Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3667/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: DIREITO DE SUPERFÍCIE
FORMA
USUCAPIÃO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 12/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1524.º;1528.º;1292.º E 334.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Sendo o contrato o título genético do direito de superfície, para que a constituição do direito se possa operar, validamente, tem que ser celebrado por escritura pública, que se traduz numa formalidade «ad substantiam».
2. Podendo a usucapião ser invocada, implícita ou tacitamente, importa, porém, que, neste caso, tenham sido alegado factos que, clara e manifestamente, integrem os respectivos elementos ou requisitos e revelem, inequivocamente, a intenção de fundamentar nela o direito, sob pena de o Tribunal conhecer de excepção peremptória não deduzida pelo réu e condenar em objecto diverso do pedido, em violação do princípio do dispositivo.

3. Existe abuso de direito quando um comportamento, aparentando consistir no exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem, o que não acontece quando os autores põem fim ao contrato de comodato celebrado com a ré, interpelando-a para a entrega do prédio rústico, ao fim de cerca de vinte anos, depois desta nele ter construído uma garagem, sem autorização dos autores, não permitindo sequer que estes passem pelo prédio rústico, a fim de acederem à parte de trás do mesmo, que cultivam.

4. A prova do contrário dos factos alegados pelo réu, que se não demonstraram, constitui fundamento material bastante para a sua condenação como litigante de má-fé.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A... e mulher, B..., residentes na Rua Vasco da Gama, nº 97, em Ílhavo, propuseram a presente acção, com processo sumário, contra C..., viúva, residente na Coutada, Rua Francisco Cabaz, em Ílhavo, pedindo que, na sua procedência, se declare que os autores são donos dos prédios infraidentificados, condenando-se a ré a remover a garagem que implantou sobre o prédio rústico e a restituir o mesmo aos autores, no prazo de três dias, após o trânsito em julgado da sentença a proferir nestes autos, condenando-se ainda a ré a pagar aos autores a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, relativa aos prejuízos por eles sofridos, incluindo honorários a advogado, invocando, para o efeito, e, em síntese, que são proprietários desses imóveis, que se encontram registados em seu nome, sendo certo que a mãe da autora deu de arrendamento à ré o prédio urbano e, em regime de comodato, o prédio rústico, no qual à ré construiu uma eira, local onde a mesma erigiu uma garagem, sem autorização dos seus proprietários, ora autores.
Alegam ainda que solicitaram à ré a entrega do prédio rústico e a remoção da garagem, o que esta recusou, não permitindo que os autores passem pelo prédio rústico, de forma a acederem à respectiva parte traseira, daí decorrendo prejuízos que só poderão ser calculados, após a remoção da garagem e a restituição do prédio.
Na contestação, a ré invoca que, para além do arrendamento relativo ao prédio urbano, os pais da autora locaram à ré o prédio rústico, em Janeiro de 1966, tendo esta construído, por volta de 1970, autorizada pelos senhorios, uma eira, no quintal do prédio urbano, que se situa junto ao aludido prédio rústico, existindo marcos que delimitavam o espaço de quintal afecto à casa, com uma área correspondente a 41 m de comprimento, por 6 m de largura.
Tendo feito, há anos, cessar o arrendamento relativo ao prédio rústico, continua a ré, apenas subsistiu o arrendamento urbano, que incluía o terreno a quintal, com a demarcação já referida, realizada pelos autores.
Finalmente, a ré implantou, em parte do espaço ocupado pela eira, para guardar um automóvel, uma construção, em chapa de zinco, suportada por barras de ferro ligadas por parafusos, com cerca de 5 m2, facilmente, desmontável e amovível.
Na resposta à contestação, os autores alegam que nunca seus pais deram de arrendamento à ré o aludido prédio rústico, sendo certo que do arrendamento, apenas, fazem parte a casa, os currais, a retrete e o quintal, que termina junto ao poço, e que a eira foi construída pela ré, tendo a mãe da autora mulher fornecido os materiais, e utilizada pela ré, com o consentimento e mero favor da mãe dos autores e, depois, destes próprios, pelo que nunca o terreno onde esta se situa foi dado de arrendamento aquela.
A sentença julgou a acção, parcialmente, procedente por provada e, em consequência, declarou que os autores são donos de um prédio urbano, composto de casa de habitação de r/c, sito na Rua Francisco Cabaz, Coutada, na freguesia e concelho de Ílhavo, com 60 m2 de área coberta e 16 m2 de área descoberta, inscrito na matriz predial urbana, sob o nº 4168, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo, sob o nº 00593, e de um prédio rústico, composto de terra de cultura, sito na Rua Francisco Cabaz, freguesia e concelho de Ílhavo, inscrito na respectiva matriz predial rústica, sob o artigo 5478, e descrito na competente Conservatória, sob o nº 00592, tendo condenado a ré a remover a garagem que implantou sobre o prédio rústico suprareferido e a desocupar e restituir o mesmo prédio aos autores, livre de pessoas e bens, no prazo de três dias, após o trânsito em julgado desta sentença, absolvendo a ré do pedido, no que respeita à indemnização pela ocupação do imóvel e construção da garagem sobre a eira, peticionada pelos autores, condenando-a, porém, como litigante de má-fé, na multa de 3 UC´s e na indemnização de 250,00 €, a favor dos autores.
Desta sentença, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª – Do contrato de arrendamento junto aos autos (doc. nº 3 da p.i.), não resulta qual a composição do prédio que é dado de arrendamento pela proprietária, mãe da autora mulher, à ré, agora recorrente;
2ª – Apesar de no registo predial, da composição do prédio urbano com o artigo matricial 4168, constar apenas 60 m2 de área coberta e 16 m2 de área descoberta, são os próprios proprietários e aqui autores que, em 8º e 9º da resposta à contestação, reconhecem que o prédio arrendado à ré, é composto de casa de habitação, currais e quintal;
3ª – A construção implantada na eira, por sua vez construída em terreno dos autores, é uma construção precária facilmente desmontável, com uma área exígua (5 m2) que não pode considerar-se como uma garagem, no sentido em que tal construção é entendida, não representando qualquer prejuízo para os autores,
4ª – A eira, sobre a qual tal construção precária se encontra, foi construída há pelo menos 20 anos, com autorização da dona do terreno, tendo-se constituído a favor da ré, um direito real de superfície!
5ª – A ré, defendeu na sua contestação que uma parte delimitada do prédio rústico integrava de facto, o arrendamento do prédio urbano, funcionando como quintal do mesmo;
6ª – Ao alegar tal facto, não tinha conhecimento da composição do prédio urbano nem do prédio rústico que eram confinantes entre si;
7ª – O que sabia, era que não só lhe era reconhecido o direito de habitar a casa, como de utilizar os currais, e cultivar determinada área de terreno.
8ª – Sendo os próprios autores na resposta à contestação a sustentar que o prédio urbano tinha um quintal, que a arrendatária o cultivava, estando legitimada pelo arrendamento para isso.
9ª – Se era quintal ou se era parte delimitada do prédio rústico contíguo ao prédio urbano, a ré não sabia, nem tinha obrigação de saber.
10ª – Em tais circunstâncias e salvo o devido respeito, não pode qualificar-se de má fé, a postura processual adoptada pela ré! Muito menos que ela tenha alterado conscientemente a verdade dos factos, como se decidiu na sentença recorrida, para fundamentar a sua condenação como litigante de má fé e em consequência, condená-la em multa e indemnização!
11ª – Ao fazê-lo, o Tribunal a quo, violou as normas previstas nos artºs 456 e 457 do CPC, pois a posição processual da ré, jamais pode considerar-se que integra os pressupostos de tais normas.
12ª – Jamais a ré questionou a propriedade dos autores sobre os prédios urbano e rústico inscritos na matriz respectiva sob os artigos 4168 e 5478, devendo manter-se o decidido nas alíneas a) e c) da sentença recorrida;
13ª – A construção implantada na eira, que a própria ré construiu há mais de 20 anos com autorização da senhoria, dadas as suas características e não causando qualquer prejuízo aos autores, deverá manter-se, sob pena de violação das normas contidas no artigo 334º do CC;
14ª – A ré deve ser absolvida de litigância de má fé.
Nas suas contra-alegações, os autores sustentam que deve ser julgado improcedente o recurso interposto, confirmando-se a sentença apelada.
Na sentença recorrida, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
Os autores são donos de um prédio urbano, composto de casa de habitação de r/c, sito na Rua Francisco Cabaz, Coutada, na freguesia e concelho de Ílhavo, com 60 m2 de área coberta e 16 m2 de área descoberta, inscrito na matriz predial urbana, sob o nº 4168, e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de Ílhavo, sob o nº 00593, e de um prédio rústico, composto de terra de cultura, sito na Rua Francisco Cabaz, na Coutada, freguesia e concelho de Ílhavo, inscrito na respectiva matriz predial rústica, sob o artigo nº 5478, e descrito na competente Conservatória, sob o nº 00592 – A).
Estes prédios confrontam entre si do lado Poente – B).
Tais prédios vieram à posse dos autores, por partilha dos bens de Manuel Nunes e por doação de Maria Ferreira de Castro – C).
A propriedade dos referidos prédios encontra-se registada, a favor dos autores, na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo, pela inscrição G1 – D).
Por contrato escrito, celebrado em 1 de Julho de 1974, a mãe da autora, à data, proprietária do prédio, referido em A), alínea a), declarou dá-lo de arrendamento à ré – E).
O prédio urbano, referido em A), foi habitado pela ré, desde a data, referida em E) – 1º.
Há, pelo menos, 20 anos, foi construída uma eira, no prédio rústico referido em A, b) – 2º.
Que se destinava a secar cereais colhidos nesse prédio ou em outros que a própria detinha no mesmo local – 3º.
E que ainda hoje se encontra implantada nesse prédio – 4º.
Posteriormente, a mãe da autora permitiu á ré que esta utilizasse, sem qualquer contrapartida, parte do prédio, referido em A), b) – 5º.
Para que o cultivasse – 6º.
E era nessa parte do referido prédio que estava implantada a eira, referida na resposta ao ponto nº 2 – 7º.
A ré não permite que os autores passem pelo prédio, referido na resposta ao ponto nº 5 – 8º.
A fim de acederem à parte de trás do mesmo e por estes cultivada – 9º.
Há cerda de 4 meses, com referência à data da propositura da acção, a ré construiu uma garagem, em parte da eira, referida na resposta ao ponto nº 2 – 10º.
O que fez, sem autorização dos autores – 11º.
Que utiliza para guardar uma viatura automóvel – 12º.
Os autores interpelaram a ré para que esta procedesse à remoção da garagem, referida na resposta ao ponto nº 10º - 13º.
E lhes entregasse o prédio, referido na resposta ao ponto nº 5º - 14º.
Porém, esta recusa-se a fazê-lo – 15º.
Para a remoção da garagem, referida na resposta ao ponto nº 10º, não serão necessários mais de três dias – 17º.
A ré há, pelo menos, 20 anos, com autorização dos pais da autora, construiu a eira, referida na resposta ao ponto nº 2º - 23º.
Em parte da eira, referida na resposta ao ponto nº 23º, a ré implantou uma garagem – 24º.
Feita de chapa e zinco, suportada por barras de ferro e ligada por parafusos, com cerca de 5 m2 – 25º.

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da constituição do direito real de superfície.
II – A questão do abuso do direito.
III - A questão da condenação em litigância de má-fé.

I

DO DIREITO DE SUPERFÍCIE

Efectuando uma síntese do essencial da factualidade que ficou consagrada, importa reter que a mãe da autora deu de arrendamento à ré, por contrato escrito, celebrado em 1 de Julho de 1974, um prédio urbano, composto de casa de habitação de r/c, com 60 m2 de área coberta e 16 m2 de área descoberta.
Por outro lado, posteriormente, a mãe da autora permitiu que a ré cultivasse, sem qualquer contrapartida, parte do prédio rústico, de que era dona, composto de terra de cultura, contíguo ao aludido prédio urbano, tendo sido, nessa parte do referido prédio rústico, que a ré, há, pelo menos, vinte anos, construiu uma eira, com autorização dos pais da autora, que ainda hoje se encontra implantada no mesmo local.
Entretanto, cerca de quatro meses antes da data da propositura da acção, em parte desta eira, a ré construiu uma garagem, feita em chapa e zinco, suportada por barras de ferro e ligada por parafusos, com cerca de 5 m2, sem autorização dos autores, que utiliza para guardar uma viatura automóvel.
Finalmente, a ré não permite que os autores passem pelo prédio rústico, a fim de acederem à parte de trás do mesmo, por eles cultivada, recusando-se a entregar-lho e bem assim como a remover a garagem, apesar de interpelada por aqueles, para o efeito.
Assim sendo, ficou provado que o contrato de arrendamento celebrado com a ré se restringiu a um prédio urbano, composto de casa de habitação de r/c, com 60 m2 de área coberta e 16 m2 de área descoberta, não abrangendo, também, como a mesma defende, nas alegações de recurso, “uns currais e quintal”.
Com efeito, apesar de os autores alegarem, no artigo 9º da resposta à contestação, que “…do arrendamento, apenas, fez e faz parte a casa, os currais, a retrete e o quintal…”, acrescentam, no respectivo artigo 13º, que “…a eira, localiza-se sobre o prédio rústico...” e, no artigo 15º, “em suma, nunca o terreno onde se situa a eira foi dado de arrendamento à ré”.
Porém, independentemente desta facticidade constante dos articulados, já de si bem suficiente para não permitir sustentar, como o faz a ré, a sua admissão como “factos assentes”, por acordo ou por confissão, atento o preceituado pelos artigos 490º, nº 2, 659º, nº 3 e 646º, nº 4, todos do CPC, importa não esquecer que conheceram resposta negativa os pontos da base instrutória onde se perguntava, respectivamente, se “e fazia parte desse prédio [urbano] parte do terreno do prédio rústico…?” (nº 19) e “funcionando como quintal deste?” (nº 20).
Nestes termos, não se demonstrou que do arrendamento do prédio urbano fizesse parte um terreno rústico que servia de quintal, em parte do qual a ré construiu a eira e, posteriormente, a garagem, mas antes que a eira e a garagem foram implantadas, em parte do prédio rústico, contíguo ao prédio urbano arrendado, que a ré cultivava, com autorização da mãe da autora, sem qualquer contrapartida remunerada, isto é, não se provou o arrendamento da aludida fracção do prédio rústico, mas antes a sua utilização pela ré, em regime de comodato.
Porém, a ré defende que se constituiu, a seu favor, um direito real de superfície sobre a eira, construída há, pelo menos, 20 anos, com autorização da dona do terreno, onde, posteriormente, a garagem foi implantada.
O direito de superfície vem definido pelo artigo 1524º, do Código Civil (CC), como sendo “a faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações”.
Dispõe, igualmente, o artigo 1528º, do CC, que “o direito de superfície pode ser constituído por contrato, testamento ou usucapião…”, sendo certo, contudo, que a via contratual de constituição do direito de superfície pressupõe, como requisito de validade, a exigência de escritura pública, em conformidade com o estatuído pelo artigo 89º, a), do Código do Notariado, então, vigente (DL nº 47619, de 31 de Março de 1967), a que corresponde, actualmente, o artigo 80º, nº 1, do Código do Notariado, aprovado pelo DL nº 207/95, de 14 de Agosto.
Trata-se de mais um dos designados negócios formais, ou seja, exactamente, mais um dos vários contratos que, para ser válido, ou, dito de outro modo, para não ser nulo, tem de constar de escritura pública (Mota Pinto, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 550, nº 1, 27.).
Sendo o contrato o título genético do direito de superfície, como resulta da alegação da ré, o mesmo terá de ser um contrato com eficácia real, «quoad effectum», típico ou atípico, gratuito ou oneroso (Armindo Ribeiro Mendes, O Direito de Superfície, ROA, Ano 32º, 1972, I, 52.), que só poderá considerar-se celebrado, para que a constituição do direito se possa operar, depois de lavrado o respectivo título (Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, VIII, 347.) .
Ora, em matéria de meios de prova, vigora o princípio da sua livre admissibilidade, nos termos do o qual o Juiz deverá atender, para a generalidade dos factos, a qualquer um dos meios de prova previstos por lei, graduando-os, livremente, de acordo com a sua prudente convicção, nos termos do disposto pelo artigo 655º, nº 1, do CPC.
Porém, este princípio geral conhece importantes excepções, porquanto, para determinadas espécies de factos, a lei só admite certos meios de prova, ou seja, aquele princípio só cede perante situações de prova legal, que se verificam, por exemplo, em casos de prova por documento autêntico, nos termos do disposto pelo artigo 371º, do CC.
Assim, quando a lei exige, como forma de declaração negocial, a redução a escrito, através de documento autêntico, autenticado ou particular, como condição da sua validade – formalidade “ad substantiam” - (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 322 e 323; Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 145.), o mesmo não pode ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior, nos termos do preceituado pelas disposições combinadas dos artigos 364º, nº 1 e 393º, nº 1, ambos do CC.
Com efeito, o acordo que contém a faculdade de constituir o direito de superfície, integrado no âmbito da celebração de um contrato de comodato, só é válido se for celebrado por escritura pública, atento o disposto pelo artigo 80, nº 1, do Código do Notariado, que se não reconduz, como é óbvio, a uma mera formalidade «ad probationem» (Mota Pinto, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, nº 55, 92 e ss.; Baptista Lopes, Do Contrato de Compra e Venda, 1971, 69 e 70.).
E a falta da forma, legalmente prescrita, para a celebração de um contrato de superfície, importa a nulidade do respectivo negócio jurídico, nos termos do disposto pelo artigo 220º, seguindo-se o regime geral do estipulado nos artigos 286º e seguintes, todos do CC, nomeadamente, a sua invocabilidade, a todo o tempo, e a possibilidade do seu conhecimento oficioso, pelo Tribunal.
Ora, o negócio jurídico nulo não produz, desde o início, por força da falta ou vício de um elemento, interno ou formativo, os efeitos a que tendia, em atenção a predominantes interesses de natureza pública, podendo ser declarada a invalidade, oficiosamente, pelo Tribunal, a todo o tempo, operando, com eficácia retroactiva, com a consequente repristinação das coisas, no estado anterior ao negócio, restituindo-se tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 286º e 289º, nº 1, do CC.
Como assim, há que concluir pela nulidade do contrato de constituição do direito de superfície.
Porém, se alguém confere a outrem o direito de construir, por acto nulo com falta de forma, não se verifica a sua aquisição, face ao vício existente, embora possa adquirir esse direito, por usucapião, porquanto o aludido acto, nulo com aquele fundamento, se não lhe transferiu um verdadeiro direito, é, todavia, um título que demonstra ter sido transferida a posse desse direito (Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, 298 e 299; RDES, 21º, 122.).
Ora, a usucapião constitui uma das formas de aquisição originária da propriedade e, processualmente, quando invocada pelo réu, o que não aconteceu, «in casu», uma excepção peremptória, um facto extintivo do efeito jurídico do facto constitutivo invocado pelo autor, cuja arguição, para se revelar eficaz, a lei torna dependente da vontade do interessado, pois que não opera, automaticamente, não podendo o Tribunal conhecer dela, oficiosamente, nos termos das disposições combinadas dos artigos 303º e 1292º, do CC, e 496º, do CPC (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 130; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 2001, 44; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1981, 87 e ss.; Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 206.).
Com efeito, preceitua o artigo 488º, do CPC, que “na contestação deve o réu...especificar separadamente as excepções que deduza”, concluindo o mesmo articulado com a indicação do efeito jurídico, de direito processual ou material, que resulta da defesa, tal como é apresentada (Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 2001, 37.) , e, na hipótese de se deduzir defesa por excepção, deve terminar, em conformidade, em termos de ser julgada procedente a excepção (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1981, 40 e 41.) .
E, sendo certo que a invocação da usucapião pode ser, implícita ou tácita, importava, porém, que, nesta última hipótese, a ré tivesse alegado factos que, clara e manifestamente, integrassem os respectivos elementos ou requisitos e revelassem, inequivocamente, a intenção de fundamentar nela o seu direito, uma vez que a razão de ser do artigo 303º, do CC, reside na circunstância de “a pessoa favorecida pela prescrição poder ter melindre em se aproveitar dela, exigindo-se, assim, que mostre a sua vontade de beneficiar da prescrição” (Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, BMJ nº 105, 147, nota 288.).
É que, em relação aos factos que constituem excepções peremptórias, o réu encontra-se na mesma posição do autor, competindo-lhe o ónus da sua alegação e, ulteriormente, da sua prova, não podendo as mesmas ser atendidas, pelo Tribunal, quando, pelo respectivo interessado, não haja sido formulado pedido expresso ou, pelo menos, implícito, nesse sentido.
Quer isto dizer que vigora, nesta matéria, o princípio do pedido, com assento nos artigos 3º, nº 1, 467º, nº 1, e) e 193º, nº 2, a), todos do CPC, que condiciona toda a actividade jurisdicional, não podendo o Juiz estender a sua actividade decisória, para além dele (ne eat iudex ultra petita partium), pois que o processo só se inicia, mediante o impulso das partes que, através do pedido e da defesa, circunscrevem o «thema decidendum», e não, por iniciativa do Tribunal, o qual não tem que saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa de pedir (Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, III, reimpressão, 1970, 346, 351, 352, 251 e 252; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 371 a 373.).
Está demonstrado nos autos que a ré se encontra a utilizar o prédio rústico, onde se acha implantada a eira e, posteriormente, em parte desta, uma construção, designada por garagem, em consequência de um contrato de comodato, que o artigo 1129º, do CC, define como “o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
Para além de se tratar de um contrato gratuito, onde não há, por consequência, prestações a cargo do comodatário, que constituam o equivalente ou correspectivo da atribuição a cargo do comodante, é ainda um contrato realizado, no interesse do comodatário, porquanto o bem móvel ou imóvel é entregue “para cómodo e proveito somente do que recebe a coisa” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1997, 742, citando o Livro I, Título LIII, das Ordenações.).
Com efeito, na estrutura do comodato, a coisa pertence ao comodante, sendo entregue ao comodatário para que este a utilize e a restitua, ao fim de certo tempo, logo que o uso finde ou quando a outra parte o exigir, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1135º, h) e 1137º, nºs 1 e 2, do CC.
Assim sendo, não se tendo convencionado prazo para a restituição do prédio rústico que foi emprestado para a cultura agrícola, deveria a ré entregá-lo aos autores, logo que interpelada, para o efeito, recusando-se, porém, ilicitamente, a fazê-lo.

II

DO ABUSO DE DIREITO

Defende ainda a ré que deve manter-se a construção implantada na eira, que a própria ré levantou, há mais de 20 anos, com autorização da senhoria, dadas as suas características, por não causar qualquer prejuízo aos autores, sob pena do exercício abusivo do direito, por parte destes.
Antes da entrada em vigor do actual Código Civil, defendia-se que o abuso de direito existia quando este era exercido, em termos, clamorosamente, ofensivos da justiça, mostrando-se, gravemente, chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na colectividade (Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 63 a 65.) ou, socialmente, dominante (Vaz Serra, Abuso do Direito, BMJ nº 85, 253)..
Actualmente, dispõe o artigo 334º, do CC, que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, o que significou a adopção da concepção objectiva do abuso de direito, porquanto não é necessária a consciência de se atingir, com o seu exercício, a boa fé, os bons costumes ou o fim económico e social do direito conferido, bastando que sejam excedidos os referidos limites (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 298.).
Por seu turno, acrescenta o nº 2, do artigo 762º, do CC, que, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé.
E agir de boa-fé significa actuar com a diligência, zelo e lealdade correspondentes aos legítimos interesses da contraparte, assumir uma conduta, honesta e conscienciosa, numa linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da outra parte, não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar (Antunes Varela, CJ, XI, T3, 13, e XII, T4, 28; Vaz Serra, Objecto da Obrigação. A Prestação, Suas Espécies, Conteúdo e Requisitos, BMJ nº 74, 45; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, 93, 845 e 846.).
Para que o exercício do direito seja abusivo é preciso que o seu titular, observando, embora, a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda, manifestamente, os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 498 e 499; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5 e ss.) , ou seja, que o direito seja exercido, em termos, clamorosamente, ofensivos da justiça (STJ, 8-11-1984, BMJ nº 341, 418; 3-4-1986, BMJ nº 356, 315; 25-7-1986, BMJ nº 358, 470; 7-10-1988, BMJ nº 380, 362.) .
Mas, o que o instituto do abuso do direito, seguramente, não contém é qualquer limitação no acesso ao direito, preocupando-se antes em conferir ao Juiz um instrumento que, ao serviço da equidade, procure evitar a desigualdade de tratamento que os conceitos indeterminados, adoptados pelo legislador, tantas vezes, permitem.
Haverá, assim, abuso de direito, quando um comportamento, aparentando consistir no exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem (Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, 43.).
Efectivamente, há direitos que, atenta a sua natureza, não consentem, no seu domínio, a possibilidade de sindicância de abuso de direito (Vaz Serra, Abuso do Direito, BMJ nº 85, 261; Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, 71.), sendo certo que a finalidade visada pelo artigo 334º, do CC, contende, especialmente, com os direitos reais e com certos direitos de família, porquanto uma interpretação demasiado abrangente do preceito poderia causar a maior perturbação, no âmbito dos direitos de crédito (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 2ª edição, 258.), em que se situa a causa de pedir da acção.
No caso concreto, não ocorre a necessária contradição entre o modo e o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 5ª edição, 499; STJ, de 6-4-00, CJ (STJ), Ano VIII, T2, 24; RL, de 25-11-99, CJ, Ano XXIV, T5, 107.), porquanto os autores actuaram em estreita correspondência, quanto ao modo e ao fim como pretenderam exercer o direito de por fim ao contrato de comodato celebrado com a ré, interpelando-a para a entrega do prédio rústico em causa.
Aliás, foi a ré quem, cerca de quatro meses antes da propositura da acção, construiu uma garagem, em parte da eira, sem autorização dos autores, não permitindo, além do mais, que estes passem pelo prédio rústico, a fim de acederem à parte de trás do mesmo, que cultivam.
Assim sendo, a pretensão formulada pelos autores não assume um carácter, manifestamente, excessivo, não representando um sacrifício patrimonial insustentável para a ré, mas antes um exercício moderado, equilibrado, lógico e racional do seu direito e, consequentemente, legítimo (Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 15)..
Não procede, pois, a invocação, pela ré, do abuso do direito no exercício da pretensão dos autores.

III

DA LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ

A ré entende que os factos provados não podem servir de base à sua condenação como litigante de má fé, por não ter alterado, conscientemente, a verdade dos mesmos.
Diz-se litigante de má fé, segundo o disposto pelo artigo 456º, nº 2, do CPC, quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar [a)], tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa [b)], tiver praticado omissão grave do dever de cooperação [c)] ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso, manifestamente, reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão [d)].
Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização, a favor da parte contrária, se esta a pedir, nos termos do disposto pelo artigo 456º, nº 1, do CPC.
A má fé traduz-se, em última análise, na violação do dever de cooperação que os artigos 266º, nº 1, 266º-A e 456º, nº 2, c), do CPC, impõem às partes.
Aliás, no intuito de moralizar a actividade judiciária, o artigo 456º, nº 2, do CPC, oriundo da revisão de 1995, alargou o conceito de má fé à negligência grave, enquanto que, anteriormente, a condenação como litigante de má fé pressupunha uma actuação dolosa, isto é, com consciência de se não ter razão, motivo pelo qual a conduta processual da parte está, hoje, sancionada, civilmente, desde que se evidencie, por manifestações dolosas ou caracterizadoras de negligência grave.
Com efeito, a má fé substancial ou material directa, quer dolosa, quer com culpa grave ou erro grosseiro, esta última designada por lide temerária, a que se reporta a alínea a), diz respeito ao fundo da causa, à relação substancial deduzida em juízo, não acontecendo, frequentemente, desacompanhada da outra modalidade, a que alude a alínea b), ambas do nº 2, do artigo 456º, do CPC, ou seja, da má fé substancial indirecta, que se verifica, quando se “tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 355 a 358, o qual, porém, entende que esta modalidade de má fé tem natureza instrumental; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, 1981, 258 e ss)..
O Tribunal «a quo», considerando que a ré invocou que se encontrava no gozo do prédio rústico, mediante um contrato de arrendamento celebrado com os antecessores dos autores, quando se provou que, afinal, aquela o detinha, em consequência de um contrato de comodato, sendo factos do seu conhecimento pessoal, deduziu oposição, cuja falta de fundamento não devia ignorar e, assim, litigou de má-fé.
Com efeito, resultando da matéria alegada pela ré que os pais da autora lhe arrendaram, entre outros, o prédio rústico em análise, enquanto que os autores invocaram que deram de comodato aquela a parte deste prédio, onde foi instalada a eira, para seu cultivo, sendo certo que se demonstrou, precisamente, o contrário da versão daquela, ou seja, que a mãe da autora permitiu á ré que esta utilizasse, sem qualquer contrapartida, parte do prédio rústico, para que o cultivasse, na qual estava implantada a eira, é manifesto que a ré incorreu na situação de má-fé, com dolo material.
De facto, a ré não tem obrigação de confessar, nem pode ser condenada pelo exercício do seu direito de defesa, excepto quando o mesmo se desenvolve, de forma desleal e sem verdade, porquanto não goza do direito de afirmar uma versão oposta à realidade por si sabida.
Como assim, tendo-se demonstrado que a ré deduziu, dolosamente, oposição cuja falta de fundamento bem conhecia, e não se esqueça que a litigância de má fé, após a Reforma do Processo Civil de 1995, não pressupõe apenas o dolo, pois se basta com a negligência grave, como já se acentuou, a sua conduta é determinante de responsabilidade processual subjectiva, enquanto litigante de má fé, nos termos do disposto pelo artigo 456º, nºs 1 e 2, a) e b), do CPC.
Improcedem, pois, as conclusões constantes das alegações da ré.

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CONCLUSÕES:

I - Sendo o contrato o título genético do direito de superfície, para que a constituição do direito se possa operar, validamente, tem que ser celebrado por escritura pública, que se traduz numa formalidade «ad substantiam».
II - Podendo a usucapião ser invocada, implícita ou tacitamente, importa, porém, que, neste caso, tenham sido alegado factos que, clara e manifestamente, integrem os respectivos elementos ou requisitos e revelem, inequivocamente, a intenção de fundamentar nela o direito, sob pena de o Tribunal conhecer de excepção peremptória não deduzida pelo réu e condenar em objecto diverso do pedido, em violação do princípio do dispositivo.
III – Existe abuso de direito quando um comportamento, aparentando consistir no exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem, o que não acontece quando os autores põem fim ao contrato de comodato celebrado com a ré, interpelando-a para a entrega do prédio rústico, ao fim de cerca de vinte anos, depois desta nele ter construído uma garagem, sem autorização dos autores, não permitindo sequer que estes passem pelo prédio rústico, a fim de acederem à parte de trás do mesmo, que cultivam.
IV - A prova do contrário dos factos alegados pelo réu, que se não demonstraram, constitui fundamento material bastante para a sua condenação como litigante de má-fé.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar, inteiramente, a douta sentença recorrida.

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Custas da apelação, a cargo da ré.