Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
140/06.2GCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: FURTO
ESPAÇO FECHADO
ESTALEIRO
Data do Acordão: 05/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 204º Nº 2 E) CP
Sumário: A subtracção de objectos de um estaleiro , ainda que vedado por uma rede, não sendo este uma casa nem um espaço fechado dela dependente, não configura o tipo legal de furto qualificado do artº 204º nº 2 e) CP, por arrombamento.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

Em processo comum colectivo do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, por acórdão de 07.10.10, foi, para além do mais, decidido condenar o arguido A... , como autor material, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203° e 204° nº 2 e) do C Penal, na pena de 3 anos de prisão, cuja execução lhe foi suspensa pelo período de três anos
Inconformado, o arguido interpôs recurso, que motivou, concluindo:
“ 1ª- Com base no facto de o arguido/recorrente ter entrado "no referido estaleiro através de um buraco na rede que vedava o estaleiro" (SIC - facto n° 2) e de haver daí subtraído bens móveis, foi o mesmo condenado pela douta sentença recorrida como autor material de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203° e 204°, n° 2, al. e) do C.P., na pena de três anos de prisão, suspensa na respectiva execução por três anos.
2ª - Ora, o tipo objectivo do ilícito qualificado em causa exige que o agente, cumulativamente, (i) penetre "em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado" e (ii) que o faça "por arrombamento, escalamento ou chaves falsas".
3ª- Como tem sido entendimento jurisprudencial, a expressão "espaço fechado" tem o sentido de "lugar fechado dependente de casa", não integrando esse conceito "o espaço vedado por uma cerca constituída por uma malha de rede metálica de modo a impedir a passagem a quem quisesse lá entrar".
4ª- Acresce que, como consta da douta sentença em crise, o próprio ofendido "quando queria entrar no estaleiro o fazia através da rede (a qual era constantemente furada por terceiros) " (SIC).
5ª- Ou seja, o modo pelo qual o arguido/recorrente entrou no referido estaleiro foi o mesmo que é utilizado pelo próprio ofendido, pelo que igualmente não se encontra preenchido o segundo dos sobreditos requisitos do tipo objectivo do ilícito qualificado em causa. “.
O Ministério Público apresentou resposta, concluindo que a decisão deverá ser integralmente confirmada.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, no seu douto parecer conclui igualmente que o recurso deverá improceder.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

É a seguinte a matéria de facto dada como provada na 1ª instância:
“ 1. No dia 23 de Fevereiro de 2006, a hora indeterminada, o arguido A... dirigiu-se ao estaleiro de material variado, pertença de B... , sito na Rua das Flores, Barosa, Leiria, num local ermo no meio de um eucaliptal;
2. Aproveitando o facto de na ocasião ninguém estar no estaleiro, o que era do seu conhecimento, o arguido A… entrou no referido estaleiro através de um buraco na rede que vedava o estaleiro e do seu interior retirou dois chassis de betoneira, de valor concretamente não apurado, dois diferenciais de camião de dois eixos, no valor de 2.500,00 euros e partes de um balão de betoneira de um camião de sete metros, que previamente desmanchou com auxílio de um maçarico;
3. No dia 24 de Fevereiro de 2006, o arguido A… , no seu carro e acompanhado do arguido C... , dirigiu-se novamente ao estaleiro do ofendido, com intenção de dali retirar o resto do balão de betoneira;
4. Ali chegados e como vissem o ofendido à porta do referido estaleiro, não chegaram a entrar no estaleiro e fazendo inversão de marcha, pararam mais à frente a uma distância não inferior a 100 metros, tendo aí sido abordados pelo ofendido B... ;
5. O balão de betoneira do camião de sete metros tinha um valor de mercado não inferior a € 5.000,00;
6. Os objectos mencionados em 2. pertenciam a Armindo Santos e faziam parte do recheio do estaleiro acima indicado;
7. Após retirar os objectos acima identificados no dia 23/02/2006, o arguido A… procedeu à sua venda, a peso, à sociedade D... ., recebendo como pagamento o cheque n° 3010623466, no valor de 110,50 euros, referente á conta nº 36381470001 do BPI titulada pela referida sociedade, correspondente a l 640 kg de sucata de ferro, deduzido do valor de 30 euros de caução por empréstimo de uma botija de oxigénio.
8. No dia 24/02/2006, foram apreendidos um maçarico, uma botija de oxigénio média, uma garrafa de gás propano pequena, um rotor e duas mangueiras, objectos que o arguido utilizou para desmanchar o balão de betoneira referido em 2. e ainda o cheque identificado em 7.
9. O arguido A… sabia que os objectos referidos em 2. não lhe pertenciam e que ao retirá-los do estaleiro e ao vendê-los agia sem autorização e contra a vontade do seu proprietário, tendo agido com o propósito de obter um ganho com a venda de tais objectos;
10. O arguido A... agiu de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal;
11. O arguido A... é carpinteiro auferindo mensalmente quantia não inferior a € 480,00, é solteiro mas tem a seu cargo dois filhos menores, vive em casa dos pais e tem o 5º ano de escolaridade;
12. O arguido C... é solteiro, vive em casa dos pais, aufere mensalmente quantia não inferior a € 505,00 e tem o 6º ano de escolaridade;
13. O arguido A... foi condenado por sentença de 12/06/2003 numa pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de dois anos, pela prática, em 26/05/2000, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º nº 1 e 204º nº 2 alínea e) do Código Penal;
14. O arguido C... não tem antecedentes criminais.”.
Factos não provados:
“ Não se provou que:

a) O arguido A... , no dia 23/02/2006, tivesse quebrado o cadeado que fechava o portão de acesso ao estaleiro;
b) O arguido C... acompanhasse o arguido A... , no dia 23/02/2006, quando o mesmo praticou os actos descritos em 2.;
c) O arguido C... tivesse acompanhado o arguido A... , aquando da venda dos objectos da forma descrita em 7.;
d) No dia 24/02/2006, os arguidos, depois de abrirem o cadeado que tinham posto a fechar o portão de acesso e no interior do estaleiro, se aprestassem a retirar o balão da betoneira, quando foram interceptados por Armindo Santos, sem prejuízo do que se provou em 4.;
e) Os objectos identificados em 8., com excepção do rotor e do cheque, se encontrassem na posse do arguido A... no momento da apreensão;
f) Os dois chassis de betoneira tivessem o valor de 5.000,00 euros;
g) O arguido C... tivesse agido em comunhão de esforços com o arguido A... , no dia 23/02/2006, sabendo que os objectos retirados do estaleiro não lhe pertenciam e que agia contra a vontade do seu proprietário, com o propósito de obter um ganho com a venda de tais objectos;”.
*
A divergência do recorrente situa-se na qualificação jurídica dos factos, que este entende ser de furto simples, porquanto, na sua perspectiva para o preenchimento do tipo a lei exige que o agente penetre em casa ou lugar dela dependente, e além disso o faça por arrombamento, escalamento ou chaves falsas, situação essa que não se verificou no seu caso.
Vejamos.
Está em causa saber se o furto de objectos levado a cabo num estaleiro que estava vedado por rede, através de um buraco feito nesta, preenche ou não a qualificativa prevista na alínea e) do nº 2 do artº 204º CP.
Pois bem estabelece-se no referido preceito que:
“ 2. Quem furtar coisa móvel alheia:
a)……..
b)……..
c)……..
d)……
e) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado por arrombamento, escalamento ou chaves falsas;
f)……
g)……
é punido com…”.
Por sua vez a alínea d) do artº 202º CP, contém a definição do que deve entender-se por arrombamento - é o rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou de lugar fechado dela dependente.
Como escreve Faria Costa, em anotação ao artº 202º CP Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 14. “ só estaremos perante uma situação de arrombamento ligada à presente al. d) se e só se o dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, tiver a ver com uma casa ou com um lugar fechado dela dependente”.
E a propósito do conteúdo jurídico-penal material do que deva entender-se por “casa” e “lugar fechado dela dependente”, diz ainda o referido autor, que:
“ … casa será, portanto, todo o espaço físico, fechado, que histórico-culturalmente se encontra adaptado à habitação - a ser habitado por uma ou mais pessoas …. ou a outras normais actividades da vivência dos homens em comunidade (assim, nesta perspectiva, tem todo o sentido falar-se, v. g., de casa para comércio; de casa para repartição pública; de casa da Jus­tiça; de casa de saúde, etc., etc.). Um espaço físico, com as características ante­riores, possuidor de uma autonomia funcional ligada ao modo de viver comum, historicamente situado. O que implica, bom é de ver, que não é, nem de longe nem de perto, necessário que a casa esteja habitada; basta que seja um espaço, com as qualidades já referidas, apto a ser habitado ou apto a que nele se desenvolvam as actividades humanas para que foi criado. A "solidez" do conceito que aqui procuramos edificar não se prende tanto com a solidez ou a fixidez das paredes mas antes com a finalidade que se quer, indesmen­tivelmente, prosseguir.”.
E no que concerne sobre o que se deve considerar como "lugar fechado dependente da casa", diz-nos que “mais não é do que o recinto que dá acesso à casa e que não precisa de ser vedado. É o pátio, o jardim ou o terraço ligado à casa e com passagem para ela como já reconheciam os comentaristas do CP de 1886 (OSÓRIO IV ISO). Esta noção ainda continua a ser altamente operatória olhando mesmo para as novas realidades urbanísticas. A propriedade horizontal veio criar as zonas comuns. Todavia, estas, como se percebe de maneira meridiana, não podem ser vistas como dependentes da casa. Ao contrário, dir-se-ia até de jeito que não teria muito de translato, que são aquelas, as casas, que dependem daque­loutras, as zonas comuns. “.
Vistas estas definições parece-nos não haver dificuldade em concluir que, atenta a definição de arrombamento, o mesmo tem de se processar com relação a casa.
Como se escreveu a propósito de situação semelhante, no AcSTJ 05.02.23 CJSTJ 1/2005, pág. 209. “ … o assalto ao estaleiro, mesmo enquanto espaço fechado .. não configura arrombamento de espaço fechado dependente de qualquer casa, dependência de que não pode abdicar-se porque a tutela penal pressuposta no tipo qualificado de furto, nos termos do artº 204º nº 2 e), do CP, não pode desprender-se daquela acessoriedade: acessorium principale sequitor”.
Assim concluímos que o estaleiro, ainda que vedado por uma rede, de onde foram subtraídos os objectos, não sendo uma casa nem um espaço fechado dela dependente, não configura o tipo legal de furto qualificado do artº 204º nº 2 e) CP, por arrombamento.
Deste modo não preenche a comprovada conduta do arguido o crime de furto qualificado por que foi condenado, mas sim o crime de furto simples do artº 203º nº 1 CP.
A pena cominada para o facto é a de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
O artº 70º do Código Penal, manda aplicar, sempre que sejam aplicáveis em alternativa, a pena não privativa da liberdade em detrimento da privativa da liberdade, salvo se a primeira não realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, de acordo com o artº 40º n° 1, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
No caso em apreço, nada permite concluir, que a aplicação de pena não privativa da liberdade, satisfaça aquelas apontadas necessidades, tanto mais que o arguido já tem antecedentes criminais quanto à prática de crimes de furto, e são relativamente recentes, pois que foi condenado por sentença de 12/06/2003 numa pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de dois anos, pela prática, em 26/05/2000, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º nº 1 e 204º nº 2 alínea e) do Código Penal.
Ora tendo desprezado o aviso que constituiu a anterior pena de prisão, é por demais evidente que a aplicação de uma pena de multa seria agora completamente desajustada
Assim sendo a pena de prisão é a adequada ao caso concreto.
Na determinação da medida concreta da pena, dispõe o artº 71°nº 1 CP, que é feita, dentro dos limites definidos na Lei, em função da culpa do agente e das exigências prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente de entre as que constam do elenco do n°. 2 de tal norma legal.
No caso em análise, é de ponderar, que é notória a premência de combate a este tipo de delitos, que acontecem com frequência assustadora e inusitada, a tornar de grande importância a necessidade de prevenção, quer geral, quer especial, que o arguido agiu com dolo directo, o grau de ilicitude, que é médio face à natureza dos bens em causa e ao seu valor, o facto de trabalhar e estar familiarmente inserido e o ter reconhecido a prática dos factos.
Daí que se considere justa e adequada a aplicação ao arguido da pena de dois anos e seis meses de prisão, cuja execução lhe fica igualmente suspensa pelo período de dois anos e seis meses, pelas razões que constam da decisão recorrida.

DECISÃO

Face ao exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, consequentemente alterar a qualificação jurídico-penal do facto, condenando-se agora o arguido, como autor material de um crime de furto simples p. e p. pelo artº 203º nº 1 CP, na pena de dois anos e seis meses de prisão, cuja execução lhe fica suspensa ao abrigo do artº 50º nº 1 CPO, pelo período de dois anos e seis meses.
Sem tributação.
Honorários legais à ilustre defensora oficiosa.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (Artº 94º nº 2 CPP)
Coimbra, 14 de Maio de 2008.