toda desmontada e sem algumas peças.
Foram estabelecidas negociações entre as partes com a finalidade da Autora adquirir outra máquina, ao mesmo tempo que esta mandou reparar à Ré a máquina em causa.
As conversações só não se concretizaram em negócio definitivo porque a Autora não obteve financiamento bancário para adquirir a nova máquina, mais cara que a primeira, sendo certo que a Ré retomava a máquina pelo mesmo preço da venda à Autora.
A Autora não pagou a reparação da mini-escavadora que está pronta para ser entregue à Autora.
Concluiu pela improcedência dos pedidos.
Em reconvenção peticionou a condenação da Autora a pagar-lhe o preço da reparação e juros desde a data da emissão da factura, bem como a quantia de € 1790,00, a título de custos de parqueamento da mini-escavadora nas suas instala­ções, acrescida de € 10,00  diários, futuros, até ao levantamento da máquina.

A Autora contestou os factos alegados na reconvenção, reafirmando o alegado na petição.

O processo seguiu com a elaboração do despacho saneador, tendo sido proferida decisão que julgou improcedente o pedido formulado pela Autora de condenação da Ré a indemnizá-la pelos danos não patrimoniais por si sofridos.

Veio a ser proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos:
Considerando o exposto.
1 - Julgo a acção improcedente e absolvo a Ré dos pedidos. Custas da acção pela Autora.
2 - Julgo a reconvenção parcialmente procedente e condeno a Ré a pagar à Autora a quantia de € 4.563,16 (quatro mil, quinhentos e sessenta e três euros e dezasseis cêntimos), acrescida de juros à taxa comercial desde 15 de Junho de 2006 até pagamento.
Relego para execução de sentença a indemnização a pagar pela Ré à Autora [1] relativamente aos custos de parqueamento da máquina Pel Job, enquanto estiver sob a guarda da Ré, até ao limite do pedido agora feito.

                                             *

Inconformada com esta decisão dela recorreu a Autora, apresentando as seguintes conclusões:
(…)
Conclui pela procedência do recurso.

A Ré apresentou contra-alegações, requerendo a rectificação de erros materiais da decisão recorrida, defendendo a improcedência do recurso.

Notificados para se pronunciarem nos termos do art.º 715º, n.º 3, do C. P. Civil, para a hipótese do contrato-promessa ser julgado validamente celebrado, a recorrente sustentou, para a hipótese de ser julgado validamente celebrado o con­trato-promessa de compra e venda, a procedência dos pedidos formulados na petição inicial e a improcedência do pedido reconvencional.
Por sua vez, a recorrida insistiu na inexistência de um contrato-promessa, pronunciou-se pela improcedência dos pedidos indemnizatórios formulados pela recorrente e, para a hipótese destes serem julgados procedentes, defendeu que haveria que tomar em consideração as despesas que aquela teria de suportar com a máquina em causa.

                                             *
1. Rectificação da decisão recorrida
(…)
                                             *
2. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações da recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:
a) As respostas dadas aos quesitos 2º, 3º, 4º, 5º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 17º, 18º, 19º, 20º, 23º, 24º, 29º, 35º, 36º e 38º, devem ser alteradas?
b) A cláusula 3ª das condições gerais do contrato celebrado entre a Autora e a Ré não é válida?
c) A Autora tem direito a receber uma indemnização correspondente ao sinal em dobro pelo incumprimento do contrato-promessa?
d) A Autora tem direito a receber uma indemnização pela impossibili­dade da máquina devida à sua avaria?
e) A Ré deve ser condenada a pagar o valor da reparação da máquina?
f) Os pedidos reconvencionais devem ser julgados improcedentes?

*
3. Os factos
                        (…)
                                             *
4. O Direito Aplicável

4.1  Da validade da cláusula 3ª do escrito apresentado pela Autora

Com a presente acção a Autora visa a condenação da Ré a pagar-lhe uma indemnização que em seu entender lhe é devida pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa que diz ter sido celebrado entre ambas.
Na sentença recorrida decidiu-se que o escrito apresentado pela Autora não configura um contrato-promessa, alicerçando-se esta posição no facto do mesmo não se encontrar assinado pelos gerentes da Ré e essa exigência constar de uma cláusula inserida no contrato.
Em 22 de Fevereiro de 2006, a Autora e um funcionário da Ré assinaram um acordo intitulado «Proposta de Compra e Venda» no qual a Autora prometia comprar à Ré e esta prometia vender uma máquina marca Fermec, modelo 860T, cor amarela, com o quadro n.º A445COV86.00869, pelo preço de € 18.500,00, acrescido do respectivo IVA no valor de € 3.885,00.
Nos termos desse escrito, a Autora entregava à Ré, a título de pagamento, a escavadora PEL-JOB, modelo 25.4, com o chassis 250.22809, pelo valor total de € 11.797,50 e o resto do preço, € 10 567,50, seria pago pela Autora à Ré através de um contrato de locação financeira a celebrar junto de uma instituição de crédito.
Consta do ponto 3 das Condições Gerais deste acordo o seguinte:
 «O presente contrato de compra e venda só é vinculativo para a promi­tente vendedora depois de aprovado por um dos seus Gerentes. Contudo, enquanto tal aprovação não ocorrer o promitente-comprador não se pode libertar do presente contrato», estando este texto escrito em letras que, quanto às minúsculas, têm um milímetro de altura».
Pretende a Autora que a cláusula cujo preenchimento determinou que a decisão recorrida não considerasse o acordo em questão um contrato-promessa seja considerada nula.
A cláusula em questão encontra-se inserida nas condições gerais de um contrato, condições essas pré-determinadas pela Ré e inseridas num texto-modelo revelador que o mesmo se destina a ser utilizado numa pluralidade de contratos.
Tal circunstância determina que a sua validade seja apreciada à luz do regime das cláusulas contratuais gerais, considerando que as mesmas se definem como estipulações predispostas em vista de uma pluralidade de contratos ou de uma generalidade de pessoas para serem aceitem em bloco, sem negociação individuali­zada ou possibilidade de alterações singulares [2].
Nos art.º 5º e 6º, do DL nº 446/85, de 25.10, impõe-se à parte que utilize cláusulas contratuais pré-formuladas para uma pluralidade de contratos, indepen­dentemente das pessoas que os venham a subscrever, para serem aceites no seu todo, o dever de comunicação e de informação sobre o conteúdo das mesmas.
Não é suficiente a pura notícia da existência de cláusulas contratuais gerais, nem a sua indiferenciada transmissão, exigindo-se que ao aderente sejam proporcionadas condições que lhe permitam, usando de normal diligência, aceder a um real conhecimento do conteúdo dessa cláusulas para formar adequadamente a sua vontade e medir o alcance das suas decisões [3].
Se não forem proporcionadas essas condições de conhecimento das cláu­sulas contratuais gerais elas são tidas por excluídas do contrato singular – art.º 8º, do DL 446/85.
Dispõe o art.º 5º, do DL 446/85, de 25.10:
1 - As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na ínte­gra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou aceitá-las.
2- A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.
3 – O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.
O dever de comunicação existe, como se disse, para possibilitar ao aderente um conhecimento antecipado da existência das cláusulas contratuais gerais que irão integrar o contrato singular, bem como o conhecimento do seu conteúdo [4], exigindo-lhe, para esse efeito, também a ele um comportamento diligente.
Este dever de comunicação não exige o conhecimento efectivo das cláusulas em questão pelo aderente, bastando que o contratante que delas se queira prevalecer desenvolva, para tanto, uma actividade razoável no sentido de proporcionar ao aderente esse conhecimento.
No caso dos autos não foi alegada pela Ré, a comunicação da cláu­sula em causa à Autora, nem se pode concluir da análise dos factos provados que tal tenha ocorrido. Apenas se provou que aquela cláusula se encontra inserida no texto do escrito em causa, o qual foi entregue à Autora, e que o seu texto se encontra escrito em letras que, quanto às minúsculas, têm um milímetro de altura, o que é manifestamente insuficiente para se poder concluir que a Ré dela deu conhe­cimento à Autora.
A ausência de prova sobre se a mencionada cláusula foi ou não objecto de comunicação prévia à assinatura do texto pela Autora tem de ser resolvida contra a Ré, por ser ela a parte onerada com a sua prova, nos termos do artº 5º, n.º 3, do DL 446/85, de 25.10.
A ausência de prova do cumprimento pela Ré do aludido dever de comunicação da existência da cláusula 3ª à Autora, determina a sua exclusão do contrato – art.º 8º, a), do DL 446/85 –, mantendo-se este, de acordo com o estabelecido no art.º 9º, n.º 1, do DL 446/85.
Excluída que está a cláusula 3ª do texto em causa, carece de qualquer justificação a apreciação da questão que a sua existência determinava, ou seja, a relevância da falta de assinatura do gerente da Ré.
Encontrando-se o texto assinado pelo representante da Autora e por um funcionário da Ré, deve considerar-se que esta ficou vinculada ao seu cumprimento.
Não só não foi alegado e, consequentemente, provado que aquele funcio­nário não dispunha de poderes de representação suficientes para obrigar a Ré, como, caso essa circunstância se verificasse, sempre estaríamos perante uma situação que a Ré não poderia opor ao Autor, por respeito da ideia de tutela da confiança, atenta a dificul­dade de revelação a terceiro das relações de representação dentro duma organização colectiva complexa como se apresenta a Ré [5].
Tendo-se concluído, contrariamente ao que havia sustentado a sentença recorrida, que a Ré ficou vinculada ao cumprimento do acordo subscrito pela Autora e pelo seu vendedor, cumpre decidir sobre as questões que ficaram prejudicadas pela solução dada na 1ª instância, nos termos do art.º 715º, n.º 2, do C. P. Civil, ampliando-se assim o objecto do recurso.
                                             *
4.2  Do pedido de devolução do sinal em dobro

O contrato-promessa consiste na convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato, sendo-lhe aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, pela sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa – art.º 410º, n.º 1, do C. Civil.
Deste contrato nasce, para o promitente-vendedor, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente à celebração do contrato prometido, ficando cumprida a obrigação quando o devedor realiza a prestação a que está vinculado – art.º 762º, n.º 1, do C. Civil.
Pretende a Autora a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 23.595,00 euros, correspondente ao dobro da importância que, a título de sinal e por força do aludido contrato esta lhe havia entregue, justificando este pedido no incumprimento definitivo pela Ré do contrato celebrado.
No art.º 442º, nº 2, do C. Civil, determina-se que num contrato-promessa, com entrega de sinal, se o não cumprimento do contrato for imputável a quem recebeu o sinal, deve este restitui-lo em dobro.
Esta sanção apenas se aplica ao incumprimento definitivo e não a uma situação de simples mora.
A Autora alicerçou a verificação do incumprimento definitivo do contrato no facto da Ré ter vendido a terceiro o bem prometido vender.
Como atrás ficou claro, tal facto não se encontra provado, pelo que a sua invocação não permite concluir pelo incumprimento definitivo pela Ré do contrato-promessa.
O devedor incumpre definitivamente a sua obrigação de celebrar o con­trato definitivo quando por sua culpa a realização da prestação prometida é impossí­vel, ou então se recusa peremptoriamente a realizá-la, não corresponde a uma interpelação admonitória do credor para o fazer, ou deixou que a realização da sua prestação perdesse objecti­vamente interesse.
Ora, da leitura do circunstancialismo apurado na presente acção não se veri­fica a existência de qualquer uma destas situações.
Não está demonstrada a impossibilidade do contrato ser cumprido.
Não há prova de qualquer interpelação da Ré por parte da Autora, com cariz admonitório, no sentido daquela proceder à celebração daquele contrato.
Também não está demonstrada uma perda de interesse objectivo da Autora na sua reali­zação. Se é verdade que pelas preten­sões deduzidas na presente acção é facilmente constatável que a Autora já não tem interesse em celebrar o contrato prometido, essa falta de interesse não tem qualquer fundamento objectivo perante a matéria apurada, pelo que também por este motivo não é possível concluir pela verificação duma situação de incumpri­mento definitivo.
Finalmente, também não resulta que tenha sido manifestada por parte da Ré uma atitude de recusa em celebrar o contrato prometido, susceptível de corres­ponder a um incumprimento definitivo da respectiva obrigação. Na verdade, para que a recusa do cumprimento duma obrigação possa equivaler a um situação de incumprimento definitivo deve ser peremptória, séria, categórica e definitiva [6]. Ora, em nenhuma das comunicações efectuadas pela Ré à Autora, apuradas na presente acção, aquela manifestou uma vontade de recusa em proceder à venda acordada, até porque, como já acima se notou, a Autora nunca a interpelou para efectuar tal prestação.
Se é certo que as atitudes da Ré concretizadas na reparação da máquina escavadora tomada em retoma e apresentação da factura da sua reparação à Autora, após esta ter dado ordem de reparação, não se inserem numa lógica de execução do contrato-promessa, mas sim da sua extinção, tal comportamento é manifestamente insuficiente para daí se concluir que foi a Ré quem manifestou perante a Autora de forma peremptória, séria, categórica e definitiva a sua intenção de não cumprir o contrato-promessa.
Não se tendo apurado um incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte da Ré, nunca a Autora poderia exigir a devolução de um sinal em dobro.
Além disso, a sanção prevista no art.º 442.º, n.º 2, do C. Civil, também nunca se aplicaria neste caso, uma vez que a entrega duma coisa infungível, como é uma escavadora, para pagamento antecipado do preço num contrato-promessa de compra e venda, sem convenção expressa nesse sentido, nunca poderia ser conside­rada um sinal, por aplicação do disposto no art.º 441.º, do C. Civil, o qual para o funcio­namento da presunção ali estabelecida exige que a entrega tenha por objecto uma quantia em dinheiro [7].
Não tendo a entrega antecipada da escavadora carácter de sinal, nem estando apurada uma situação de incumprimento definitivo da obri­gação da Ré celebrar o contrato prometido, não tem a Autora direito a reclamar o pagamento da indemnização por si peticionada como o dobro do sinal entregue.

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4. 3. Do pedido de pagamento duma indemnização pela avaria da esca­vadora

A Autora, além do pedido de restituição do sinal em dobro, pediu tam­bém que a Ré fosse condenada a pagar-lhe € 64.016,00, respeitantes a prejuízos resultantes da avaria da escavadora comprada à Ré.
Para fundamentar este pedido indemnizatório a Autora invocou prejuízos resultantes da privação do uso da máquina escavadora comprada à Ré antes da celebração do contrato-promessa acima analisado, resultante da sua avaria.
Relativamente a esta matéria apenas se provou que a Ré vendeu à Autora uma escavadora que lhe entregou nos finais do mês de Dezembro de 2004 e que em Setembro de 2005 a Autora levou a escavadora para as instalações da Ré com o motor avariado, desmontada e sem motor de arranque e resguardo do motor.
Se é verdade que a vendedora pode ser responsabilizada pela venda de coi­sas defeituosas (art.º 913º e seg., do C. Civil) e que se presume a culpa do vende­dor pela existência de defeitos na coisa vendida (art.º 799.º, do C. Civil) é necessário demonstrar que eles se verificavam à data da venda, não tendo resultado de inter­venções posteriores.
Ora, não resultou provado que a Ré tenha entregue à Autora a escavadora desmontada, sem motor de arranque e resguardo do motor, nem que a avaria do motor resultasse de qualquer defeito pré-existente à venda, pelo que a Ré não pode ser responsabilizada pelos prejuízos resultantes da paralisação da escavadora.
Além disso, sempre o eventual direito de indemnização da Autora pela existência de defeitos da coisa vendida já teria caducado pelo decurso do prazo de 6 meses após a entrega da coisa (art.º 916º, n.º 2, do C. Civil), para a denúncia do defeito, uma vez que apenas se provou que a Autora apresentou a máquina avariada em Setembro de 2005, quando a sua entrega havia ocorrido em Dezembro de 2004, e pelo decurso do prazo de 6 meses para a propositura desta acção, após a denúncia se efectuada atempadamente, ou após a entrega da máquina (art.º 917º, do C. Civil) [8], uma vez que esta acção só foi proposta em 10 de Outubro de 2006.
Alegou a Autora que a Autora reconheceu a existência do direito recla­mado, o que impediria o funcionamento da caducidade.
O reconhecimento deve traduzir-se num comportamento inequívoco do devedor manifestando uma vontade de cumprir a obrigação correspondente ao direito reclamado.
Ora, da análise da matéria de facto provada apenas resulta que a Ré ace­deu a reparar a máquina por ordem da Autora, não estando, no entanto, demons­trado, que essa sua disponibilidade tinha como pressuposto a admissão que a avaria lhe era imputável, antes surgindo inserida num acordo de vontades próprio da formação de um contrato de empreitada, relativo à reparação de um veículo.
Não está, pois, demonstrada a verificação de um acto de reconhecimento do direito de indemnização reclamado pela Autora, impeditivo da sua caducidade, pelo que, quer pela verificação deste facto extintivo, quer por nem sequer se terem provado os elementos constitutivos do mesmo direito, deve o respectivo pedido ser julgado improcedente.
                                             *

4.4. Do pedido de condenação da Ré a pagar o valor da reparação da escavadora e dos pedidos reconvencionais

Conforme já acima se referiu, após ter sido celebrado um contrato-pro­messa de compra e venda duma máquina Fermec foi entregue pela promi­tente compradora, a título de pagamento, uma escavadora.
Essa escavadora tinha sido apresentada, anteriormente à celebração do contrato-promessa pela promitente compradora à promitente vendedora, para reparação.
Com a celebração do contrato-promessa e inclusão neste da escavadora como pagamento do preço no estado em que se encontrava, tacitamente extinguiu-se o anterior contrato de reparação da escavadora (contrato de empreitada), por acordo das partes.
Com a entrega da escavadora como pagamento antecipado do preço acor­dado no contrato-promessa, a Autora transferiu o direito de propriedade sobre tal máquina para a Ré.
Não se provou a existência de qualquer facto extintivo do contrato-pro­messa que determinasse a restituição da escavadora ao património da Autora, pelo que a reparação em causa foi efectuada pela Ré em coisa que lhe pertence, não existindo, por isso, qualquer motivo para que seja a Autora a suportar os custos dessa reparação.
Também, pelo mesmo motivo, não tem a Autora de suportar os custos do parqueamento pela Ré duma máquina que pertence a esta.
Tendo sido a própria Ré a efectuar a reparação duma máquina que lhe pertence, nem há qualquer crédito relativo ao pagamento dos custos dessa reparação, pois o sujeito prestador dos serviços de reparação é também o seu beneficiário, nem nunca seria a Autora a titular do crédito reclamado, uma vez que não foi ela a efectuar a reparação da máquina.
Por isso também deve improceder o pedido formulado pela Autora de condenação da Ré a pagar o custo da reparação da máquina escavadora.
Por estas razões devem ser julgados improcedentes, quer o pedido de sim­ples apreciação deduzido pela Autora, quer os pedidos reconvencionais deduzi­dos pela Ré.
                                             *
Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso e, em conse­quência:
- revoga-se a decisão recorrida na parte em que julgou parcialmente pro­cedente a reconvenção, julgando-se totalmente improcedente a reconvenção e absolvendo-se a Autora dos pedidos reconvencionais deduzidos pela Ré, com as respectivas custas a cargo desta.
- mantém-se a decisão de improcedência da acção e consequente absolvi­ção da Ré dos pedidos formulados pela Autora, com as custas da acção a cargo desta.
                                             *
Custas do recurso pela Autora, na proporção de 94%, e pela Ré, na pro­porção de 6%.


[1] Por lapso de escrita trocou-se a Ré com a Autora.
[2] Almeno de Sá, in Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas, pág. 212, da 2ª ed. revista e aumentada, da Almedina

[3] Almeida Costas, in Cláusulas Contratuais Gerais, pág. 25, da ed. de 1986, da Almedina.

[4] Almeno de Sá, ob. cit., pág. 241.
[5] Sobre a relevância do mandato aparente Oliveira Ascensão e Carneiro da Frada, em Contrato celebrado por agente de pessoa colectiva. Representação, responsabilidade e enriquecimento sem causa, na R.D.E.S., Ano XVI a XIX (1990-1993), pág. 56-59, e Paulo Mota Pinto, em Aparência de poderes de representação e tutela de terceiros, no B.F.D.U.C., vol. LXIX (1993), pág. 631-645. 
[6] Neste sentido, Vaz Serra, em Mora do devedor, pág. 60-62, no B.M.J. n.º 48, pág. 60-62, BAPTISTA MACHADO, na R.L.J., Ano 118.º, pág. 275, nota 2, e 332, nota 35, Pessoa Jorge, em Direito das obrigações, 1º vol., pág. 296-298, da ed. pol. de 1976, da A.A.F.D.L., e Brandão Proença, em Do incumprimento do contrato-promessa bilateral, pág. 87-91, da separata de 1987 do B.F.D.U.C. Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. António de Arruda Ferrer Correia.

[7] Relativamente à discussão sobre se um sinal pode ter por objecto uma coisa fungível, ver Ana Prata, em O contrato-promessa e o seu regime civil, pág. 761-764, da ed. de 1999, da Almedina, Calvão da Silva, em Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, pág. 283, nota 513, da separata do BFDUC, Ana Coimbra, em O sinal: contributo para o estudo do seu conceito e regime, em O Direito, ano 122º (1990), tomos III e IV, pág. 621-671, Menezes Leitão, em Direito das obrigações, vol. I, pág. 233, nota 479, da 7.ª ed. da Almedina, Almeida Costa, em Direito das obrigações, pág. 796, nota 1, da 11ª ed., da Almedina, e Nuno Pinto Oliveira, em Ensaio sobre o sinal, pág. 21-24, da ed. de 2008 da Coimbra Editora.

[8] No sentido de que os prazos de caducidade do art.º 917º, do C. Civil também se aplicam ao direito de indemnização por defeitos da coisa vendida, João Calvão da Silva, em Compra e venda de coisas defeituosas, pág. 78 da 4ª ed., da Almedina.