Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
18/06.0PELRA
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
RECUSA
Data do Acordão: 01/16/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA – JIC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGO 43º CPP
Sumário: 1- A intervenção do juiz de instrução no nosso sistema processual penal de estrutura acusatória integrado pelo princípio de investigação assume função essencialmente garantística.
2- Não se vê que a concreta actuação do Meret.º Juiz de Instrução, que durante o inquérito ordenou e validou escutas, ordenou e validou as vigilâncias juntas aos autos, ordenou buscas e detenções, presidiu ao primeiro interrogatório judicial do arguido onde lhe aplicou a medida de coacção prisão preventiva, bem como revalidou esta sua decisão constitua, motivo sério e grave capaz de colocar o cidadão de formação média perante a suspeita de que a sua apreciação será condicionada por factores alheios ao Direito.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
[1] No decurso do processo com o nº 18/06.0PELRA, através de requerimento apresentado em 17/12/2007, veio o A..deduzir incidente de recusa de juiz, evocando as disposições conjugadas dos artºs. 43º, nº3 e 44º do CPP.
[2] O termos desse requerimento foram os seguintes Transcrição.:
1º Com todo o respeito que nos merece o Meret.º Juiz de Instrução do Tribunal Judicial de Leiria, não pode a defesa deixar de apresentar o presente incidente, pois não se trata de qualquer fundamento fútil ou meramente dilatório, mas sim factos concretos, alegados em sede de instrução pelo Arguido, que impõem uma apreciação isenta, mas sobretudo que as mesmas sejam apreciadas por quem não teve qualquer intervenção nas questões colocadas em crise.

2º Pelos factos alegadamente praticados pelo Arguido A.., mencionados na acusação Pública, encontra-se este acusado da prática de um crime de tráfico agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21º, n.º 1 e 24º, alíneas b) e c) do DL 15/93 de 22 de Janeiro.

3º O Arguido A.., aquando da notificação da acusação, requereu a abertura de instrução nos presentes autos.

4º O Arguido A.., no seu requerimento de abertura de instrução invocou várias nulidades, onde se destacam a nulidade das intercepções telefónicas, nomeadamente de todas as sessões a que se reportam os alvos a saber: Alvo 31 180M; Alvo 11 224M; Alvo 31 006M; Alvo 11 484M; Alvo 1J 194M; Alvo 11 639M; Alvo 11 511M; Alvo 11 223M; Alvo 11 511M; Alvo 31 227M; Alvo 31 777M; Alvo 31 778M; Alvo 11 224 1E; Alvo 11 223 1E, Alvo 30 6601E; Alvo 11 6391E; Alvo 31 0061E; Alvo 1J 1941E; Alvo 31 1801E; Alvo 31 2271E; Alvo 31 7771E e Alvo 31 7781E pelos motivos expostos no requerimento de abertura de instrução, e ainda, considerando estas nulidades, teriam de ser retirados dos relatórios de vigilância as transcrições das escutas efectuadas nos mesmos, nomeadamente nos de fls 7, 9, 16, 50, 51, 65, 66, 139, 143, 152, 205, 229, 281, 295, 331, 336, 345, 347, 388, 391, 436, 446, 481, 485, 488, 496, 506, 543, 545, 602, 618, 1112, 1115, 1224, 1315, 1316, 1321, 1325, 1328, 1383, 1400, 1438, 1440,1445, 1493, 1496, 1534, 1568, 1642, 1648, 1652, 1659, 1660, 1691 e 1696.

5º O arguido A.., além destas, arguiu outras nulidades, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, melhor explanadas no requerimento de abertura de instrução.

6º O Meret.º Juiz de Instrução, durante a fase de inquérito, no âmbito da investigação, proferiu vários despachos, que tiveram como alvo o Arguido A.., a saber:

a) despacho de fls. 41 a 43 que ordenou a visualização de imagens;

b) despacho de fls. 77 a 83, onde validou as visualizações e ordenou escutas telefónicas e visualização de imagens;

c) despacho de fls. 117 a 123, onde validou escutas e ordenou escutas telefónicas e visualização de imagens;

d) despacho de fls. 187 a 193, onde validou escutas e ordenou escutas telefónicas e visualização de imagens;

e) despacho de fls. 260 a 267, onde validou escutas e ordenou escutas telefónicas e visualização de imagens;

t) despacho de fls. 312 a 319, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas;

g) despacho de fls. 369 composto por 7 folhas, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas e visualização de imagens;

h) despacho de fls. 417 a fls 423, onde validou escutas e ordenou escutas telefónicas;

i) despacho de fls. 578 a 587, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas e visualização de imagens;

j) despacho de fls. 646 a 654, onde validou escutas;

I) despacho de fls. 760 a 762, onde validou escutas;

m) despacho de fls. 891 a 903, onde validou escutas e ordenou escutas telefónicas;

n) despacho de fls. 1086 a 1091, onde validou escutas e ordenou escutas telefónicas;

o) despacho de fls. 1165 a 1172, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas e visualização de imagens;

p) despacho de fls. 1274 a 1280, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas;

q) despacho de fls. 1365 a 1373, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas;

r) despacho de fls. 1413 a 1421, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas e visualização de imagens;

s) despacho de fls. 1464 a 1472, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas;

t) despacho de fls. 1519 a 1525, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas e visualização de imagens;

u) despacho de fls. 1594 a 1601, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas;

v) despacho de fls. 1605 a 1616, onde ordenou busca domiciliária à residência do Arguido, aos seus alegados veículos, ordenou a emissão de mandado de detenção para o Arguido;

x) despacho de fls. 1673 a 1681, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas e visualização de imagens;

z) despacho de fls. 1711 a 1718, onde validou escutas e imagens e ordenou escutas telefónicas e visualização de imagens;

aa) despacho de fls. 1935 a 1938, onde validou escutas e ordenou escutas telefónicas;

bb) Presidiu ao 1º Interrogatório Judicial de fls 1944 a 2028, que aplicou ao Arguido a medida de coacção prisão preventiva;

cc) despacho de fls. 2595 a 2602, onde renovou a medida de coacção ao Arguido;

dd) despacho de fls. 2723 a 2729, onde renovou a medida de coacção ao Arguido;

ee) despacho de fls. 3048 a 3057, onde renovou a medida de coacção ao Arguido;

ff) despacho de fls. 3314 a 3320, onde renovou a medida de coacção ao Arguido;

gg) despacho de fls. 3347 a 3349, onde pretende atribuir especial complexidade, ainda não transitado em julgado, pois o Arguido interpôs recurso deste despacho;

ff) despacho de fls. 3314 a 3320, onde renovou a medida de coacção ao Arguido;

7º O Meret.º Juiz de Instrução, durante todo o inquérito, mesmo desde o seu início, ordenou e validou escutas, ordenou e validou as vigilâncias juntas aos autos, ordenou buscas e detenções, presidiu ao primeiro interrogatório judicial do Arguido A.. onde lhe aplicou a medida de coacção prisão preventiva, bem como revalidou esta sua decisão até à presente data.

8º Durante a fase de inquérito o Meretº Juiz de Instrução, actuou em bloco com o Ministério Público e forças policiais e perdeu equidistância em relação ao processo, comportando-se em todo o inquérito com um "juiz de investigação".

9º Face à intervenção do Meret.2 Juiz na fase de inquérito, não se compadece que seja o mesmo Juiz, nesta fase processual a apreciar as questões suscitadas, não podendo o mesmo ser reputado de imparcial.

10º Ainda mais quando o Arguido no seu requerimento de abertura de instrução, coloca em crise despachos proferidos pelo Meret.º Juiz de Instrução na fase de Inquérito, não podendo assim, nem devendo, ser este a apreciar as suas próprias decisões.

11º Seria absolutamente incompreensível tal atitude, pois seria estar a julgar-se a si próprio.

12º Com as alterações ao Cód. Processo Penal o arguido fica sem possibilidade de recorrer desta decisão, reforçando-se assim o afastamento do Meret.º Juiz para uma decisão justa, isenta e que analise as questões formais suscitadas de forma distante do calor do inquérito e do interesse acusatório.

13º Os requisitos da "recusa", que é o incidente provocado por um sujeito processual, neste caso pelo Arguido A.., devem ser, portanto, atendendo à excepcionalidade da situação, interpretados com o máximo rigor legal.

14º Para que possa ser pedida a recusa de Juiz, é necessário que:

- a sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita;

- por se verificar motivo, sério e grave;

- adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

15º Assim, dispõe o artigo 43º, nº 1, do CPP, que «a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade».

16º Esta disposição prevê um regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que possa ser colocada em dúvida a imparcialidade do juiz; tem, como os impedimentos, uma função de garantia da imparcialidade, aliás assim expressamente referida na epígrafe do Capítulo VI do Título II, artigos 1222 a 1362 do Código de Processo Penal.

17º Motivo "sério", na acepção que lhe é conferida maioritariamente, configura um estado de empenho, brio, dedicação relativamente a qualquer assunto ou situação da vida real e que transmite uma ideia de rigor e sentido de arrimo aos valores de probidade e honestidade com que aborda e assume uma tarefa que lhe conferida.

18º Extrapolando deste conceito para o fundamento legal estabelecido no art. 432 do CPP poder-se-á dizer que existe motivo sério para que uma parte requeira a recusa de intervenção de um juiz quando este deixe de estar ornado com aqueles atributos de imparcialidade, rigor, isenção, probidade intelectual e cívica e sentido de justiça que devem exornar e vestir o julgador no seu múnus jurisdicional.

19º Assim, no acórdão do STJ, de 27-04-2005, proferido no processo 909/05, doutrinou-se, relativamente à questão da necessidade de manutenção de uma postura de imparcialidade de um julgador, na sua actividade judicante, que: «1 - A consagração do princípio do juiz natural ou legal (intervirá na causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência legal e anteriormente estabelecidas) surge como uma salvaguarda dos direitos dos arguidos, e encontra-se inscrito na Constituição (art. 32.º, n.º 9 - "nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior"). 2 - Mas a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos desse princípio levou à necessidade de os acautelar através de mecanismos que garantam a imparcialidade e isenção do juiz também garantidos constitucionalmente (art.s 203.º e 216.º), quer como pressuposto subjectivo necessário a uma decisão justa, mas também como pressuposto objectivo na sua percepção externa pela comunidade, e que compreendem os impedimentos, suspeições, recusas e escusas. Mecanismos a que só é licito recorrer em situação limite, quando exista motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

20º O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), relativamente à imparcialidade

garantida no referido art. 6°, § 1, entende que esta deve apreciar-se de um duplo ponto de

vista: aproximação subjectiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião; e também, segundo uma apreciação objectiva, isto é se ele oferece garantias bastantes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima. E também tem dito que o Tribunal não tem por missão examinar in abstracto a legislação e a prática pertinentes, antes a de averiguar o modo como elas são aplicadas ao interessado ou infringem.

21º O que conta é a extensão e a natureza das medidas tomadas pelo juiz antes do processo.

22º O TEDH tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário, e que sendo assim, a imparcialidade objectiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e de abstracção na formulação de conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise in concreto das funções e dos actos processuais do juiz. As dúvidas sobre a imparcialidade no plano objectivo apenas se poderão suscitar formalmente sempre que o juiz desempenhe no processo funções ou pratique actos próprios da competência de outro órgão ou tenha tido intervenção no processo numa outra qualidade; não integrando qualquer destas hipóteses o caso em que o juiz exerce no processo uma função puramente judiciária, integrada tanto processualmente como institucionalmente na mesma fase para a qual o sistema nacional de processo penal lhe atribui competência." (Ac. do STJ de 13-01-1998, proc. Nº 877/97)».

23º Já no acórdão do STJ, de 13-04-2005; proferido no processo nº 1138/05, se deixou escrito que: «1. O pedido de escusa do juiz para intervir em determinado processo pressupõe, só poderá ser aceite, quando a intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar, dúvidas sobre a sua imparcialidade, ou quando tenha tido intervenção anterior no processo fora dos casos do artigo 40.º do Código de Processo Penal - artigo 43.º, nºs. 1, 2 e 4 do mesmo diploma.

24º A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que num interessado - ou, mais rigorosamente, num homem médio colocado na posição do destinatário da decisão possam razoavelmente suscitar-se dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão.

25º As aparências são, neste contexto, inteiramente de considerar, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e «grave») para impor a prevenção.

26º Na abordagem objectiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si.

27º As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e «grave») para impor a prevenção.

28º Conforme se considerou no Acórdão deste Supremo de 26/02/04. Proc. Nº 4429/03 – 5ª, «a gravidade e seriedade do motivo de que fala a lei, hão-de ser aferidas em função dos interesses colectivos, mormente do bom funcionamento das instituições em geral e da Justiça em particular (...)». E no Acórdão de 09/12/04, Proc. Nº 4540/04-5ª, escreveu-se que «não basta um puro convencimento subjectivo (...) tendo de haver uma especial exigência quanto à objectiva gravidade da invocada causa de suspeição». É que do uso indevido do incidente pode resultar «a lesão do princípio constitucional do juiz natural, ao afastar o juiz por qualquer motivo fútil.

29º Não são estes os objectivos do Arguido A.., pois nada de pessoal tem a desfavor da pessoa do Meret.º Juiz de Instrução, apenas pretende que sobre as questões suscitadas no seu requerimento de abertura de instrução tenha uma decisão justa e equidistante, pois não se conforma com o facto de invocar nulidades praticadas em sede de inquérito que foram ordenadas e validadas pelo Meret.º Juiz que agora iria presidir à instrução.

30º Para garantir a imparcialidade do juiz é necessário que este não tenha na causa um qualquer interesse público ou institucional. Em particular, é necessário que não tenha um interesse acusatório, e que por isso não exercite simultaneamente as funções de acusação, como, pelo contrário ocorre no processo inquisitivo e, ainda que seja de maneira ambígua, também no misto. Só assim pode o processo conservar um carácter "cognoscitivo" ou, como diz Beccaria, "informativo" e não degenerar em "processo ofensivo", donde "o juiz se faz inimigo do réu"».

31º O Arguido A.. entende que o Meret.º Juiz de Instrução tem um interesse acusatório, nomeadamente na manutenção dos actos ordenados e validados por ele.

32º Por outro lado quem melhor faz o julgamento dos seus actos não será, certamente, o próprio, mas aqueles que observam o seu proceder e agir funcional. Só a intervenção desapaixonada e humilde no múnus de julgar encarecerá a função e reverberará para os demais como exemplo de sensatez e equidistãncia pessoal dos conflitos que lhe são postos para decisão.

33º Recorrendo, por exemplo, ao seu Acórdão n.º 124/90 (Diário da República, 2.a série, de 8 de Fevereiro de 1991), verificamos que sempre o Tribunal Constitucional observou que «num Estado de Direito, a solução jurídica dos conflitos há-de, com efeito, fazer-se sempre com observância de regras de independência e de imparcialidade, pois tal é uma exigência do próprio direito de acesso aos tribunais, que a Constituição consagra no artigo 20.º, n.2 1 d), neste sentido, o Acórdão n.º 86/88 deste Tribunal, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Agosto de 1988). A garantia de um julgamento independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão - e dimensão importante - do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, para o processo criminal, pois este tem que ser sempre a due process of law.

34º Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência e imparcialidade. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que, a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais, ao «administrar a justiça», actuem, de facto, «em nome do povo» (art. artigo 205.º, n.º 1, da Constituição)».

35º É com este objectivo de garantir a imparcialidade do julgador que a lei prevê, no caso do Processo Penal, o regime dos «impedimentos, recusas e escusas» (artigos 39.9 e segs. do respectivo Código); e foi justamente a propósito das normas respectivas, sobretudo, que se desenvolveu a jurisprudência constitucional relevante (d., por exemplo, para a história da jurisprudência relativa ao artigo 40º do Código de Processo Penal, que prevê o «impedimento por participação em processo», o Acórdão n.2 297/2003, Diário da República, 2.a série, de 3 de Outubro de 2003)».

36º Atentos os factos e os motivos supra invocados, o que imposta é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciados pelos factos invocados, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique.

37º Nos presentes autos verificam-se, na nossa modesta opinião, uma clara suspeição em qualquer decisão que tome nos presentes autos o Meret.º Juiz de Instrução.

38º Sendo o Meretº Juiz de Instrução a apreciar o requerimento de abertura de instrução estamos perante uma clara violação da Constitucionalidade, donde se realçam os já supra citados, entre eles o princípio da defesa e da independência dos tribunais.

Pelo que, e face ao supra exposto, deverá ser deferido o incidente de recusa de juiz.

[3] O incidente vem instruído com certidão das peças processuais indicadas no requerimento, da acusação e do requerimento de abertura de instrução.
[4] O Sr. Juiz visado pronunciou-se sobre o requerimento, considerando inexistir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
[5] Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer, no sentido da improcedência da recusa.
[6] Não foi requerida a produção de qualquer outra prova nem se mostra necessária.

II. Fundamentação
[7] Nos termos do artº 43º nº1 do CPP, «A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade». A este dispositivo, a revisão do CPP efectuada pela Lei 59/98, de 25/8, juntou aquele constante do nº 2 do preceito: «Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artº 40º».
[8] O normativo supra referido e a exigência de verificação de «motivo sério e grave» procura encontrar o equilíbrio – a concordância prática – entre a dignidade constitucional conferida ao princípio do Juiz Natural (artº32º, nº9, da CRP) e o direito a que a causa seja decidida por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, como consagrado no artigo 6.º§1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artº 203º da CRP. A imparcialidade do juiz significa que este é um terceiro alheio à solução da questão, sem posição de partida sobre o conflito de interesses que é submetido.
[9] No entanto, a imparcialidade comporta várias perspectivas ou aproximações, consoante o foco de observação.
[10] Numa aproximação subjectiva, como refere o STJ em aresto de 29/03/2006Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, ano XIV, I, pág. 220 a 222, aresto que acompanharemos de perto., «(...) a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro íntimo perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado».
[11] A imparcialidade comporta igualmente uma dimensão objectiva, em que relevam as aparências, traduzida no adágio justice must not only be done; it must also be seen to be done. Refere o STJ na mesma decisão «Na aproximação objectiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si».
[12] Mas, dito isto, importa estar atento ao alerta aí também lançado: «A imparcialidade objectiva apresenta-se, assim, como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o “ser” e o “parecer”. Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objectiva, que poderia ser devastadora, e para não tombar na “tirania das aparências” (...) ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou os motivos invocados, sejam, em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação – a garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser».
[13] Assim, e conforme já se decidiu nesta Relação Acórdão de 2 de Dezembro de 1992, C.J., Ano XVII, V, pág.. 93. «o simples receio ou temor de que o juiz, no seu subconsciente, já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum, não pode servir de fundamento para a recusa deste. Há que demonstrar e provar elementos concretos que constituam motivo de especial gravidade e que possam gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz (…)».
[14] À luz destas considerações, importa tomar o requerimento formulado pelo arguido A.., começando por constatar que não são oferecidos quaisquer factos específicos como motivação para a pretendida recusa, para além da indicação de que o juiz responsável pela instrução é o mesmo que assegurou a prática dos actos jurisdicionais em inquérito, altura em que «actuou em bloco com o Ministério Público», e da afirmação de que tem a sua visão condicionada por «interesse acusatório, nomeadamente na manutenção dos actos ordenados e validados por ele».
[15] O que pretende significar-se com a expressão «actuação em bloco»? Significa mais do que a concordância com a promoção e prolação de actos jurisdicionais, muitos deles recorríveis, como acontece com a determinação, manutenção da prisão preventiva e declaração de excepcional complexidade? Cremos que não. Perante os termos do requerimento, ficamos com total ausência de factos pessoais concretos que fundamentem qualquer atitude particular do juiz visado, afastada da interpretação e aplicação da lei que considera mais correcta.
[16] Assim, desde logo porque não são alegados quaisquer factos, não se vislumbra qualquer compromisso da imparcialidade subjectiva do juiz titular da instrução.
[17] Porém, como se disse, o requerente evoca igualmente a tutela da aparência, por apelo à consideração de que o juiz de instrução tem interesse na validade dos seus próprios actos, praticados durante o inquérito.
[18] Mais uma vez, nenhum facto oferece em suporte dessa afirmação, sendo certo que a sua maior «preocupação» reside num plano exterior ao deste incidente, a saber, na ausência de recurso da decisão instrutória, mesmo relativamente a nulidades.
[19] Ora, a intervenção do juiz de instrução no nosso sistema processual penal de estrutura acusatória integrado pelo princípio de investigação assume função essencialmente garantística e, no caso, não se vê que a concreta actuação evocada pelo requerente tenha-se desviado dessa posição nem que da actuação do juiz durante o inquérito derive, sem mais, qualquer interesse na decisão das nulidades suscitadas no requerimento de abertura de instrução e, então, motivo sério e grave capaz de colocar o cidadão de formação média perante a suspeita de que a sua apreciação será condicionada por factores alheios ao Direito.
[20] Como se refere no requerimento, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário Sobre a jurisprudência do T.E.D.H., cfr. o Acórdão do STJ de 9/1272004, Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, ano XII, I, págs. 241 e segs. Tomando a jurisprudência mais recente, cfr. GALSTYAN v. ARMENIA, de 15/11/2007, http://www.echr.coe.int. , devendo acrescentar-se que a jurisprudência desse tribunal versa primordialmente a imparcialidade do juiz de julgamento, pois é em relação ao mesmo que prevalecem as exigências de «fair trial».
[21] Aliás, no raciocínio maximalista proposto, para obter a recusa de juiz bastaria ao sujeito processual desagradado com qualquer decisão ou conhecedor de que o julgador já decidira em sentido contrário ao pretendido arguir a nulidade de acto anteriormente praticado por aquele, argumentando depois que não se poderia julgar a si próprio, o que avulta como claramente infundado e abusivo.
[22] Face ao exposto, cumpre concluir pela ausência de motivo grave ou sério para gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz visado e pela manifesta improcedência do incidente que, assim, deve ser recusado (artº 45º, nº3, do CPP).
[23] Porque em situação de prisão preventiva, o requerente beneficia de isenção nos incidentes (artº 522º, nº2, do CPP). Essa isenção não abrange, porém, a sanção cominada no artº 45º, nº7, do CPP para as situações em que, como no caso em presença, existe abuso do regime da recusa de juiz.

III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em recusar, por manifestamente infundado, o requerimento de recusa formulado pelo arguido A..

Condena-se o requerente nos termos do artigo 45.°, n.º 7 do C.P.P., no pagamento de 8 (oito) UCs.