Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1641/16.0T9VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
COACÇÃO SIMPLES
COACÇÃO AGRAVADA
CONCURSO APARENTE
RELAÇÃO DE CONSUNÇÃO
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 30.º; 152.º, 154.º E 155.º DO CP
Sumário: I – Integram o crime de violência doméstica todas as condutas do agente que, revestindo-se da gravidade prevista na descrição normativa do artigo 152.º do CP, não a excedem de forma particular, de modo a permitir destacar uma ou mais das acções integradoras daquele ilícito penal para efeitos de punição autónoma.

II – Consequentemente, tendo o crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. a), e 2, do CP, um âmbito de protecção mais abrangente do que o de coacção, quer na forma simples quer na agravada, ocorre entre ambos uma relação de concurso aparente, sendo o segundo ilícito consumido pelo primeiro.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

No Juízo Central Criminal de Viseu – J2, sob o nº 1641/16.0T9VIS, correram termos os autos de Processo Comum (colectivo), nos quais era imputada ao arguido A... a prática, em autoria material e em concurso real de:

a) (pelo menos) 5 crimes de abuso sexual de criança, p.p. pelo art.171º nº1 do Código Penal, agravado pelo art.177.º, n.º1 al. a) do mesmo diploma legal (perpetrado na pessoa da então menor C... );

b) (pelo menos) 10 crimes de abuso sexual de criança, p.p. pelo art.171º nº1 do Código Penal, agravado pelo art.177.º, n.º1 al. a) do mesmo diploma legal (perpetrado na pessoa da menor B... );

c) um crime de coacção agravado, p. e p. pelo art.154.º e 155.º, n.1 al. a) ambos do Código Penal;

d) um crime de violência doméstica, p.p. pelo art.152.º, n.º1 als. b) e c) e 2 do Código Penal;

e) um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artº 86º nº 1 als. c) e d) da Lei nº 5/2006.

            Efectuado o julgamento, viria a ser proferido acórdão, decidindo nos seguintes termos (transcrição):

«Pelo exposto, de facto e de direito, decide-se:

I)  absolver o arguido A... de todos os crime de abuso sexual que lhe vêm imputados relativamente às ofendidas C... e B... ;

II)  condenar o arguido pela prática, em autoria material e concurso efetivo:
a) um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artº 86º nº 1 al. d), da cit. Lei nº5/2006, na pena de 1 (um) ano de prisão;
b) um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo 152º nº1 al. a) e nº2 (na pessoa da sua ex-companheira D... ), sob a forma de concurso aparente com um crime de coação, p. e p. pelo art.154.º, todos do C. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, acrescida da pena acessória de proibição de uso e porte de qualquer arma e de proibição de contato com a sua ex-companheira D... , ambas pelo prazo correspondente ao período da suspensão da pena única adiante aplicada, incluindo aquela proibição de contato a obrigação fiscalizada de afastamento, numa distância de 300 (trezentos) metros, da vitima, da residência e do local de trabalho desta (art.152º, nº4 e 5, do C. Penal).

--

Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares de prisão condena-se o arguido na pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, acrescida das penas acessórias de proibição de uso e porte de qualquer arma e de proibição de contato com a sua ex-companheira D... , ambas pelo mesmo periodo de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses, incluindo esta proibição de contato a obrigação fiscalizada de afastamento, numa distância de 300 (trezentos) metros, da vítima, sua residência e local de trabalho (art. 152º, nº4 e 5, do C. Penal).
-

Mais se determina suspender a execução da pena de prisão aplicada, sob regime de prova e condição do arguido cumprir as seguintes regras de conduta:

a) escrupuloso cumprimento das obrigações inerentes às penas acessórias estabelecidas;

b) não deter, adquirir ou usar além de armas quaisquer outros objetos e utensílios capazes de facilitar a prática de crimes contra as pessoas, devendo de imediato entregar aqueles que tiver em seu poder;

c) obrigação de responder e se apresentar às convocatórias do técnico de reinserção social, de prestar a este as informações mencionadas nas als. b) e c) do nº3 do art. 54° do C.P. e de colaborar ativamente na execução do plano de reinserção social.
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III)  Condenar o arguido a pagar à vitima D... , a título de indemnização civil, a quantia de €2.000 (dois mil euros).

                                                                ***

Custas
Condena-se o arguido em 4 (quatro) UC`s de taxa de justiça individual e nas custas do processo – arts. 513º e 514º, nº 1, do C.P.P., e 8º, nº 9, do R.C.P., sem prejuízo do benéfico de apoio judiciário concedido ao arguido a fls.583.

                                                                --

Declaram-se perdidos a favor do Estado todos os objetos apreendidos nos autos, exceto o telemóvel marca Siemens entregue a fls.262 que deverá ser restituído ao arguido, devendo o mesmo ser notificado para proceder ao seu levantamento no prazo de 90 dias, findo o qual passa a suportar os custos resultantes do seu depósito, sob pena de ser declarado perdido a favor do Estado se não proceder ao seu levantamento no prazo de um ano a contar da respetiva notificação, tudo nos termos do art.186º, nº3 e 4, do C. Proc. Penal.

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Após trânsito em julgado:

a) proceda-se à recolha de amostras prevista no art.8º, nº2, da Lei nº5/2008, de 12/02, e à sua introdução na base de dados de perfis de ADN, ressalvada a dispensa prevista no nº6, do cit. art.8º.

b) cumpra-se, via eletrónica, a comunicação a que alude o art.37º, da Lei nº112/2009, de 16/09 (violência doméstica);

c) comunique a presente condenação à DGRSP, solicitando:
- a articulação e fiscalização nomeadamente monitorização eletrónica necessárias para cumprimento da obrigação de afastamento imposta ao arguido;

- a elaboração de plano individual de readaptação social, após prévia audiência do arguido e no prazo de 30 dias, devendo desde já o arguido ser notificado para se apresentar para o efeito na segunda semana após trânsito em julgado nos respetivos serviços competentes, durante o horário normal de expediente.

                                                                --

Boletim ao registo criminal

Notifique e deposite

            Inconformado, o Digno Magistrado do MP interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:


1.ª O presente recurso impugna o douto Acórdão de 6 de Junho de 2017, na parte em que, absolveu o arguido de todos os crimes de abuso sexual que lhe foram imputados relativamente às ofendidas B... e a C... e considerou existir concurso aparente entre o crime de violência doméstica e o crime de coacção agravado, punindo o arguido apenas pelo um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do CP, sob a forma de concurso aparente com um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154.º, do CP.

2.ª Entendemos que ao decidir como decidiu incorreu o douto Tribunal a quo em erro de julgamento, por ter feito uma incorrecta ponderação da prova produzida em julgamento, bem como uma incorrecta subsunção dos factos ao direito, pelo que, o presente recurso versa sobre matéria de facto e matéria de direito.

3.ª O douto Acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 171.º, n.º 1, (172.º, n.º 1, do CP – redacção aplicável na data dos factos de que C... foi alvo), 177.º, n.º 1, al. a), 154.º e 155.º, n.º 1, al. a) e 152.º, n.ºs 1, als. b) e c) e 2, todos do CP, e nessa medida, enferma do vício de violação de lei.

4.ª Temos por líquido que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, mormente, as declarações prestadas para memória futura pela menor B... , conjugadas com a prova documental e testemunhal produzida em julgamento, impunham que o douto Tribunal a quo desse como provadas as passagens dos pontos a), d), e), f), h) e k) dos factos não provados do Acórdão recorrido (que acima melhor se especificaram), bem como desse como provados os pontos 10 e 17 da Acusação Pública, ainda que com algumas precisões que exporemos infra.

Assim:
5.ª Quanto ao ponto a) dos factos não provados do Acórdão recorrido, impunha-se que, o mesmo fosse dado como provado, nos seguintes termos: quando C... tinha cerca de 09 anos de idade, o arguido desabotoou-lhe as calças apalpando-a, tocando com a sua mão na vagina desta e assim satisfazendo os seus desejos lascivos - por força: do depoimento de C... - depoimento gravado através do sistema integrado de gravação através sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática no Tribunal, das 11:05:39 e as 12:00:21, com duração de 00:54:42-, a qual refere claramente que, quando tinha cerca de 9 anos, o arguido lhe desabotoou o botão das calças que tinha, introduziu a mão por dentro das mesmas e das cuecas e tocou-lhe na vagina - cfr. minutos 00:08:10 a 00:09:10; minutos 00:09:10 a 00:10:42; minutos 00:13:49 a 00:14:25.

6.ª Assim, ao contrário do referido no referido no douto Acórdão recorrido, estamos convictos que não resultou do depoimento desta testemunha que a mesma tivesse forte “animosidade” com o arguido, ao invés que tinha medo do arguido, razão pela qual pediu para prestar testemunho na ausência do mesmo.

7.ª A testemunha C... depôs de forma credível, descrevendo de forma detalhada, espontânea e concludente, sem contradições, o episódio de que foi vítima, referindo apenas um episódio, afastando os demais aludidos na acusação pública, referindo sempre as suas certezas e incertezas, o que se lembrava e o que não se recordava, ou seja, de forma empenhada, tentou que o seu depoimento correspondesse à verdade, sem cair na tentação de empolar a realidade, e concordar com factualidade que não correspondia ao por si vivenciado, pelo que, a mesma merecia e merece que seja atribuída credibilidade ao seu testemunho.

8.ª Pois, como esclarece o Acórdão da Relação de Guimarães de 12/04/2010, disponível in www.dgsi.pt: “I - Em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais.”

9.ª E não obstante o facto de C... não ter relatado antes tal facto, o que causou estranheza ao douto Tribunal a quo e lhe serviu de argumentos para afastar a credibilidade da testemunha, tal, como explica o Acórdão da Relação de Guimarães citado, é consentâneo com a experiência científica, e dizemos nós com as regras da experiência comum: “II- A experiência científica nesta área ensina que as vítimas de crimes sexuais tendem a não verbalizar o sucedido remetendo-se a um penoso silêncio, recatando a traumática experiência e quando a revelam fazem-no de forma sentida e muitas das vezes com retalhos de memória selectivos. É neste contexto muito especial, ademais agravado pela idade do menor, pela sua situação de filho do abusador e pelas suas limitadas capacidades intelectuais decorrentes da desordem de desenvolvimento da personalidade de que padece, que deve ser apreciado o depoimento da vítima.”

10.ª Também, o argumento de que “e não havendo alegadamente outra prova para além do testemunho do seu irmão, F... , certo é que este negou alguma vez ter presenciado aqueles factos ou sequer deles ter falar…” tem de soçobrar, pois, basta atentar nas declarações da testemunha C... para se verificar que esta não sabe se o irmão F... se apercebeu da dimensão dos factos, uma vez que, questionada pelo Meritíssimo Juiz Presidente da seguinte forma: “o seu irmão ( F... ) apercebeu-se?”, respondeu: “não sei, não posso afirmar, nem sequer comentei isso com ele, foi só aquela vez…”- cfr. minutos 00:12:50 a 00:13:45.

11.ª Assim, e salvo o devido respeito, não podemos perfilhar, sob qualquer prisma, a posição assumida pelo douto Tribunal a quo, que afastou a credibilidade do testemunho da C... , sendo que, ao invés, temos por inequívoco, em face de tal testemunho, ter sido incorrectamente julgado este ponto de facto, pois as razões e os elementos probatórios que deixámos enunciados impunham que o tribunal a quo, de acordo com as regras da lógica e da experiência, inferisse/concluísse, sem margem para dúvidas, que: “quando C... tinha cerca de 09 anos de idade, o arguido desabotoou-lhe as calças apalpando-a, tocando com a sua mão na vagina desta e assim satisfazendo os seus desejos lascivos.”

12.ª Quanto aos pontos d), e) f) e h) dos factos não provados e do ponto 10 da acusação pública, temos por certo que os mesmos deviam ter sido dados como provados, nos seguintes termos:
“d) por diversas vezes em dias e horas não apuradas, o ora arguido assumia comportamentos de índole sexual com a menor sua neta, tendo em vista satisfazer os seus apetites sexuais.
e) por diversas vezes, em número não concretamente apurado (…) simulando estar a brincar com a sua neta B... , beijou-a na boca e passou as suas mãos no rabo e na vagina da menor
f) com intenção de satisfazer o seu desejo sexual o arguido passou ou tocou nas mamas (ainda incipientes, fruto da tenra idade) da menor B... ;
(…)
h) o arguido insistia em beijar e mexer no corpo da menor B... ;”

e
“10 – Nessas alturas dizia à sua neta que queria namorar com ela, insistindo em beijá-la e mexer no corpo daquela, apesar de a menor se mostra avessa a tais carícias (…).”

Por força:

  • Da comunicação da CPCJ de K... ... de 14 de Junho de 2016, de fls. 5 e ss, onde se lê: “A B... começou a dizer que tinha mordido ao avô porque este queria utilizando expressões da menor, “morar comigo”, “ele dá-me beijos na boca e eu não quero, eu só quero morar quando for grande”. (…) A B... responde que dá beijos na boca, fazendo o gesto demonstrativo de uma boca aberta. Diz ainda que o avô a lambe e que também o faz ao avô, mas que não gosta, mas tem de fazer porque “senão o avô faz mais.”. A Educadora tentou saber o que significava “senão o avô faz mais”, mas sem sucesso. No decorrer da conversa a B... disse que o avô lhe mexe nas “mamitas” fazendo o gesto como se fizesse cócegas numa axila, percorrendo o peito até à outra axila. A B... disse também que o avô lhe mexe na barriga, colocando, nela, as suas mãos.”

· Do assento de nascimento da menor B... de fls. 11, que comprova que a menor nasceu a 10 de Outubro de 2011.

· Do relatório de observação e avaliação psicológica da menor B... , de fls. 103 a 105, do qual resulta: “Nesta sequência, a menor B... começou a relatar que o avô lhe tinha dado beijos e a tinha agarrado. Referiu que o avô não a deixou ir com a mãe e a M... comer um gelado e ficou em casa com o avô. Quando questionei o que ficaram a fazer. Relatou que estavam a brincar no quarto e que o avô lhe tinha dado “beijos que eu não gostei” e que “sei que o avô não deve dar beijos assim porque não é assim que a mãe me dá beijos.” Questionei onde foram os beijos e apontou para a boca e imitou um beijo com a boca. De seguida referiu que o “meu avô quer ser meu namorado mas eu não quero, só quero ter um namorado quando for grande.”. Perguntei o que tinha feito de seguida e a B... referiu que disse ao avô que não gostava dos beijos, que ele respondeu “gostas, gostas” e depois mordeu o avô no braço.

Questionada sobre o que fizeram depois, referiu que jogou o avô ao “jogo das cócegas”. Neste seguimento questionei a B... onde tinha feito cócegas e referiu “nos braços, nas maminhas e na barriga, no pipi não porque sei que não se pode.” Pedi para pintar no boneco as partes em que o avô tinha feito cocegas e pintou as mesmas.”

Sendo que, do desenho de fls. 105, resulta pintado o boneco, pela menor B... , na zona das mamãs, dos braços e do baixo-ventre (zonas que o arguido tocava);

· Das declarações para memória futura da menor B... , tomadas a 29 de Junho de 2016 - depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com inicio pelas 10:39:48 horas a 10:55:39 (duração de 00:15:49) e 10:57:24 e o seu termo pelas 11:48:31 horas (duração de 00:51:05) -, em que a menor, num depoimento sem perguntas indutivas, em que numa primeira fase o Tribunal procurou colocar a menor num ambiente descontraído, brincando com mesma, adequando a inquirição à idade daquela (tudo conforme as melhores técnicas de inquirição para crianças desta idade), 04 anos, contou de forma espontânea: “o meu avô é que é o meu namorado”- cfr. minutos 00:03:40 a 00:03:50 – Sendo-lhe perguntado: “estavas a dizer há pouco, que o teu avô é teu namorado, como se chama o teu avô?”, respondeu: “ A... ” - cfr. minutos 00:05:00 a 00:05:05.

É então, que a menor, afirma: não gosto de namorados”. Ao que lhe foi, perguntado: “O que fazem os namorados?”. Todavia, a B... a repete: “não gosto” - cfr. minutos 00:12:25 a 00:13:45.

Tendo sido questionada:Mas ainda não percebi gostas do teu avô, muito ou pouco?”, respondeu: “pouco”. Perguntado: “Porquê?”, referiu: “não posso dizer!”

Após insistência acerca do assunto: “(…) não podes dizer, podes, podes, a gente mantem segredo?”, - cfr. minutos 00:14:50 a 00:15:40.

 É neste contexto que a menor acaba por dizer: “…vai lá dizer que ele quer namorar comigo.”- cfr. minutos 00:16:20 a 00:16:55.

E, nesse momento, é-lhe perguntado: “o que é para dizer?”, respondendo: “para não namorar comigo, e dar beijos na boca”.- cfr. minutos 00:17:10 a 00:17:25.

Só nessa circunstância, e perante a resposta da menor, é que lhe é feita a pergunta: “o teu avô dá beijos na boca?”, ao que esta retorquiu: “Sim!, vai lá dizer”.

Para certificação do que a criança acaba de dizer é perguntado: “Vou lá dizer para não namorar contigo e não dar beijos na boca, e o que é para lhe dizer mais?”, tendo respondido a B... na inocência que vinha utilizando: “nem mamar na mama, nem mexer nos pés.”, pelo que lhe é então perguntado: “nos pés? Ele mexe nos pés”, ao que a menor responde: “nos pés, nos braços.”- cfr. minutos 00:17:15 a 00:18:16.   

Perguntado:“(…) e nas mamas o que faz?” respondeu “…não mamar…” - cfr. minutos 00:18:20 a 00:19:00.

Quando é questionada após ter feito um desenho: “o que os meninos têm aqui”, responde a B... “uma piroca” (expressão utilizada pela menor B... ) e questionada se é igual à das meninas diz: “não”. Só depois é questionada da seguinte forma: “(…) já viste alguma vez a do avô (…) já viste alguma vez a piroca do avó?”, ao que a criança afirma: “Sim”; pelo que tal resposta merece a consequente insistência: “já! então quando?”, tendo a B... respondido: “no outro dia, ele depois vai ralhar comigo…”.

 Tentando, então, perceber-se o contexto em que ocorreram os factos, é feita a pergunta: “Ele mostrou ou tu espreitas-te?”, diz a B... com naturalidade: “Espreitei…” - cfr. minutos 00:23:40 a 00:26:30 – sendo que, quando perguntado se viu a piroca do U...... (um coleguinha da menor B... ) responde: “não” - cfr. minutos 00:28:14 a 00:28:19.

Diz, ainda, de forma espontânea: “ (…) não quero que o avô veja o pipi (…) nem mexer na barriga, na perna… vai dizer que não mexer a minha pita (expressão apenas utilizada pela B... nesta ocasião), vais dizer para não mexer na minha pita…”.

 Só perante esta afirmação da menor B... , é que lhe é perguntado, usando a expressão da menor: “ele mexe-te na pita? Como?”, respondendo a menor B... : “Com a piroca dele”. Perguntado: “onde tu estás quando mexe com a piroca dele na tua pita?”, a B... insiste em descrever o que o arguido lhe faz: “Beija assim…”. Perante o gesto da menor B... , foi-lhe perguntado: “assim com a boca aberta? Onde tu estás? Na sala, sofá?”, ao que a B... respondeu: “Na cama lá baixo, agora vai dizer…”; revelando ansiedade que seja transmitida esta mensagem ao arguido, seu avô, quase por forma a assegurar-se que um outro adulto, alguém, pelo menos com o mesmo poder que o seu avô ou superior, possa por cobro a estes comportamentos - cfr. minutos 00:41:20 a 00:43:20.

 Apesar desta ânsia da B... tenta perceber-se, na diligência em questão, como os factos decorreram, pelo que é questionada: “na tua cama ou do avô?”, porém, a criança continua a insistir: “Vai dizer...”. Repisada a pergunta: “Mas na tua cama ou na do avô?”, a criança persiste na exigência do que pretende que digam ao avô (aqui arguido), designadamente que este não pode: “ mexer na pita, nem fazer cócegas, nem beijar na boca, nem mexer nas pernas, no cú nas costas, na barriga… mexer aqui…”- cfr. minutos 00:43:30 a 00:44:10.

Questionada: “como ele faz, para te mexer na pita?” a menor B... diz: “com a mão”, ao que lhe é, então, perguntado: “Com a mão?!” e questionada se depois é que mexe com a “piroca” a menor anui. E à pergunta: “tu gostas ou não?”, responde: “não.” - cfr. minutos 00:44:25 a 00:45:00.

Perguntado se está lá mais alguém quando o arguido lhe mexe na “pita”, respondeu: “ J... e a tia”, perguntado se eles vêm, diz: “Nãomas não vais dizer a eles, vai só dizer ao avô” - cfr. minutos 00:45:05 a 00:51:00.

Questionada se quando o avô lhe mexe na “pita” ela tem cuecas ou não, refere, tenho “uma saia e…”. Perguntado se fica ou não com as cuecas, diz: “com cuecas” - cfr. minutos 00:48:15 a 00:51:00.

13.ª Face às declarações para memória futura da B... , estava vedado ao douto Tribunal a quo concluir como concluiu na sua fundamentação que: “Jamais a menor B... disse que o avô lhe fazia cócegas ou tocava no “pipi”. Não o disse ao tribunal em memória futura…”.

14.ª Nem, salvo o devido respeito, podia o douto Tribunal a quo concluir que: “ouvidas as declarações prestadas no dia 29.06.2016 para memória futura pela menor B... , nascida em 20.10.2011 e, portanto, ao tempo com 4 anos de idade, o depoimento da menor, acompanhado pelo sua mãe, foi tudo menos espontâneo, escorreito e limpo quando instada sobre alegados contatos (sexuais) do seu avô no seu corpo. Ao fim de muito tempo de insistência, saturada com as interpelações diretas sobre o tema, a menor acaba por jogar a brincadeira proposta pelos intervenientes, numa abordagem diferente de irem dizer ao avô para não fazer uma série de coisas.”

15.ª Ao contrário do referido na fundamentação do Acórdão recorrido, não é proposto ao longo das tomadas das declarações futuras da menor B... , então com 04 anos de idade, jogar uma brincadeira de ir dizer avô para não fazer uma série de coisas.

16.ª A menor, é que, a dada altura das declarações, e sem qualquer pergunta indutiva ou directa para tanto, refere, claramente, para dizerem ao avô, para não namorar com ela, para não a beijar na boca (fazendo os gestos), para não a apalpar nas mamãs e para não lhe tocar na pita (expressão utilizada pela criança).

17.ª Da audição atenta das declarações prestadas em sede de audição para memória futura da menor B... e supra transcritas e, até, do douto despacho lavrado após o primeiro interrogatório judicial de arguido, de 1 de Julho de 2017, que aplicou ao mesmo a medida de coacção prisão preventiva, proferido pela Meritíssima Juiz que presidiu a tal tomada de declarações para memória futura da menor B... , - que teve o privilégio de absoluta imediação com a menor, de ver as reacções desta, e a forma como prestou tais declarações, e aferir da credibilidade das mesma, e que de forma clara conclui: “Na verdade, os mesmos são confirmados, nomeadamente pelas vítimas e ofendidas, nomeadamente pelas declarações já prestadas, pela menor B... que de forma bastante espontânea, e quando aliás nada o fazia prever, se virou para a Senhora Procuradora Adjunta e depois para nós que presidiamos à diligência e nos disse para irmos dizer ao avô que não queria que ele a beijasse na boca, lhe apalpasse as mamas, lhe visse a “pita”, lhe mostrasse a “piroca” e colocasse a “piroca” na “pita” dela.”, - resulta conclusão completamente contrária àquela chegada pelo douto tribunal a quo (ao descredibilizar as declarações da menor B... ).

18.ª Reiteramos, a audição das declarações para memória futura da B... não deixam margem para qualquer dívida relacionada com a sua espontaneidade, são claras, são adequadas à idade da menor e à forma como ela compreende tal realidade, não revelando que estas sejam induzidas por alguém, naquele instante ou em momento anterior.

19.ª Se é como inferiu o Tribunal a quo, como avaliar as informações antes prestadas pela criança à Educadora, em sede de observação e avaliação psicológica e o relato de N... ? Será que nestas ocasiões, com técnicos habilitados (caso para tanto assim não se entenda a tomada de declarações para memória futura) a menor também foi pressionada, proposta jogar uma brincadeira que redundou em que esta quisesse “despachar” os adultos?!

20.ª O que se expõe demonstra, isso sim, que a B... relata sempre os mesmos factos, e imputa as mesmas condutas ao avô, aqui arguido, o que mais reforça a credibilidade das suas declarações.

21.ª Ademais, a forma como a criança relata os comportamentos do arguido e os sentimentos que os mesmos lhe provocam, não levantam qualquer dúvida acerca do carácter libidinoso e lascivo daqueles, sendo absolutamente contrários a quaisquer juízos de carinho ou brincadeira. A criança repudia-os, não gosta deles, não entende porque o seu avô os tem para consigo, roga para que um adulto (que reputa com capacidade para tanto) ponha cobra a tais comportamentos. Insiste, mesmo, para que assim se faça, não vão as suas interlocutoras esquecer-se e pede para que o façam de pronto.

22.ª Também, não se vislumbra a razão do douto Tribunal a quo ter entendido que a presença da mãe C... influenciou a menor na tomada de declarações, já que se pode aferir pela audição da gravação que aquela não interveio na inquirição, pelo que a sua presença apenas terá servido para deixar a menor mais à vontade, confortável, num ambiente estranho.

23.ª Acresce que, tais declarações da B... são, ainda, credibilizadas declarações produzidas em audiência de julgamento por parte da sua mãe C... , de D... , de E... e de N... .

24.ª  Assim, C... referiu – depoimento gravado através do sistema integrado de gravação através sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática no Tribunal, das 11:05:39 e as 12:00:21, com duração de 00:54:42 – quando questionada se o arguido alguma vez apalpou as mamas e as nádegas da menor B... que: “também (…) uma vez tive discussão com ele porque ele dizia à minha filha tem de se por o pénis dentro da vagina para fazer bébés (…)”– cfr. minutos 00:45:09 a 00:47:18.

25.ª E D... declarou – depoimento gravado através do sistema integrado de gravação através sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática no Tribunal, das 12:01:18 horas às 12:44:18, com duração de 00:43:25 –: “vi-o a brincar com a menina, com algumas atitudes que eu, pronto comecei a temer, era coisa dele, punha-se a apalpar as mamitas da menina, da menina, apalpa-lhe a barriga, pedia-lhe beijos…” - cfr. minutos 00:04:03 a 00:04:25 – questionada se na vagina e nas nádegas?, respondeu: “sim também” - cfr. minutos 00:04:30 a 00:04:34 – esclarecendo que o arguido o fazia: “por baixo da roupa, estava deitado às vezes ao lado dele na cama e outras vezes por cima… ele às vezes punha-se assim “ó B... deixa apalpar as tetinhas”, “dá-me um beijo, um beijito…a menina às vezes conforme lhe ia para dar, a menina até lhe dava lambada na cara, porque a menina não queria deixar…” cfr. minutos 00:04:50 a 00:05:56 – questionado se o arguido contava “as velhas” à menor B... disse: “ele falava isso, às vezes quando apalpava as tetinhas, dizia isso, eu nem sequer sabia o que queria dizer…” - …” cfr. minutos 00:06:15 a 00:06:37. Questionada pelo Meritíssimo Juiz Presidente se “tocava nas mamas por cima da camisola?” a testemunha respondeu: “quando ela tinha camisola…” - cfr. minutos 00:23:10 a 00:23:15 – e “na vagina?”, respondeu “ na vagina mesmo, na coisa, não” - cfr. minutos 00:23:20 a 00:23:37.

26.ª Também E... - depoimento gravado através do sistema integrado de gravação através sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática no Tribunal, das 12:46:21 horas às 12:59:28, com duração de 00:13:08 – referiu que: “ele brincava com a B... , ele dizia que era namorada dele, ela também”. Questionada se viu apalpar o rabo à menor disse: “Sim”; Por cima da roupa?, afirmou: “Sim” e nas maminhas: “isso também”; por cima da roupa? “sim” – cfr. minutos 00:05:39 a 00:07:39.

27.ª A testemunha N... sobre estes comportamentos disse – depoimento gravado através do sistema integrado de gravação através sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática no Tribunal, das 15:20 horas às 15:28, com duração de 00:08:47 –: “a B... relatou-me no último dia de aulas… acabou por relatar que o avô “morava” com ela… percebi o que ela queria dizer, mas não queria ser eu a por palavras na boca da criança, até com a insistência que não estava a perceber, disse o avô dava beijinhos na boca, não valorizei, mas ela disse que não gostava… ao que perguntei e exemplifiquei, o avô não dá assim beijinho bons, ela disse não, acabou abrir a boca e fazer o gesto com a cabeça e dava beijinhos e lambia e não gostava, a expressão dela alterou-se estava triste” - cfr. minutos 00:01:39 a 00:03:06 – Perguntado se a B... explicou onde lambia respondeu: “sim, que era na boca. Ela disse que lhe mexia nas mamitas. E disse nas mamitas como? E lá mostrou-me que fazia cócega, passava e mexeu as mamitas, axila para a outra axila e passava nas mamas e tocava nas mamas.”- cfr. minutos 00:03:10 a 00:04:29.

28.ª Ora, em face destes depoimentos, das declarações para memória futura da menor B... , da informação da CPCJ, do relatório da avaliação psicológica à menor, parece-nos inequívoco, terem sido incorrectamente julgados também estes pontos de facto relativos à questão de saber se o arguido, pelo menos mais que uma vez, em dias e horas não apuradas, assumiu comportamentos de índole sexual com a menor sua neta, tendo em vista satisfazer os seus apetites sexuais, beijando-a na boca, lambendo-a, passando as suas mãos no rabo daquela, nas mamas e na vagina da criança, com intenção de satisfazer o seu desejo sexual, dizendo à sua neta que queria namorar com ela, insistindo em beijá-la e mexer no corpo daquela, apesar de a menor se mostra avessa a tais carícia.

29.ª Mesmo admitindo que o arguido, mormente na frente de outras pessoas ou familiares, tenha tido comportamentos que se reconduzem à “brincadeira” e à “carícia”, outros, demonstra toda a prova, terão havido que se reconduzem a condutas de índole sexual, para sua satisfação sexual e líbido, aliás como já tinha acontecido antes com a sua filha C... e com E... (factos que também queremos ver dar como provados).

30.ª Este tipo de comportamentos de índole sexual, aqueles que extravasam a carícia menos própria ou a brincadeira irreflectida, são habitualmente tidos longe de outros olhares (pois podemos até dizer que um adulto que visse o arguido praticá-los e não os denunciasse incorreria também na prática do crime), e são estes os comportamentos do arguido que desgostam a criança que esta demonstrou quando inquirida para memória futura e quando antes questionada para os efeitos que acima aludimos.

31.ª Sendo que, sempre se terá que convir que “lambidelas”, “toques” na vagina, ou beijos de boca aberta como os relatados pela testemunha N... , a qualquer título se podem ter por brincadeira sem malícia!

32.ª Se tudo isto não bastasse para dar credibilidade às declarações prestadas pela menor B... , tem-se, ainda, que dar relevo à circunstância do arguido já antes ter praticado factos da mesma natureza com crianças que com ele residiam, a sua filha C... (esta como acima exposto) e E... (enteada e filha da sua companheira D... ) - depoimento gravado através do sistema integrado de gravação através sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática no Tribunal, das 12:46:21 horas às 12:59:28, com duração de 00:13:08 - que referiu: “ele chamou-me, pediu para sentar na sanita e joelhar, e depois, tinha 08 anos, tocou na vagina e ele… fizemos…” – cfr. minutos 00:04:02 a 00:04:59 – Perguntado a esta testemunha pelo Meritíssimo Juiz Presidente se: “ele penetrou na vagina”, respondeu: “Sim”; Questionada se: “Aconteceu mais…?”, disse: “foi muitas vezes?”; E inquirida se: “Não fala para ele?”, retorquiu: “não… a primeira tinha 08 anos e a última … 17 anos para aí”- cfr. minutos 00:04:08 a 00:05:26.

33.ª Entendemos, para mais, que, tal factualidade não é incompatível com o facto dado como provado em 7) da factualidade provada: “por vezes, o arguido brincava com a menor, a sua neta, fazendo-lhe cócegas e dizendo-lhe que queria namorar com ela.”, tal como acima expusemos, contudo, e caso esse Venerando Tribunal entenda existir incompatibilidade e contradição em dar em simultâneo estes dois pontos como provados, deve ser dado como não provado o ponto 7) dos factos provados.

34.ª Quanto ao ponto ao ponto 17 da acusação pública: “Como se disse no despacho de arquivamento que supra se proferiu, durante um longo período de tempo, o arguido manteve um relacionamento sexual com E... , filha de D... , à data menor de idade.”, deveria o mesmo ter sido dado como provado, em virtude:

· Do testemunho de E... - depoimento gravado através do sistema integrado de gravação através sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática no Tribunal, das 12:46:21 horas às 12:59:28, com duração de 00:13:08 -, que referiu que: “ele chamou-me, pediu para sentar na sanita e joelhar, e depois, tinha 08 anos, tocou na vagina e ele… fizemos…” – cfr. minutos 00:04:02 a 00:04:59 – Perguntado a esta testemunha pelo Meritíssimo Juiz Presidente se: “ele penetrou na vagina”, respondeu: “Sim”; Questionada se: “Aconteceu mais…?”, disse: “foi muitas vezes?”; E inquirida se: “Não fala para ele?”, retorquiu: “não… a primeira tinha 08 anos e a última … 17 anos para aí”- cfr. minutos 00:04:08 a 00:05:26.

· Do testemunho de F... - depoimento gravado através do sistema integrado de gravação através sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática no Tribunal, das 15:41 horas às 15:42, com duração de 00:01:57 -, que referiu que: “A E... contou-me que tinha sido violada pelo padrasto” cfr. minutos 00:00:50 a 00:01:50.

· Do testemunho de C... – depoimento gravado através do sistema integrado de gravação através sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática no Tribunal, das 11:05:39 e as 12:00:21, com duração de 00:54:42 – que referiu que: “eu com 11 anos de idade, a filha da minha madrasta tinha 12, eu apanhei-os em flagrante… E... , apanhei em flagrante, a casa tem rés-do-chão e o 1.º andar e eu apanhei-os deitados no sofá, sinceramente não sabia o que havia de fazer… eles estavam completamente nus…” – cfr. minutos 00:06:59 a 00:07:38.

35.ª Pois, embora, a factualidade descrita no ponto 17 da acusação pública tenha sido objecto de arquivamento (por falta de legitimidade em promover a respectiva acção penal), a verdade é que a mesma foi levada à acusação pública para os efeitos já mencionados e resultou provada pelas declarações das testemunhas supra referidas.

36.ª Como tal, na nossa perspectiva deveria constar dos factos provados, pois, resultando da factualidade descrita e imputada ao arguido na acusação pública, contextualiza como decorreu a restante factualidade apta a configurar a práticas dos crimes puníveis e credibiliza os restantes testemunhos acerca desses factos puníveis, além de que agrava a culpa do arguido.

37.ª De igual modo, se impunha dar como provado o ponto k) dos factos não provados, pois este ponto não oferece qualquer “se”. Uma vez que os pontos de facto acima enunciados sejam dados como provados – como se pretende – com base na prova relativamente a eles analisada, o exame lógico de tal prova levará, necessariamente, a dar como provado que o arguido, ao actuar da forma acima descrita - nos pontos A., B. e C. do presente recurso – agiu com o propósito reiterado e concretizado de satisfazer as suas intenções libidinosas, actuando de todas essas vezes de forma a ter com as menores C... e B... actos de natureza sexual, apesar de bem saber que as mesmas tinham idades inferiores a 14 anos, facto a que foi indiferente, querendo praticar com as mesmas tais actos e assim se satisfazer sexualmente.

38.ª Ou seja, são os elementos probatórios acima enunciados e discutidos, que aqui nos abstemos de reproduzir, mas a saber: as declarações para memória futura da menor B... , a informação da CPCJ de K... ... , exame de avaliação psicológica da menor B... , os testemunhos de C... , de D... , de E... e de N... , redundam na prova deste ponto.

39.ª Destarte, a prova produzida em audiência, conjugada entre si e com as regras da experiência comum, impunha que se dessem como provados – e não como não provados – todos os pontos da matéria de facto dados como não provados e acima apontados. Ou seja, entendemos que o tribunal a quo devia ter dado como provada toda a matéria de facto constante da acusação que no acórdão recorrido se deu como não provada, com uma ou outra precisão que deixámos sugerida.

40.ª Assim, o arguido incorreu na prática de: um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do CP, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal, perpetrado na pessoa da então menor C... com 9 anos de idade - sendo que, à data desses factos, 2004, era previsto e punido pelo artigo 172.º, do CP (todavia, por a redacção de tal artigo corresponder, ipsis verbis, à redacção do actual artigo 171.º do CP, não se torna necessário ponderar o regime mais favorável a aplicar ao arguido); e dois crimes de abuso sexual de criança, ps. e ps. pelo artigo 171.º, n.º 1, do CP, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal, perpetrado na pessoa da menor B... , na medida em que resultou provada a prática pelo arguido de mais do que uma conduta criminosa na pessoa da menor B... , apta a preencher este ilícito criminal, pelo que, pelo menos por duas vezes praticou o arguido este crime, e na impossibilidade de determinar o número concreto de actuações, que terá sido mais do que uma, deverá ser punido pela prática de, pelo menos, dois crimes.

41.ª Entendeu, ainda, o douto Tribunal a quo haver uma relação de concurso aparente entre o crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do CP, e o crime de coacção agravado, p. e p. pelo artigo154.º e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do CP imputados ao arguido e assim, apenas condenar o arguido por um crime de doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do CP (praticado na pessoa da sua ex-companheira D... ), sob a forma de concurso aparente com um crime de coacção.

42.ª Todavia, não podemos perfilhar o entendimento do douto Tribunal a quo, pois, o crime de coacção na sua forma agravada imputado ao arguido, não é passível de ser consumido pelo crime de violência ainda que na sua forma agravada (que só o é por ser no interior da habitação ou na presença de menor) - neste sentido veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa.

43.ª Este Autor, apesar de incluir nos crimes abarcados pelo crime de violência doméstica, crimes qualificados como os de ofensas corporais, de difamação ou injúria ou agravados como o de ameaça, deixa, expressamente, de fora o crime de coacção agravado, mencionado apenas consumido pelo crime de violência doméstica o crime de coacção, mas simples.

44.ª E tal exclusão é perceptível pelo seguinte: O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é a pessoa individual, da sua dignidade humana, por sua vez, no crime de coacção o bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de acção, a liberdade de movimentos do ofendido.

45.ª A coacção é, por conseguinte, um crime de resultado e sendo o bem jurídico protegido a liberdade de acção, a consumação deste crime exige consequentemente que a pessoa objecto da acção de coacção tenha efectivamente sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade num relação de efectiva causalidade.

46.ª Ou seja, até este momento nada obsta a que as condutas típicas em causa sejam englobadas, na violência doméstica, já que ali o bem jurídico protegido é poliédrico.

47.ª A especialidade referente à coacção agravada é que, apesar dos elementos para a sua agravação se identificarem com a agravação da ameaça (que como vimos é consumida pelo crime de violência doméstica), aqui estes elementos agravadores têm como objectivo a adopção de um comportamento da vítima, que tem que acontecer, sendo a acção do agente apta a fazer dobrar a vontade de quem dela sofra, de uma forma particularmente grave.

48.ª Tal resultado, ao contrário de todos os outros, é que não pode ser consumido pela violação de uma especial convivência ou relação afectiva posta em causa com a acção. Além desta “violação”, a coacção agravada, encerra um plus que extravasa a esfera de protecção da norma do art. 152.º, do CP.

49.ª Ora, resultando provado, que o arguido constrangeu de forma violenta a companheira a desmentir perante a assistente social a denúncia antes efectuada, fazendo-a temer pela vida, o que esta fez, e revestindo esta coacção a sua forma agravada, não podemos aceitar o entendimento expresso no Acórdão recorrido que: “…mais não configura uma das muitas formas em que se traduzem os maus tratos físicos e psíquicos que lhe infligiu, desta feita condicionando a sua liberdade de ação e autodeterminação, um dos elementos mais visíveis do bem jurídico complexo tutelado pelo crime de violência doméstica, havendo um concurso aparente com o aludido crime de coação agravado.”

50.ª Na verdade, o arguido não agiu, in casu, apenas com o intuito de assustar, intimidar, vexar, ofender, humilhar, diminuir a pessoa da vítima.

51.ª A acrescer, houve uma vontade autónoma do arguido de constranger a sua ex-companheira D... , a praticar um acto específico, o de desmentir perante a assistente social a denúncia antes efectuada.

52.ª Não podemos considerar incorporado este comportamento como um ataque, sob qualquer aspecto, à vivência “conjugal”, este comportamento do arguido destinou-se a outro fim, a desiderato distinto.

53.ª E nessa medida, teríamos, necessariamente, de considerar autónomo o crime de coacção agravada aqui relativamente ao de violência doméstica (neste sentido vide Ac. TRC, de 09-01-2017, disponível in www.dgsi.pt).

54.ª Deste modo, e considerando a forma como se encontram nos autos descritos os factos, bem como resultaram provados, inevitável se torna concluir que o arguido agiu com a única motivação de constranger, condicionando liberdade de acção e autodeterminação da então companheira, com o único intuito de que esta desmentisse, como desmentiu, a denúncia efectuada, extrapolando pois a vontade de tratar de forma degradante a então companheira.

55.ª Este é um “pedaço de vida” completamente autónomo da conduta do arguido configuradora do crime de violência doméstica.

56.ª Ante o exposto, temos por líquido que terá que ser autonomizada esta sua conduta das demais e assim condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do CP, em concurso real com um crime de coacção agravada, p. e p. pelos artigos 154.º e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do CP.

57.ª A ter acolhimento a alteração da matéria provada por nós defendida, e da matéria de direito aludida, nos termos supra expostos, deve em consequência ser o arguido condenado pela prática de:
- 1 crime de abuso sexual de criança, p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do CP, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal (perpetrado na pessoa da então menor C... ), punido com pena de prisão de 01 ano e 04 meses a 10 anos e 8 meses – apenas de referir que, na data da prática deste crime, quando a C... tinha 9 anos, o mesmo era p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, agravado, igualmente, pelo artigo 177.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal, que correspondem, ipsis verbis, aos agora imputados, pelo que não há que ponderar o regime mais favorável a aplicar ao arguido;
- 2 crimes de abuso sexual de criança, ps. e ps. pelo artigo 171.º, n.º 1, do CP, agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal (perpetrados na pessoa da menor B... ), cada um punido com pena de prisão de 01 ano e 04 meses a 10 anos e 8 meses;
- um crime de coacção agravada, p. pelos arts. 154.º e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, punido com pena de prisão de 01 a 05 anos; 
- um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do CP, aceitando-se a pena parcelar aplicada pelo Tribunal a quo de 3 (três) anos de prisão;
- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, aceitando-se a pena parcelar aplicada pelo Tribunal a quo, de 01 (um) ano de prisão.


58.ª Assim, considerando os critérios previstos no artigo 40.º do CP e os critérios do artigo 71.º do CP, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que se apuraram a favor e/ou contra o agente, como ao grau da ilicitude do facto, à gravidade das suas consequências, ao grau de violação dos deveres impostos, à intensidade do dolo, às condições pessoais do agente, à sua situação económica e à sua conduta anterior e posterior ao facto.

59.ª Ora, verifica-se que o arguido conta já com antecedentes criminais pela prática do crime de coacção grave, na forma tentada, sendo que, durante o julgamento assumiu uma postura de terminante negação dos factos delituosos que lhes são imputados, o que é indiciador de ausência de arrependimento, bem como falta de consciência crítica.

60.ª  Por outro lado, manteve os comportamentos sexuais em causa não só com a sua filha, como com a sua neta e antes com uma enteada, sendo que, anos se passaram na persistência destes comportamentos.

61.ª  Não conta com retaguarda familiar, social e ocupacional que permita uma prognose favorável de reinserção social, e a comunidade olha com severidade para a prática destes crimes, sendo que, todos os crimes, excepção feita ao crime de detenção de arma proibida são cometidos no seu ambiente familiar, com quem o arguido mais proximamente se relaciona ou sobre quem tem ascendente.

62.ª Assim, têm-se como ajustadas aos critérios previstos no artigo 71.º do CP, e adequadas e suficiente às finalidades da punição, as seguintes penas:
· a pena de 2 (anos) anos de prisão para o crime de abuso sexual de criança agravado, praticado na pessoa da C... , quando esta tinha 9 anos de idade, tendo também, em consideração a data da prática dos factos e o tempo desde lá decorrido;
· a pena de 3 (três) anos de prisão para cada um dos crimes de abuso sexual de criança agravado, praticados na pessoa de B... ;
· a pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão para o crime de coacção agravado, relativo à sua ex-companheira D... ;
· a pena de 3 (três) anos de prisão para o crime de violência doméstica agravado, praticado relativamente à sua ex-companheira D... – aplicada pela Acórdão recorrido e que se aceita;
· a pena de 1 (um) ano de prisão para o  crime de detenção de arma proibida aplicada pela Acórdão recorrido e que se aceita.


63.ª E, em cúmulo dessas penas, os critérios estabelecidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 77.º do Código Penal, mormente considerando os factos supra descritos, e a personalidade do arguido, a ausência de atenuações, a gravidade e censurabilidade dos factos, imporão a condenação do arguido numa pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

V. Ex.as, porém, e como sempre, farão Justiça !

            Não respondeu o arguido/recorrido.

            Nesta Relação, a Ex.ma PGA emitiu douto parecer, no qual, acompanhando a motivação do recorrente, pugna pelo provimento do recurso.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FACTOS PROVADOS:


1. A menor B... nasceu em 20 de Outubro de 2011 e é filha de C... , nascida em 15.11.95, e de G... , sendo, por sua vez, neta do arguido (pai da C... ) e sobrinha da companheira deste, D... (irmã do referido G... , pai da menor B... ).
2. A menor B... nasceu de um relacionamento sexual entre o G... e a C... quando esta tinha então apenas 15 anos de idade, razão pela qual desde essa altura e até ao momento em que a C... atingiu a maioridade, foi o arguido nomeado tutor da B... pelo Tribunal Judicial de K... ... , sendo que em 12 de Março de 2015 foi assinado um Acordo de Promoção e Protecção entre a CPCJ de K... ... e a C... na qual foi aplicada à B... a medida de promoção e proteção junto de familiar (em concreto, a mãe da menor).
3. O arguido bem conhecia a data de nascimento da B... e sua mãe C... , bem assim os laços familiares que tinha com cada uma delas.
4. A mãe da C... abandonou o arguido e os dois filhos (a C... e o F... ) quando estes eram ainda novos, ficando a C... entregue à guarda e cuidados do arguido.
5. Entretanto a C... passou a residir e a trabalhar em W... , ficando a menor B... a residir em casa do arguido, dormindo numa cama pequena existente no quarto onde o arguido dorme com a sua companheira D... .
6. A companheira D... cuida diariamente da menor B... , tratando da sua alimentação, higiene, vestindo-a e levando-a a casa.
7. Por vezes, o arguido brincava com a menor, sua neta, fazendo-lhe cocegas e dizendo-lhe que queria namorar com ela.
8. Desde Junho de 2000 que o arguido vive maritalmente com a referida D... , como se marido e mulher se tratasse, vivendo na mesma casa, a partir de 2001 na Rua (...) , K... ... , onde dormem, convivem e comem juntos, acompanhando-se mutuamente.
9. Com o casal co-habitavam também quer com os filhos do arguido, a referida C... , nascida em 15.11.95, e F... , nascido em 1990 (então com cerca de 6 e 13 anos de idade, respetivamente), quer os filhos da sua companheira, o I... , nascido em 20.06.98, e E... , nascida em 8.08.94.
10. Fruto dessa relação marital nasceu em 7.09.2002 o menor J... , filho do arguido e da D... .
11. Desde então até meados de Junho de 2016, por diversas vezes, no interior da referida habitação e perante as filhas C... e E... nomeadamente enquanto estas foram menores de idade, o arguido desferiu pontapés e pancadas com a mão aberta e/ou fechada no corpo da companheira D... , chegando apertar-lhe o pescoço, causando-lhe dores e hematomas, embora nunca tivesse sido medicamente assistida.
12. No decorrer dessas discussões, por diversas vezes, o arguido disse-lhe em tom sério que a matava e que lhe dava um tiro, chegando numa ocasião, apontar-lhe uma pistola, e chamando-a habitualmente de vaca e puta.
13. Em data não apurada, mas situada em inícios de Junho de 2016, a companheira D... comentou com O... , assistente social, que deviam ir lá a casa ver o que se passava, o que foi interpretado como insinuação do arguido poder abusar sexualmente da menor B... .
14. No dia 13 de Junho de 2016, como soubesse desse comentário da companheira D... , o arguido desferiu-lhe murros no corpo e bofetadas na face, causando-lhe dores, ao mesmo tempo que lhe dizia que tinha de ir à Segurança Social desmentir o que declarara.
15. Com medo do arguido nomeadamente de novas agressões, a companheira D... acatou as ordens do arguido e deslocou-se à Segurança Social, onde desmentiu perante a mesma assistente social, O... , qualquer problema de relacionamento com o arguido, dizendo que tinha mentido por estar com ciúmes dele.
16. Em consequência da conduta reiterada do arguido, a companheira D... sofreu também abalo psicológico, medo, vergonha e tristeza.


17. No dia 29.06.2016, o arguido tinha escondido num terreno da companheira, em Y... , os objetos adiante descritos, onde foram apreendidos, os quais tinha em seu poder desde há vários anos e ali os escondera em Outubro de 2014:

a) Cento e quarenta e sete (147) cartuchos de caçadeira de várias marcas e granulometrias (cargas de múltiplos bagos de chumbo de diâmetro unitário inferior a 4,5mm), que devido ao facto de estarem degradados/oxidados, impede a completa identificação relativamente aos respetivos fabricantes. Do conjunto, alguns dos referidos cartuchos permitem a leitura das marcas: "RIBEIRA - Q...", "GILINHO - Mealhada" e "ROSSI". Destes, cento e oito (108), são de calibre 12 e os restantes trinta e nove (39), são de calibre 16;

b) Uma (01) cartucheira em pele que se apresenta completamente degradada por exposição a ambiente húmido, tendo ainda incrustado nos alvéolos, oito (8) cartuchos de caçadeira de calibre 12;

c) Um (01) escovilhão de limpeza de canos de caçadeira, composto por cerdas de material sintético;

d) Uma (01) luva de borracha, usada, de cor verde e amarela;

e) Um (01) isqueiro de cor preta da marca "BIC", com a parte metálica, oxidada;

f) Um (01) apito de construção metálica (cromado), com argola que tem agregado peça em cabedal com diversas presilhas, próprias para pendurar peças de caça;

g) Um (01) escovilhão de limpeza de canos de caçadeira, enroscado em vareta de madeira, composta por três (03) secções que montadas/enroscadas atingem um comprimento de aproximadamente 88cm;

h) Um estojo de transporte de arma de fogo longa, em napa de cor grená, com pega sólida e duas presilhas para aplicação de bandoleira, sendo que uma delas se encontra parcialmente rasgada. O estojo apresenta um comprimento aproximado de 124cm, por 18cm de altura máxima;

i) Um revólver de alarme, de construção metálica (antimónio), com tambor de oito alvéolos, com platinas em plástico de cor castanha que se encontram pintadas de cor preta, com a referência "REDONDO", "Fabricado em Espanha", "Revolver 007". A arma apresenta um comprimento de 14cm, por 10cm de altura e 3cm de largura e no momento do exame encontrava-se parcialmente coberta por massa consistente;

j) Um (01) corpo/carcaça de caçadeira de canos basculantes, justapostos, com duplo gatilho e coronha em madeira, possuindo na mesa interior o número "610868" e na chapa de coice em material sintético a referência "SUHL". As partes metálicas encontram-se parcialmente cobertas com massa consistente, embora exibam fortes sinais de corrosão;

k) Um (01) cano de caçadeira formado por dois canos justapostos, de alma lisa, de calibre "12" para câmara de 70mm, com a designação "12-70", com 71cm de comprimento, que apesar de protegido com massa consistente apresenta sinais de corrosão (ferrugem). Não são visíveis referências ao fabricante, apenas sobressaindo a referência "481";

l) Um fuste/cavaco de arma caçadeira, em madeira e metal, com cerca de 24,5cm de comprimento, exibindo na parte interior, quando aplicado, a referencia "10868";

m) Um corpo/carcaça de arma caçadeira de canos basculantes, justapostos, com dois "cães" exteriores e dois gatilhos, coronha em madeira partida e chapa de coice em metal, com pedaço de bandoleira (cabedal) agregado. Possui na mesa interior a referência "J.C.F.G." e do lado oposto sob a alavanca de tranca/libertação dos canos a inscrição de um número que se presume tratar-se do "24077". O conjunto acima referido apresenta um comprimento de aproximadamente 59cm e presume-se que se trate de parte de arma de calibre 16, encontra-se em mau estado de conservação;

n) Um (01) cano de caçadeira composto por dois canos de alma lisa justapostos, com um comprimento de 80cm, de calibre 16, sem número de série visível, apresentando na fita de pontaria, sobre a zona das câmaras, a inscrição "J.C.F.G.". O cano apesar de emassado encontra-se bastante oxidado, possuindo na presilha de sustentação um pedaço de bandoleira (cabedal).

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18.  No dia 4 de Agosto de 2016, D... s entregou ainda aos inspetores da PJ uma embalagem de spray com 40 ml de capacidade com a inscrição “Seuritu Police/CS – Eurogas super paralisant/Trilliard”; vinte e cinco cartuchos de 70 mm marca Miratiro Mira 28; quatro cartuchos de cor vermelha e um cartucho de cor branca com inscrições imperceptíveis; dois cartuchos de cor vermelha sem qualquer inscrição e um telemóvel, tudo isso propriedade do arguido e que o mesmo possuía na sua habitação desde há vários anos à data da sua reclusão.
19. O arguido não é portador de qualquer licença de uso e porte de arma, ou sequer qualquer autorização para deter armas e munições.

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20. Agredindo a ofendida D... e dizendo-lhe de forma séria e credível que teria de ir desmentir o que declarara na Segurança Social, o arguido agiu com o intuito de forçar aquela ofendida a desmentir as declarações que prestara, o que aquela fez contra a sua vontade apenas por sentir receio do arguido nomeadamente de novas agressões corporais contra si.
21. Todas as vezes que agrediu a ofendida D... s no contexto e forma acima descritos, com quem mantinha uma relação análoga às dos cônjuges e de quem tem um filho em comum, na casa de habitação de ambos, ameaçando-a e fazendo-a temer pela sua vida e integridade física, molestando-a com pancada no corpo, o arguido agiu com o propósito, conseguido, de ofender o corpo, a saúde e a liberdade de autodeterminação da companheira, infligindo-lhe, dessa forma, maus tratos físicos e psíquicos.
22. O arguido conhecia as características das armas e munições que tinha em seu poder, sabendo e querendo tê-las em seu poder, tendo consciência que não as podia ter ou possuir nas sobreditas condições, sem qualquer licença de uso e porte de arma ou autorização especial que lhe permitisse detê-las.
23. Ao praticar todas as condutas acima descritas, agiu sempre o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem essas condutas proibidas e penalmente punidas.

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24. I - Dados relevantes do processo de socialização
25. O arguido é o penúltimo dos seis filhos de um casal, natural da localidade do (...) , freguesia e concelho de K... ... , que em determinado momento da sua história de vida e na procura de melhores condições de vida, terá empreendido, em meados da década de sessenta, um projeto de emigração para a Alemanha.
26. Fruto desta circunstância o arguido e alguns dos elementos mais novos da fratria acabariam por permanecer em território nacional, num primeiro momento entregues à guarda da progenitora e mais tarde à guarda dos avós maternos.
27. Ainda chegou a frequentar, cerca de dois anos, o sistema de ensino português, no entanto, este percurso ficaria comprometido com a sua partida para junto dos progenitores e posterior radicação na Alemanha, quando contava oito anos de idade.
28. Na Alemanha terá desenvolvido um gosto especial pela mecânica de pesados, acabando por garantir através da prática e de alguma formação complementar, experiência significativa neste setor de atividade.
29. Após atingirem a idade da reforma, os progenitores optaram então por regressar definitivamente a Portugal. Pese embora ter procurado permanecer, durante algum tempo na Alemanha, a proximidade afetiva que sempre manteve com aqueles levou-o a juntar-se aos progenitores em Portugal, enquanto os demais irmãos permaneceram emigrados.
30. Em janeiro de 1989, e depois de algum tempo de namoro, acabaria por contrair matrimónio com H... , natural de V...... e que terá conhecido ocasionalmente.
31. Desta relação nasceriam dois filhos, F... e C... .
32. O casal terá fixado residência na zona de T......, tendo chegado a morar no espaço habitacional de uma das empresas onde o arguido, durante cerca de dez anos, exerceu as funções de mecânico, a empresa de construção e obras públicas P..., Lda. Na opinião de um dos proprietários, a sua passagem pela empresa, ter-se-á pautado por um quadro de normalidade, nunca nada tendo ocorrido, fora daquilo que é o seu entendimento das naturais relações de trabalho. Em termos de desempenho, destacou as suas qualidades técnicas e profissionais, ao mesmo tempo que referiu que, durante todos os anos que ele trabalhou na empresa, nunca nada foi veiculado, quanto à alegada formação académica em medicina.
33. Nove anos após a sua constituição, o agregado familiar do arguido entraria numa situação de rutura, precipitada pela saída de casa da cônjuge e pelo abandono dos filhos, os quais permaneceram então entregues à guarda do arguido e, também dos avós paternos, para junto dos quais, aqueles três elementos se mudaram pouco tempo depois. Demitindo-se de qualquer tipo de responsabilidade em todo este processo, o arguido considera que a ex-mulher nunca se terá completamente adaptado a uma nova realidade cultural e à separação dos seus progenitores e que terá sido apenas isso a ponderar na decisão assumida.
34. Cerca de dois anos mais tarde, assumiria nova relação, agora com D... , natural e residente na zona de Y... , com quem passou a viver em união de facto, em 2000, em K... ... , integrando então no respetivo agregado, os dois filhos desta, a E... e o I... .
35. Cerca de um ano depois, ao agregado constituído pelos dois adultos e pelos quatro filhos menores, juntar-se-ia o único filho nascido na vigência da relação do casal, J... .
36. Coincidindo aproximadamente com este período, o arguido terá começado a evidenciar alguns problemas de saúde, experienciando picos de ansiedade e quadros depressivos, os quais se terão afirmado determinantes no abandono da atividade de mecânico. Na procura de uma atividade alternativa passou, entre 2003 e 2010, a estar ligado ao setor da restauração, tendo explorado durante esse período pelo menos cinco espaços comerciais, entre X... Z... e Y... .
37. Esta nova relação do arguido terá permitido, por sua vez, a aproximação a este núcleo familiar de um irmão da companheira, L.. , com quem a filha C... acabaria por se envolver afetivamente e com quem viria a protagonizar uma fuga para a Alemanha, em fevereiro de 2011, a qual viria a ser mediatizada através dos meios de comunicação social, pelo próprio arguido.
38. Na sequência de todo este processo e da ocorrência de uma gravidez não desejada, viria a nascer, em outubro de 2011, a menor B... , neta do arguido. Dado que a progenitora registava à época apenas 15 anos de idade, o arguido viria a ser nomeado tutor da mesma, pelo Tribunal Judicial de X....
39. I - Condições sociais e pessoais
40. Após a primeira separação e com os dois filhos a seu cargo, o arguido ver-se-ia na contingência de recorrer ao apoio de retaguarda dos progenitores, para junto dos quais terá regressado, reocupando a casa da família, na localidade de (...) . Trata-se de uma vivenda, constituída por dois pisos e logradouro, que supostamente terá sido, mandada edificar pelos progenitores, durante o período em que estiveram emigrados na Alemanha e que atualmente, evidencia algum desinvestimento na manutenção do edifício e em todo o espaço exterior.
41. Terá sido neste mesmo espaço residencial, que o arguido terá vivido, a partir do ano 2000 com a companheira, com os filhos de cada um deles, num total de quatro e com os demais elementos que entretanto viriam a nascer, o J... , filho de ambos e a B... , neta do arguido. Não obstante, o elevado número de elementos que compunham o agregado, a habitação, dado distribuir o seu espaço habitável, pelos dois pisos, parecia satisfazer as necessidades habitacionais do mesmo, pese embora impor uma inevitável partilha de espaços.
42. Com a morte em 2012 do último dos progenitores, o arguido terá garantido a propriedade da habitação, circunstância que terá estado na origem, de conflitos familiares e do corte de relações com os demais irmãos.
43. Em termos ocupacionais, o agregado terá explorado vários estabelecimentos comerciais, cujos projetos de viabilidade económica, terão sido, na opinião do arguido, fortemente comprometidos, pelo agravar da sua doença. Ainda assim, terá tentado um outro projeto que passou pela criação de uma agência funerária, projeto esse que também acabaria por abandonar.
44. Perante esta situação e face à inexistência de outras fontes de rendimento, o casal acabaria, por volta de 2010, por requerer a atribuição do Rendimento Social de Inserção.
45. A imagem generalizada que subsiste do mesmo junto da comunidade residente é de uma pessoa problemática e conflituosa.
46. No plano familiar é destacado pela negativa, também pela forma como impunha e privilegiava um clima de tensão e crispação familiar, em que tudo era determinado pela sua vontade e onde aparentemente era frequente o recurso aos castigos físicos. Esta postura de inflexibilidade e de intransigência apenas era questionada pela companheira, daí os filhos serem unânimes em considerar que os conflitos entre os elementos do casal eram mais que recorrentes e que vulgarmente surgiam potenciados pelo consumo excessivo de álcool por parte do arguido.
47. Por outro lado, enquanto elemento fortemente controlador, sempre procurou evitar a autonomização de qualquer elemento, reagindo de forma bastante negativa a este processo e exercendo forte pressão psicológica sobre quem esboçava comportamentos nesse sentido, onde se destaca a alegada tentativa de suicídio que o mesmo terá protagonizado, quando a filha C... empreendeu a fuga para a Alemanha.
48. O arguido reconhece a esse nível, que possa ter havido alguma radicalização nas suas atitudes educativas, as quais poderão ter potenciado um clima de receio, dentro do seu núcleo familiar, no entanto, defende que tudo isso foi feito no sentido de defender os seus filhos e a sua família. É neste sentido que nos surge referenciado, como estando sempre presente em todos os atos que envolviam a neta, substituindo-se muitas das vezes à companheira e à própria mãe.
49. Presentemente, com a entrada do arguido no Estabelecimento Prisional de Q..., numa altura em que já a filha da companheira E... e o filho do arguido F... haviam abandonado a casa morada de família, nenhum dos demais elementos do agregado permanece na localidade do (...) , encontrando-se a residência desocupada.
50. A ex-companheira e os filhos ter-se-ão mudado para S......, onde já se encontrava a E... , enquanto que a C... e a filha B... , se juntaram ao F... em V......, vindo entretanto a crtar relações com o mesmo por divergências relativamente à sua posição neste processo.
51. III - Impacto da situação jurídico-penal
52. O arguido encontra-se ininterruptamente detido/preso preventivamente desde 30.06.2016, no Estabelecimento Prisional de Q....
53. No plano institucional, tem mantido um comportamento estável e conforme às normas da instituição, não tendo sido alvo de qualquer tipo de procedimento disciplinar.
54. Terá sido num momento inicial visitado pela filha C... , apenas com o propósito de regularizar alguns assuntos que careciam da assinatura do arguido, tendo a mesma deixado posteriormente de o visitar. Para além deste elemento, só o filho F... , terá visitado em duas ocasiões o arguido, o qual presentemente não beneficia de qualquer rede de suporte familiar no exterior.


55. O arguido tem uma condenação em juízo por sentença de 29.10.2014, transitada em julgado no dia 9.12.2014, pela prática de um crime de coação grave na forma tentada, por factos de 3.10.2012, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de €5,50, que pagou.

                                                                  *

Factos Não Provados:

De resto não se provaram outros factos com relevância para a boa decisão da causa designadamente aqueles em contradição com os provados e que:
a)  enquanto a C... era ainda muito nova (ao que tudo indica entre os 2 e os 11 anos de idade desta) o arguido por diversas vezes despiu e passou as suas mãos pelo corpo da C... , passando as suas mãos pelo corpo da mesma, apalpando-a e assim satisfazendo os seus desejos lascivos;
b) o arguido exerce, pela força e pela ameaça, um forte ascendente sobre a C... ;
c) sempre que a C... mostra vontade de sair de casa acaba por não o fazer por o arguido de forma séria e credível lhe dizer que não deixa a B... sair de casa, acabando a C... por recuar nessa sua intenção de modo a evitar ser afastada permanentemente da sua filha;
d) por diversas vezes em dias e horas não apuradas, aproveitando os momentos em que a D... se ausentava e deixava a menor B... à sua guarda, o ora arguido assumia comportamentos de índole sexual com a menor sua neta, tendo em vista satisfazer os seus apetites sexuais;
e) por diversas vezes, em número não concretamente apurado mas seguramente superior a 10, o arguido, simulando estar a brincar com a sua neta a B... , beijou-a na boca e passou as suas mãos no rabo e na vagina da menor;
f) com intenção de satisfazer o seu desejo sexual o arguido passou ou tocou nas mamas (ainda incipientes, fruto da tenra idade) da menor B... ;
g) em algumas dessas ocasiões, em número igualmente não apurado, o arguido chegou mesmo a tirar de dentro das calças o seu pénis erecto, e exibiu-o à menor, encostando de seguida na vagina da mesma;
h) o arguido insistia em beijar e mexer no corpo da menor B... ;
i) sempre que D... mostrava vontade de abandonar o arguido e sair de casa, o arguido agarrava no telemóvel e mostrava-lhe fotografias que retratavam o seu contato sexual com a E... , filha daquela;
j) nessas ocasiões o arguido dizia-lhe ainda que se ela o deixasse ele mostraria essas fotos a toda a gente e assim arruinaria a reputação daquela sua filha, pelo que a D... acabava sempre por lhe ceder;
k) o arguido agiu com o propósito reiterado e concretizado de satisfazer as suas intenções libidinosas, atuando de todas essas vezes de forma a ter com as menores C... e B... atos de natureza sexual, apesar de bem saber que as mesmas tinham idades inferiores a 14 anos, facto a que foi indiferente, querendo praticar com as mesmas tais atos e assim se satisfazer sexualmente.

DECIDINDO:

            Analisadas as conclusões que o recorrente retira da motivação do seu recurso, logo se constata que são as seguintes as questões que, através delas, coloca à nossa apreciação censória:

- em primeiro lugar procede à impugnação da matéria de facto não provada em a), d), e), f) h) e k), que pretende seja levada aos factos provados (mais pretende que fossem dados como provados os pontos 10 e 17 da acusação pública);

- depois, pretende que, contrariamente ao afirmado no acórdão recorrido, ocorre concurso efectivo entre os crimes de violência doméstica agravado e de coacção agravada;

- na expectativa da procedência da impugnação factual, pretende que sejam aplicadas aos crimes de abuso sexual de criança agravado e de coacção agravado as penas que propõe (mantendo-se as condenações constantes do acórdão) reformulando-se, em consequência, o cúmulo jurídico.

            Impugnando a matéria de facto, pretende o recorrente que seja levada à factualidade provada os já referidos factos tidos como não provados, designadamente:

“a) quando C... tinha cerca de 09 anos de idade, o arguido (…)  desabotoou-lhe as calças apalpando-a, tocando com a sua mão na vagina desta e assim satisfazendo os seus desejos lascivos;”
d) por diversas vezes em dias e horas não apuradas (…) o ora arguido assumia comportamentos de índole sexual com a menor sua neta, tendo em vista satisfazer os seus apetites sexuais.
e) por diversas vezes, em número não concretamente apurado (…) simulando estar a brincar com a sua neta B... , beijou-a na boca e passou as suas mãos no rabo e na vagina da menor.
f) com intenção de satisfazer o seu desejo sexual o arguido passou ou tocou nas mamas (ainda incipientes, fruto da tenra idade) da menor B... ;
h) o arguido insistia em beijar e mexer no corpo da menor B... ;
k) o arguido agiu com o propósito reiterado e concretizado de satisfazer as suas intenções libidinosas, actuando de todas essas vezes de forma a ter com as menores C... e B... actos de natureza sexual, apesar de bem saber que as mesmas tinham idades inferiores a 14 anos, facto a que foi indiferente, querendo praticar com as mesmas tais actos e assim se satisfazer sexualmente.”

Pretende também que sejam dados como provados os pontos 10 e 17 da acusação pública:
10 – Nessas alturas dizia à sua neta que queria namorar com ela, insistindo em beijá-la e mexer no corpo daquela, apesar de a menor se mostra avessa a tais carícias (…).
17 – Como se disse no despacho de arquivamento que supra se proferiu, durante um longo período de tempo, o arguido manteve um relacionamento sexual com E... , filha de D... , à data menor de idade.

            O tribunal colectivo foi muito cuidadoso na fundamentação da sua convicção probatória relativamente aos crimes de abuso sexual; com efeito, de forma desenvolvida procedeu à seguinte fundamentação, que se transcreve aqui, dada a sua expressividade:

Relativamente aos crimes sexuais na pessoa da filha C... e da neta B... , cuja idade e parentesco naturalmente conhecia, o arguido negou qualquer contato sexual com ambas, ainda que por vezes brincasse com a menor, sua neta, fazendo-lhe cocegas e dizendo-lhe que queria namorar com ela, o que fazia com naturalidade na presença dos restantes familiares, o que foi corroborado pela própria D... e C... , companheira e filha do arguido.

Nenhuma testemunha revelou ter conhecimento de qualquer circunstância precisa e reveladora desses contatos sexuais com a menor B... .

Jamais a menor B... disse que o avô lhe fazia cócegas ou tocava no “pipi”. Não o disse ao tribunal em memória futura nem tanto resulta do relatório de avaliação de fls.103-5, onde consta justamente o contrário, elaborado pela testemunha R..., 31 anos, psicóloga, que se limitou a confirmar o seu teor.

Quanto ao contato nas maminhas da menor B... , que recorda-se nasceu em 20 de Outubro de 2011, a própria D... e C... , companheira e filha do arguido, confirmam que tanto poderia acontecer quando o avô brincava com a neta, fazendo-lhe cócegas, sem nunca terem visto ou percebido nesse comportamento qualquer intenção libidinosa do arguido.

Já em relação aos beijos na boca, o arguido também negou fazê-lo com a neta, o que foi corroborado pela testemunha C... que confirmou que a B... tapava a boca do avô e lhe dava o beijo na testa.

De resto, a testemunha D... não concretizou qualquer comportamento do arguido suficientemente revelador dessa lascívia com a filha C... ou com a neta B... , esclarecendo a testemunha O... , assistente social, que também perante si nunca a D... o concretizou nomeadamente no contexto do comentário “que deviam ir lá a casa ver o que se passava”, ainda que interpretado como insinuação do arguido poder abusar sexualmente da neta B... .

Na verdade, podendo tocar nas maminhas, rabo, na barriga e nas pernas da neta B... , enquanto brincava com ela, nunca a testemunha D... – afirmou – percebeu qualquer malicia no comportamento do arguido, até porque o fazia na frente de toda a gente lá em casa, circunstância também corroborada pela testemunha E... , filha daquela, que ali morava.

Ouvidas as declarações prestadas no dia 29.06.2016 para memória futura pela menor B... , nascida em 20.10.2011 e, portanto, ao tempo com 4 anos de idade, o depoimento da menor, acompanhado pela sua mãe, foi tudo menos espontâneo, escorreito e limpo quando instada sobre alegados contatos (sexuais) do seu avô no seu corpo.

Ao fim de muito tempo de insistência, saturada com a interpelação direta sobre o tema, a menor acaba por jogar a brincadeira proposta pelos intervenientes, numa abordagem diferente, de irem dizer ao avô para não fazer uma série de coisas.

Contudo, nesse método, entendido pela menor com uma brincadeira, é difícil avaliar da seriedade do discurso nem sempre espontâneo da criança, ficando pelo menos a dúvida razoável e fundada de saber se a B... não estaria ela própria a brincar ou mesmo despachar os adultos que a bombardeavam com perguntas sobre o avô, de quem sempre disse gostar, há muito percebido, por ela, o motivo de ali estar, acabando o seu depoimento por se mostrar sugestionado, quando não mesmo influenciado, pela presença da mãe C... .

As testemunhas N... , 47 anos, educadora de infância, e O... , 46 anos, assistente social, limitaram-se a declarar a conversa que tiveram com a menor B... e a testemunha D... , sem desta resultar o relato consistente e circunstanciado de qualquer contato sexual do arguido com a neta, esclarecendo a testemunha N... que, segundo a menor, ao fazer-lhe cócegas, o avô lhe tocava nas maminhas quando passava bruscamente as mãos de uma axila para a outra.

Já a testemunha C... , 21 anos, que confessou estar de relações cortadas com o arguido, seu pai, negou qualquer outro contato sexual entre ambos para além daquele ocorrido na sala de casa, onde todos moravam, quando ela tinha – disse – 9 anos de idade.

Concretizando, referiu a testemunha C... que na ocasião o seu pai, enquanto brincava com ela, no chão da sala desapertou-lhe o botão das calças e friccionou os dedos da mão na sua vagina, numa ocasião em que todos estavam dentro de casa, mas que apenas o seu irmão F... viu, logo perguntando este o que se passava ali.

Não se recorda de ter contado o sucedido a quem quer que fosse.

Ora, o silêncio da testemunha até à denúncia nestes autos e a circunstância de se encontrar de relações cortadas com o seu pai, relativamente ao qual é notória a forte animosidade, são fatores que reclamam a necessidade de outra prova direta ou indiciária para corroborar as declarações da testemunha C... .

E não havendo alegadamente outra prova para além do testemunho do seu irmão, F... , certo é que este negou alguma vez ter presenciado aqueles factos ou sequer deles ter ouvido falar, a respeito do que nunca teve notícia, tendo-os como falsos.

Por conseguinte, tendo a testemunha C... reduzido (agora) os casos de abuso sexual apenas àquele por si apontado em audiência, nenhum outro meio de prova permite ultrapassar a dúvida séria e fundada sobre a sua ocorrência só agora noticiada (exclusivamente) pela própria, decorridos tantos anos, num contexto de conflituosidade latente com o seu pai.

A operação de fixação da factualidade, resultante da prova produzida em julgamento, tem natureza complexa e nela se cruzam uma série de considerações que se prendem, por um lado, com o confronto crítico das provas, umas concordantes, outras discordantes entre si, e por outro, na sua conjugação com as regras da experiência, da normalidade do acontecer, tudo coado pelo bom senso, que é o senso comum, que deve presidir à análise lógica traduzida no raciocínio efectuado. E tudo deve ser transparente, por todos perceptível, como o é a fundamentação fáctica levada ao acórdão ora impugnado.

            Resulta do artº 127º do CPP que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»

Consagrando esta norma o princípio da livre apreciação da prova, devemos todavia acrescentar que o poder/dever que daí resulta não é arbitrário mas, antes, vinculado a um fim que é o do processo penal, ou seja, a descoberta da verdade. Por isso, mostrando-se devidamente fundamentado, o exercício desse princípio torna-se inalterável, desde que se mostre apoiado na prova produzida e não demonstre raciocínios inadmissíveis, ilógicos ou contraditórios, face às regras da experiência comum, da normalidade e do bom senso, que é o senso comum. Por outro lado, é sabido que o processo de formação da convicção do tribunal é complexo e dinâmico, já que nele intervêm simultaneamente a consideração da globalidade das provas produzidas e validadas em audiência, num ambiente de imediação e de oralidade, as regras da experiência e do senso comum, da normalidade do acontecer… de modo a procurar retratar e plasmar um ‘retalho da realidade’.

O juízo crítico final – que o acórdão descreve em termos de fundamentação - resultou do confronto entre os diversos meios de prova produzidos e bem assim da valoração intrínseca que, de acordo com as regras processuais aplicáveis e com aquele poder de livre apreciação, o tribunal entendeu ser o que decorria de um processo racional e lógico de formação da convicção, no qual tiveram interferência cambiantes de normalidade, razoabilidade e de senso comum. E não se vislumbra que a conclusão do silogismo judiciário haja sido tirada ao arrepio dessas regras e bem assim do artº 127º, do CPP.
            Face à falibilidade e fragilidade da prova produzida o tribunal recorrido concluiu que no nosso caso ocorre uma situação de incerteza probatória, que impede que a convicção do tribunal assente em provas válidas e sustentadas processualmente. Com efeito, o tribunal considerou os depoimentos ora reproduzidos pelo MP na sua impugnação factual para concluir que a sua conjugação não permite a retirada da conclusão probatória nos termos em que o recorrente pretende.

            O princípio processual penal e constitucional ‘in dubio pro reo’ tem como finalidade a salvaguarda dos direitos do arguido relativamente ao qual não existe prova suficiente de ser ele o autor dos factos acusados ou, de, pelo menos, estes não terem acontecido daquele concreto modo; no nosso caso, porque a conjugação das provas produzidas (não objectivadas, lógicas e resultantes da conjugação com as regras da experiência e do senso comum) não permitia ao tribunal dar como assentes os factos referentes a esse segmento factual, temos de concluir pela correcção do julgamento, no que a essa matéria de facto respeita. Não se trata de relevar uma ou outra prova, isoladamente considerada, mas antes, pelo contrário, de conjugar entre si diversas provas objectivas e objectivadas, como sejam os depoimentos das testemunhas referidas, conjugados com as demais provas circunstanciais eventualmente confirmatórias.

O acórdão é claro na afirmação da sua fundamentação.

Assim sendo, só remetendo esse segmento factual para os factos não provados o tribunal respeitará o princípio constitucional da presunção de inocência, de que aquele princípio de análise da prova é uma manifestação (artº 32º, 2, CRP). Não está em causa a prova da inocência do arguido mas antes a reunião de um conjunto de provas que permitam a sua condenação, por serem aquelas seguras, para além de qualquer dúvida razoável.

Impugnando a matéria de facto em causa, o recorrente dá integral e completo cumprimento às normas dos artºs 412º, 3 e 4, do CPP, indicando os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas em que se sustenta para o afirmar, o que faz por remissão para as concretas passagens das gravações efectuadas.

No entanto, a situação dos autos prende-se, na nossa perspectiva, mais com a questão do princípio da livre apreciação da prova (artº 127º, CPP) do que com a mera impugnação factual.

O recorrente poderia afirmar que as eventuais provas desconsideradas pelo tribunal, assim como aquelas que foram mal valoradas, deveriam ter conduzido a uma decisão probatória oposta (nesse segmento); mas, lida a fundamentação do acórdão, verificamos que o tribunal recorrido atentou nas provas produzidas, no mesmo sentido em que o faz o recorrente, delas retirando, contudo, diversa conclusão. Ou seja, mais do que uma questão de impugnação factual, estamos perante uma questão de convencimento probatório, de formação de uma convicção. E nesse aspecto, o tribunal foi extremamente cuidadoso na fundamentação do processo lógico/dedutivo que levou à extracção da conclusão em que se traduziu a sua convicção.

Ou seja, todos os depoimentos cujas transcrições parciais o MP leva a efeito no decurso da motivação do seu recurso foram considerados e devidamente valorados pelo tribunal colectivo. O que se concluiu é que o recorrente deles pretende retirar conclusão diversa daquela que retirou o tribunal.

Relativamente à factualidade atinente à testemunha C... , o tribunal foi expresso na indicação das razões pelas quais, considerando embora o seu depoimento, o desvalorizou em termos probatórios (entre o mais, a infirmação por parte do seu irmão F... , de que tivesse presenciado qualquer agressão sexual, muito embora a C... o colocasse nas circunstâncias e na ocasião dos factos, e bem assim a falta de confirmação do seu depoimento por outra prova circunstancial). Aliás, na sua motivação, o MP conclui no mesmo sentido que nós, ao deixar escrito que o que está em causa é a posição assumida pelo tribunal, que afastou a credibilidade da testemunha. Tal impôs-se ao tribunal por força daquele princípio que exige a segurança da prova incriminatória, para além de qualquer dúvida razoável.

No que concerne aos pontos d), e), f) e h) dos factos não provados e 10 da acusação, temos de concluir que as transcrições que o MP faz do teor da comunicação da CPCJ de K... ... , do relatório de avaliação psicológica e das declarações para memória futura da menor B... , se referem a comportamentos que poderão ser entendidos como ‘normais’ numa relação familiar do tipo da existente entre o arguido e a neta, num determinado meio social, destacando-se a linguagem cifrada usada pela menor, que pode denotar algum efabulamento, denunciado até por eventuais sugestões e considerada sempre a tenra idade da mesma (4 anos, na ocasião).

Ou seja, muito embora o tribunal pudesse valorar o depoimento da menor, cremos que seria um grande risco probatório dar como assente a ocorrência dos factos apenas baseado nesse depoimento, desacompanhado de outras provas circunstanciais confirmatórias. Por isso, bem andou o tribunal ao lançar mão do princípio in dubio pro reo.

Muito embora os actos do arguido, descritos pela neta, a terem ocorrido, não se possam dizer completamente anódinos em termos de normalidade do relacionamento avô/neta, é forçado concluir, como o faz o MP na sua motivação, que «não levantam qualquer dúvida acerca do carácter libidinoso e lascivo daqueles, sendo absolutamente contrários a quaisquer juízos de carinho ou brincadeira». É evidente que, para além de um limite mínimo inultrapassável em termos éticos e criminais, não podemos estabelecer padrões comportamentais baseados apenas na nossa sensibilidade pessoal; temos de entender que esses padrões variam no tempo e no espaço e que a natureza libidinosa e lasciva dos comportamentos há-de resultar de forma concludente dos próprios actos. E isso não acontece no nosso caso, pelo menos de forma que se possa considerar segura.

Relativamente ao ponto 17 da acusação pública, o MP, embora referindo que nessa parte foi proferido despacho de arquivamento, pretende que seja dada como provada a respectiva factualidade; afirma que essa factualidade ‘contextualiza’ os factos e ‘credibiliza os restantes testemunhos’, além de que agrava a culpa do arguido (!).

            Tais factos, contudo, não dizem respeito á factualidade em discussão nos autos (até dada a falta de legitimidade do MP), pelo que não podem servir como elementos corroborantes, usados para fundamentar a convicção do tribunal; outro entendimento seria ilegal, por violador da ‘cezure’ imposta pela norma do artº 368º do CPP, pois que se partiria da análise da culpa (eventual culpa na formação da personalidade) para daí se extrair a prova dos factos. A ordem legal impõe que primeiramente se apreciem os factos em termos naturalísticos e só após se proceda á análise da culpa.

            Face a tudo o que se disse, é manifesto que não pode proceder a pretensão do recorrente relativamente ao facto não provado em k), pois que este, referindo-se ao elemento subjectivo do tipo, pressupõe a prova do elemento objectivo, o que vimos já não acontecer.

            Prossegue o recorrente colocando em causa o entendimento, defendido no acórdão, de que ocorre concurso aparente ou de normas entre os crimes de violência doméstica e de coacção.

Estabelecendo o quadro teórico dentro do qual nos iremos movimentar, procederemos a um breve esboço definidor do conceito de concurso em direito penal.

            Por regra, a actuação do agente traduz-se na violação de uma só norma jurídica mediante a prática de um só acto, estando nós, então, perante um caso de unidade de infracção. Casos existem, todavia em que ocorre violação de diferentes normas legais, realizada mediante acções separadas, ocorrendo, então um concurso real. Outros existem em que uma só acção é objecto de várias apreciações jurídico-criminais, por violar várias vezes o mesmo preceito, falando-se, então, em concurso ideal homogéneo; se não obstante a unidade da acção ocorre violação de uma pluralidade de normas, estamos perante um concurso ideal heterogéneo.

            Ocorre concurso aparente se a acumulação de normas aplicáveis à mesma acção é tão-só «aparente», não se estando face a um concurso ideal mas a um mero concurso legal, de normas ou de leis.

            Entre outras definições, cuja análise agora não importa fazer, e sempre dentro deste último conceito de pluralidade aparente de infracções, estamos perante uma relação de consunção [entre as normas em concurso aparente] se se apresentam ao mesmo tempo, para se aplicarem a uma determinada situação de facto, diversos tipos de crime, encontrando-se os respectivos bens jurídicos, uns relativamente aos outros, em tais relações que pode suceder que a reacção contra a violação concreta do bem jurídico realizada pelo tipo enformado pelo valor menos vasto se efective já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicos mais extensos. A eficácia da consunção não só está dependente da circunstância de, efectivamente, concorrerem dois preceitos cujos bens jurídicos se encontrem numa relação de mais para menos, mas também de que, no caso concreto, a protecção visada por um seja esgotada, consumida pelo outro. (Como exemplo, habitualmente, refere-se que os crimes de dano consomem os de perigo, os crimes de resultado consomem os crimes formais, etc.).

            Da breve resenha a que atrás procedemos, logo se vislumbra que a aplicação deste regime está dependente da apreciação concreta do âmbito de protecção da norma, sendo então determinante a averiguação dos interesses protegidos pela incriminação [determinação do bem jurídico protegido], pois que só deste modo se verá se os interesses protegidos pelo tipo de ilícito com previsão mais ampla contém em si, ou não, os protegidos pela norma de previsão mais singela. Isto sem esquecer que a norma legal definidora (artº 30º, 1, CP) estabelece que o numero de crimes se determina «pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo numero de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

            Foi partindo desta apreciação que a jurisprudência mais avisada tem vindo a estabelecer como critério diferenciador o referido critério: «o número de crimes vai determinar-se pelo número de valorações que correspondem a uma certa conduta no plano jurídico-penal; se só um bem jurídico é negado, só é cometido um crime, se há uma pluralidade de bens jurídicos negados há pluralidade de crimes». (ac. Relação Porto de 5/2/2003, CJ-I-218).

            No acórdão recorrido ficou escrito, entre o mais, o seguinte:

Como refere Américo Taipa de Carvalho([1]) pretendeu-se com a criminalização prevenir a violência no âmbito da família, fenómeno pernicioso para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar da vítima [2].

O bem jurídico protegido pelo tipo de crime de violência doméstica e maus-tratos é a pessoa enquanto indivíduo e a sua dignidade enquanto ser humano ([3]).

Para que se verifique a prática deste crime exige-se um concreto tipo de relação entre agente e vítima, sendo atualmente desnecessária a reiteração ([4]) das condutas (“de modo reiterado ou não”), sendo subsumível a este tipo criminal uma só conduta "agressora" que, pela sua gravidade (especial intensidade [5]), mereça esta especial tutela e punição.

A razão da autonomização do crime de violência doméstica e maus-tratos reside na reiteração ou gravidade das condutas, que pela sua periodicidade ou especial intensidade impedem ou dificultam o normal e saudável desenvolvimento da personalidade, ou seja, afecta a dignidade pessoal, prejudicando o seu bem-estar.

            (…)

O arguido vem também acusado de um crime de coação agravado, p. e p. pelo art.154.º e 155.º, n.1 al.a), ambos do Código Penal.

Contudo, tal conduta, reportada ao constrangimento violento da companheira para desmentir perante a assistente social a denuncia antes efetuada, mais não configura do que uma das muitas formas em que se traduzem os maus tratos físicos e psíquicos que lhe infligiu, desta feita condicionando a sua liberdade de ação e autodeterminação, um dos elementos mais visíveis do bem jurídico complexo tutelado pelo crime de violência doméstica, havendo um relação de concurso aparente com o aludido crime de coação agravado.

O arguido vinha acusado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código Penal.

Nos termos dessas normas:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: (…) b) a pessoa com quem o agente mantenha uma relação análoga à dos conjuges (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”

Analisada a previsão normativa cremos poder concluir que os bens jurídicos protegidos são, por um lado, a dignidade pessoal das vítimas e, por outro, a paz familiar, como decidiu o Tribunal Supremo espanhol (STS de 11/3/2003, Ponente Sánchez Melgar).

Se o bem jurídico protegido pelo tipo de crime de violência doméstica é a pessoa enquanto indivíduo e a sua dignidade enquanto ser humano, já o bem jurídico protegido pelo crime de coacção é a liberdade de decisão e de acção (v. Comentário… pag. 354).

            Analisadas as previsões legais de cada um dos tipos [e desta forma confrontados os bens jurídicos que a norma visa proteger], verificamos que o crime de violência doméstica tem um âmbito de protecção mais abrangente do que o de coacção, razão pela qual, e dada a mais gravosa punição do primeiro, se deve entender que ocorre consunção do último pelo primeiro; como atrás dissemos, quando se apresentam ao mesmo tempo, para se aplicarem a uma determinada situação de facto, diversos tipos de crime, encontrando-se os respectivos bens jurídicos, uns relativamente aos outros, em tais relações que pode suceder que a reacção contra a violação concreta do bem jurídico realizada pelo tipo enformado pelo valor menos vasto se efective já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicos mais extensos, a previsão deste há-de consumir a daquele.

            No nosso caso, estando em causa crime de violência doméstica, temos de concluir que cabem nessa clausula em branco [maus tratos físicos ou psíquicos] todas as condutas do agente que, revestindo-se da gravidade prevista na norma, não a excedem de forma particular, de forma a permitir destacar essa mesma conduta para efeitos de punição autónoma. Referimo-nos aos casos em que, nos termos da previsão legal, a esses factos cabe pena mais grave do que a prevista na moldura, «por força de outra disposição legal». (artº 152º, 1, epílogo, do CP). Não é o nosso caso em que a punição do crime de coacção, mesmo agravado (artº 155º, 1, CP), não é mais gravosa do que aquela que cabe violência doméstica do artº 152º, 2, do CP.

            Não se nos afiguram procedentes, por isso, as razões invocadas pelo recorrente. Invoca este, entre o mais, que a relação de especialidade que permite falar em relação de consunção se estabelece apenas com o crime de coacção simples, assim excluindo a coacção agravada (e cita, a propósito, Paulo Pinto de Albuquerque, ‘Comentário ao Código Penal …’). Este autor, com efeito, apenas refere os crimes de coacção simples; mas, na nossa interpretação, só será de considerar o entendimento segundo o qual, sendo o crime de coacção praticado ao abrigo da ‘nuvem’ que constitui o crime de violência doméstica, que inclui as condutas tipificadas e todas as demais que se possam fazer integrar no amplo conceito de ‘maus tratos’, só se poderá destacar a conduta em causa para efeitos de punição autónoma, havendo assim lugar ao concurso efectivo ou de crimes, nos casos em que lhes caiba pena mais grave por força de outra disposição legal. Mas, repare-se, esse não é o nosso caso, em que ao crime de violência doméstica agravada cabe pena de 2 a 5 anos de prisão, cabendo ao crime de coacção agravada pena ligeiramente mais benévola para o agente, pois que o mínimo da moldura se fica por 1 ano. (assim sendo, o entendimento do referido autor deve referir-se ao eventual concurso do crime de violência doméstica simples com o crime de coacção agravada, caso em que são oponíveis as objecções que atrás referimos, e já não relativamente ao concurso do crime de violência doméstica agravada com o crime de coacção agravada).

            Assim sendo, somos do entendimento de que ocorre a referida consunção, a qual apenas será afastada (verificando-se nesses casos concurso efectivo) nos casos em que uma qualquer das condutas que integra a ‘nuvem’ do crime de violência doméstica possa ser destacada para efeitos de punição autónoma com pena mais grave do que aquela que cabe ao crime de previsão mais compreensiva.

            Como última questão, e na expectativa da procedência da impugnação factual, pretende o recorrente que sejam aplicadas aos crimes de abuso sexual de criança agravado e de coacção agravado as penas que propõe (mantendo-se as condenações constantes do acórdão) reformulando-se, em consequência, o cúmulo jurídico.

            No entanto, improcedendo essas duas questões (impugnação factual relativamente aos crimes de abuso sexual e concurso de crimes entre a violência doméstica e a coacção), mostra-se prejudicada a análise desta última questão, que pressupunha a sua procedência.

            Termos em que, nesta Relação, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra o douto acórdão recorrido.

            Recurso sem tributação.

Jorge França (relator)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)


[1] Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 329.
[2] Ocupando-se da violência conjugal, Ana Paula Guimarães, in “Da impunidade à impunidade? …”, Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pg.859-860, recorda: “Sentimentos como a vergonha, o conformismo e a resignação levam as vitimas a ocultarem os factos e a sofrerem em silêncio. Clamando interiormente por protecção, segurança e defesa, em nome, talvez, de uma desejada estabilidade familiar, ficam-se pela apatia. Acresce que, em grande parte dos casos, as vítimas, pessoas particularmente vulneráveis, carentes afectivamente e dependentes economicamente, são alvo fácil da autoridade, domínio e influência do agressor. Essa fragilidade e dependência, por um lado, e a inacção (…) face à repetição da conduta daquele, por outro, facilitam e estimulam a con­tinuidade da actividade criminosa”.
[3] No quadro da reforma penal introduzida pela Lei nº59/2007, de 4 de Setembro, Plácido Conde Fernandes, in Violência Doméstica, Revista do CEJ, nº8 (Especial), 2008 – Jornadas sobre a revisão do Código Penal, pg.305, escreve ser o bem jurídico aqui protegido a saúde (saúde física, psíquica, emocional e moral), enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tractos cruéis, degradantes ou desumanos.
[4] Entendida como estado de agressão permanente, sem que as agressões tenham que ser constantes, embora com uma proximidade temporal relativa entre si.
[5] Plácido Conde Fernandes, in ob.cit., pg.308, refere que a intensidade da ofensa exigida o a verificação típica, respeitando um parâmetro objectivo, dependerá das circunstancias do caso concreto, entendendo que “um único acto ofensivo – sem reiteração – para poder ser considerado maus tractos e, assim, preencher o tipo objectivo, continua, na redacção vigente, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana”.