Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7/06.4TAVNO.C3
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: PROVA DOCUMENTAL
AUDIÊNCIA
ACTO SEXUAL DE RELEVO
Data do Acordão: 06/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 172º DO CP,164º,165º,355º E 356º DO CPP
Sumário: 1. As provas que são atendíveis para formar a convicção, são as produzidas em audiência e as aí examinadas.
2. Significa isto que a prova por documento, quando não tiver sido junta na audiência, não é produzida nesta, mas tão só aí examinada, não se exigindo que a mesmas tenham de ser lidas.
3. Acto sexual de relevo é todo aquele que assume uma natureza ou significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade de quem o sofre ou pratica, que pela sua gravidade contende com a liberdade de determinação sexual da vítima.
4. O arguido que esfrega com os dedos as vaginas de suas filhas, pressionando-lhe os órgãos sexuais genitais, com o objectivo de se estimular sexualmente, pratica acto sexual de relevo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

Em Processo Comum Colectivo do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, por acórdão de 07.07.13, foi, além do mais, decidido, absolver a arguida de todos os crimes de que vinha acusada e condenar o arguido N..., pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artºs. 172°, nº1, e 177°, nº1, al. a) do CP, em duas penas de 20 meses de prisão e, em cúmulo, na pena unitária de 2 anos e 6 meses de prisão, sendo absolvido quanto aos demais dois crimes.
Ao abrigo do disposto no artº 179° do CP, o Tribunal determinou a inibição do poder paternal do arguido N..., em relação às filhas A... e I…, pelo período de dois anos e seis meses.
O arguido N... interpôs recurso, vindo a ser decidido nesta Relação, por acórdão de 08.02.13:
«... anular o acórdão recorrido, a fim de ser suprida a falta de fundamentação, designadamente, se assim se entender, proceder à reabertura da audiência para ouvir as menores I...e A... e proferir nova decisão em conformidade, dando-se deste modo cumprimento a imposição legal de confirmação dos depoimentos na parte em que se consideraram indirectos e que serviram para o tribunal a quo fundamentar a convicção».
Proferido novo acórdão na 1ª instância em 08.06.27, foi o arguido N... novamente condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artºs. 172°, nº1, e 177°, nº1, a) do CP, em duas penas de 20 meses de prisão e, em cúmulo, na pena unitária de 2 anos e 6 meses de prisão. Na mesma decisão, foi absolvido o arguido de dois outros crimes de abuso sexual de criança e também a arguida S... de todos os crimes de que vinha acusada. Ainda, e ao abrigo do disposto no artº 179º do CP, o tribunal determinou a inibição do poder paternal do arguido N..., em relação às filhas A... e I…, pelo período de dois anos e seis meses.
Inconformado, veio o arguido N... interpor de novo recurso para esta Relação.
Por acórdão desta Relação datado de 08.11.26, foi decidido:
“ declarar nulo o acórdão recorrido, por inobservância do disposto no artº 374º, nº 2, do CPP, conjugado com o artº 379º, nº 1 a) do mesmo Código, o qual deve ser reformado pelo mesmo tribunal, proferindo novo acórdão onde se supram as omissões apontadas na fundamentação com integral exposição do exame crítico da prova, sem prejuízo de outras questões de conhecimento oficioso”.
Regressados os autos à 1ª instância, aí foi proferido em 09.02.25, novo acórdão, no qual o arguido N..., foi novamente condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artºs. 172°, nº1, e 177°, nº1, a) do CP, em duas penas de 20 meses de prisão e, em cúmulo, na pena unitária de 2 anos e 6 meses de prisão. Na mesma decisão, foi absolvido o arguido de dois outros crimes de abuso sexual de criança e também a arguida S... de todos os crimes de que vinha acusada. Ainda, e ao abrigo do disposto no artº 179º CP, o tribunal determinou a inibição do poder paternal do arguido N..., em relação às filhas A... e I…, pelo período de dois anos e seis meses.
Inconformado o arguido interpôs recurso do acórdão, concluindo na sua motivação:
“a) O Colectivo dá como provados os pontos 5 e 6 do douto Acórdão quando as menores I...e A... afirmam peremptoriamente que estão a viver, respectivamente com o Z... e a F... e com o P... e a O..., o que configura erro notório na apreciação da prova (art. 410°/2, al. c) do CPP
b) O Colectivo valorou o depoimento da menor I…, de forma fulcral, quando o mesmo é aparentemente "preparado", confuso e contraditório, nomeadamente quando a criança refere que o N...lhe bateu na florzinha, com os dedos todos da mão, uma única vez, o que não constitui crime, e logo após refere que estava vestida, de pé, que ninguém lhe tirou a roupa e que a S...fez igual;
c) O Colectivo valorou o depoimento da menor A... quando o mesmo, apesar de relativamente mais expedido, revelar algumas incongruências, nomeadamente por não saber em que parte da casa foi e quem estava presente. Sabe no entanto que estava de pé e estava vestida. Após já refere que estava a tomar banho. Mais refere que as gémeas provavelmente estavam a dormir, quando, dos relatórios juntos aos autos e dos depoimentos prestados pelas outras testemunhas acerca dos factos, o N...também tinha feito às gémeas.
d) O colectivo valorou os relatórios médicos - legais, quando o que estes na verdade dizem é que existe "Ausência de lesões traumáticas a nível corporal, anal ou genital";
e) Os peritos médicos do GML Tomar, ao invés de prestarem os esclarecimentos que o Tribunal reputasse como necessários, depuseram como verdadeiras testemunhas, o que constitui violação do disposto no art. 350° do CPP e 388 ° do CC)
f) O Colectivo valorou o depoimento da testemunha H..., quando esta refere que o único conhecimento que tem do caso foi-lhe transmitido pelas colegas da CPCJ;
g) O Colectivo valorou de forma cabal o depoimento da testemunha Irmã R..., quando de concreto, o que esta diz é que a A... tinha creme e que o pai tinha feito dodoi no pipi;
h) Tudo o mais que esta testemunha refere é depoimento indirecto por lhe ter sido transmitido por outras pessoas, conforme resulta dos depoimentos da Drª B... e da C..., que estavam a dar banho à I...na altura em que a irmã R... dada banho à A...;
i) Como podiam as crianças ter a vagina vermelha, se, em momento imediatamente posterior (no mesmo dia) foram examinadas por uma médica (Ora X...) e está refere que não existe qualquer vermelhidão;
j) Valorou o depoimento da Drª B... por esta referir que a I...lhe disse que o pai a tinha aleijado com os dedos, não obstante a mesma I...ter referido à psicóloga (Drª D...) que o pai limpou-lhe o rabito e magoou-a na vagina com os dedos. A I..., inquirida na audiência de discussão e julgamento do passado dia 25/07, referiu situações totalmente diferentes, razão porque, além do depoimento da Drª B... ser depoimento indirecto e não poder ser valorado, a I...não o confirmou;
l) Valorou o depoimento da Drª X... quando esta refere claramente que as duas meninas observadas não tinham sinais de feridas, fissuras, hematomas, zonas negras ou vermelhidão, concluído ainda que nenhuma das crianças se queixou de ter sido "abusada" pelo pai;
m) Valorou o relatório pedopsiquiátrico quando este foi realizado com base nos textos juntos aos autos durante o inquérito pelas diversas pessoas que rodeavam as crianças, sem isenção e, ainda assim, só conclui que o que as crianças dizem tem "maior probabilidade de ser verdade". Para tanto, baseiam esta conclusão nos diversos relatos que as menores terão feito dos factos a pessoas diferentes. Não sabem, nem podem saber se as menores fizeram tais relatos.
n) Também estes peritos, ao invés de prestarem os esclarecimentos que o Tribunal reputasse como necessários, depuseram como verdadeiras testemunhas, o que constitui violação do disposto no art. 350º do CPP e 388º do CC;
o) Valorou o depoimento da testemunha D... quando esta refere que a I...lhe disse: o pai limpou-lhe o rabito e magoou-a na vagina;
p) Valorou o depoimento da testemunha K...quando esta refere que a I...lhe disse que lhe doía o pipi, a 24/01, já após as crianças terem sido examinadas pela Drª X... (dia 5 ou 6 Janeiro) e nada terem referido, nomeadamente queixume, e após ter sido realizado exame de perícia médico­-legal (dia 7 de Janeiro) e neste se referir que a I...não apresenta, naquela data, qualquer queixa;
q) Valorou o depoimento da testemunha C... na parte em que esta refere que a I...lhe transmitiu que o pai metia o dedo na "fulorzinha" dela, o que constitui depoimento indirecto e inadmissível, tanto mais que não foi confirmado pela I...que não referiu aquela expressão, mas antes que o pai bateu-lhe na florzinha com os dedos todos;
r) Valorou ainda o relatório de fls. 15 a 17 quando o não podia ter feito por não constituir qualquer relatório, ter sido recolhido em inquérito e as suas autoras, arroladas como testemunhas, o não confirmarem em grande parte, conforme resulta dos seus depoimentos, o que constitui violação do art. 356º CPP;
s) Ao basear-se, agora, essencialmente, nestes meios de prova que mais não são do que as declarações das menores, a da I...nada conclusiva de ter sido cometido qualquer crime (bateu-lhe na fulorzinha) e a A... confusa e contraditória, sem se conseguir localizar nas perguntas fáceis e com uma resposta directa nas perguntas sobre os alegados abusos (estava vestida, depois a tomar banho); e
t) As declarações das testemunhas, as quais reproduzem os mesmos factos, relatados várias vezes por diversas pessoas, conforme resulta da primeira audiência de discussão e julgamento, apenas se pode concluir que: a I...referiu que o pai lhe limpava o rabito; a segunda que teria creme e teria sido o pai a colocá-lo são insuficientes para a prova da matéria de facto (art. 410, n° 2 do CPP);
u) Também não resulta dos autos, que o pai, ao magoar as meninas mais velhas (I...e A...) o fizesse deliberada e conscientemente, que tivesse o intuito de se estimular sexualmente ou, que com tais comportamentos ou condutas punha em risco a evolução da personalidade da I...e da A..., no domínio sexual, bem como as molestava, na sua integridade e auto-determinação sexual;
v) Tanto mais que, como referem as menores, estavam de pé e vestidas;
x) O Colectivo não pode dar como provados os factos constantes dos pontos 30 a 45 por insuficiência da prova (art. 410, nº 2 do CPP);
z) Dos depoimentos das testemunhas já referidos para os pontos 8 a 10, bem como dos depoimentos das outras três testemunhas não resulta provada a matéria dada com provada;
aa) Tais factos resultam de relatórios valorados pelo Tribunal, mas estes, constituem, na opinião do recorrente, prova inadmissível por não serem relatórios sociais;
ab) Ao valorá-los o Tribunal violou o disposto no art. 356/1 b CPP;
ac) O Tribunal, na medida da pena, menosprezou as conclusões constantes dos textos/relatórios que foram elaborados pelas testemunhas, na parte em que referem que as crianças, passados poucos dias, estavam já melhor, sendo a pena aplicada demasiado pesada, uma vez, a terem ocorrido os factos, eles não interferiram com a "auto conformação da vida e práticas sexuais" das menores;
ad) Inexistindo, consequentemente, acto sexual de relevo, mostrando-se incorrectamente aplicado o art. 172 ° do CP;
ae) O arguido é pobre, humilde, de pouca educação e está, actualmente incapacitado devido a acidente de trabalho, mas tudo o que deseja é o melhor para as suas filhas;
af) A CPCJ de VV... e, em concreto, o lar de SM…, nas pessoas da Irmã R... e da Drª B... impediram o arguido de visitar as menores, desde a data da primeira institucionalização, já com o intuito de propor a adopção;
ag) Em síntese e do ponto de vista do recorrente, o Tribunal não procedeu a um exame crítico das provas, mostrando-se violado o art. 374°, nº 2 CPP;
ah) Desta falta de exame crítico da prova resulta erro notório na apreciação da mesma e consequentemente, manifesta falta de fundamentação de facto para o preenchimento do tipo, mostrando-se violados os art. 1720 do CP e 668/1 CPC;
ai) Não estando verificados os elementos do tipo, conforme resulta da audiência de discussão e julgamento, impunha-se a absolvição do arguido.”
O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que o mesmo deve ser julgado improcedente.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, emitiu douto parecer no sentido do improvimento do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

Na 1ª instância deu-se como provada a seguinte factualidade:
“ 1. Os arguidos N... e S... são casados entre si, desde 20 de Agosto de 1999;
2. Deste casamento, nasceram em 22/06/00, I… em 11/08/01, A… em 8/10/03, E... e V...;
3. Todas registadas, na Conservatória do Registo Civil de VV..., como filhas dos arguidos N... e S...;
4. Em 13 de Setembro de 2005, estas crianças foram retiradas da guarda dos arguidos;
5. E colocadas à guarda e cuidados do Centro de Acção Social do Santuário de UU...;
6. Onde, ainda, permanecem;
7. O que aconteceu, no âmbito da intervenção da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV...;
8. As quatro meninas foram passar alguns dias, nas férias de Natal de 2005, com os pais, à residência onde, então, os mesmos viviam, sita na Rua dos C…neste concelho e comarca;
9. Tendo estado com os arguidos, no período compreendido entre 23 de Dezembro de 2005 e 1 de Janeiro de 2006;
10. Em dias não concretamente apurados, mas durante o referido período, o arguido N..., por diversas vezes, em dias diferentes, no interior da residência mencionada em 8., tocou com os seus dedos e pressionou as vaginas de I...e A...;
11. Numa dessas ocasiões, esfregou os dedos das suas duas mãos, nas vaginas das duas meninas, em conjunto e ao mesmo tempo;
12. Tudo, para se estimular sexualmente;
13. Agiu de forma livre, deliberada e consciente;
14. Ciente de que, com tais condutas, punha em risco a evolução da personalidade de I...e A..., no domínio sexual;
15. Bem como de que as molestava, na sua integridade e auto-determinação sexuais;
16. E de que as mesmas condutas são proibidas por Lei;
17. Agindo com total indiferença perante a natureza de tais actos e o seu grau de parentesco em relação àquelas crianças;
18. Bem como perante o sofrimento físico e psíquico e confusão que lhes causava;
19. Após 8 de Julho de 2004 as meninas I...; A...; E... e V... passaram a ser acompanhadas pela CPCJ de VV...;
20. Uma vez que a E... e a V...foram sinalizadas no Hospital de Santo André por défice de peso, resultado de carências alimentares, tendo estas crianças passado fome nos seus primeiros meses de vida;
21. Na sequência da intervenção da CPCJ de VV..., diligenciou essa entidade pelo fornecimento gratuito de refeições às menores, pelo Centro Social do Olival;
22. Apoio esse que teve a duração de um ano;
23. A família em apreço foi ainda beneficiária do Rendimento Mínimo Garantido;
24. No entanto, os arguidos contraíram muitas dívidas;
25. Tendo eles próprios assumido não terem condições para tratar das filhas;
26. Pelo que solicitaram o internamento das mesmas numa Instituição;
27. Na sequência do que se concretizou o internamento das quatro meninas a que aludem os pontos 4. a 7.;
28. Ao longo dessa institucionalização as meninas eram muito agressivas, auto-puniam-se e tinham momentos de ausência;
29. Não tendo hábitos de higiene nem regras;
30. As gémeas E... e V..., quando lhes eram retiradas as fraldas abriam muito as pernas e levavam as mãos à vagina;
31. Quando chegou ao Centro de Acção Social do Santuário de UU... a A...era uma criança muito fechada;
32. Não obstante agressiva, a mesma não falava com ninguém, não controlava os esfíncteres e na escola pintava tudo de preto;
33. Nas primeiras noites passadas na referida instituição, a A...levantava-se de noite a gritar muito assustada;
34. Saía da cama e ia dormir debaixo das outras camas;
35. O que chegou a suceder, no princípio, quatro ou cinco vezes por noite;
36. Esta menina era a que mais se auto-punia com frequência e agressividade;
37. Passados poucos dias na instituição em apreço, a A...deixou de fazer xixi na cama;
38. Habituando-se a levantar e a orientar;
39. Passando também a dormir tranquilamente;
40. Tornou-se uma criança comunicativa;
41. As crises de auto-punição da menor voltavam a repetir-se após as visitas aos pais;
42. Mas vieram a ser ultrapassadas;
43. Por sua vez, de início, a I..., quando recebia um beijinho de outra criança perguntava, com ar de malícia e a rir: “Tu és a minha namorada?”;
44. Por duas vezes, esta menina foi observada deitada em cima de uma boneca grande, a falar e a gesticular, dizendo que estava a fazer amor, tal como via o pai e a mãe a fazer no sofá quando estavam a ver televisão;
45. Também nos primeiros tempos de institucionalização, por várias vezes, a I... descia as cuecas, inclinava-se para a frente e com as duas mãos forçava as nádegas, exibindo o ânus;
46. Atitude que foi deixando, desde logo, com a rejeição e desaprovação das demais crianças;
47. Durante o período aludido em 9., a casa sita na morada descrita em 8., encontrava-se numa enorme desarrumação, falta de higiene (casa de banho muito suja, fraldas acumuladas, louça suja, leite azedo em cima da mesa num biberão, sendo que as crianças já não mamavam, roupa molhada num alguidar) e denotava ausência de segurança (sofás perto da lareira, esta sem qualquer protecção);
48. No dia 1 de Janeiro de 2006, data do regresso das meninas, estas, vinham no mesmo estado em que haviam sido recebidas no Centro de Acção Social, em Setembro de 2005;
49. Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais;
50. Separaram-se, um do outro, há cerca de dois meses;
51. O arguido vive com os seus pais;
52. É operário fabril, mediante uma remuneração mensal de 400 euros;
53. Mas passa longo períodos em inactividade;
54. Actualmente recebe 250 euros de subsídio de doença, por mês;
55. Completou o 6º ano de escolaridade;
56. Revela incapacidade de relacionamento interpessoal, impulsividade, preocupando-se muito pouco com os interesses e necessidades dos outros;
57. Bem como incapacidade para gerir o seu quotidiano;
58. É visto pela comunidade onde vivia, enquanto vivia com a arguida, como uma pessoa sem hábitos de trabalho, sem capacidade de orientação e com hábitos de ingestão de bebidas alcoólicas em excesso;
59. A arguida vive sozinha;
60. Paga 200 euros, por mês, de renda de casa;
61. Aufere o vencimento mensal, como operária fabril de 403 euros;
62. Completou o 8º ano de escolaridade;
63. A arguida tem manifestado episódios depressivos, desde a sua infância;
64. Revela imaturidade, isolamento e incapacidade de envolvimento emocional com os outros;
65. Bem como dificuldades de organização e gestão, ao nível da lide doméstica;
66. No meio vicinal onde vivia, também era vista como uma pessoa sem hábitos de trabalho e depressiva.”
Motivação da matéria de facto:
“A convicção do Tribunal, quanto aos factos considerados provados, teve por base os seguintes fundamentos:
Em relação ao descrito em 1., a certidão do assento de casamento de fls. 249;
Quanto aos descritos em 2. e 3., as certidões de assento de nascimento de fls. 31 a 34;
No tocante aos descritos em 4. a 7., as declarações de ambos os arguidos e os depoimentos das testemunhas H...; Irmã R… e B…, todas elementos da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV..., que relataram os factos enunciados naqueles pontos 4. a 7., porque todos os protagonizaram.
Os arguidos foram os próprios a reconhecer as suas dificuldades em cuidar das meninas, assegurar-lhes higiene, alimentação adequada e a sua falta de recursos económicos para providenciarem o seu sustento e a assumir terem feito um acordo, com a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV..., no sentido de as meninas ficarem transitoriamente institucionalizadas.
H... é Técnica de Serviço Social em VV... e faz parte da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV..., desde 2001, tendo sido uma das pessoas que acompanhou a família composta pelos arguidos e suas quatro filhas, I..., A..., E...e V..., bem como a aplicação da medida de institucionalização das meninas. No período compreendido entre 23 de Dezembro de 2005 e 1 de Janeiro de 2006, fez duas visitas à residência dos arguidos, enquanto as quatro meninas ali se encontravam, com os pais;
A irmã R... é directora do Centro de Acção Social do Santuário de UU... e à data dos factos objecto deste processo, também integrava a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV...;
B... é médica e à data dos factos descritos na acusação fazia parte da mesma Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV...;
A Técnica de Serviço Social, H...; a religiosa, Irmã R... e a médica, B… membros da referida Comissão, nessa qualidade, acompanharam este agregado familiar, durante um ano, no sentido de os arguidos organizarem a sua vida, em termos profissionais e familiares, tendo contactado com as meninas e com os arguidos, em reuniões na Comissão, sendo que as testemunhas H... e Irmã R... em visitas domiciliárias, tendo, pelo menos, estas duas testemunhas constatado sintomas de fome, falta de higiene e carências de afecto manifestadas pelas meninas, tendo todas as três testemunhas, no âmbito da sua intervenção sob a égide da Comissão de Protecção de Menores e Jovens de VV..., decidido, por consenso com os arguidos, retirar as meninas da guarda dos pais e colocá-las, no Centro de Acção Social do Santuário de UU... que a irmã R...dirige há 12 anos;
No que se refere aos descritos em 8. a 18., desde logo, as declarações das duas meninas I...e A… que, com semblante triste e envergonhado explicaram, a primeira que o «N...» (é nestes termos que se refere ao seu pai) «lhe agarrou na florzinha», o que lhe causou dores, tendo, quando lhe foi solicitado que explicasse o que é «a florzinha», apontado para o seu órgão genital; a segunda, mais explícita, que o arguido N...introduziu os dedos da sua mão, tanto na vagina da própria, como na da sua irmã I..., o que ela também presenciou, acrescentando que «ele fez de propósito».
Estas declarações das duas crianças foram conjugadas com a prova produzida no primeiro julgamento, concretamente, os depoimentos das testemunhas Irmã R...; B...; Maria X... ; AS…; D...; K...; C…; AC…; LM…; ML…, analisados criticamente e conjugados com o teor do relatório social de fls. 15 a 17; dos relatórios médico legais de fls. 56 a 59; 61 a 63; 159 a 165 e da informação de fls. 191.
Irmã R... é Directora do Centro de Acção Social do Santuário de UU..., que também fez parte da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV..., tendo acompanhado a vida da família composta pelos arguidos e suas quatro filhas, I..., A..., E...e V..., desde os primeiros sinais de perigo para as crianças, crianças estas, com as quais convive diariamente, desde que, em Setembro de 2005, foram confiadas à instituição de que é Directora e a quem a A...e a I...explicaram detalhadamente, de forma verbal, acompanhada de gestos exemplificativos, mais do que uma vez e sempre da mesma forma, os actos praticados pelo pai, a que aludem os nºs 10. e 11., numa dessas vezes, as meninas contaram à Irmã R...tais factos, fora da presença, uma da outra, apresentando ambas a mesma versão.
Noutra ocasião, as duas meninas, explicaram, com linguagem verbal e gestos, como é que o pai lhes tinha feito, a propósito do facto descrito em 11., sendo que ambas os queriam explicar ao mesmo tempo.
Concretamente, a Irmã R..., ao dar banho à A…, quando regressou de casa dos pais, após as férias do Natal de 2005, constatou que ela tinha a vagina muito vermelha, com vestígios de creme anteriormente colocado, tendo ela esclarecido: acerca de quem colocou o creme “foi o pai”; tendo-lhe a Irmã R...perguntado sobre se tinha feito xixi nas cuecas e por isso estava assada, a A...respondeu: “ não, foi o meu pai que fez dói-dói no meu pipi”; sobre como tal tinha sido, “o pai fez com a mão”, acrescentando “o pai fez isso também à V...e à E...”.
Por sua vez, quanto à I..., nesse mesmo dia, depois de a A...ter tomado banho e ter feito o relato acima descrito, também foi tomar banho, altura em que se queixou à Irmã R...que lhe doía o «pipi».
Antes de lhe dar banho, a Irmã R...examinou a vagina da I...e constatou que também apresentava vermelhidão, embora não tivesse creme colocado.
A Irmã R...perguntou-lhe, então, porque é que lhe doía o «pipi».
A I..., de início e algo ausente, nada dizia, tendo depois contado: “Eu portei-me mal e o meu pai pôs-me de castigo na casa de banho… eu chorei muito e o meu pai tirou-me da casa de banho, levou-me para a cama… eu não parei de chorar e o meu pai tirou a minha roupa e esticou a minha passarinha e aleijou-me aqui”, ao mesmo tempo que com as pontas dos dedos juntas tocava a vagina querendo demonstrar como o pai lhe havia feito.
A I...acrescentou ainda que: “E o meu pai também fez isso à A...! … Ela chorou muito!”; “Ele fez isso muitas vezes com os dedos…”
Esta testemunha esclareceu, ainda, que dois dias antes da realização da primeira audiência de discussão e julgamento, ouviu uma conversa entre a I... e uma outra menina, na qual esta última referiu que ia passar as férias a casa da sua mãe, ao que a I...respondeu que «eu não vou para casa dos meus pais, porque o meu faz dói-dói no meu pipi… ele mexe no meu pipi».
B... é assistente social, fez parte da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV..., desde 2001, até 2006, a quem a I... , contou os factos descritos em 10. e 11., logo no dia 1 de Janeiro de 2006, quando chegou ao Centro de Acção Social do Santuário de UU..., onde a testemunha se deslocou de propósito, a pedido da irmã R..., depois de esta ter ouvido o mesmo relato da boca da menor.
Quando esta testemunha chegou à instituição, a I...já tinha tomado banho e estava no quarto dela a vestir o pijama. A testemunha começou por confrontar a I...com o facto de ela não ter tomado banho enquanto esteve de férias, em casa dos pais e ter a vagina assada, ao que a menina respondeu: «não é nada disso. Eu já disse que foi o meu pai que me aleijou com os dedos».
X… é médica com a especialidade de medicina familiar, fazendo parte da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV..., desde 2002. A pedido da irmã R..., observou a A...e a I..., nos primeiros dias de Janeiro de 2006, tendo constatado que estas duas meninas tinham um orifício vaginal maior do que o que seria normal, para a sua idade;
D... é a psicóloga que acompanha as meninas no Centro de Acção Social do Santuário de UU..., que as acompanhou à consulta de pedopsiquiatria, na sequência da qual foi elaborado o relatório pericial de fls. 159 a 165 e a quem a I...contou os factos descritos em 10. e 11.
Segundo os esclarecimentos desta testemunha, a I...contou-lhe tais factos, em três diferentes ocasiões, na sequência de conversa suscitada pela testemunha em causa, a esse propósito.
A testemunha D... desloca-se às Sextas-Feiras e Sábados ao Centro de Acção Social do Santuário de UU..., dias em que procede a entrevistas às crianças ali acolhidas e procede ao seu acompanhamento do ponto de vista psicológico, quando necessário, tendo sido nessas entrevistas que a I... fez os relatos dos factos mencionados em 10., segundo os esclarecimentos que a testemunha prestou;
K... foi educadora de infância da I..., no decurso do ano de 2006, no Jardim de Infância da CI... que esta menina frequentou e também ouviu, desta menor, o relato dos factos mencionados nos pontos 10. e 11.
Esse relato teve lugar, no dia 24/01/06 (um dia antes do aniversário da testemunha), depois da aula de natação, quando a I...se limpava, altura em que se queixou à testemunha que lhe doía o “pipi”.
Quando K... lhe colocou a possibilidade de tal se dever à água da piscina, a I... respondeu a K..., que tal não se devia à água da piscina, mas antes ao facto de o pai lhe ter mexido com a mão na sua vagina, tendo feito o gesto do que o pai lhe fez.
Como estavam presentes outras pessoas, a testemunha disse à I...que depois falavam melhor sobre o assunto. Nesse mesmo dia, a I...voltou a repetir estas palavras quando foi à casa de banho, queixando-se que lhe doía o “pipi” quando fazia o xixi. A testemunha K... voltou a insistir com a I...de que provavelmente, o pai a limpá-la a tinha aleijado sem querer, ao que ela respondeu: «Não, não, foi o pai que mexeu com o dedo e fez dói-dói».
C... é uma das crianças mais velhas que também tem estado acolhida no Centro de Acção Social do Santuário de UU..., a quem a I...relatou os factos mencionados em 10. e 11.
Durante dois anos, C... conviveu com as quatro meninas, no Centro de Acção Social do Santuário de UU....
Por vezes, durante as refeições, a I...comentava que o pai lhe tinha metido os dedos «na florzinha», referindo-se à sua própria vagina e que lhe fazia doer.
Segundo os esclarecimentos da testemunha C..., no início, começou por suspeitar de que a I...estaria a mentir.
Porém, em virtude de a menina se mostrar triste, quando relatava estes factos e porque o fazia sempre da mesma forma, mudou de opinião e, em conformidade, informou desse facto a irmã R..., até para evitar que a I...repetisse estes relatos na presença de outras meninas.
G... e H... são os peritos médico-legais que observaram as meninas no GML de Tomar e que elaboraram os relatórios médico-legais de fls. 56 a 59 e 61 a 63;
RV… e JL… são os médicos pedopsiquiatras, que trabalham no Departamento de Pedopsiquiatria e Saúde Mental Infantil e Juvenil de Coimbra e examinaram as quatro meninas, na sequência do que elaboraram o relatório pericial de fls. 159 a 165 e a informação complementar de fls. 191.
Com efeito, deste relatório de perícia pedopsiquiátrica, consta que: «A V...brinca com um boneco, que entretanto estava despido e coloca-lhe o biberon na região do ânus».
E, para além do mais, consta, ainda, que: «A E...põe o biberon no pénis do boneco.»
Por outro lado, na discussão nesse relatório, refere-se que:
«Estas meninas apresentaram, segundo referido, sintomas de distúrbio emocional e do comportamento (falha de desenvolvimento, distúrbios de sono, comportamentos sexualizados e auto e heteroagressividade marcadas), que melhoraram com a institucionalização e que se agravaram novamente após estadia em casa dos pais, no Natal de 2005.»
E mais à frente, referindo-se ainda que: «A descrição factual do alegado abuso, pelas crianças mais velhas, de forma consistente, a diferentes pessoas, em várias ocasiões e próximas da data provável da sua ocorrência, concomitante à existência de agravamento comportamental após ida a casa, aumenta a sua fiabilidade, com maior probabilidade de ser verdade».
A fls. 191 dos autos os mesmos médicos pedopsiquiatras que observaram as menores especificaram ainda que: «Do ponto de vista pericial e de acordo com o referido no último parágrafo da Discussão do Relatório Médico-Legal (ver pág. 7), é grande a probabilidade de serem verdadeiros, os relatos das menores, em virtude dos elementos aí referidos, considerados numa perspectiva de desenvolvimento», tendo, com os seus depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, corroborado estas conclusões, acrescentando que o tipo de actos de cariz sexual em causa, não podiam ter sido fruto da imaginação das crianças, dada a sua idade e falta de maturidade, sendo que só depois de vivenciados, poderiam ter sido relatados e de forma tão pormenorizada, a tantas pessoas distintas, em ocasiões diferentes e de forma tão consistente, apresentando sempre a mesma versão dos factos.
A mesma conclusão foi retirada pelos peritos médico – legais G... e H..., tendo esclarecido, tal como referiram, nos seus relatórios, que apesar de terem concluído pela ausência de lesões traumáticas a nível corporal, anal ou genital, não permitindo os exames concluir pela ocorrência de práticas sexuais, do mesmo modo não podem excluir as mesmas.
Concretamente, no exame de fls. 56 a 59, relativo à menor I..., consignou-se, ainda em sede de discussão: «1. A informação prestada pela examinanda, indicia manipulação genital. 2. Este tipo de práticas sexuais pode, eventualmente, originar lesões traumáticas pouco aparatosas, (tipo edema, escoriações), confinadas aos pequenos lábios, que curam em pouco tempo sem deixar vestígios».
E, segundo o que esclareceram, em audiência de discussão e julgamento, a razão pela qual, na ausência de marcas físicas de qualquer acto sexual, não excluem a possibilidade de actos de natureza sexual terem sido praticados nas duas meninas, se deve à forma objectiva e pormenorizada como as meninas descreveram, verbal e gestualmente, os actos de que acusam o pai, que lhes mereceu a conclusão de que as meninas estavam a falar verdade e a relatar eventos por elas próprias, realmente, vividos.
Todas estas testemunhas, pela forma serena, firme, cautelosa, mas, ao mesmo tempo, consistente como depuseram, mereceram ao Tribunal toda a credibilidade.
Todas foram unânimes, no sentido de serem credíveis as versões dos factos apresentadas pelas duas meninas.
Anote-se que a irmã R... que as conhece bem, por conviver diariamente com elas, durante cerca de dois anos, foi peremptória, no sentido de que as meninas não mentem.
De acordo com o teor dos depoimentos prestados quer pela referida testemunha, quer pela assistente social B..., pela psicóloga D..., pela educadora de infância K... e, por último, pela menina mais velha C..., a primeira reacção que todas tiveram ao ouvirem as próprias crianças contarem os factos descritos em 10. e 11., foi confrontá-las com explicações plausíveis, completamente desconectadas de intuitos de algum tipo de contacto sexual com elas, por parte do pai, o que elas sempre desdisseram, reiterando que o pai lhes mexia na vagina e lhes fazia doer.
É verdade que, no que se refere, especificamente, aos actos a que aludem os pontos 10. e 11., os seus depoimentos se reconduzem aos chamados depoimentos indirectos, tal como os mesmos são qualificados pelo art. 129º do CPP.
Mas o que também é verdade, é que se notou, em todas estas testemunhas, um grande cuidado e preocupação em se assegurarem de que as meninas estavam seguras das afirmações que proferiam, no sentido de acusar o próprio pai de lhes mexer com as mãos, nas suas vaginas e, por outro lado, tanto a A..., como a I…, foram ouvidas em audiência de discussão e julgamento e, em face do conteúdo do que ambas disseram ao Tribunal, nos termos já acima expostos, os depoimentos daquelas testemunhas R...; B...; D...; K... e C... não só podem, como, face à preocupação de rigor e de veracidade com que todas depuseram, devem ser valorados.
Por seu turno os esclarecimentos prestados pelas duas meninas I… e A…, na audiência de discussão e julgamento realizada em 25 de Junho de 2008 mereceram toda a credibilidade ao Tribunal, pelas seguintes razões:
Num primeiro momento, a abordagem do Tribunal às menores, estando as duas juntas, foi no sentido de as mesmas se sentirem descontraídas e confiantes, pelo que a conversa inicial versou acerca da festa de aniversário da I...que havia tido lugar no Domingo anterior, à qual também foi a irmã A...e dos doces e brincadeiras que as meninas mais gostavam e de outros assuntos sem qualquer ligação com os factos objecto deste processo, tendo elas interagido com os membros do Tribunal, com à-vontade, alegria e entusiasmo, rindo frequentemente.
Quando a conversa começou a encaminhar-se para a abordagem dos factos objecto do processo, concretamente, para os actos de cariz sexual descritos na acusação, foi ouvida uma menina de cada vez e em separado.
Tanto a I..., como a A..., mudaram radicalmente o comportamento.
Com efeito, a alegria e a extroversão manifestadas no primeiro momento, deram lugar a semblantes sérios e envergonhados e a uma atitude de retraimento.
Embora, com silêncios mais ou menos demorados, ambas acabaram por descrever, quer através de linguagem verbal, quer por gestos, o que o pai lhes havia feito e que é o que consta relatado em 10.
Ambos os depoimentos, que foram prestados em separado, foram coincidentes, quer um com o outro, quer com os anteriores relatos que as duas meninas haviam feito à Irmã R....
E são, ainda, coincidentes com aquilo que a I...havia contado à assistente social B..., à psicóloga D... e à educadora de infância K..., nos termos acima já descritos.
Anote-se que os depoimentos da I… e da A…, prestados naquele dia 25 de Junho de 2008 são, também idênticos aos relatos que, aquando da sua submissão a exame médico-legal, do que foram elaborados os relatórios médicos de fls. 56 a 59 e 61 a 63, tal como neles consta expressamente exarado e resultou dos esclarecimentos do perito médico-legal, Dr. H....
Este último esclareceu que, em virtude da pouca idade das meninas e natureza acentuadamente invasiva de exames médico-legais como aquele que deu origem aos relatórios médicos de fls. 56 a 59 e 61 a 63, procuraram, com o máximo cuidado possível para evitar qualquer trauma às meninas, suscitar, por parte delas, uma explicação espontânea sobre a própria existência de qualquer atitude de contacto físico entre o pai e elas e sobre o tipo de actos.
Da sua experiência de há vários anos e depois de múltiplos exames deste tipo que já levou a cabo em crianças, por força da objectividade com que as meninas relataram, quer verbalmente, quer através de gestos, a forma como o pai lhes tocou, nas vaginas, ficou convencido de que as meninas estavam a relatar factos que realmente viveram, tendo ficado com essa noção de forma ainda mais impressiva em relação à I....
Também este depoimento, pela forma serena e desassombrada como foi prestado, mereceu toda a credibilidade ao Tribunal.
À data da prática dos factos, a I...tinha cinco anos de idade e a A...quatro anos de idade.
O tipo concreto de actos que disseram terem sido objecto por parte do pai – o toque e a pressão dos dedos das suas mãos, nas suas vaginas – pese embora, de carácter sexual, são de uma subtileza tal, que extravasam largamente, a maturidade e o grau de desenvolvimento psíquico e cognitivo, a nível sexual, que crianças destas idades têm e que as duas meninas I...e A...efectivamente, manifestaram, quando ouvidas em audiência, para serem fruto da sua imaginação ou capacidade de efabulação.
Isso mesmo foi confirmado pelos dois pedopsiquiatras que observaram as menores, RV…JL… e elaboraram o relatório pericial de fls. de fls. 159 a 165 e a informação complementar de fls. 191.
Destes relatório e informação, com o valor de prova pericial que lhes é conferido, nos termos previstos no art. 163º do CPP, resulta, com grande probabilidade, que aquilo que as duas meninas disseram que o pai lhes fez corresponde à verdade, ou seja, a experiências que elas próprias viveram.
O conteúdo destes relatório e informação complementar de fls. 159 a 165 e de fls. 191, foi completamente corroborado, em audiência de discussão e julgamento pelos dois médicos pedopsiquiatras referidos, cujos depoimentos foram, igualmente, credíveis, em face das explicações de cariz técnico que apresentaram, designadamente, em atenção à forma consistente, como as meninas, em diferentes circunstâncias de tempo, modo e lugar relataram a diferentes pessoas, os factos mencionados em 10. e 11., à especificidade, do ponto de vista da sua natureza dos actos em questão, por comparação com o grau de desenvolvimento físico, emocional e cognitivo das duas crianças e às reacções de tristeza e desagrado com que as meninas falaram sobre os factos, o que, igualmente, foi verificado por este Tribunal, quando as mesmas foram inquiridas, aquando do segundo julgamento.
Acresce que, cerca de três anos depois da ocorrência dos factos, as menores ainda os referem, contando-os de forma idêntica àquela como os relataram, em datas próximas à da altura em que os mesmos aconteceram, o que fizeram sempre da mesma forma, sendo a I...a, pelo menos, cinco pessoas diferentes, em diferentes circunstâncias de tempo e lugar, o que revela que as meninas não estão a mentir, nem a ficcionar factos.
Estas coerência e consistência de versões das duas crianças, de tão tenra idade, a par da natureza concreta dos actos descritos em 10. e 11., revela que tais actos não podem ter sido fruto da imaginação das crianças, para mais, dado o sofrimento interior que, passados três anos, ainda manifestaram, quando confrontadas com a necessidade de os descreverem e, ainda, tendo em consideração, que, quando foram institucionalizadas, adoptavam comportamentos sexualizados, sendo que, passado algum tempo de permanência no Centro de Acção Social do Santuário de UU..., já os haviam abandonado, tendo-os retomado, logo que, depois do período de convivência com os pais, a que aludem os pontos 8. e 9., regressaram àquela instituição.
Por isso que a circunstância de terem voltado a adoptar atitudes claramente conotadas com actos de natureza sexual, apenas depois do convívio com os pais só pode ter tido, na sua origem, pelo menos, os descritos em 10. e 11.
Refira-se que a explicação que o arguido apresentou para o facto de a A...ter creme na vagina, quando regressou ao Centro de Acção Social do Santuário de UU..., das férias do Natal passadas com os pais, assumindo o arguido N...que foi ele quem colocou tal creme, foi a que começou por ser apresentada às duas meninas, quando estas se queixavam que lhes doía a vagina, quer pela irmã R..., quer, mais tarde pela à assistente social B... e à educadora de infância K..., que lhes colocaram a hipótese de o pai as ter aleijado sem querer.
A verdade é que a I..., nem sequer tinha creme na vagina, quando chegou ao Centro de Acção Social do Santuário de UU..., de regresso da estadia em casa dos pais, durante as férias do Natal, sempre tendo negado, com veemência, quando confrontada, que fosse inadvertidamente que o pai a tivesse aleijado, na vagina, por ela poder estar assada, o mesmo tendo feito a A..., quando a irmã R...lhe perguntou por que razão lhe tinham posto o creme e lhe doía a vagina.
Em face do que fica exposto, porque o Tribunal se convenceu de que as meninas falaram a verdade e contaram factos que realmente viveram, concretamente, os descritos no ponto 10. e 11., quer pelo conteúdo daquilo que elas próprias contaram, na audiência de discussão e julgamento realizada em 25 de Junho de 2008, quer pelos depoimentos das testemunhas já mencionadas de que resulta que a mesma credibilidade lhes mereceram, além das pessoas que com elas conviviam diariamente, à época, os próprios peritos médico-legais e os pedopsiquiatras que as observaram, nos termos acima expostos é que, por presunção judicial, resultante da aplicação das regras de experiência comum aos factos conhecidos e que são justamente os mencionados em 10. e 11., também resultam demonstrados os descritos em 12. a 18.
Efectivamente, o simples acto de passar creme na vagina de uma criança de quatro ou cinco anos, se ela estiver assada, nada tem de atentatório à integridade física e sexual de uma criança, independentemente de ser o pai ou a mãe a fazê-lo. Pelo contrário, destina-se a assegurar o seu bem estar (não deixa, no entanto, de se estranhar, que o arguido que nem pelos banhos das filhas sequer providenciava, tendo sido essa circunstância, uma das causas da intervenção da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV..., tivesse, depois, este tipo de preocupações).
Pode ainda acontecer que, nesse acto, de forma inadvertida se possa aleijar uma criança.
O que já não é normal é que desse acto, resulte vermelhidão dos órgãos genitais que perdure, para os dias seguintes, nem que duas meninas de apenas quatro e cinco anos se queixem com dores, na vagina, que reajam com tristeza e vergonha, quando confrontadas com a necessidade de contarem o que lhes aconteceu, nem que neguem tão veementemente o carácter normal desse tipo de actuação, quando lhes eram apresentadas como possíveis explicações, os factos de terem feito xixi na cama e de estarem assadas ou de não terem tomado banho.
Acresce que a forma concreta de execução dos actos mencionados em 10. e 11. não é minimamente consentânea com o simples acto de ministrar um creme adequado a debelar uma erupção cutânea e ultrapassa, exponencialmente, o necessário para a prática de tal acto que, em condições ideais e de normalidade, se pretende o menos invasivo possível.
Por isso que outra não poderá ser a explicação para a sua prática que o intuito do arguido em se estimular sexualmente, à custa destes modos de actuação, sendo certo que não podia deixar de saber que estas condutas molestavam, como molestaram, as duas meninas, nos termos expostos em 12. a 18.
Em relação aos descritos em 19. a 27., a análise conjugada dos depoimentos das testemunhas H...; Irmã R... e B..., com o relatório social de fls. 154 a 156;
Como já se referiu, estas testemunhas, a primeira elemento da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV..., a segunda também membro desta comissão e, além dessa qualidade, Directora há 12 anos do Centro de Acção Social do Santuário de UU..., onde as quatro meninas vieram a ser acolhidas, após o facto descrito em 4., durante um ano antes deste facto, a terceira também membro da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV..., entre 2001 e 2006, acompanharam toda a evolução da situação das quatro crianças, bem como dos arguidos, tendo constatado, nos vários contactos que foram mantendo com o agregado familiar os factos descritos em 19. a 27. que, igualmente, vêm relatados no relatório social de fls. 154 a 156;
Pelas razões que já acima se expuseram, estes depoimentos foram prestados de forma segura, firme, com clareza e serenidade, pelo que, tendo, além disso, as mesmas testemunhas demonstrado terem tido conhecimento directo de tais factos, os seus depoimentos mereceram toda a credibilidade ao Tribunal;
Quanto aos descritos em 28. a 48., a análise conjugada dos depoimentos das testemunhas H...; Irmã R...; D...; K...; AA…; SD… e SS…, estas três últimas, educadoras de infância e ama das gémeas E...e V..., com os relatórios de fls. 15 a 17; 18; 19; 21 e 22; 41; 97 a 113.
Todas as referidas testemunhas presenciaram esses factos, em virtude dos contactos que mantiveram com as meninas no período de institucionalização no Centro de Acção Social do Santuário de UU..., tendo-os relatado de forma isenta e com preocupação de rigor, limitando-se a esclarecer circunstâncias objectivas, sem delas extrapolarem quaisquer opiniões ou juízos de valor.
Em relação aos descritos em 49., os certificados de registo criminal de fls. 281 e 282;
Quanto ao descrito em 50., as declarações de ambos os arguidos;
Em relação aos descritos em 51. a 58., as declarações do arguido, conjugadas com o relatório de perícia sobre a personalidade de fls. 312 e seguintes;
No que se refere aos descritos em 59. a 62., as declarações da arguida;
Quanto aos descritos em 63. a 66., o teor do relatório de perícia sobre a personalidade de fls. 308 e seguintes.”.
Factos não provados:
“Por falta de produção de meios de prova esclarecedores e convincentes, nesse sentido, não se provaram quaisquer outros factos que não se compaginem ou não estejam incluídos na matéria de facto acima dada como provada.
Concretamente, não se demonstrou que, com referência à factualidade descrita sob os pontos 8. a 18. da matéria de facto provada, «por sua vez, a arguida, esteve sempre presente nas ocasiões em que o arguido se comportou como anteriormente descrito em relação às quatro menores, não tendo retirado estas da presença e alcance daquele, deixando que o mesmo tivesse esses comportamentos perante aquelas, indiferente à natureza desses actos, ao grau de parentesco das menores, ao sofrimento físico e psíquico e confusão que pelo segundo lhes eram causados»
Com efeito, os arguidos negaram a ocorrência de tais factos, afirmando a arguido o seu absoluto desconhecimento, em virtude de trabalhar e estar todo o dia fora de casa, sendo que, das testemunhas inquiridas, nenhuma os presenciou.
Do mesmo modo, também por falta de produção de meios de prova, testemunhal, pericial ou outra, não logrou apurar-se se o arguido praticou actos da mesma natureza dos que vêm descritos nos pontos 10. e 11., nas pessoas das suas duas filhas gémeas, E...e V....
Quanto às demais alegações contidas na acusação, reproduzem o teor de relatórios e informações que foram sendo juntos e prestadas ao longo da investigação ou que reproduzem o teor de depoimentos de testemunhas, que vieram a ser confirmados na audiência.
Em todo o caso, trata-se de meios de prova e não de factos, a que aliás já se fez referência, a propósito da motivação da decisão de facto.”
*

Face ao conteúdo das conclusões, as questões colocadas no recurso, pela ordem em que serão apreciadas, são as seguintes:
- Nulidade da sentença;
- Vícios de erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada relativamente à matéria de facto dada como provada nos pontos 5, 6, 8 a 18 e 30 a 45;
- Enquadramento jurídico dos factos;
- Medida da pena.
Passemos à sua apreciação.
A) Da nulidade
Argumenta o recorrente que a sentença recorrida não procedeu a um exame crítico das provas.
Nos termos do disposto no artº 374º nº 2 CPP “ Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
Significa isto que, para além da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tenha ainda que expressar o respectivo exame crítico das mesmas, isto é o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas.
O objectivo dessa fundamentação é, no dizer do Prof. Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 294., a de permitir “ a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina”.
Como escreve Marques Ferreira Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 229. “ Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência”.
Também a propósito da fundamentação das sentenças refere Eduardo Correia "só assim racionalizada, motivada, a decisão judicial realiza aquela altíssima função de procurar, ao menos, “convencer” as partes e a sociedade da sua justiça, função que em matéria penal a própria designação do condenado por “convencido” sugere" Parecer da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sobre o artigo 653º do Projecto, em 1ª Revisão Ministerial, de alteração do Código de Processo Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXXVII (1961), pág. 184..
Impõe-se pois, a nosso ver, que esse exame crítico, indique, no mínimo, e não necessariamente por forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.
Ora no caso dos autos, conforme decorre da análise da fundamentação apresentada, constata-se que o tribunal cumpriu cabalmente tal exigência ao longo de 15 páginas, permitindo a este tribunal de recurso, acompanhar todo o processo lógico que foi seguido para tomar a decisão.
Não se vislumbra pois onde é que o mesmo pode ser censurado.
Improcede assim manifestamente a invocada nulidade.
B) Dos vícios de erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Conforme se alcança da leitura da motivação, a conclusão do recorrente ao pretender que sejam dados como não provados os factos referidos nos pontos 5, 6, e 8 a 18 e 30 a 45, assenta na argumentação de que subjacente está a verificação dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova;
Sucede porém que ao longo da motivação aquilo que verdadeiramente o arguido faz é impugnar a referida matéria de facto.
Em suma o recorrente assenta a invocação dos vícios na impugnação que faz da matéria de facto, o que não é admissível.
Mistura assim o recorrente questões que são substancialmente diferentes e que não se podem de modo algum confundir.
A saber: erro de julgamento e vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova.
É que o primeiro só existirá quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que tivesse sido feita prova do mesmo e como tal deveria ter sido considerado não provado. Ou então quando se dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Por sua vez o vício do erro notório na apreciação da prova a que alude o artº 410º nº 2 c) CPP, nada tem a ver com aquele.
Com efeito como escrevem Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740. “ Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.”
Por sua vez há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artº 410º nº 2 a) CPP), quando da factualidade vertida na decisão se verifica faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
Como se refere no AcSTJ 97.11. (citado por Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal anotado, Vol. II, pág. 752), quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz.
Contudo há que ter presente que os referidos vícios têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, isto é do próprio acórdão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum (artº 410º nº 2 CPP), não sendo admissível a consulta a outros elementos que constem do processo.
Assim as raízes de tais vícios têm de estar implantadas na decisão recorrida.
Ora no presente caso, ao fim e ao cabo o que o recorrente pretende é que a prova produzida não pode levar a que aquela factualidade tivesse sido dada como provada. Daí que invoque vários depoimentos prestados para colocar em causa a matéria de facto que foi dada como provada e devidamente identificada.
É pois patente que a alegação nada tem a ver com tais vícios, mas apenas com a divergência sobre a forma como o tribunal apreciou a prova.
Seja com for, não deixará este tribunal de interpretar o recurso interposto como pretendendo dirigir-se à impugnação da matéria de facto.
É o que faremos de seguida.
Pois bem para a impugnação dos referidos pontos o arguido invoca as declarações das menores I… e A…, Irmã R..., Drª B...e C…, Drª X..., D...e K… .
Vejamos.
Como é sabido o artº 127º CPP estabelece que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Tal princípio não é, logicamente uma apreciação imotivável e arbitrária da prova que foi produzida nos autos, já que é com a referida prova que se terá de decidir. É que quod non est in actis non es in mundo.
Como refere Figueiredo Dias Direito Processual Penal, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 140., essa convicção existirá quando “ o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na “ convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e quanto à dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”.
Daí que haja necessidade de tais comprovações serem sempre motivadas.
Por outro lado a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade é que uma coisa é ouvir, ver, apreciar gestos, as hesitações ou o tom de voz e outra, bem diferente, é ouvir gravações.
E é de tal envergadura a importância do princípio da oralidade que o Prof. Alberto dos Reis afirmava Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 566. “ A oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio das livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal.... Ao juiz que há-de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar”.
E estes factores têm de ser tidos em conta mesmo no caso dos presentes autos, em que as provas se encontram gravadas.
De resto, e como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas antes constitui um mero remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre tal matéria.
Vejamos então em pormenor a relevância dos referidos depoimentos e declarações relativamente à facticidade impugnada.
Começa o recorrente por dizer que os pontos de facto 5 e 6, não podem ser dados como provados porque as menores afirmaram em audiência estar a viver, respectivamente com o Z... e a F... e com o P... e a O....
Pois bem o que desde já se dirá é que a questão agora levantada é completamente irrelevante.
É totalmente indiferente para a sorte destes autos que as crianças estejam neste preciso momento a viver com A ou com B.
Não é isso que aqui está em discussão.
É certo que quando foram ouvidas, em 25 de Junho de 2008, as menores referiram que estavam a viver com o “Z... e a F...” e com “ O P... e a O...”, porém essa foi uma mera referência feita por elas que, não só não foi aprofundada, pois não tinha qualquer interesse fazê-lo, como não tem nos autos qualquer suporte, desconhecendo-se, e se tal se verificar, a que título elas estavam, no momento em que depuseram, com os referidos casais.
O que a prova produzida nos permite concluir é que as menores foram colocadas à guarda e cuidados do Centro de Acção Social do Santuário de UU..., em 13 de Setembro de 2005, local onde se encontravam (cfr. depoimento da Irmã R..., directora do referido estabelecimento).
Daí que nada haja a censurar quanto aos referidos pontos de facto que foram dados como provados.
Entende também o recorrente que o tribunal não deveria ter valorado os depoimentos das menores, por revelarem incongruências e serem contraditórios.
Mas não tem razão!
Desde logo cabe recordar ao recorrente a idade que as menores tinham à data da prática dos factos que lhe são imputados - A A...tinha 5 anos e a I...4.
Ora com essas idades, as crianças estão em plena formação.
Não têm seguramente discernimento relativamente a factos laterais, tais como saber se estavam vestidas, despidas, deitadas, descalçadas, em pé, ou se o pai lhes mexeu na vagina com todos os dedos ou apenas com um dedo, nem sobre o que é éticamente correcto.
O que têm sem margem para qualquer dúvida, é uma sensibilidade grande à dor e por isso sabem dizer onde é que lhes doeu e quem lhes provocou essa dor.
E isso ambas são unânimes em dizer – o pai mexeu-lhes na vagina, pôs os dedos na vagina e causou-lhes dor !
Basta ouvir o que ambas disseram quando foram ouvidas, confirmando no essencial os depoimentos que sobre essa matéria haviam sido anteriormente prestados pelas restantes testemunhas.
Identificam o autor e identificam o sítio do corpo onde lhes foi provocada a dor.
É isto que é relevante!
Tudo o mais são pormenores a que uma criança com aquelas idades não presta atenção.
Por isso bem andou o tribunal recorrido ao atribuir-lhes credibilidade.
Mais refere o arguido que o tribunal valorou os relatórios médico-legais, sendo certo que estes dizem que existe “ ausência de lesões traumáticas a nível corporal, anal ou genital”.
Pois bem quanto a este ponto cabe referir que, pese embora os relatórios médicos elaborados pelo IML e referentes aos exames das menores realizados em 7 de Janeiro de 2006 ( cfr. fls. 48 a 63), concluam pela ausência de tais lesões, tal não significa que a manipulação digital não tenha ocorrido. É que também como se refere num desses relatórios, “ este tipo de práticas sexuais pode eventualmente, originar lesões traumáticas pouco aparatosas (tipo edema, escoriações), confinadas aos pequenos lábios, que curam em pouco tempo sem deixar vestígios”.
Daí que nada haja a censurar quanto ao facto do tribunal ter tido em consideração o seu conteúdo.
No seguimento, alega que os peritos médicos do GML de Tomar e aqueles que elaboraram o relatório pericial pedopsiquiatra depuseram como verdadeiras testemunhas.
Trata-se de uma afirmação do recorrente que não colhe na prova produzida qualquer suporte.
Na verdade, conforme se alcança da sua audição, o que os referidos peritos se limitaram a fazer foi a prestar verdadeiros esclarecimentos relativamente ao conteúdo dos respectivos relatórios, bem como a responder a perguntas pertinentes para a descoberta da verdade, no estrito âmbito do artº 350º CPP, dos exames feitos e das conversas que tiveram quer com as menores e outros intervenientes, já que faz parte da colheita da informação essa conversação.
Ora se procederam a esse diálogo não faz qualquer sentido que, questionados como foram sobre essa matéria, a omitam.
Acresce que o arguido teve a oportunidade de exercer o contraditório sobre os esclarecimentos que os Srs. peritos prestaram.
Daí que improceda igualmente neste ponto o recurso interposto.
E prossegue o recorrente, dizendo que o tribunal valorou o depoimento da testemunha H..., sendo que o conhecimento desta sobre o caso lhe foi transmitido pelas colegas do CPCJ.
Mas também aqui sem razão.
Na verdade conforme se alcança da audição do depoimento desta testemunha, refere que era técnica de serviço social e integrou a CPCJ que viria a aplicar a medida de acolhimento institucional.
Mais relata aquilo que viu directamente nas visitas que fez à casa dos pais durante o período em que as menores aí passaram o Natal.
Referiu também que “as meninas nunca lhe falaram sobre o assunto”.
Foi isto e só isto o seu depoimento!
Foi pois neste restrito âmbito que o seu depoimento relevou.
Onde é que o recorrente vê o depoimento indirecto quanto a esta testemunha?
Nada há aqui de depoimento indirecto e por isso nada há a censurar !
Discorda igualmente o arguido do facto de ter sido valorado o depoimento da testemunha Irmã R..., a qual, na sua perspectiva apenas sabe que a A...tinha creme e que o pai tinha feito dói dói no pipi, sendo tudo o mais depoimento indirecto.
Mas mais uma vez sem razão, pelos motivos que de seguida se referirão.
E para que se avive a memória do arguido aqui se transcreve o que de relevante sobre essa matéria foi dito por esta testemunha, que é directora do Centro de Acção Social do Santuário de UU..., onde as menores foram recolhidas e fez também parte da CPCJ, na altura em que tomou conhecimento da situação em que se encontravam as menores:
“… Na hora do banho a A...tinha a vagina vermelha, e disse que tinha dói-dói, e então eu disse eu vou curar-te, sua marota, tu fizeste chichi nas cuecas, não irmã eu não fiz chichi nas cuecas e quando eu fui passar um creme, estava vermelha, vi que ela tinha creme e eu disse, então tu já puseste creme, quem passou o creme, e ela disse foi o meu pai.. foi o meu pai que fez o dói dói com dedos no meu pipi, enfiou lá e fez também às minhas irmãs gémeas.
Entretanto não comentei e fomos dar banho à I…, a mais velha, e a I...disse que também tinha dói dói, e de facto estava vermelha a vagina e contou que tinha sido o pai e que fez também à A…, separada da outra…
Chamei então a Assistente Social e esta veio pelas 8 e meia 9 horas da noite e a I...contou também que era o pai que tinha feito aquilo….
A I… anteontem disse que não vou passar férias a casa de meus pais porque o meu pai faz dói dói no meu pipi, o meu pai mexe no meu pipi… eu não quero ir passar férias com os meus pais porque o meu pai faz dói dói no meu pipi, com as unhas grandes…
A A...contou-lhe que o papai fazia a nós ao mesmo tempo, com os dedos dentro da vagina de uma e de outra, o que foi confirmado pela I….”.
Quanto à testemunha B…, assistente social da Casa SM…, que integrou a CPCJ, esta confirma que no dia em que foi detectada a vermelhidão na vagina da A…, a irmã R...lhe telefonou pedindo a sua comparência e quando chegou lá foi-lhe relatado o que se passara e de imediato foi ouvir a I…, que confrontada com o facto da vagina estar vermelha, lhe disse – “ eu já disse foi o meu pai que me aleijou com os dedos”.
Tal facto, segundo refere, foi igualmente relatado pela menor à professora na escola.
Quanto à testemunha C…, que estava colocada na instituição, esta, para alem de referir que quando as gémeas (irmãs mais novas da A...e da I…) regressavam de férias, quando lhes dava banho “ notou que também as gémeas tinham a florzinha vermelha”, relatou que a I..., durante a refeição tinha muito por hábito dizer “ que o pai metia o dedo dele na florzinha dela e tinha as unhas grandes e que a magoava, que aquilo era dito espontaneamente… elas estavam mesmo tristes quando vinham de férias”.
Pois bem dúvidas não há que na parte em que as testemunhas ouviram das menores a comunicação de que o autor da vermelhidão nas suas vaginas, tinha sido o arguido, através da manipulação com os dedos, esse depoimento é indirecto.
Ora o que se pretende através da proibição do depoimento indirecto é que o tribunal não acolha como prova um depoimento que se limita a reproduzir o que se ouviu dizer a outra pessoa (artº 129º nº 1 CPP).
Para que seja valorado, exige-se a confirmação, com a consequente audição das pessoas de quem se ouviu dizer.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, pág. 713. “ Esta confirmação tem em vista a própria validade e eficácia do depoimento, pois o mérito de uma qualquer testemunha tem muito a ver com a razão de ciência da própria testemunha.
Por isso, o depoimento “ por ouvir dizer” só após confirmação será eficaz como meio de prova”.
E compreende-se que assim seja, até porque se não houver a confirmação da alegada conversa, nada nos diz que a mesma tenha de facto ocorrido.
Ora o essencial do depoimento das menores confirma o relato das testemunhas, pelo que é válido não só em relação a estas testemunhas como relativamente às restantes que reproduziram nos seus depoimentos aquilo que as menores na altura lhes transmitiram e nessa medida validam tais testemunhos..
Põe ainda o arguido em causa a existência da tal vermelhidão, invocando para o efeito o depoimento da médica Drª X... que as observou no mesmo dia e ter dito que não existia vermelhidão.
Ora acontece que nada nos autos nos diz que as menores foram observadas no mesmo dia.
Aliás tal seria impossível mesmo, dado que, segundo a irmã R...o facto só foi descoberto à noite quando davam banho às menores e a Drª X... apenas nos refere que as observou ou na primeira ou na segunda semana de 2006, pelas 16 horas, e tal não está registado. Recorda esta testemunha que “ a única coisa que observei na zona vaginal é que não tinham nem sinais de fendas, não tinham fissuras, hematomas ou zonas negras, tinham realmente era um orifício vaginal maior do que o normal”.
Foi tão só esta a observação feita.
Ora desconhecendo-se quando tal ocorreu é evidente que o facto de não ter vermelhidão, é porque já tinha passado, como aliás se referiu no relatório elaborado pelo GML de Tomar.
Opõe-se ainda o arguido ao facto do tribunal ter valorado o depoimento da Drª B..., quando relata aquilo que a I...lhe disse, sendo que tal não coincide com o que a menor referiu à Drª D..., nem aquilo que disse quando foi ouvida.
Recorde-se que a testemunha D..., psicóloga que observou as menores, refere que a I...“lhe contou em Janeiro de 2006 uma situação que ocorreu no Natal de 2005… que estava na casa de banho e o pai lhe limpou o rabinho e lhe magoou a vagina com o dedo e que ele fez a ela e à A...”.
Pois bem quanto a este ponto valem aqui as considerações já feitas no início.
Não se pode exigir a menores com a idade que estas vítimas têm, que apresentem uma descrição dos factos coincidentes em todos os pontos.
O que importa é que os factos que são mais traumatizantes e que por isso não se esquecem, coincidam entre si. É nessa coincidência que assenta o discurso consistente quer da I...quer da A...e não em aspectos de pormenor.
Repete-se aqui o que já anteriormente foi dito:
O discurso das menores é coincidente no essencial – o pai mexia-lhes no pipi, colocando lá dedos e causando-lhes dor.
Identificam quem lhes provocava a dor e o local do corpo.
Se os relatos feitos em momentos diversos não coincidem quanto as questões laterais isso é de todo irrelevante, pois o que importa é a questão de fundo, isto é saber se o pai metia ou não os dedos nas vaginas de suas filhas.
Isto e só isto !
E o mesmo se diga relativamente ao depoimento prestado pela testemunha Patrícia, que no segmento em que transmite aquilo que a menor lhe disse, se considera confirmado por esta, como já visto.
Argumenta ainda o recorrente que o depoimento da testemunha K..., não deveria ter sido valorado, quando esta refere que a I...lhe disse que lhe doía o pipi, a 24/01, já após as crianças terem sido examinadas pela Drª X... (dia 5 ou 6 Janeiro) e nada terem referido, nomeadamente queixume, e após ter sido realizado exame de perícia médico­-legal (dia 7 de Janeiro) e neste se referir que a I...não apresenta, naquela data, qualquer queixa.
Porém o arguido está a esquecer um facto importante.
É que, quando essa testemunha relata esse facto, também diz mais, e que o arguido também não deveria ter omitido: “ Fomos à natação e a menina quando saiu da água começou a queixar-se que lhe doía o pipi… não é da água não é da água foi o papá que me mexeu com o dedo e magoou-me… o pai mexeu com o dedo e fez dói-dói e depois disse que tinha feito o mesmo à A...e às outras irmãs”.
Ora como é sabido por virtude da acção do cloro, seja ele químico, seja ele resultante da electrólise do sal em cloro, que necessariamente existe nas piscinas para fazer o tratamento da água, actuando sobre a mais minúscula fissura provoca ardor. Logo é perfeitamente natural que a menor tenha tido dor na vagina, sem que isso ponha em causa a observação médica anterior.
Daí que também aqui improceda o recurso.
Entende ainda o recorrente que o artigo 356º CPP foi violado, porquanto os documentos juntos a fls. 15 a 17, 18, 19, 21 e 22, 41 e 97 a 113, não deveriam ter sido considerados, por serem prova inadmissível, pois mais não são do que depoimentos dirigidos ao processo e juntos em fase de inquérito, sendo que à excepção do documento de fls. 18, todos os restantes tinham os seus autores arrolados como testemunhas.
Antes de mais cabe referir em que consiste tal documentação:
- Fls. 15 a 17: Relatório elaborado pelas responsáveis do Centro de Acção Social do Santuário de UU...- Casa de SM... – Lar de Crianças e Jovens e técnicas da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de VV....
- Fls. 18: Informação sobre a A...prestada pela Educadora de Infância do Jardim da CI....
- Fls. 19: Informação sobre a I..., prestada pela Educadora de Infância do Jardim de Infância de CI....
- Fls.21 e 22: Relatório das menores elaborado pela psicóloga.
- Fls. 41: Relatório referente às menores elaborado pelas educadoras.
- Fls. 97 a 113: Relatórios das menores elaborado pela Directora, psicóloga e técnica de serviço social do Centro de Acção Social do Santuário de UU...- Casa de SM... – Lar de Crianças e Jovens.
Como decorre claramente da sua análise esses documentos não consubstanciam depoimentos, mas tão só relatórios. Refira-se que mesmo as duas informações prestadas não têm o carácter de depoimentos, razão pela qual carece de total suporte a afirmação do recorrente.
E em matéria da validade de provas, dispõe o artº 355º, nºs 1 e 2 CPP, que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, ressalvando-se as provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida.
Por sua vez dispõe-se no artº 164º nº 1 CPP, que é admissível a prova por documento, entendendo-se por tal a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei penal, devendo, nos termos do artº 165º nº 1 CPP, a sua junção ser feita, sempre que possível, no decurso do inquérito ou da instrução.
Da conjugação de tais preceitos decorre que as provas que são atendíveis para formar a convicção, são as produzidas em audiência e as aí examinadas.
Significa isto que a prova por documento, quando não tiver sido junta na audiência, claro que não é produzida nesta, mas tão só aí examinada.
Mas será que isso exige que as provas documentais examinadas tenham de ser lidas?
Entendemos que não.
Como se escreveu AcSTJ 05.02.23 CJSTJ 1/05, 210., “Tratando-se de prova documental, constante do processo, ainda que não tenha sido lida, nem examinada, na audiência de julgamento, nada obsta a que possa servir para formar a convicção do tribunal.”.
Por sua vez no AcRC 01.09.19 CJ4/01, 50., escreveu-se “ A exigência do artº 355º CPP de que as provas sejam produzidas e examinadas em audiência não implica que os documentos constantes do processo tenham de ser lidos ou expressamente examinados em audiência. A sua existência no processo, livremente apreciável, conhecida pelas partes, satisfaz essa exigência.”
Igualmente no AcRE 04.03.30 CJ 2/04, 262., se consignou que “Os documentos constantes de processo, desde a fase de inquérito, ou da instrução, consideram-se reproduzidos em audiência de julgamento, independentemente da respectiva leitura.”.
Também Maia Gonçalves refere a propósito Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., pág. 736. que “valem em julgamento, independentemente da sua leitura em audiência, as provas contidas em actos processuais cuja leitura é permitida, nos termos dos artigos seguintes”. E acrescenta “Nos termos deste dispositivo, há, por exemplo, que deixar bem claro que os documentos juntos ao processo não têm, em regra, que ser lidos na audiência. A leitura de documentos constantes do processo, conforme o artigo 356º, nº1, alínea b), só é, em regra, proibida quando contiver, e na medida em que contiver, declarações do arguido das partes civis ou de testemunhas”.
Acresce que para além do arguido ter tido conhecimento de tal documentação, pois já constava da acusação, o certo é que em audiência também teve oportunidade de os questionar, provocar a sua reapreciação individualizada para esclarecer qualquer ponto da sua defesa relativamente à qual entendesse que isso seria necessário e, assim, pedir a leitura de qualquer desses documentos.
Em suma diremos que nada obstava a que tal documentação pudesse servir para formar a convicção do tribunal, como serviu.
Improcede por isso o recurso nesta vertente.
Pois bem face à prova produzida nenhumas dúvidas se nos oferecem que o mesmo agia, deliberada e conscientemente, para se estimular sexualmente, sendo certo que com tais condutas, punha em risco a evolução da personalidade das menores.
Assim da apreciação da referida prova, nenhuma censura nos merece a matéria de facto dada como provada nos pontos 5, 6 e 8 a 18.
E de igual modo não merece qualquer censura a matéria de facto considerada assente nos pontos 30 a 45.
Com efeito, tal resulta dos depoimentos prestados pela irmã R..., Silvina da Silva e Susanne Miranda, conjugados com a documentação junta a fls.15 a 17, 18, 19, 21, 22, 41 e 97 a 113.
Assim a testemunha Irmã R..., relata que quando recebeu as menores E...e V…, com 22 meses de idade, pesando cerca de 7 kg cada uma, achou logo estranho quando chegaram porque, sobretudo “ a E...fechava muito as perninhas quando iam mudar as fraldas ou então abria as perninhas e protegiam a vagininha… depois do Natal , voltaram à mesma…”
Mais referiu que viu a I...em cima da boneca, o que numa criança de 5 anos era muito estranho… elas falavam que viam o pai e a mãe a fazer e sobretudo a I...dizia que via o pai e a mãe a fazer quando estavam a ver o morango com açúcar”.
A testemunha S…, conta igualmente no seu depoimento que, depois das menores terem passado o natal com os pais, “ quando regressaram, as gémeas foram para a ama e esta telefonou-lhe a dizer o que se passava com a V...quando lhe estava a mudar a fralda, que não deixava limpar a zona vaginal, chorava, gritava, cerrava as perninhas, depois foram lá e verificaram que a zona vaginal estava bastante vermelhinha”.
Finalmente também a testemunha SS…, ama que recebeu as gémeas e ficou com elas durante um ano, relatou que logo no princípio, uma delas fechava as pernas e não deixava limpar o rabinho e a outra fechava as pernas e gemia. E após terem regressado das férias do natal, ficaram agressivas uma com a outra, voltou a haver dificuldade em limpar o rabinho e começavam a chorar violentamente”.das gémeas durante um ano.
Por isso da conjugação desses depoimentos com aqueles relatórios, resulta que a matéria de facto que foi considerada provada nos referidos pontos tem suporte na referida prova e, como tal se confirma integralmente.
Termos em que improcede igualmente o recurso neste segmento.
C) Do enquadramento jurídico dos factos
Na perspectiva do arguido os actos que lhe são imputados não interferiram com a auto conformação da vida e práticas sexuais das menores.
Vejamos.
Estabelecia o artº 172º CP, à data da prática dos factos, cuja opção não vem contestada, já que são os mesmos os elementos constitutivos do crime e os limites mínimo e máximo da pena após as alterações introduzidas pela Lei 59/2007, que:
“1 – Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2 – Se o agente tiver cópula ou coito anal com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos”.
Pune este preceito a prática de acto sexual de relevo, cópula ou coito anal com menores de 14 anos, independentemente dos meios utilizados, e, naturalmente, do seu consentimento.
A questão colocada pelo arguido traduz-se em saber se os actos por si praticados poderão considerar-se como actos sexuais de relevo.
O que seja “acto sexual de relevo” não o diz o Código.
Maia Gonçalves a propósito do tema diz-nos Código Penal Português Anotado, 18ª ed., pág. 624.:
“Trata-se de um conceito novo a que se faz apelo em outros preceitos; por vezes sem o mesmo alcance em todos eles. Saliente-se, a propósito. que sendo a coacção sexual o tipo fundamental de crime, a violação não deixa de ser também uma coacção sexual, precisamente uma coacção sexual especial e qualificada. Tanto a cópula como o coito anal e o oral são actos sexuais de relevo, precisamente os mais graves.
Dentro da orientação já traçada para os limites que se devem estabelecer em moldes hodiernos para a criminalidade sexual, estava sendo inconveniente, como já foi acentuado, a referência na versão originária do Código à moralidade sexual. A referência a acto sexual de relevo ajusta-se melhor ao novo posicionamento e vinca ainda mais o pensamento legislativo de restringir o tipo. Assim se erradica, acentua-se uma vez do direito criminal todo o dogmatismo moral, ficando no entanto dele somente condutas sexuais que ofendam bens jurídicos fundamentais das pessoas no que concerne à sua livre expressão do sexo.
Não é porém possível estabelecer em parâmetros exactos o que se deve entender por condutas ou actos sexuais. E saliente-se a propósito que as dificuldades na definição destes parâmetros sempre serão mais facilmente superadas do que as que surgiram na definição do abandonado conceito de atentado ao pudor. O conceito tem gerado alguma polémica, designadamente no que concerne à relevância que nele devem desempenhar os elementos objectivos e subjectivos. Parece-nos porém certo que acto sexual só pode ser considerado aquele que tem relação com o sexo (relação objectiva) e em que, além disso haja por parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais. Existem, assim, casos duvidosos e mistos, v.g. o exemplo de escola do médico que examina órgãos sexuais de um cliente com fins curativos, mas aproveitando para se excitar sexualmente.
Esta definição do conceito de acto sexual, em que entra uma conotação subjectiva, que supomos predominante, não é porém unânime. Entre nós o Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, I, 448, sustenta uma interpretação objectivista, resolvendo depois os casos de escola como o do médico que examina o corpo de uma paciente ou do pai que beija uma filha através de causas d justificação ou de não correspondência è teleologia hodierna dos crimes sexuais.
De qualquer modo, o tipo está limitado pelo uso de expressão restritiva de relevo.
O direito criminal, como ultima ratio, implica que só seja tutelada a liberdade sexual contra acções que revistam certa gravidade. Em tais termos, actos como o coito oral e a masturbação devem aqui ser incluídos; o mesmo não sucederá, em regra, com os beliscões e os beijos, que só o deverão ser em casos extremos, ou seja naqueles em que existem grande intensidade objectiva e intuitos sexuais atentórios da autodeter­minação sexual. Trata-se, afinal, de afloramento do princípio bagatelar - de minimis non curat praetor. Deve em todo o caso anotar-se que não é indispensável o contacto mútuo com o corpo da vítima. Actos de introdução de objectos e acções como ejacular ou urinar sobre a vítima podem ser considerados actos sexuais de relevo. Mesmo o comportamento por omissão, como permanecer nu perante a vítima, pode eventualmente ser considerado acto sexual de relevo, tudo dependendo das circunstâncias em que esse comportamento tem lugar. Neste sentido, Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conim­bricense, I, 447.”.
Em suma poderemos dizer, na linha do Acórdão STJ de 5 de Julho de 2007 CJSTJ 2/07, 242., que acto sexual de relevo é todo aquele que assume uma natureza ou significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade de quem o sofre ou pratica, que pela sua gravidade contende com a liberdade de determinação sexual da vítima.
É que, como aí igualmente se refere “ No abuso sexual de crianças será sempre relevante qualquer actuação objectivamente libidinosa, por mais simples que ela seja ou pareça ser, em virtude de tais menores não disporem do discernimento suficiente para se relacionarem sexualmente em liberdade. “.
Ora no caso em análise, tendo o arguido esfregado com os dedos as vaginas de suas filhas, pressionando-lhe os órgãos sexuais genitais, com o objectivo de se estimular sexualmente, não podem tais condutas deixar de ser consideradas como actos sexuais de relevo, e como tal bem enquadrada juridicamente foi a conduta do arguido.
Com efeito como se escreveu no AcSTJ 00.06.15 CJSTJ 2/00, 226. “ Em sede de abuso sexual de crianças, o “relevo” como que está imanente a qualquer actuação libidinosa por mais simples que ela seja ou pareça ser, como sucede no caso de o arguido, com essa intenção, ter introduzido o dedo indicados de uma das suas mãos na vagina da sua filha de 4 anos de idade.”.
Daí que não mereça censura o enquadramento jurídico feito no tribunal recorrido.
D) Da medida da pena
Entende o arguido que a pena aplicada é pesada.
Porém desde já se dirá que não vislumbramos razão para a alterar.
Vejamos.
O crime de abuso sexual agravado é punido com pena de prisão de 16 meses a 10 anos e 8 meses (artºs 172º nºs 1 e 177º nº 1 a) CP).
Como é sabido a medida da pena é determinada em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção geral e especial das penas, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (artº 71º nºs 1 e 2 CP).
E em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artº 40º nº 2 CP).
Em Figueiredo Dias·, colhe-se a propósito deste tema que “ a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa. A verdadeira função desta última, na doutrina da medida da pena, reside, efectivamente, numa incondicional proibição de excesso; a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas – sejam de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização. Com o que se torna indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa: de uma ou de outra forma, é o limite máximo da pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado. Uma tal ultrapassagem, mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por razões jurídico-constitucionais, inadmissível”.
Assim face a todo o circunstancialismo provado, o elevadíssimo grau de ilicitude dos factos e o seu modo de execução, o dolo, que é directo, as necessidade de prevenção geral neste tipo de criminalidade que, infelizmente se vem acentuando e por isso se impõem sentidas e acrescidas necessidades dos tribunais darem uma resposta vigorosa e firme a este tipo de criminalidade, a humilde condição social do arguido, o facto de ser primário, entendemos como muito justa e equilibrada a pena de 20 meses de prisão aplicada pela prática de cada um dos referidos crimes e por isso a merecer o nosso aplauso.

E igualmente não merece censura o cúmulo jurídico efectuado entre as referidas penas, o qual se acha de harmonia com o disposto no artº 77º nº 2 CP e, como tal se confirma.

DECISÃO

Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando-se inteiramente a douta decisão recorrida.
Fixam a taxa de justiça devida pelo recorrente em seis Ucs.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP)

Coimbra, 24 de Junho de 2009.