Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2889/20.8T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: IVA DEDUTÍVEL
DANO INDEMNIZÁVEL
PRIVAÇÃO DO USO DO VEÍCULO
DEVER DE PROVIDENCIAR PELA REPARAÇÃO
CULPA DO LESADO NA PRODUÇÃO OU AGRAVAMENTO DOS DANOS
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 02/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º, N.º 1, ALÍNEA A), 19.º, N.º 1, ALÍNEA A), 21.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DO IVA
ARTIGOS 483.º, 562.º, 566.º, 570.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – O valor correspondente ao IVA dedutível da reparação de veículo que é pago por um sujeito passivo do imposto em causa não corresponde a um efectivo prejuízo que, como tal, deva ser indemnizado.

II – O lesado não tem o dever ou obrigação de se substituir ao responsável pelo acidente na execução da prestação de reparação do veículo que está a cargo deste, não podendo, por isso, considerar-se que o lesado contribui culposamente para o agravamento dos danos pelo facto de não providenciar, ele próprio e à sua custa, pela reparação do veículo, sendo tal agravamento imputável ao responsável pelo acidente que, estando obrigado a proceder à reparação do veículo, não assume essa prestação ou não a executa com a necessária prontidão.

III – Ressalvando as situações que sejam configuradas como “perda total do veículo”, o lesado tem o direito de reclamar do responsável a indemnização do dano correspondente à privação do uso do veículo até à data em que seja efectuada a respectiva reparação.

IV – O exercício desse direito apenas poderá ser paralisado pelo abuso de direito caso haja razões para concluir que as regras de boa fé impunham ao lesado o dever de providenciar pela reparação do veículo em momento anterior e que, tendo omitido essa actuação, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé ao vir reclamar a indemnização referida em III).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

J..., S.A., com sede em ..., AA, veio intentar acção, com processo comum, contra V..., S.A., com sede no ..., Av...., ..., ..., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 150.580,59€, a título de indemnização por prejuízos sofridos, acrescida dos juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Fundamentando a sua pretensão num acidente de viação ocorrido em 23/05/2018 entre um veículo de sua propriedade e um veículo seguro na Ré a cujo condutor imputa a culpa na eclosão do acidente, alega, em resumo: que, em consequência desse acidente, o seu veículo sofreu danos cuja reparação importava no valor global de 29.351,85€; que a Ré não assumiu o pagamento dessa reparação alegando estar em causa uma situação de perda total por considerar que o valor comercial do veículo era de 14.450,00€; que não aceitou a proposta da Ré por entender que o valor do veículo era superior e não existia uma situação de perda total, comunicando-lhe que, por força da imobilização do veículo, havia contratado uma empresa de serviço de transportes de mercadorias para realizar o serviço que deveria ser efectuado pelo veículo sinistrado até à data em que o mesmo fosse reparado; que, por não ter fundos suficientes para o pagamento da reparação, só em 06/06/2019 lhe foi possível inspecionar aquela viatura no IMTT; que, por força da imobilização do veículo, em virtude de a Ré não ter assumido a respectiva reparação, sofreu um prejuízo no valor de 121.117,34€ (27.060,00€ respeitante ao valor que despendeu nos meses de Maio, Junho e Julho de 2018 em serviço de transportes efectuados pela S... Unipessoal, Ld.ª e 94.057,34€ respeitante à paralisação do veículo no período de 01 Agosto 2018 a 06 Junho de 2019, tendo como referência o valor diário de 262,73€ constante na tabela do Protocolo celebrado entre a APS – Associação Portuguesa de Seguros e a Antran – Associação Nacional de Transportes Rodoviários de Mercadorias) e que sofreu ainda o prejuízo de 111,40€ correspondente ao valor que despendeu junto do Posto da ... com a obtenção da certidão do acidente de viação.

Na contestação que apresentou, a Ré reconheceu a sua responsabilidade pelos danos resultantes do acidente, impugnando, no entanto, o valor dos danos que é alegado pela Autora. Sustentou, no essencial e em resumo: que, tendo em conta o valor atribuído ao veículo (14.450,00€) e o custo da reparação (que foi fixado pela peritagem em 15.529,00€ e que, segundo a Autora, ascendeu a 29.351,85€), estava em causa uma situação de perda total que foi comunicada à Autora por carta de 21/06/2018; que, nessas circunstâncias, apenas está obrigada a pagar a quantia de 12.428,00€ (valor que sempre aceitou pagar e foi recusado pela Autora), tal como aceita pagar o valor de 2.857,12€ a título de indemnização decorrente da paralisação do camião pelo período de 28 dias; em tudo o mais, contesta e impugna os danos e valores peticionados pela Autora, sustentando que o pedido de indemnização pela privação do uso do camião acidentado que foi apresentado pela Autora consubstancia uma situação de abuso do direito e que, além do mais, as quantias referentes a IVA que constam das facturas apresentadas pela Autora não correspondem a um prejuízo efectivo, na medida em que, enquanto sociedade comercial, a Autora pode deduzir esse IVA nas suas declarações;

Conclui pedindo que a acção seja julgada parcialmente procedente, condenando-se a Ré no pagamento das quantias de 12.428,00€ (correspondente ao valor venal do veículo acidente depois de deduzido o valor do salvado uma vez que o camião ficou na posse da Autora) e de 2.857,12€ (a título de indemnização decorrente da paralisação do camião pelo período de 28 dias) e absolvendo-se a mesma de tudo o mais que foi peticionado.

Foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu nos seguintes termos:

1. Condeno a ré a pagar à autora a quantia global de 33.551,85 € a título de indemnização, acrescida dos juros que à taxa legal se vencerem desde a citação até efetivo e integral pagamento

2. Absolvo a ré do restante pedido contra si formulado”.

Inconformada com essa decisão, a Ré V..., S.A. veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:


(…)

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações das Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito dos recursos – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

i) Saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto no que toca aos concretos pontos de facto que são impugnados pelas Apelantes;

ii) Saber se a sentença recorrida está ferida de nulidade por falta de fundamentação e/ou por ter omitido pronúncia relativamente à questão/argumentação suscitada pela Ré relacionada com o facto de o valor do IVA da reparação não corresponder a um prejuízo da Autora que deva ser indemnizado;

iii)  Saber se o valor do IVA da reparação corresponde (ou não) a um prejuízo sofrido pela Autora que deva ser indemnizado;

iv) Apurar a duração do dano da privação do uso do veículo e quantificar o valor da respectiva indemnização.


/////

III.

Matéria de facto

(…)

A matéria de facto provada – com a alteração introduzida nos pontos 8 e 9 – é, portanto, a seguinte:

1. No dia 23.05.2018, pelas 7,45 horas, ao km 104,900 da Estrada Nacional Nº ..., freguesia de ..., concelho de ..., ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes:

- O veículo pesado de mercadorias trator ..., matrícula ...-FV-... com reboque matrícula L-157515, propriedade da A., conduzido na altura por BB,

- O veículo pesado de mercadorias ..., matrícula ...-JQ-..., conduzido na altura pelo seu proprietário CC e seguro na R. V..., S.A.

Naquele dia, hora e local circulava o veículo da A. no sentido Alcobaça - Alfeizerão, dentro da sua meia-faixa de rodagem, quando inesperada e violentamente foi embatido pelo veículo seguro na R., em consequência do qual o condutor do veículo da A., após perder o controlo do mesmo, não conseguiu evitar o embate com a frente deste veículo num muro de vedação duma residência existente na berma direita da estrada por onde circulava.

2. A R. assumiu a responsabilidade do seu segurado no acidente.

3. Do acidente resultaram danos, sobretudo na parte frontal e lateral esquerda do acima identificado veículo da A..

4. Na sequência do acidente, foi designado o dia 28.05.2018 para a realização da peritagem ao Camião

5. A peritagem não chegou, no entanto, a realizar-se porque a oficina estava encerrada, tendo sido designada uma segunda data.

6. O custo de reparação do veículo da Autora ascendia, de acordo com a peritagem, a €15.529,00

7. A Ré atribuiu a veículo da Autora o valor venal de €14.450,00 e ao salvado o valor de €2.022,00

8. Em serviço de bate-chapas e pintura a reparação importou em 11.717,00€, acrescidos de IVA no valor de 2.694,91€, num total de 14.411,91€;

9. Em serviço de mecânica, sobretudo da reparação de motor a nível de camisas, pistons, bronzes, cambotas, válvulas, juntas, turbo, carter, radiador, bombas de água e outros, a reparação importou em 12.146,29€, acrescido de IVA no valor de 2.793,65€, num total de 14.939,94€.

10. A Ré enviou à A. com data de 21.06.2018, carta em que não assumiu o pagamento da reparação do veículo, por considerar que o valor comercial do veículo da A. era de 14.450,00€ e em consequência configurar-se uma situação de perda total.

A Autora também aceitou (voluntariamente) pagar o valor de €2.857,12 a título de indemnização decorrente da paralisação do camião pelo período de 28 dias.

11. A Autora respondeu á Ré, também por carta datada de 3 Julho 2018 em que refere, nomeadamente, que:

… não aceitamos a V/ proposta de perda total do veículo, uma vez que o veículo em causa foi adquirido por esta empresa em 12-01-2018, pelo valor de 20 000 euros, conforme fatura em anexo, tendo posteriormente sido equipado com extras, que podem ser confirmados pelo V/ perito nomeadamente:

Kit Hidráulico: 2 400,00 Euros

Retarder: 4 800,00 Euros

Total valor veiculo: 27 200,00 Euros

Assim entendemos que o valor comercial do veículo anterior ao acidente é de 25.000 Euros, pelo que iremos a partir desta data dar início à reparação do veículo, uma vez que não se figura uma situação de perda total

De acordo com a oficina o período de reparação são 15 dias úteis.

Mais informamos, que me consequência deste sinistro, e estando a nossa viatura imobilizada desde a data do sinistro, contratamos uma empresa de serviços de transporte de mercadorias no dia 25-05-2018, para podermos cumprir os nossos compromissos contratuais com os nossos cientes e efectuar o mesmo serviço que a nossa viatura sinistrada estava a fazer.

Vamos continuar a contratar esta empresa até á data em que o nosso veículo nos for entregue em perfeitas condições pela oficina reparadora.

Posteriormente iremos remeter a V.Exas. todas as despesas para reembolso relativas a este sinistro em que não tivemos qualquer responsabilidade”.

12. No dia 09.07.2018[1] o perito deslocou-se à oficina e aí pôde constatar que o veículo da Autora se encontrava no mesmo estado do dia da conclusão da peritagem

No dia 01.10.2018 o perito voltou a deslocar-se à oficina para verificar o ponto de situação do veículo e o veículo encontrava-se nas mesmas condições do dia da peritagem e não tinha sido dada qualquer ordem de reparação do mesmo.

13. O veículo acidentado e reboque com peso bruto de 31.000kg (31 toneladas) era pela A. diariamente utilizado no transporte de matéria prima para a indústria de cerâmica e vidro dado a sua principal actividade consistir na extracção e comercialização desses produtos (barros, caulinas, areias, inertes,…).

14. A inspecção daquela viatura no IMTT ocorreu no dia 06.06.2019

15. A A. despendeu 27.060,00€ nos meses de Maio, Junho e Julho de 2018 em serviço de transportes efectuados pela S... Unipessoal, Lda.

16. A Autora despendeu 111,40€ junto do Posto da ... com a obtenção da certidão do acidente de viação.

Não se julgaram provados os seguintes factos:

1. A Autora não dispunha de fundos suficientes para o atempado pagamento da reparação do veículo.

2. O valor do veículo da Autora à data do acidente era de € 14.450,00.


/////

IV.

Fixada a matéria de facto, importa agora analisar as demais questões.

Apelação da Ré

O recurso da Ré incide apenas sobre o segmento da decisão que a condenou a pagar a indemnização correspondente ao valor da reparação do veículo (29.351,85€) e reporta-se exclusivamente ao valor do IVA dessa reparação

Sustenta a Apelante que a Autora tem direito à dedução do IVA pago com referência àquela reparação – por força do disposto nos artigos 19º/1 a) e do art. 21º/1 a) do CIVA – pelo que o valor desse IVA não corresponde a qualquer prejuízo que tenha sofrido e que, como tal, deva ser indemnizado. Sustenta, por isso, que o valor da indemnização deve ser reduzido em valor equivalente ao referido IVA.

(…)

Resta agora apreciar a argumentação da Apelante relativamente ao IVA e, consequentemente, relativamente ao valor do dano e respectiva indemnização.

Sustenta a Apelante que o valor correspondente ao IVA da reparação do veículo não pode ser considerado como prejuízo efectivamente sofrido pela Autora, na medida em que esta tem direito à dedução desse IVA, nos termos do art.º 19.º/1 a) e do art.º 21.º/1 a) do CIVA.

Pensamos que terá razão.

Com efeito, a Autora é, sem dúvida alguma, sujeito passivo do imposto em causa (cfr. art.º 2.º, n.º 1, alínea a), do CIVA) que, nessa qualidade e conforme previsto nos artigos 19.º e 20.º do mesmo diploma, pode deduzir ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectue o imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos, como é o caso do IVA que foi cobrado pelos sujeitos que forneceram e prestaram os bens e serviços referentes à reparação do veículo que a Autora utilizava no âmbito da sua actividade comercial e, consequentemente, para a realização de transmissões e prestações de serviços sujeitas a imposto. Com efeito, estando em causa a aquisição de bens e serviços que se consubstanciaram na  reparação de um veículo que era utilizado pela Autora no âmbito da sua actividade comercial e com vista à extracção e comercialização de matéria de prima para a indústria de cerâmica e vidro, pensamos ser claro que está em causa uma operação inerente à actividade empresarial da Autora que visa a realização de operações tributáveis, o que, nos termos do artigo 20º, nº 1, alínea a), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, confere o direito à dedução do IVA que a Autora pagou.

Nessas circunstâncias e não se detectando a verificação de nenhuma situação da qual resulte a exclusão do direito àquela dedução, o valor do IVA correspondente à reparação do veículo não corresponderá, na verdade, a um efectivo prejuízo para a Autora que, como tal, deva ser indemnizado.

Veja-se, a propósito, o Acórdão do STJ de 12/09/2013[2], onde se disse que “A não ser que uma  empresa demonstre que o não reembolso do IVA se deveu a facto não lhe imputável, nas operações inerentes à atividade empresarial, o IVA nunca é custo para a empresa que o paga e, portanto, dano indemnizável,  pois, a final, tem direito à respectiva dedução”. No mesmo sentido se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 27/05/2015[3].

Também no mesmo sentido e com referência à reparação de um veículo, decidiu a Relação de Évora em Acórdão de 25/02/2021[4], onde se disse que “…o IVA constituirá um prejuízo para efeitos da obrigação de indemnização se e quando o lesado se apresentar como consumidor final, para efeitos tributários, na aquisição de bens ou serviços supostos pela reparação; se o lesado for um sujeito passivo do IVA e a operação sujeita a IVA dedutível, o prejuízo não se verifica”.

Nessas circunstâncias, nada tendo sido alegado – e provado – que aponte para o facto de o IVA não ter sido – ou não poder vir a ser – deduzido, não há razões para considerar que o respectivo valor corresponda a um verdadeiro e efectivo prejuízo sofrido pela Autora que, como tal, deva ser indemnizado.

Assim, o valor da indemnização devida à Autora com referência aos danos sofridos pelo veículo – e inerente reparação – será apenas de 23.863,29€.

Procede, portanto, o recurso da Ré.

Apelação da Autora

O recurso da Autora incide sobre a indemnização referente ao dano de privação do uso do veículo.

A decisão recorrida fixou o valor dessa indemnização em 4.200,00€, sustentando a Apelante que ela deve ser fixada no valor de 116.914,53€.

A decisão recorrida fixou a indemnização no valor de 4.200,00€ com base nos seguintes argumentos:

· Considerou, em primeiro lugar, que a Autora apenas tinha direito a tal indemnização pelo período de 28 dias que a Ré se disponibilizou a indemnizar, uma vez que, tendo resultado provado que o período de reparação era de 15 dias e não tendo resultado provado que a reparação tivesse demorado mais tempo, a indisponibilidade do veículo para além desse período apenas de deveu à Autora e não tem relação causal com o dano;

· Considerou, em segundo lugar, que a tabela indicada pela Autora – com base na qual pede uma indemnização no valor diário de 262,73€ - não é aqui aplicável e que, na falta de prova directa do valor do dano (diário), ele teria que ser apurado de acordo com a equidade;

· Considerou, por último, que, em termos de equidade, era adequado um valor diário de 150,00€, tendo em conta a dificuldade de encontrar no mercado um veículo com as mesmas características para o seu aluguer e tendo ainda em conta o valor pago pela autora descrito em 15 (valor diário de 500€, mas que incluía tudo, desde o veículo, aos seguros, ao combustível e ao motorista).

A Apelante, por seu turno, argumenta:

· Que o valor diário equitativo da indemnização deve ser fixado no valor de 262,73€ constante da tabela do Protocolo celebrado ente a APS e a Antran;

· Que esse valor é devido pelo período de 445 dias, uma vez que a seguradora não cumpriu com a sua obrigação de mandar reparar tais danos como lhe competia; o atraso na reparação do acidentado veículo ficou a dever-se única e exclusivamente ao facto da R. não ter assumido o pagamento da reparação do veículo por considerar a existência de uma situação de “perda total” que não conseguiu demonstrar.

Analisando essa matéria, importa começar por delimitar (designadamente em termos temporais) o concreto dano que está em questão.

Estando em causa a privação do uso do veículo, é certo que o dano em questão pressupõe, desde logo e antes de mais, a efectiva impossibilidade de usar o veículo por força dos danos sofridos e, portanto, o dano só poderá existir se e enquanto durar essa privação, ou seja, até que o veículo seja entregue ao lesado devidamente reparado ou, em caso de perda total, até ao momento em que seja disponibilizada ao lesado o valor de substituição do veículo.

Ora, apesar de a Apelante reclamar a indemnização desse dano por um período de 445 dias, nada resultou provado que aponte para a indisponibilidade e impossibilidade de usar o veículo durante todo esse período. Na verdade, sabemos que o veículo foi reparado – cfr. pontos 8 e 9 da matéria de facto – e, portanto, é certo que, a partir desse momento, cessou a privação do uso do veículo; estando o veículo reparado, a Autora poderia, naturalmente, usá-lo se e como entendesse, não existindo a partir desse momento qualquer dano por privação do uso do veículo. É certo que não sabemos a data em que tal reparação foi efectuada, mas não sabemos porque – pura e simplesmente – a Autora nunca a alegou. A Autora limitou-se a alegar a data em que o veículo foi inspecionado (06/06/2019), pretendendo ser indemnizada de um pretenso dano de privação do uso do veículo até essa data. Sucede que a data de inspecção do veículo nada nos diz acerca da efectiva impossibilidade de usar o veículo (note-se, aliás, que, pelo menos em Janeiro de 2019 – muito antes da data daquela inspecção – o veículo já estaria reparado, conforme resulta das facturas inerentes a tal reparação que a própria Autora juntou aos autos com a sua petição inicial e tão pouco sabemos se essa terá sido a primeira inspecção após a reparação e, em caso afirmativos, porque razão ela foi efectuada muito depois de a reparação estar executada). O que a Autora tinha que alegar – no sentido de demonstrar o dano em questão – era a data em que o veículo havia sido reparado e isso a Autora não alegou (e, consequentemente, não provou).

 Com referência a essa matéria, sabemos apenas – e sabemos por via de alegação da Ré – que no dia 01/10/2018 o veículo ainda não estava reparado (cfr. ponto 12 da matéria de facto).

Nessas circunstâncias, é certo que só poderá ser considerada a existência de qualquer dano decorrente da privação do uso do veículo até 01/10/2018 (ou, eventualmente, mais os 15 dias correspondentes ao período necessário para executar a reparação). A Autora não alegou, como era seu ónus, – e por isso não provou – que, a partir dessa data, tivesse continuado privada do uso do veículo (por não ter sido ainda reparado) e, como tal, nunca se poderá ter como demonstrado qualquer dano a partir dessa data.

Em face do exposto, é evidente a improcedência da pretensão da Autora no que toca à indemnização que pretende obter pela privação do uso do veículo a partir de 15/10/2018, sendo certo que a Autora não provou que tivesse estado efectivamente privada do uso do veículo a partir desse momento.

Resta saber se a Autora/Apelante tem ou não direito a tal indemnização com referência ao período compreendido entre a data do acidente (23/05/2018) e 15/10/2018, sabendo-se – tendo em conta a matéria de facto provada – que a Autora esteve efectivamente privada do uso do veículo durante esse período.

De acordo com a sentença recorrida, tal indemnização apenas é devida pelo período de 28 dias que a Ré aceitou indemnizar, importando esclarecer que esse período corresponde ao que decorreu entre a data do acidente (23/05/2018) e a data (21/06/2018) em que a Ré comunicou que não assumia o pagamento da reparação por considerar que estava configurada uma situação de perda total.

Não nos parece que assim seja.

Vejamos.

Conforme resulta do disposto no art.º 483.º e 562.º e segs. do CC, o responsável está obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes do acto que origina a obrigação de indemnizar, ou seja, os danos que, em termos de causalidade adequada, possam ser imputados a este acto, devendo reconstituir – prioritariamente por via de reconstituição natural – a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

Nessas circunstâncias, o lesado em acidente de viação tem o direito de exigir a efectiva reparação do veículo danificado, tal como tem o direito de exigir a indemnização dos danos que sofra em consequência da privação do seu uso até ao momento em que a coisa lhe seja entregue devidamente reparada. Só assim não será nos casos qualificáveis como “perda total” (cfr. art.º 41.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21/08), caso em que a obrigação do responsável deixa de corresponder à efectiva reparação da coisa e passa a corresponder à entrega do valor de substituição de veículo. Poder-se-á, portanto, dizer que o dano de privação do uso do veículo danificado é imputável ao responsável pelo acidente até ao momento em que essa privação cesse por via da entrega do veículo devidamente reparado ou, em caso de perda total, quando seja disponibilizado o valor de substituição do veículo. Ou seja, a privação do uso é imputável ao responsável – e como tal indemnizável – se e enquanto ela resultar da falta de cumprimento da obrigação que está a cargo do responsável, seja ela a obrigação de providenciar pela reparação do veículo, seja ela a obrigação de pagar o valor de substituição do veículo em caso de perda total.

No caso, conforme se considerou na sentença recorrida (que, nessa parte, não foi questionada), a obrigação que estava a cargo da Ré (seguradora) era a obrigação de reparar o veículo. Na verdade, ainda que a Ré tenha considerado – e comunicado à Autora – que estava em causa uma situação de “perda total” (não assumindo, portanto, a obrigação de reparar o veículo), veio a constatar-se que não tinha razão; não estava em causa uma situação de perda total e, como tal, estava efectivamente obrigada a providenciar pela reparação do veículo, como sustentava e reclamava a Autora.

Ora, não tendo cumprido essa obrigação, será, em princípio, responsável pelos danos que a Autora sofreu por força da privação do uso do veículo até à data em que este foi reparado (momento em que cessou a privação e o consequente dano).

Sustenta, no entanto, a Ré/Apelada que, a partir do momento em que comunicou à Autora que não iria providenciar pela reparação (por entender estar em causa uma situação de perda total), a Autora poderia/deveria ter ordenado a reparação e, não o tendo feito – sem que demonstrasse qualquer razão atendível para o efeito, nomeadamente financeira –, impõe-se concluir que a imobilização do veículo lhe é imputável e que, como tal, não tem direito à indemnização nos termos previstos no art.º 570.º do CC.

Não nos parece, porém, que seja exactamente assim.

Dispõe, efectivamente, o n.º 1 do citado art.º 570.º que “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.

Entendemos, no entanto, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que tal disposição não pode ser lida e interpretada com o sentido de impor ao lesado o dever de se substituir ao responsável na execução da prestação que está a cargo deste. E seria esse o sentido que dela resultaria, caso se entendesse que, por efeito do que aí se dispõe, a imobilização do veículo – e o dano inerente – passariam a ser imputáveis ao lesado, caso este não procedesse à reparação depois de o responsável lhe ter comunicado que não a iria assumir.

Na verdade, os danos sofridos no veículo e a consequente privação do seu uso por força da imobilização imposta por esses danos resultaram do acto que está na origem da obrigação de indemnizar e, portanto, eles são imputáveis ao autor desse acto (e não ao lesado) a quem cabe a obrigação de proceder à respectiva reparação. É certo que a privação do uso do veículo pode ser agravada pela demora na reparação do veículo e é certo que o lesado poderia efectuar, por sua conta, a referida reparação reduzindo, dessa forma, o período de imobilização e a consequente privação do uso do veículo; mas, se é certo que o lesado o poderia fazer, o mesmo aconteceria com o responsável (também este poderia assumir a sua responsabilidade e providenciar pela efectiva execução da prestação a que está obrigado, minorando, dessa forma, o dano resultante da privação do uso do veículo). Sucede, no entanto, que é o responsável – e não o lesado – quem tem a obrigação de providenciar pela reparação e assumir o seu custo; o lesado, não tendo o dever de a executar, tem, pelo contrário, o direito de a exigir do responsável e, nessas circunstâncias, não encontramos razões para considerar que o lesado contribui para o agravamento dos danos pelo facto de não providenciar, ele próprio e à sua custa, pela reparação do veículo; o agravamento do dano de privação do uso do veículo não resulta, portanto, de qualquer facto culposo do lesado, continuando a ser imputável ao responsável pelo acidente que, estando obrigado a proceder à reparação do veículo, não assume essa prestação ou não a executa com a necessária prontidão, determinando, por isso, o agravamento do dano resultante da imobilização do veículo e da consequente privação do seu uso.

Pode suceder, no entanto, que, nas concretas circunstâncias do caso, as regras de boa fé imponham ao lesado o dever (moral ou ético) de conter a evolução do dano, procedendo, ele próprio e à sua custa, à execução da prestação que está a cargo do lesante (a reparação do veículo) no sentido de limitar as consequências da privação do uso do veículo que foi determinada pelo facto danoso[5]. Tal acontecerá, designadamente quando a reparação tenha um custo reduzido – que o lesado não tem dificuldades em suportar – e quando se preveja que os prejuízos resultantes da imobilização venham a ser muito avultados, com igual ponderação, à luz das mesmas regras de boa fé, das razões pelas quais o responsável não providenciou por essa reparação em execução da prestação a que estava obrigado. No entanto, aquilo que essas situações poderão evidenciar não será propriamente um agravamento do dano imputável a facto culposo do lesado que releve para os efeitos previstos no citado art.º 570.º, mas sim – e pensamos ser nesses termos que elas devem ser valoradas – a existência de abuso de direito relativamente ao exercício do direito de reclamar uma indemnização por um dano que, numa actuação conforme às regras de boa fé, o lesado devia ter evitado ou limitado. Nessas circunstâncias, a referida pretensão indemnizatória poderá ser paralisada e recusada – total ou parcialmente – quando o exercício desse direito traduza um excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé (ou seja, um abuso de direito) por estar em causa um dano de proporções assinaláveis que o lesado poderia ter evitado, sem grandes custos e sem grande esforço.

Concluimos, portanto, em face do exposto, que, ressalvando as situações que sejam configuradas como “perda total” (caso em que o dano de privação do uso de veículo cessa aquando da disponibilização da indemnização devida por essa perda), o lesado tem, por regra – sem prejuízo dos casos em que isso possa configurar um abuso de direito por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé –, o direito de reclamar do responsável a indemnização do dano correspondente à privação do uso do veículo até à data em que seja efectuada a respectiva reparação, sem que lhe possa ser imposto, pelo menos por regra, o ónus ou dever de providenciar, ele próprio e à sua custa, pela reparação do veículo e sem que se possa, por isso, considerar que, por não ter procedido a essa reparação, determinou ou concorreu culposamente para o agravamento do dano para efeitos de redução ou exclusão do direito à respectiva indemnização nos termos do art.º 570.º do CC.

No caso dos autos, a Ré não assumiu a obrigação de reparar o veículo por entender que estava em causa uma situação de “perda total”. Veio, porém, a demonstrar-se que não tinha razão; conforme se considerou na decisão recorrida – sem qualquer reparo das partes –, não estava configurada uma situação de “perda total” e, portanto, a Ré estava efectivamente obrigada a providenciar pela reparação do veículo. E, não tendo executado essa prestação – a que estava obrigada –, ficou também responsável pelos danos resultantes da privação do uso do veículo até à data em que esse dano cessou por via da reparação do veículo que veio a ser efectuada pela própria Autora (lesada). Na verdade, a Autora, enquanto lesada, não tinha o ónus ou dever de providenciar pela reparação do veículo – tinha, pelo contrário, o direito de exigir da Ré que esta executasse essa prestação – e, portanto, o agravamento do dano da privação do uso (resultante do facto de a reparação não ter sido executada em momento anterior) não resultou de qualquer acto culposo da Autora (lesada), resultando, pelo contrário, do acto que originou a obrigação de indemnizar a cargo da Ré e da circunstância de esta não ter cumprido em momento anterior a prestação a que estava obrigada.

Refira-se, por outro lado, que nem sequer há razões para considerar que as regras da boa fé impusessem à Autora o dever de providenciar pela reparação em momento anterior, em termos de se poder concluir que actua de forma contrária a essas regras – com eventual abuso de direito – ao vir agora exigir uma indemnização pelo dano sofrido durante esse período. É que, para que assim se pudesse concluir, seria necessário, no mínimo, que se demonstrasse que a Autora tinha capacidade e disponibilidade financeira imediata para proceder a tal reparação e tal não se demonstrou. Na verdade, ao contrário do que sustenta a Apelada – e ao contrário do que também parece resultar da decisão recorrida –, não era a Autora (lesada) que tinha que demonstrar a falta de fundos financeiros que lhe permitissem providenciar (mais cedo) pela reparação do veículo; a Autora, enquanto lesada, apenas tinha que provar o dano – ou seja, tinha que provar a privação do uso do veículo durante determinado período e o prejuízo daí emergente –, cabendo à Ré o ónus de provar que a Autora tinha meios financeiros para ter providenciado pela reparação em momento anterior, enquanto facto que poderia ter relevância para efeitos de integrar eventual abuso de direito ou para efeitos de considerar um eventual agravamento do dano por acto culposo da Autora. 

A Autora tem, portanto, o direito de ser indemnizada do dano em questão enquanto ele perdurou, ou seja, desde a data do acidente e até 15/10/2018, conforme referimos supra, tendo em conta que não resultou provado que depois desta data a Autora tivesse continuado privada de usar o veículo.

Impõe-se agora quantificar o dano em questão e a respectiva indemnização.

Segundo a Autora/Apelante esse dano e respectiva indemnização deve ser quantificado em 267,73€ diários, o que, no caso e tendo em conta o período acima mencionado, corresponderia a uma indemnização global de 38.820,85€.

Pensamos, no entanto, que tal pretensão não tem fundamento.

Vejamos.

Na petição inicial, a Autora reclamava pela privação do uso do veículo duas quantias distintas: a quantia de 27.060,00€ que havia despendido em serviços de transportes contratados a uma outra empresa nos meses de Maio, Junho e Julho de 2018 e uma quantia referente ao período de imobilização posterior calculada à razão de 262,73€ diários tendo como referência o valor constante na tabela do Protocolo celebrado entre a APS – Associação Portuguesa de Seguros e a Antran – Associação Nacional de Transportes Rodoviários de Mercadorias que, segundo alegava, correspondia à prática usual das seguradoras na resolução extrajudicial de conflitos.

Apesar de ter resultado provado que a Autora despendeu, efectivamente, aquela quantia de 27.060,00€ nos meses de Maio, Junho e Julho de 2018 (em serviço de transportes efectuados pela S... Unipessoal, Ld.ª), a sentença recorrida não julgou procedente essa pretensão e a Apelante – declarando expressamente concordar com a sentença recorrida quando aí se refere que esse valor (pago pela Autora) incluía, além do veículo, seguros, combustível e motorista – altera agora (no presente recurso) a sua pretensão, deixando de lado a indemnização daquela despesa concreta e peticionando apenas uma indemnização referente a todo o período de imobilização calculada à razão diária de 262,73€.

Refira-se, aliás, que nem sequer resulta da matéria de facto provada – pelo menos de forma expressa e clara – que a contratação daqueles serviços de transporte tivesse sido determinada pela privação do uso do veículo aqui em causa, o que sempre dificultaria a possibilidade de esse valor ser considerado como dano resultante, em termos de causalidade adequada, do evento que obriga à reparação ou, mais especificamente, da privação do veículo que dele decorreu.

De qualquer forma, conforme referimos, o que a Apelante pretende agora é apenas que a indemnização seja calculada à razão diária de 262,73€ diários tendo como referência o valor constante na tabela do Protocolo celebrado entre a APS – Associação Portuguesa de Seguros e a Antran – Associação Nacional de Transportes Rodoviários de Mercadorias.

Nenhuma razão encontramos para aplicar o valor constante do referido protocolo (celebrado entre as referidas entidades); tal protocolo não é aplicável à situação dos autos e a matéria de facto provada não permite, de forma alguma, concluir que o prejuízo sofrido pela Autora corresponda – ou se aproxime sequer – daquele valor.

Importa notar que, com excepção da quantia gasta em serviços de transportes, a Autora não invocou quaisquer danos concretos que se tenham repercutido de forma negativa no seu património e que tenham tido origem na privação do veículo; a Autora não alegou outras despesas que tivesse efectuado por causa dessa privação (danos emergentes) e não alegou a perda de quaisquer rendimentos que tivesse resultado desse facto (lucros cessantes).

Nessas circunstâncias e pondo de lado a referida despesa em serviços de transportes, o dano que está aqui em causa – e que importa aqui indemnizar – corresponde ao dano de carácter geral que se consubstancia nos incómodos, transtornos e constrangimentos que se presume terem sido sentidos pela Autora em virtude da privação do uso de um veículo que utilizava diariamente no exercício da sua actividade, sendo certo – reafirma-se – que a Autora não alegou a existência de outros danos concretos com directa repercussão no seu património (ou seja, a Autora não alegou ter feito despesas que não faria caso pudesse utilizar o veículo e não alegou ter perdido rendimentos em razão dessa privação). E esse dano – precisamente porque não se traduz num dano emergente ou lucro cessante – não é quantificável em termos exactos e matemáticos e, portanto, só poderá ser fixado com recurso à equidade (cfr. art.º 566.º, n.º 3, do CC), ponderando, naturalmente, em função dos factos que sejam alegados e provados pelo lesado, a gravidade dos incómodos e constrangimentos provocados pela impossibilidade de uso do veículo.

A verdade é que pouco sabemos a propósito dos incómodos e constrangimentos provocados pela impossibilidade de uso do veículo, sendo certo que a Autora nada alegou. Não foi alegado que a Autora não dispusesse de outros veículos (apesar de resultar, com alguma evidência, da prova produzida que tinha uma frota considerável ainda que, naturalmente, toda ela fosse necessária para o exercício da sua actividade) e nada sabemos a propósito dos concretos constrangimentos ou limitações que isso provocou no exercício da sua actividade, nomeadamente, se determinou (ou não) perda de negócios e consequente quebra de rendimentos (ainda que dificilmente contabilizáveis).

Sabemos, de qualquer norma, que era um veículo utilizado na actividade da Autora e sabemos que era um veículo com características próprias (com 31 toneladas juntamente com o reboque) que eram necessárias para o transporte de matéria prima para a indústria de cerâmica e, portanto, não poderemos deixar de admitir que a privação do seu uso terá provocado constrangimentos com algum relevo no normal exercício daquela actividade.

A sentença recorrida conclui por uma indemnização com o valor diário de 150,00€ atendendo, designadamente, ao valor diário do serviço de transporte contratado pela Autora que, apesar de ser superior, incluía tudo, desde o veículo, aos seguros, ao combustível e ao motorista.

Ora, tendo como referência esse valor, importará também tomar em consideração que o serviço não será idêntico em todos os dias e meses (haverá ocasiões em que há mais serviço e outras em que haverá menos). Assim, sem deixar de tomar em consideração as características do veículo, ponderando a eventual necessidade (não propriamente demonstrada) de realização de despesas em serviços de transportes no sentido de colmatar a falta do veículo (despesas que, de qualquer forma, sempre seriam inferiores ao valor referido no ponto 15 onde se incluem valores/despesas – designadamente com combustível e motorista – que a Autora teria que suportar caso usasse o seu próprio veículo) e tendo em conta que, além dessa (eventual) despesa, a privação do veículo não determinou a necessidade de efectuar despesas adicionais ou qualquer quebra de actividade, de negócios e de rendimentos (o que se impõe presumir, uma vez que a Autora não alegou ter suportado essas despesas ou ter tido qualquer quebra de actividade e rendimentos), pensamos ser ajustada e equitativa uma indemnização diária no valor de 100,00€ (que, aliás, corresponde sensivelmente ao valor diário que a Ré se propôs pagar durante o período de 28 dias – cfr. ponto 10 da matéria de facto) e com o valor global de 14.500,00€ (com referência, portanto, ao período total de imobilização que aqui importa considerar e que, conforme referimos supra, corresponde ao período compreendido entre 23/05/2018 e 15/10/2018, ou seja, 145 dias).


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(…)

V.
Pelo exposto, julgando-se procedente o recurso da Ré e parcialmente procedente o recurso da Autora, revoga-se parcialmente a sentença recorrida e decide-se condenar a Ré a pagar à Autora a indemnização global de 38.363,29€ (trinta e oito mil, trezentos e sessenta e três euros e vinte e nove cêntimos), acrescida dos juros que à taxa legal se vencerem desde a citação até efectivo e integral pagamento e absolvendo-se a Ré do demais que é peticionado.
Custas a cargo de ambas as partes nas proporções dos respectivos decaimentos.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                       (Helena Melo)                    


[1] Na sentença refere-se a data de 09.07.2020, tratando-se, no entanto, de mero lapso que já constava na contestação – como se depreende pelo documento para onde remete – e que foi reproduzido na sentença.
[2] Proferido no processo n.º 372/08.9TBBCL.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[3] Proferido no processo n.º 587/11.2TBPMS.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Proferido no processo n.º 2909/17.3T8STR.E1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Sobre esta temática/questão veja-se José Carlos Brandão Proença, “A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual”, pág. 659 a 678