Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2261/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 10/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTº 19º DO DL Nº 522/85, DE 31/12 .
Sumário: I – A acção de regresso prevista no artº 19º do DL nº 522/85, de 31/12, não é uma acção de indemnização por danos, mas sim uma acção em que a seguradora exige o reembolso do que pagou porque o risco que contratualmente assumiu não se compagina com os comportamentos do segurado tipificados nesse texto legal .
II – O fundamento do direito de regresso da seguradora traduz-se no facto de o seu segurado ter causado o acidente, do qual resultaram danos e o pagamento da indemnização subsequente, por ter agido sob a influência do álcool .

III – para o efeito importa apurar se a condução do segurado sob o efeito do álcool foi ou não causa adequada do acidente ou se contribuiu para essa ocorrência, cabendo à seguradora esse ónus da prova .

IV- À luz de regras técnico-científicas é sabido que um condutor com taxa de alcoolémia de 1,5 a 3 grs./l sofre de torpor alcoólico e de dupla visão, com acentuada quebra da capacidade reflexiva para a condução, o que potencia o risco de acidentes .

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - RELATÓRIO
I.1- A «A....», instaurou a presente acção declarativa, com processo sumário, contra B..., pedindo a condenação deste a pagar-lhe o montante de 7.327,72 euros referente à indemnização que pagou relativamente aos danos sofridos pelos outros intervenientes em acidente de viação, em que o réu seu segurado foi igualmente interveniente, acrescido de juros à taxa legal, desde 17/10/01 (data em que interpelou o réu para pagar a aludida quantia), até integral pagamento.
Alega, em síntese, que no exercício da sua actividade realizou com a empresa «Salitur, Ldª» um contrato de seguro referente ao veículo automóvel de matricula 54-10-PG; que no dia 17 de Janeiro de 2001, cerca das 2h10m, na Av. do Brasil, em Lousã, o referido veículo, conduzido pelo réu, provocou um determinado acidente da sua inteira responsabilidade, uma vez que foi embater num outro veículo que seguia à sua frente, de matrícula GNR-L0773 que circulava na aludida artéria.
O réu apresentava no momento do acidente uma taxa de álcool no sangue de 2,03g/l, tendo assim agido sob a influência do álcool, invocando a A. a seu favor direito de regresso contra aquele.
O réu contestou, afirmando ser falso que tenha sido responsável pelo acidente, e dizendo que apesar de se encontrar a conduzir com a referida taxa de álcool no sangue, isso em nada contribuiu para o acidente. Alega que seguia pela dita Av. do Brasil, quando surgiu do seu lado esquerdo o veículo com a matrícula GNR, tendo acedido à via por onde ele seguia, sem respeitar o sinal stop que existia no final da via por onde anteriormente seguia. Acrescenta que viu a via ser repentinamente obstruída pelo veículo GNR, não tendo conseguido evitar o embate.
Foi proferido o despacho saneador e organizou-se a matéria de facto assente, dispensando-se a fixação da base instrutória.
Realizado o julgamento e decidida a matéria de facto controvertida sem reparos das partes, proferiu-se sentença na qual se julgou a acção improcedente.
I.2- Inconformada, a A. recorreu de apelação, e na minuta apresentada conclui, resumidamente, nos termos seguintes:
1ª- No cumprimento do contrato de seguro, o segurado, além de pagar o prémio, deve agir de boa fé evitando comportamentos que agravem o risco coberto pela apólice;
2ª- A lei define clara e taxativamente os comportamentos que estão para além do risco contratualmente admissível no art.19º do DL 522/85 e simultaneamente a correspondente sanção contratual – o direito de regresso, sem esquecer evidentemente as exclusões previstas no art.7º do mesmo diploma;
3ª- Os comportamentos descritos no art.19º do DL 522/85 têm em comum o facto de serem considerados crimes de perigo não se relacionando com os resultados;
4ª- A aceitar-se que o direito de regresso só poderia ser exercido nos casos de se provar o nexo de causalidade entre a condução influenciada pelo álcool e o acidente, a norma em questão tornar-se-ia inútil, porquanto era impossível determinar tal nexo;
5ª- Da matéria dos autos decorre que o acidente é exclusivamente imputável, a título de culpa ao recorrido, o qual violou as normas dos arts.18º/1 e 24º/1, do C.E.;
6ª- O recorrido efectuava a condução com uma taxa de álcool no sangue de 2,03g/l, ou seja o quádruplo do que é permitido legalmente;
7ª- As circunstâncias em que ocorreu o acidente não deixam dúvidas de que a TAS de 2,03g/l não foi alheia à produção do acidente, configurando-se como determinante do mesmo, embora não necessariamente em exclusivo;
8ª- Mostra-se violada, por erro de interpretação e aplicação, a disposição do art.19º,al.c) do DL 522/85 de 31.12.
I.3- O R. contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
Foram dados por assentes e provados – sem qualquer censura da apelante – os factos seguintes:
1- No dia 17-01-2001, pelas 2h10m, na Av. do Brasil, Lousã, ocorreu um embate em que foram intervenientes o veículo 54-10-PG, tripulado pelo ora réu, e o veículo SEAT de matrícula GNR-L-0773;
2- À data do acidente, «Salitur Ldª» havia transferido para a autora, relativamente ao PG, a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, conforme apólice nº 6506430;
3- Submetido a teste de alcoolemia, apurou-se que o réu era portador de uma TAS de 2,03 g/l;
4- O PG circulava pela dita rua, no sentido Coimbra-Lousã, sendo uma das mais movimentadas artérias, com semáforos e vários cruzamentos;
5- A autora aceitou a responsabilidade do condutor do veículo seguro;
6- O veículo GNR, pertencente à GNR, era na altura conduzido pelo soldado Marcos Paulo Colaço Simões;
7- No dia 17/01/01, pelas 2h10m, o PG circulava na Av. do Brasil, Lousã, no sentido Coimbra-Lousã, atrás do veículo GNR que circulava no mesmo sentido e se encontrava em serviço;
8- O PG embateu com a sua frente na traseira do veículo GNR, provocando danos na traseira deste e ferimentos num dos tripulantes, Paulo António Gil Garrido;
9- No local do embate indicado pelo condutor do GNR, ficaram vestígios de plásticos pertencentes ao veículo PG;
10-O réu conduzia o veículo PG pela faixa de rodagem direita atento o seu sentido de marcha;
11-Aproximava-se do largo que se situa no final dessa avenida – atenta a direcção que levava – junto ao Cine-Teatro e a Cooperativa Agrícola, no entroncamento com a Av. Dr. José Cardoso e a R. Conselheiro António C. Mesquita;
12-Largo esse que nessa altura se apresentava com uma configuração (placa triangular), arranjo urbanístico e condições de trânsito automóvel completamente diferentes das actuais;
13-No local foi substituída uma placa triangular ali existente por uma rotunda;
14-O veículo GNR provinha da rua José Cardoso junto ao Cine-Teatro e entrou na Av. do Brasil no mesmo sentido em que seguia o réu;
15-No entroncamento entre a Av. Dr. José Cardoso e a Av. Do Brasil existia, na data do acidente, um sinal stop de paragem obrigatória;
16-O veículo do réu deixou no local do acidente um rasto de travagem de 15 metros.
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II.2 - de direito
A única questão posta no recurso, consiste em saber se a apelante é titular do direito de regresso que pretende exercer nesta acção, relativamente ao que pagou a título de indemnização ao lesado em resultado de acidente de viação ocorrido em 17.1.01. Questão sub-dividida numa outra que é a de saber se existe ou não nexo de causalidade adequada entre a condução do réu sob o efeito do álcool e o acidente.
Está-se perante um seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado entre a apelante-seguradora e o tomador do seguro e proprietário da viatura de matrícula 54-10-PG.
O recorrido não questionou o pagamento ao lesado, já que não tomou uma posição definida quanto a tal, dizendo que a seguradora não pagou ou pagou mal, facto que está na raiz do reembolso pedido. O que pôs em causa foram os quantitativos alegados e peticionados, impugnando-os genericamente.
Sob a epígrafe “direito de regresso da seguradora”, preceitua-se no art.19º do DL 522/85, de 31.12:Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso: c)- Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes, ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”.
A acção de regresso prevista nesse normativo, não é uma acção de indemnização por danos, mas sim uma acção em que a seguradora exige o reembolso do que pagou porque o risco que contratualmente assumiu não se compagina com os comportamentos do segurado tipificados naquele texto legal (condutores que abandonam sinistrados, que não têm habilitação legal para conduzir, que agem sob a influência do álcool, etc.). cfr. Ac.STJ de 20.5.03. Revista nº 1231/03. Relator: Cons. Nuno Cameira, in www.dgsi.pt/jstj. Também o Ac.R.P. de 1.6.93. Relator: Des. Matos Fernandes, in CJ/III-93, pág.223.
O fundamento do regresso invocado traduz-se no facto de o R. ter causado o acidente do qual resultaram danos e o pagamento da indemnização subsequente por ter agido sob a influência do álcool.
Da matéria dada como provada resulta que o réu no momento do acidente se encontrava com uma taxa de álcool no sangue de 2,03g/l, que na hora e local do acidente circulava atrás do veículo GNR, tendo embatido na traseira deste último com a parte da frente do veículo que conduzia, provocando danos na traseira daquele e ferimentos num dos tripulantes, Paulo António Gil Garrido.
Desta matéria factual não pode concluir-se que o R. responde, sem mais, só pelo facto de ter ingerido bebidas alcoólicas. A condução automóvel sob o efeito do álcool – proibida pelo art.81º do C.Estrada C. E. de 1994 (DL 114/94, de 3.5, revisto pelo DL 2/98, de 3.1, em vigor à data do acidente dos autos) - não é só por si causa do acidente. Há que apurar se ela foi causa adequada do acidente ou se contribuiu para a ocorrência do mesmo, tendo em conta a conclusão do acórdão uniformizador de jurisprudência nº6/02, de 18.7, tirado contra 10 votos de vencidos. O Cons. Araújo Barros afirmou que tal prova constitui verdadeira prova diabólica, na medida em que na prática, é impossível. Como provar que a ultrapassagem numa curva resultou da ingestão de álcool? O Cons. Oliveira Barros, na sua declaração de voto, afirmou que a dificuldade da prova exigida pode eventualmente ser mitigada pelo uso criterioso de presunção simples, natural, judicial, ou de experiência, que os arts.349º e 351º do C.C. consentem. Ónus de prova que cabia à recorrente cumprir (art.342º/1,C.C.).
De acordo com a teoria da causalidade adequada, subjacente ao art.563º/C.C., para que exista nexo de causalidade entre o facto e o dano não basta que o facto tenha sido em concreto causa do dano, em termos de conditio sine qua non. É necessário que, em abstracto, seja também adequado a produzi-lo, segundo o curso normal das coisas.
Assim, no âmbito dessa concepção legal do nexo de causalidade, não basta que o estado de alcoolemia do R. tenha sido conditio sine qua non do acidente, exigindo-se ainda que essa condição, de acordo com um juízo de probabilidade, seja idónea a produzi-lo.
Assim, pressuposto do direito de regresso em causa é que a condução sob o efeito do álcool possa ser considerada uma das condições concretas do acidente e que, segundo as regras da experiência comum, seja adequada ou apropriada ao seu desencadeamento. Neste sentido, os Acs.STJ de 13.5.04 (revista nº1536/04) e de 28.10.04 (revista nº3857/04), que de perto seguimos, sendo relator em ambos, o Cons. Salvador da Costa - www.dgsi.pt/jstj.
A 1ª instância, depois de observar, na linha da doutrina acolhida no citado acórdão uniformizador, que o segurado fica obrigado a pagar à seguradora o que esta tiver despendido, mas unicamente se a condução sob o efeito do álcool for causa adequada do acidente ou, pelo menos, uma das causas do mesmo, cabendo à seguradora provar essa adequação, ponderou, perante os factos provados referentes à dinâmica do acidente, que não é possível estabelecer uma relação causal entre a condução sob o efeito do álcool e a eclosão do acidente, apenas se podendo concluir pela ocorrência de um determinado evento estradal em que se viram envolvidos dois veículos.
Contra este entendimento se insurgiu a A., para quem as circunstâncias em que ocorreu o acidente não deixam dúvidas de que a TAS de 2,03 g/l não foi alheia à produção do acidente, configurando-se como determinante do mesmo.
É difícil a prova directa de que intercedeu um nexo causal entre o excesso de álcool e o facto danoso, conclusão a que poderá chegar-se através de operações probatórias no âmbito das chamadas presunções judiciais ou naturais. Ac.R.P. e voto vencido citados
Está demonstrado que o R. era portador de uma TAS de 2,03 gr/l, o quádruplo do limite legal vigente (0,5 gr/l) e com relevância criminal (art.292º/C.Penal). À luz de regras técnico-científicas, com taxas de alcoolemia de 1,5 a 3 gr/l, o condutor sofre de torpor alcoólico e dupla visão. Segundo as regras da experiência científica e comum, uma tal concentração de álcool no sangue importa necessariamente acentuada quebra da capacidade reflexiva para a condução, potenciadora do risco de acidentes.
Na vertente abstracta, admitindo o art.351º/C.C. presunções judiciais, da livre apreciação do tribunal, fazendo apelo a estas presunções e regras de experiência, deduz-se dos factos assentes que a condução com tal grau de alcoolemia era em abstracto adequada a provocar o acidente.
No aspecto concreto, atendendo ás circunstâncias em que ocorreu o acidente, revelam os factos que o R. conduzia pela faixa de rodagem direita atento o seu sentido de marcha, atrás do veículo GNR que circulava no mesmo sentido, no qual veio a embater com a frente na traseira deste último, deixando um rasto de travagem de 15 metros. Em contrapartida, não ficou demonstrada a necessidade de tal travagem, não logrando o R. provar factos importantes da versão sobre o circunstancialismo do acidente que alegara na contestação, concretamente que o veículo GNR entrou na Av. Brasil sem respeitar o sinal «STOP» que ao tempo aí estava implantado, sem atentar no veículo que o R. conduzia, obstruindo-lhe assim a linha de trânsito, não lhe sendo possível evitar o embate.
Neste contexto, apelando ás presunções e regras da experiência, a taxa de álcool de que o R. era portador no momento do embate e que lhe provocava desatenção e falta de reacção na condução, foi condição sem a qual este não teria ocorrido.
Concluindo, o acidente dos autos derivou em abstracto e em concreto da condução com uma TAS de 2,03 gr/l. Demonstrado está, pois, o nexo de causalidade adequada entre tal condução e o embate, do qual resultaram danos, necessário para o exercício do direito de regresso previsto no citado art.19º-c) do DL 522/85
Como atrás se referiu, do embate resultaram danos na traseira da viatura GNR e ferimentos num dos tripulantes, prejuízos que não foi possível quantificar e que estão na base da indemnização paga pela A.. Haverá, pois, que relegar a fixação do respectivo montante para liquidação a deduzir em incidente declarativo (arts.661º/2, 47º/5 e 378º/1, todos do C.P.C.). redacção introduzida pelo DL nº38/03, de 8.3, aplicável ao caso por força da norma do art.21º na redacção dada pelo DL nº199/03.
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III – DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, com parcial procedência da apelação, em revogar a sentença apelada e com atendimento parcial da acção, condenar o R. a pagar à A. a quantia que se vier a liquidar, correspondente aos prejuízos havidos com o acidente até ao limite da verba peticionada, acrescida de juros legais a contar da citação.
Custas em ambas as instâncias pela A. e pelo R. na proporção de 1/8 e 7/8, respectivamente, sem prejuízo de correcção de harmonia com o resultado da liquidação.
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COIMBRA,