Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
17/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: AUDIÊNCIA DO ARGUIDO
REVOGAÇÃO DE PERDÃO
Data do Acordão: 02/15/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 61, N.º 1, AL. B), DO C. P. PENAL E ART.º 4º DA LEI 29/99
Sumário: I- A obrigatoriedade de audição prévia do arguido, antes da revogação do perdão concedido sob condição resolutiva, pressupõe a produção de prova sobre os pressupostos da verificação da referida condição resolutiva;
II- Não é apenas a pena de prisão efectiva que tem a capacidade de originar a revogação do perdão concedido nos termos do art.º 4º da Leia 29/99.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Por sentença de 19 de Outubro de 1999, transitada em julgado, o arguido A..., melhor identificado nos autos, foi condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de ameaça, em cúmulo jurídico, na pena única de 150 dias de multa então à taxa diária de 900$00, perfazendo o montante global de 135.000$00.
Não tendo o arguido procedido ao pagamento da multa, por despacho de 18/12/2000, foi a mesma convertida em 100 dias de prisão subsidiária, declarada perdoada, sob condição resolutiva de o arguido proceder ao pagamento da indemnização em havia sido condenado e de não praticar infracção dolosa até 13/05/2002.
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Posteriormente foi requisitado e junto aos autos certificado de registo criminal do arguido. E, constando do mesmo condenações posteriores, foram juntas aos autos as certidões das sentenças ali referenciadas.
Após o que foi proferido o despacho ora recorrido, que se transcreve, na parte relevante:
(…) Da análise do certificado do RC do arguido (fls. 251 a 256) e certidões de fls. 265 a 278 e 287 a 300, verifica-se que o arguido praticou os seguintes crimes e sofreu as seguintes condenações:
- No processo abreviado n.º 19/00.1GAALB do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez na pena de 70 dias de multa a 750$00 diários, por factos praticados em 13-01-2000, por sentença de 5/2/2001, transitada em julgado em 20/2/2001;
- No processo abreviado n.º 338/00.7GTAVR do Tribunal Judicial de Vagos, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez na pena de 70 dias de multa a 600$00 diários, por factos praticados em 26-8-2000, por sentença de 13/11/2001, transitada em julgado em 4/12/2001;
- No processo comum singular n.0 179/99.2GAALB do 2.0 Juízo do Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha, pela prática de três crimes de ofensa à integridade física simples na pena única de 180 dias de multa a 300$0 diários, por factos praticados em 26/12/1999, por sentença de 4/10/2002, transitada em julgado em 15/10/2002.
(…)
Assim, uma vez que o arguido foi condenado pela prática de 5 (cinco) crimes dolosos cometidos antes de decorridos três anos sobre a data da entrada em vigor da Lei n.º 29/99, de 12.05, e nos termos do art. 4.º do citado diploma legal, decide-se revogar o perdão da pena de 100 dias de prisão subsidiária aplicada nos presentes autos, determinando o seu cumprimento. Notifique. Após trânsito passem-se os respectivos mandados de detenção e condução ao estabelecimento prisional para cumprimento da pena, devendo constar dos mandados os elementos a que se referem o artigo 49º, n.º2 do C. Penal e 100º do CCJ.
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Recorre o arguido de tal despacho, formulando as seguintes conclusões:
1. A revogação do perdão constitui decisão que afecta o arguido pessoalmente, termos em que, ao abrigo do disposto no art. 32º, alíneas 5 e 7 do art 32º da C.R.P. e do art. 61º n.º1 alínea b) do CPP devia o arguido ter sido ouvido antes da mesma decisão.
2. Não o tendo sido, constitui inconstitucionalidade e nulidade processual a ser declarada por violação dos indicados dispositivos legais.
3. Deve ser efectuada uma interpretação restritiva do art. 4º da Lei 29/99 em que se considere que a pena com capacidade de originar a revogação do perdão concedido é apenas a pena de prisão efectiva.
4. O entendimento expresso no despacho recorrido viola o citado dispositivo legal e é inconstitucional face ao disposto no art. 32º e 33º da C.R.P.
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Respondeu o digno magistrado do MºPº sustentando a improcedência do recurso, alegando designadamente que a decisão recorrida não encerra qualquer actividade instrutória, não havendo sobre que ouvir o recorrente.
Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer concordante com a resposta sustentando que a audição do arguido, no caso, constituía uma acto inútil, por devidamente notificado do despacho que decretou o perdão e a respectiva condição, por isso sendo bem conhecida do arguido, para além de resultar de prova verificada documentalmente. As normas que concedem perdão de pena, como providências de excepção, devem ser interpretadas nos seus precisos termos.
Corridos os vistos legais, após julgamento, em conferência, cumpre decidir.
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Está em causa apurar se a revogação do perdão, por verificada a condição resolutiva, sem antes ouvir formalmente o arguido, viola o seu direito de audiência.
Direito esse que obriga a que o interessado se possa ter oportunidade de tomar posição e pronunciar-se sobre os pressupostos da decisão e da própria acusação, no termos específicos definidos para os actos mais solenes do processo, como ainda sobre os pressupostos de qualquer decisão relevante, a seu respeito.
Constituindo uma garantia de defesa decorrente do Estado de Direito democrático.
Para além de prevista a forma como deve ser exercido em vários termos do processo, encontra-se atribuído genericamente ao arguido no art. 61º, n.º1, al. b) do CPP:
«1. O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, dos direitos de: (…) b) ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte».
O direito de audição assenta na ideia de que constitui o instrumento para, a todo o tempo, assegurar ao arguido a possibilidade de tomar posição sobre o material probatório que contra ele possa ser feito valer e, do mesmo passo, facultar-lhe uma relação de imediação quanto aos meios de prova e à entidade que procede à sua recolha – cfr. Costa Pimenta, CPP Anotado, 2ª ed., 204 e F. Dias, Direito Processual Penal, 1981, I, p. 431/432.
Pressupondo o exercício do direito de audição, nas sucessivas fases do processo, que tenham sido carreados ou aportados ao processo novos elementos sobre que não teve oportunidade de se pronunciar.
Analisando a expressão “decisão que pessoalmente o afecte” ou actos processuais que lhe directamente lhe disserem respeito, José António Barreiros (I Congresso de Processo Penal, Inquérito e Instrução, Almedina, 2005, p. 145) refere que não é fácil interpretar esta limitação, posto que, em pura lógica, ela exclui praticamente nada, porquanto todo o processamento penal, a partir do momento em que houver arguido, visa precisamente a pessoa deste, procurando determinar a existência do ilícito e a responsabilidade do arguido na ocorrência, pelo que todos os actos processuais lhe dizem respeito, no entanto, de um ponto de vista prático, o alcance gizado pela lei foi o de definir o direito de presença do arguido quanto a actos de produção probatória excluindo todos os restantes actos do processo e, dentro destes actos, apenas haverá que considerar aqueles que visarem a produção de prova que possa ter relevo para o apuramento e definição do ilícito pelo qual posa ser responsabilizado o arguido de cuja presença se trate.
Ora, no caso em apreço, o arguido exerceu de forma ampla e exaustiva o direito de audição e o contraditório relativamente aos pressupostos da condenação, decreta após julgamento onde esteve presente e pode contraditar as provas contra si apresentadas.
Posteriormente teve o arguido oportunidade de se pronunciar sobre o não pagamento da multa, tendo sido depois notificada da decisão que converteu a pena na prisão subsidiária aplicando-lhe o perdão sob a condição resolutiva de o arguido de não praticar infracção dolosa até 13/05/2002. Decisão essa que transitou em julgado.
Por outro lado no despacho ora recorrido não foi apreciado ou reconhecido qualquer “pressuposto da condenação”. Mas antes e apenas a verificação da condição resolutiva do perdão previamente definida e comunicada ao arguido.
Acresce que a aplicação da condição não depende da verificação, ope judice, de qualquer pressuposto material. Ou da formulação de qualquer juízo discricionariedade cujos pressupostos importe apreciar. Pelo contrário é definida ope legis, como consequência directa e imediata de uma condenação, posterior, pela prática de crime doloso praticado durante o período de vigência da condição resolutiva do perdão.
Sendo certo, ainda, que as condenações que determinaram a revogação do perdão foram proferidas em processos autónomos, nos quais o arguido foi ouvido e exerceu todas as possibilidades de defesa, designadamente em audiência pública onde esteve presente e assistido por defensor.
Além de que também as condenações que levaram – como tinham que levar necessariamente por efeito directo da lei - à revogação do perdão, transitaram em julgado.
Não havendo assim qualquer prova a produzir sobre os pressupostos da verificação da condição resolutiva, por verificados e reconhecidos, como se disse, por decisões judiciais devidamente notificadas ao arguido e transitadas em julgado - no caso três decisões em processos distintos, onde o arguido foi condenado por cinco crimes dolosos praticados durante a vigência da condição resolutiva.
Pressupostos esses que, transitada qualquer das várias decisões que condenaram o arguido por qualquer dos cinco crimes praticados durante a vigência da condição, decorrem de forma necessária, directa e imediata da lei mencionada na decisão que concedeu o perdão sob condição resolutiva.
Nada tendo assim o despacho recorrido acrescentado, de novo, sobre que o arguido não tivesse conhecimento ou sobre cujos pressupostos não se tenha pronunciado exaustivamente.
Acresce que o despacho recorrido não determinou a passagem imediata dos mandados, mas apenas após o respectivo trânsito em julgado, tendo o arguido sido devidamente notificado, podendo sempre evitar a sua emissão e ou execução com o pagamento da multa.
No sentido de que a decisão que a resolução do perdão não carece da prévia audição do arguido por não reflectir qualquer juízo de discricionariedade cfr., entre outros: Ac. RP de 14.04.2004 publicado na CJ II/2004, p. 213; Ac. RP de 23.11.2005 – processo 051547 e Ac. RE de 24.06.2004, ambos acessíveis em htt://www.dgsi.pt., citados no douto parecer; Ac. RE de 27.09.2004 – recurso 1334/04, acessível no mesmo site. Em sentido contrário v. designadamente o AC.T.C. de 07.06.2005, publicado no DR IIS de 28.07.2005, que se nos afigura, contudo, não levar em linha de conta que a verificação da condição resolutiva resulta de uma decisão judicial transitada em julgado, proferida em processo crime onde foram salvaguardadas todas as garantias defesa do arguido.
Conclui-se assim que não foi violado o direito de audição do arguido, uma vez que teve oportunidade de, exaustivamente, se pronunciar sobre os pressupostos das condenações, transitadas em julgado, que determinaram a revogação do perdão.
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Sustenta depois o recorrente que deve ser efectuada uma interpretação restritiva do art. 4º da Lei 29/99 em que se considere que a pena com capacidade de originar a revogação do perdão concedido é apenas a pena de prisão efectiva.
Ora, salvo o devido respeito por entendimento contrário, dada a natureza específica do perdão genérico de penas, a lei que o decreta deve ser interpretada nos seus estritos termos definidos na lei que o conceder – neste sentido v. Ac. STJ de 07.12.1977, BMJ272º, p. 11; Ac. STJ de 30.06.1976, BMJ 258º, p. 111; Ac. STJ de 16.01.1990, BMJ 396º, p. 260, citado no douto parecer. Tratando-se de jurisprudência uniforme daquele mais alto Tribunal, como dá conta Maia Gonçalves no seu C. Penal Anotado, 15ª ed., p. 426, em anotação ao artigo 128º.
Aliás o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir da melhor forma o seu pensamento – art. 9º, n.º3 do C. Civil. E se o legislador quisesse condicionar a revogação do perdão “apenas” à condenação em pena de prisão (pena efectiva de prisão? Também a pena de suspensão da prisão?) tê-lo-ia dito com clareza, dada a diferença essencial entre a pena de multa e a pena de prisão.
Sendo o argumento de que o perdão pode ser revogado com base em “bagatelas penais” neutralizado pela exigência da “condenação por crime doloso”.
Assim definindo a lei, como única condição da revogação do perdão, a prática, durante o período de vigência da condição resolutiva, de crime doloso, não é legítimo ao intérprete restringir a aplicação em função da natureza da pena aplicada.
Pelo que também neste particular, o recurso terá que improceder.
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Termos em que se acorda negar provimento ao recurso. --------
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC.