Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
853/06.9TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO
CONDIÇÃO NÃO VERIFICADA
Data do Acordão: 06/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 2030º, Nº 2 E 2244º DO CC
Sumário: I - Uma disposição testamentária atribuindo como legado um prédio “com a condição do legatário pagar a quantia que, eventualmente, ainda se encontre em dívida à data da morte da legadora”, respeitante ao empréstimo contraído pela testadora para aquisição desse prédio, traduz (esta cláusula) o estabelecimento de um encargo, nos termos do artigo 2244º do CC.

II – Este encargo fica sem efeito – no sentido de deixar de se impor ao legatário – se o pagamento da quantia em dívida do empréstimo, ao tempo do decesso da testadora e da abertura da sucessão, foi satisfeita por uma seguradora no quadro de um seguro de vida/crédito à habitação, mesmo que tal seguro já se encontrasse contratado à data do testamento.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 6 de Fevereiro de 2006[1], J… (A. e Apelante) demandou A… (R. e aqui Apelado), invocando o texto do testamento de sua mãe (datado de 21/04/2003), Maria … (faleceu esta em 01/11/2004), na parte em que (nesse testamento[2]) instituiu como legatário o R., relativamente a um determinado prédio urbano (a uma fracção autónoma de um prédio), aí formulando a seguinte “condição”[3]:
“[…]
Pela outorgante foi dito:
a) Que é dona e legítima possuidora do seguinte bem:
- Fracção autónoma designada pela letra «O», correspondente ao quinto andar B do prédio urbano em propriedade horizontal sito em […] – Fracção essa que adquiriu, com recurso ao crédito, por «compra e venda e empréstimo com hipoteca», titulados por escritura outorgada em 29/05/1998 […].
b) Que, na presente data o empréstimo que contraiu para a citada aquisição ainda não está, ainda, totalmente liquidado.
c) Que, com a condição de A… pagar a quantia que, eventualmente, ainda se encontre em dívida à data da morte da ora legadora e respeitante ao citado empréstimo, deixa ao identificado A… a mencionada fracção autónoma […].
[…]”
            [transcrição de fls. 17/818, sublinhado acrescentado]

            Sendo certo que a testadora havia garantido, quanto ao empréstimo indicado no testamento, através de contrato de seguro designado de crédito/vida celebrado em 1998, a satisfação da parcela desse empréstimo que estivesse em dívida à data do seu decesso[4], o que veio a ocorrer (pagamento pela Seguradora[5]) após a morte da mesma, pretende o A. que a dita “condição” a que o legado foi sujeito seja considerada não realizada[6], formulando em função dessa asserção os seguintes pedidos:


“[…]
a) Declarar-se não cumprida a condição resolutiva por parte do R., enquanto beneficiário do legado e, em consequência: declarar-se o A. legítimo proprietário do imóvel […].
b) Caso assim se não entenda, ser considerada resolvida a disposição testamentária que institui o R. legatário do imóvel, por incumprimento da condição, com a consequência de o A. ser considerado o titular do imóvel, enquanto único e universal herdeiro da testadora.
c) Por último e caso nenhum dos pedidos seja considerado procedente, deve ser o R. condenado a pagar ao A. a quantia de €19.595,93, correspondente ao valor em dívida ao BII, à data do óbito da testadora, só assim se cumprindo a condição.
[…]”
            [transcrição de fls. 6]

1.1. O R. contestou impugnando a caracterização propugnada pelo A. da dita “condição”, afirmando-a satisfeita com o pagamento efectuado pela Seguradora[7].

1.2. A culminar a fase de julgamento foi a acção julgada improcedente pela Sentença de fls. 188/206, constituindo esta a decisão objecto do presente recurso.

1.3. Inconformado, interpôs o A. o presente recurso de apelação, motivando-o a fls. 214/226, formulando as seguintes conclusões:
 […]”
                        [transcrição de fls. 224/226]


II – Fundamentação


            2. Encetando a apreciação do recurso, importa ter presente que o âmbito objectivo do mesmo ficou definido através das conclusões acabadas de transcrever [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)].

            Deparamo-nos, assim, com um recurso exclusivamente dirigido ao acto de aplicação do direito aos factos, pressupondo o elenco destes que foi fixado na primeira instância[8].

Emerge, pois, como (único) fundamento do recurso – e trata-se de uma questão de direito – a interpretação do testamento de Maria…, no trecho específico em que a mesma “condicionou”[9] o legado atribuído ao R. ao pagamento, por este, da “[…] quantia que, eventualmente, ainda se encontre [encontrasse] em dívida à data da morte da testadora e respeitante ao citado empréstimo […]”. Sendo certo que o pagamento de tal quantia foi assegurado – assegurado ao A. ora Apelante, sublinha-se – por um sujeito diverso do legatário (por uma Seguradora[10]), trata-se aqui de determinar se o apontado elemento condicionador do legado – quer o caracterizemos como condição [artigo 2229º do Código Civil (CC)] ou como encargo ou “modo” (artigo 2224º do CC) – foi efectivamente preenchido, ou não, por essa incidência (pagamento pela Seguradora), com a consequente desoneração do legatário (é a tese do R.) ou se a condição deve ter-se por incumprida (é a tese do A.).

            Esta constitui, pois, a única questão a abordar no recurso, correspondendo ela, fundamentalmente, à interpretação de uma disposição testamentária.

            2.1. Definitivamente fixados que estão os factos (como se explicitou na nota 9, supra), aqui os indicamos, transcrevendo-os do texto da Sentença (com a correcção de um erro aí verificado e que aqui vai devidamente assinalada):
“[…]
4. No testamento lavrado em 21/04/1983 [21/04/2003[11]], no 1º Cartório Notarial de Leiria, de fls.24 verso a 25 verso do livro de testamentos nº64, consta que por Maria… foi dito:
(…) «a) Que é dona e legítima possuidora do seguinte imóvel: …
b) Que, na presente data o empréstimo que contraiu para a citada aquisição ainda não está totalmente liquidado;
c) Que, com a condição de A… pagar a quantia que, eventualmente, ainda se encontre em dívida à data da morte da ora testadora e respeitante ao citado empréstimo, deixa ao identificado A… a mencionada fracção autónoma “O” a qual se destina a habitação.
Este testamento foi lido à outorgante e feita a explicação do seu conteúdo, em voz alta, na sua presença e simultaneamente das testemunhas deste acto …». (documento de fls.16 a 19).
5. No escrito intitulado «Certificado Individual de Seguro» emitido por «…Companhia de Seguros de Vida, S.A.», sendo tomador do seguro o «Banco …, S.A.», pessoa segura Maria… e capital seguro €38.158,04 (Esc.7.650.000$00), consta que os beneficiários em caso de morte relativamente à parte do capital em dívida são o «Banco …, S.A.» e pelo capital remanescente «os herdeiros legais”. (documento de fls.20).
6. O R. não pagou qualquer quantia ao «Banco …, S.A.» depois da morte de Maria …, respeitante à aquisição da fracção mencionada em 1.
7. Por cheque emitido pela «… Companhia de Seguros de Vida, S.A.», à ordem do A., foi entregue por aquela €18.562,10 a este, referente ao escrito mencionado em 5.
8. À data da morte de Maria…, o valor em dívida ao “Banco…, S.A» era de €19.565,93.
[…]”
            [transcrição de fls. 191/192]

2.2. Está em causa, fundamentalmente, como acima se notou, a compreensão do significado de uma disposição testamentária referida a um legado (referida, pois, a um bem determinado do de cuius, v. artigo 2030º, nº 2, in fine do CC) e que aqui nos aparece, sem qualquer elemento interpretativo adjuvante[12], na sua exacta expressão verbal constante do próprio testamento, a saber: “[…] com a condição de A…, […], pagar a quantia que, eventualmente, ainda se encontre em dívida à data da morte da ora legadora e respeitante ao citado empréstimo, deixa ao identificado A… a mencionada fracção autónoma […].

A questão que aqui se coloca é, pois, a da compaginação entre este propósito da testadora, claramente expresso no testamento, de o legatário pagar a dívida referida ao legado que pudesse (eventualmente) subsistir à data da abertura da sucessão e a existência anterior de um seguro que, numa das suas funções[13], já apresentaria apetência – vigorando ele ao tempo da abertura da sucessão – a garantir o pagamento dessa subsistente dívida.

2.2.1. Importa sublinhar aqui, abordando desde já uma questão focada pelo Apelante, que, contrariamente ao que, laborando em notório erro, se indica no texto da decisão apelada, a disposição testamentária em causa (o testamento) não é anterior ao seguro. Com efeito este foi contratado (no sentido de iniciado)[14] em 1998 e o testamento data do ano de 2003. Todavia, o argumento, equivocado, da suposta anterioridade do testamento, funcionou na decisão recorrida em termos de confirmação de uma asserção que, em nosso entender, sobrevive, perfeitamente intocada, ao desaparecimento dessa incidência. O elemento interpretativo decisivo centra-se, como nos parece evidente, na compreensão da própria disposição testamentária no seu conteúdo vocabular evidente – algo como: se ocorrer a eventualidade de subsistir alguma dívida do empréstimo contraído para aquisição do legado, deve o legatário assumir esse encargo –, conteúdo este que não nos parece compatível com uma suposta pretensão da testadora como a que lhe pretende atribuir o A. na presente acção – que se expressa em algo como: o legado é condicionado à realização pelo legatário de uma prestação patrimonial aos meus herdeiros.

Ora, para a afirmação deste entendimento, é irrelevante – ou, se se preferir, não é imprescindível – o estabelecimento de uma correlação temporal entre o testamento e o seguro, tanto mais quando este último nos aparece como um acto exterior à testadora, desencadeado por um terceiro (o Banco que concedeu o empréstimo), correspondendo esta circunstância a um elemento de autonomia das duas situações (o seguro e o testamento), em termos que nos permitem compatibilizá-las como incidências concorrentes numa eventual função de garantia destinada a afastar os herdeiros (o A.) de responsabilidades patrimoniais por um empréstimo contraído pelo de cuius.

Nada impede, com efeito, a concorrência de elementos de garantia referidos à mesma situação (à situação pretendida garantir), mesmo quando isso tem na base, contrariamente ao que aqui aparentemente sucederá, uma clara opção de quem desencadeia o surgimento dessas garantias. A acumulação expressa, aliás, a firmeza de um propósito e este aparece-nos aqui claramente direccionado ao efeito de operar a extinção de uma dívida do de cuius, impedindo a sua transmissão aos herdeiros, sendo que esse mesmo objectivo poderia ser alcançado de formas distintas.

Poderia realizar-se, com efeito: (a) pelo pagamento total da dívida, em vida, pela devedora, com a consequente extinção do crédito[15]; (b) com o pagamento da mesma dívida por um terceiro (v. artigo 767º, nº 1 do CC), designadamente por uma seguradora, como aqui sucedeu[16], sendo que nesta hipótese a “eventualidade” que desencadearia o encargo imposto ao legatário (a subsistência da dívida como encargo transferível para os sucessores) também se não verifica (não se verificou neste caso); (c) e poder-se-ia, enfim, atingir o mesmo objectivo através do pagamento pelo legatário, existisse alguma parcela do crédito ainda não satisfeita ao tempo da abertura da sucessão, desse valor, e só esta hipótese traduziria o actuar do encargo (eventual) imposto ao legatário.

Com efeito, encarando a disposição testamentária referida ao legado, nos termos simples mas significativos aqui empregues pela testadora, não vemos que outra forma de realizar o objectivo por ela expresso seria possível encarar. Não vemos, concretamente, como seria possível entender o encargo estabelecido – como pretende o Apelante – como destinado à realização, independentemente da pretérita extinção do crédito operada por outro qualquer meio (distinto do cumprimento do encargo), de uma atribuição patrimonial ao A., autónoma desse concreto efeito e que, neste caso, até significaria uma duplicação, sem causa que sugira essa consequência, de uma atribuição patrimonial originada num evento já esgotado nas suas potencialidades.

A pretensão do A., expressa na interpretação por ele propugnada do testamento da sua mãe, face a uma tão evidente falta de apoio no texto, até nos aparece perigosamente próxima de um sentido absurdo[17] e, nessa medida, algo sugestiva de uma litigância de má fé, por preenchimento da facti species do artigo 456º, nº 2, alínea a) do CPC).

 2.2.2. Seja como for – e estamos a pressupor desde já a correcção do entendimento decisório expresso na Sentença apelada –, não deixaremos de sublinhar o sentido profundo da singularidade própria do acto interpretativo referido a uma disposição testamentária, enquanto manifestação da presença de um intenso pendor subjectivo objectivado no texto, ocorrendo o acto interpretativo num momento em que o de cuius já não pode esclarecer o que pretendeu[18].

É neste sentido, em homenagem a este entendimento da singularidade intrínseca da interpretação do acto de testar[19], que o artigo 2187º, nº 1 do CC impõe que a compreensão das disposições testamentárias se fixe no que se apresente como mais ajustado à manifestação da vontade do testador, no contexto em que esse acto pessoal se tenha expressado, com clara prevalência de uma interpretação subjectivista, referida à pessoa do de cuius[20]. Tal categorização descarta, contrariamente ao que sucede com outros negócios jurídicos (v. o artigo 236º, nº 1 do CC), elementos ligados a hipotéticas manifestações da chamada impressão no destinatário: “[…] no testamento, cuja função é incorporar disposições de última vontade, o fim da interpretação deve encontrar-se na determinação da vontade real do testador. Nenhuma confiança ou expectativa dos destinatários pode ser justificadamente invocada, porque um beneficiário nenhum título possui que não seja justamente o que se funda na vontade do autor da sucessão”[21].

Ora, neste caso, não fornecendo o texto a considerar qualquer suporte a um entendimento que permita a construção do elemento intencional subjectivo aqui pretendido impor pelo Apelante, só situando-nos fora do contexto claramente expresso pelo testamento – só situando-nos no plano da adesão ao subjectivismo do Apelante, que não foi o testador – seria possível alcançar o peculiar entendimento visado por ele visado, para mais quando essa discutível pretensão até naufragou – naufragou totalmente – em julgamento.

2.2.3. Por outro lado – e sempre confirmando a correcção da decisão apelada –, afigura-se-nos como absolutamente consistente, e tributária de um correcto enquadramento jurídico da situação, a qualificação do elemento condicionante presente na disposição testamentária – e assim desambiguamos a expressão “condição” aí empregue – como encargo ou modo, nos termos do disposto no artigo 2244º do CC, por contraposição à ideia de disposição condicional prevista no artigo 2229º do mesmo Código.

Com efeito – e seguimos aqui o entendimento de Antunes Varela:
“[O] encargo distingue-se facilmente da condição (porque, ao contrário desta, não torna incerta a existência da disposição), bem como do termo (porque, ao invés deste, não defere para momento posterior à abertura do testamento a execução da disposição) […].
E tem ainda de característico, em face da condição e do termo, o facto de, mesmo quando a falta de cumprimento do encargo não acarreta a perda da disposição, expor o herdeiro ou legatário onerado à acção de cumprimento (artigo 2247º).
[…]”[22]

            Assim, em função desta incidência identitária – constituir a disposição testamentária um encargo para o legatário –, reportando-nos a um quadro resolutivo dessa disposição, subsidiariamente apresentado pelo A. na alínea b) do pedido transcrito no item 1. deste Acórdão (v. artigo 2248º, nº 1 do CC), não poderemos deixar de considerar o elemento contingente introduzido na disposição modal (expresso no uso do advérbio eventualmente) e que nos conduz à apreciação da ocorrência ou não dessa eventualidade: encontrar-se ainda alguma quantia em dívida. Ora, sendo evidente que nada estava em dívida – e não adianta o Apelante jogar com palavras e conceitos mal empregues quando a realidade é absolutamente clara –, não vemos espaço algum para resolver a disposição testamentária ou para determinar um cumprimento que já havia ocorrido numa das suas vertentes possíveis.

            As coisas são aqui tão simples quanto isto: a testadora pretendeu legar o seu prédio ao R./Apelado e o encargo eventual que pretendeu impor a este não veio a carecer de cumprimento por este porque, precisamente como a testadora não deixou de considerar possível, o elemento a que associou esse encargo não alcançou concretização – o legado subsiste, pois, fora do quadro do encargo.

            2.3. Vale este entendimento como confirmação do decidido pelo Tribunal a quo, sumariando-se aqui, antes de formular a correspondente decisão do recurso, os traços fundamentais do antecedente percurso argumentativo:
I – Uma disposição testamentária atribuindo como legado um prédio “com a condição [do legatário] pagar a quantia que, eventualmente, ainda se encontre em dívida à data da morte da […] legadora […]”, respeitante ao empréstimo contraído pela testadora para aquisição desse prédio, traduz (esta cláusula) o estabelecimento de um encargo, nos termos do artigo 2244º do CC;
II – Este encargo fica sem efeito – no sentido de deixar de se impor ao legatário – se o pagamento da quantia em dívida do empréstimo, ao tempo do decesso da testadora e da abertura da sucessão, foi satisfeita por uma seguradora no quadro de um seguro de vida/crédito à habitação, mesmo que tal seguro já se encontrasse contratado à data do testamento.


III – Decisão

            3. Assim, na improcedência da apelação, confirma-se a Sentença recorrida.

            Custas a cargo do Apelante.

 

J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Aplica-se aqui – processo iniciado antes de 01/01/2008 – o regime de recursos anterior à reforma consubstanciada no Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1). As disposições do Código de Processo Civil adiante citadas pressupõem a versão anterior ao mencionado Diploma.
[2] Consta ele de fls. 16/19.
[3] Exprime o uso das aspas – e chamamos a atenção para este dado – um descomprometimento, neste momento do percurso expositivo dos traços fundamentais da causa, com a expressão “condição”, quanto ao seu significado jurídico preciso. Com efeito, só adiante tomaremos posição sobre a natureza jurídica (como condição ou encargo) do elemento condicionante associado ao legado aqui em causa – note-se, porém, que a qualificação como condição foi assumida pelo A. ao longo do processo, sendo reiterada no presente recurso.
[4] O seguro está certificado a fls. 20 como correspondente ao ramo “vida” e referente ao tipo “seguro anual renovável – crédito imobiliário”, sendo tomador o Banco …, pessoa segura a Maria … e “beneficiários em caso de morte” o Banco …, S.A. e “[p]elo capital remanescente em caso de morte da pessoa segura: os herdeiros legais”, sendo o capital seguro de 7.650.000$00.
[5] Pagamento pela Seguradora ao A. através do cheque de fls. 21 (€18.562,10).
[6] Diz o A. no articulado inicial:
“[…]
17º
Certo é que, nos termos do testamento, a fracção só passaria a ser do R. no caso do cumprimento da condição.
18º
Ora, recusando-se o R. a cumprir tal condição, não pode o mesmo beneficiar do legado.
19º
Segundo tal condição suspensiva, a disposição só produzirá efeitos após o cumprimento da mesma (cfr. artigo 270º do Código Civil).
20º
Consequente[mente], a propriedade da fracção não transitou para a esfera jurídica do R., uma vez que o mesmo não cumpriu com a condição a que estava obrigado.
21º
Mesmo se assim não se entender, deve a disposição testamentária ser considerada resolvida, atento o incumprimento da condição.
22º
De facto resulta claro não só do testamento, como da motivação da testadora, que esta pretendeu que o legatário apenas viesse a adquirir o imóvel caso ele cumprisse a condição.
23º
Uma vez que a intenção da testadora era garantir ao seu filho, ora A., que este receberia pelo menos a quantia de 7.650.000$00.
24º
A de cuius comentou diversas vezes tal intenção.
[…]”
                [transcrição de fls. 5/6]
[7] Deduziu também pedido reconvencional que não foi admitido.
[8] O Apelante não indica factos concretos, designadamente quanto aos que emergiram das respostas formuladas aos pontos da base instrutória através do despacho de fls. 184/186, que repute de incorrectamente julgados e, por isso mesmo, também não indica meios probatórios que impusessem decisão diversa sobre quaisquer factos considerados pelo Tribunal a quo (v. artigo 690º-A, nº 1, alíneas a) e b) do CPC). Vale isto, sendo certo não vislumbrarmos deficiências, obscuridades, contradições ou incompletudes no acto de fixação dos factos (o que nos afasta da situação prevista no nº 4 do artigo 712º do CPC), pela afirmação de que o recurso não visa a modificação dos factos, não estando em causa o exercício por esta Relação dos poderes previstos no nº 1 do artigo 712º do CPC. 
[9] Continuamos a empregar a forma verbal, referida ao substantivo “condição”, utilizada pela legatária no texto do testamento (“com a condição de”, v. fls. 18), num contexto descomprometido de qualquer qualificação jurídica, v. nota 4, supra.

[10] No quadro de um contrato de seguro, cuja cobertura foi desencadeada anteriormente ao testamento (v. nota 12, infra), cuja espécie corresponde ao chamado ramo “vida” e que na sua concreta incidência na garantia de satisfação ao Banco credor do crédito à habitação, se traduz, fundamentalmente, num seguro de vida referido ao mutuário (v. artigo 23º, nº 2 do Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro), sendo habitualmente conhecido sob a designação genérica de “apólices «Vida Risco – Crédito à Habitação»”:

“[…]

Trata-se de seguro de grupo contributivo (cfr. artigo 1º, alínea g) e artigo 4º do Decreto-Lei nº 176/95, de 26 de Julho), em que:

O Banco é o tomador do seguro – entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora, sendo responsável pelo pagamento do prémio (artigo 1º, alínea b), do Decreto-Lei nº 176/95);

Os mutuários do crédito à habitação concedido por esse Banco são o grupo segurável (pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum – artigo 1º, alínea g), do Decreto-Lei nº 176/95) e as pessoas seguras são aquelas (pertencentes ao grupo segurável) cujo risco de vida, saúde ou integridade física tenha sido aceite pela seguradora após recepção das respectivas declarações de adesão ao seguro de grupo – documento de consentimento da pessoa segura na efectivação do seguro, contendo os seus elementos de identificação e os do beneficiário;

O Banco-tomador do seguro é beneficiário irrevogável, até ao limite do capital seguro, do montante em dívida à data do reconhecimento pela seguradora do direito ao pagamento das importâncias seguras, revertendo para ele a prestação debitória da seguradora decorrente do contrato – do eventual excesso do capital seguro sobre o montante devido ao Banco serão beneficiários, na falta de designação expressa, os herdeiros da pessoa segura em caso de morte, e a própria pessoa segura para os restantes riscos complementares;

Os segurados contribuem no todo ou em parte para o pagamento dos prémios (seguro de grupo contributivo – artigo 1º, alínea h) do Decreto-Lei nº 176/95).  
[…]” [Calvão da Silva, “Apólice «Vida Risco – Crédito Habitação»: as pessoas com deficiência ou risco agravado de saúde e o princípio da igualdade na Lei nº 46/2006”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 136º, nº 3492, Janeiro/Fevereiro, 2007, pp. 158/170; na jurisprudência desta Relação, pode ver-se, caracterizando esta espécie contratual de seguro, o Acórdão de 13/01/2009 (Gregório de Jesus), proferido no processo nº 2621/04.3TBVIS.C1, pesquisável na base do ITIJ nestes campos, ou, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb53003ea1c61802568d9005cd5bb/a64fc2d3f831ac318].



[11] Existe aqui (importado dos factos assentes no despacho condensatório, cfr. fls. 103) um evidente erro na indicação da data, que aqui se corrige, deixando nota de que o testamento foi elaborado em 21 de Abril de 2003, como se lê, escrito em cursivo, a fls. 17: “[a]os vinte e um de Abril de dois mil e três […]”. Esta circunstância, que o Apelante aborda no recurso (v. fls. 218) será apreciada na ulterior exposição.
[12] Foi este o resultado do julgamento referido à factualidade elencada na base instrutória, na parte em que esta questionava a particular interpretação do A. relativamente ao sentido da disposição testamentária, nos termos por ele indicados nos artigos 23º e 24º da petição inicial (v. os itens 4 a 9 da base instrutória a fls. 104). Embora a questão não seja absolutamente líquida, ficam-nos dúvidas quanto a essa incidência temática do julgamento, tendo ela visado, de alguma forma, captar a intenção da testadora, algo para além da expressão vocabular contida no documento, com base em supostos comentários feitos a testemunhas. Não correspondendo esta situação ao elemento desvalioso indicado no artigo 2184º do CC, não deixamos de ver neste recurso à prova testemunhal uma perigosa proximidade àquilo que esse artigo 2184º pretende afastar na compreensão de uma disposição testamentária.
Seja como for, esta questão acaba por não se colocar, já que das respostas à base não emerge qualquer elemento extradocumental de compreensão do sentido do testamento.
[13] Note-se que o seguro também cobria a invalidez da testadora Maria… (v. fls. 20).
[14] E foi contratado por iniciativa do Banco (não da testadora/mutuária) que é (referimo-nos ao Banco) o tomador e o responsável pelo pagamento do prémio (v. o artigo 1º, alínea g) e artigo 4º do Decreto-Lei nº 176/95, de 26 de Julho).
Sublinha-se que o regime geral do crédito à habitação – o regime contido no Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro – prevê (nº 2 do respectivo artigo 23º) que “[e]m reforço da garantia prevista no número anterior [hipoteca da habitação adquirida], poderá ser constituído seguro de vida, do mutuário e do cônjuge […]”.
Estamos, pois, pelo menos no que diz respeito ao A. (que foi quem recebeu o valor segurado face à ocorrência do evento previsto no seguro), perante uma exacta ilustração da relevância da qualificação do contrato de seguro – de determinados contratos de seguro, para sermos exactos – como contratos a favor de terceiro. Esta qualificação tem um importante esteio na nossa jurisprudência e doutrina [v. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/03/1989 (Meneres Pimentel), publicado no BMJ 385,563 e, enquanto exemplo mais recente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/01/2009 (José Augusto Ramos), proferido no processo nº 5127/2008-1, disponível na base de jurisprudência do ITIJ nos campos indicados ou, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f8b69bb8694303bd; na doutrina v., por todos, o estudo de Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Coimbra, 2010, onde a questão é abordada nos seguintes trechos: pp. 25/26, 735/777 e 869/870].
[15] Se acaso isso tivesse sucedido ter-se-ia operado, sem dúvida, a extinção do crédito do Banco e, para parafrasearmos os termos do testamento, a eventualidade de se encontrar em dívida alguma quantia teria desaparecido, subtraindo-se igualmente o legatário ao encargo estabelecido – como “eventualidade” (como acontecimento incerto ou como contingência) – no testamento.
[16] Como aqui sucedeu no quadro do cumprimento pela seguradora do contrato de seguro, pela verificação de um dos eventos contratualmente previstos.
Vale aqui a definição geral de seguro, referido à espécie contratual correspondente, como o “[…] contrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas ou reais ou potenciais da verificação de determinado facto” (Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro…, cit., p. 66).
[17] Se o objectivo fosse, como pretende o Apelante, o de levar o legatário a realizar-lhe a ele uma atribuição patrimonial no momento da concretização do legado, não se compreende porque razão a testadora o não disse, como é notório – ostensivo, mesmo – não ter dito.
[18] Na teoria da interpretação jurídica, Ahron Barak (Purposive Interpretation in Law, Princeton, Oxford, 2005) fala do carácter único, no sentido de singularidade, da interpretação de um testamento: “the uniqueness of a will in interpretation” (pp. 307 e segs.).
Assenta este entendimento numa teorização, muito presente nos sistemas de common law, onde a questão da interpretação dos diversos tipos de textos legalmente relevantes (fala o Autor, seguindo uma terminologia de raiz anglo-saxónica, em legal texts, expressão que traduziremos por “texto legal”, com um propósito meramente expositivo), a interpretação de “textos legais”, dizíamos, é referida a gradações distintas – em continuum –, de um problema básico comum a diversas fontes. Neste sentido, a interpretação jurídica traduz a operação racional visando conferir sentido a um “texto legal” [“Legal interpretation is a rational activity that gives meaning to a legal text” (ob. cit., p. 3)], e que, descritivamente, corresponde à determinação do objectivo ou finalidade visados com esse concreto texto, abrangendo neste universo um leque de espécies ou fontes (de “textos legais”) que vão do texto de um testamento até ao texto de uma Constituição: “[i]n formulating ultimate purpose, purposive interpretation distinguishes between different types of legal texts […]. The first distinction considers the legal character of the text. The main distinction here is between wills [testamentos], contracts, statutes [leis infraconstitucionais], and constitutions. Legal texts exist on a continuum, with wills at one end, constitutions at the other, and, between them, contracts, statutes, and other texts with traits common to these four primary texts” (ob. cit., p. 184). Neste quadro existiria, assente numa teorização geral comum aos diversos tipos de textos, uma crescente atenuação do elemento subjectivo no percurso – trata-se de expressar a tal ideia de um continuum lógico – entre um testamento (neste com uma forte presença interpretativa do elemento subjectivo) e um texto constitucional, no qual prevalecem fortíssimos elementos de abstracção expressos na ideia de “valores fundamentais” próprios de um determinado sistema assente na concatenação entre grandes princípios (ob. cit., pp. 89/90 e 253/254).
Note-se que entre estes elementos – textos legais – extremos (o testamento, por um lado, e um texto constitucional, por outro), situar-se-iam os contratos, as decisões judiciais e a lei infraconstitucional (seguimos aqui, em boa parte, o texto do Acórdão desta Relação de 22/03/2011, que relatámos no processo nº 243/06.3TBFND-B.C1, o qual se encontra disponível na base do ITIJ, directamente, em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/bc78204f8a3f86ea80257869004ce5ac).
[19] “[O] valor jurídico deste negócio e o seu sentido vinculativo são questões que só se colocam num momento em que o autor do negócio – por virtude da morte – não está já em condições de reparar os vícios que na sua celebração tenham ocorrido, ou de fazer corresponder o seu conteúdo à vontade que nele quis traduzir e que a correspondente declaração, por qualquer circunstância, não revela, pelo menos em termos adequados. Daí o favor testamenti, ou seja, um princípio dirigido a permitir que o acto, tanto quanto possível, tenha valor, que preside também à matéria da interpretação deste negócio jurídico, conduzindo, neste domínio, a que ele valha segundo a vontade real do testador” (Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, 3ª ed, Lisboa, 2008, p. 531/532).
[20] Luís A. Carvalho Fernandes, Lições…, cit., p. 533.
[21] José de Oliveira Ascensão, Direito Civil Sucessões, 5ª ed., revista, Coimbra, 2000, p. 293.

[22] Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil anotado, Vol. VI, Coimbra, 1998, p. 387.