Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
64/08.9GAPNC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: AUDIÊNCIA
GRAVAÇÃO DEFICIENTE
NULIDADE
ARGUIÇÃO
Data do Acordão: 12/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PENAMACOR – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 105º,120º, 121º,326º,6,363º CPP, 153º CPC
Sumário: 1. A documentação deficiente das declarações prestadas oralmente constitui hoje uma nulidade sanável – artigo 363º do CPP, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto –, ficando prejudicada a jurisprudência fixada no acórdão do STJ n.º 5/2002, que entendia existir irregularidade neste caso e cuja não inconstitucionalidade foi confirmada pelo acórdão do TC n.º 208/2003.
2. No domínio do CPP vigente a omissão ou deficiência da documentação das declarações orais na audiência (gravação) constitui nulidade, sanável, sujeita ao regime de arguição e de sanação dos art.º 105º n.º 1, 120º, n.º1 e 121º do CPP.
3. O termo inicial do prazo de 10 dias do art.º 153º do CPC ocorre no dia em que os suportes técnicos com o registo das gravações ficam à disposição dos sujeitos processuais, visto que só nesta data poderão os interessados tomar conhecimento da omissão ou deficiência da gravação do registo da prova, estando a partir desta data habilitados a arguir o respectivo vício.
4. Esta nulidade sana-se se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de dez dias (artº 105º, n.º 1 do CPP) a partir da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido.
5. Pode ainda ser arguida em sede de recurso se os 10 dias em causa ainda se contiverem dentro do prazo normal de recurso, contado a partir dos momentos temporais do artigo 411º/1 do CPP .
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

  1. No processo comum singular n.º 64/08.9GAPNC do Tribunal Judicial da Comarca de Penamacor, o arguido J..., devidamente identificado nos autos, foi condenado, por sentença de 15 de Julho de 2009, pela prática de um crime de dano p. e p. pelo artigo 212º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos).

Foi ainda julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização cível e, em consequência, foi condenado o arguido/demandado a pagar a A... a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a titulo de danos patrimoniais e não patrimoniais, considerando-se o pedido cível improcedente quanto ao demais.

            2. Inconformado, o arguido recorreu da sentença condenatória, concluindo (transcrição):

            «1. A gravação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento efectuada pelo sistema digital que se encontra em uso no tribunal a quo, encontra-se prejudicada por uma estação de rádio local que impede a audição do que se encontra gravado.

2.Pretende o arguido recorrer de Facto e de Direito, vendo-se impedido pela deficiência da gravação da prova.

3. Pretende o Arguido recorrer da douta sentença proferida pela Mmª Juíza do Tribunal Judicial de Penamacor que o condenou, pela prática, de um crime de Dano, p. e  p. pelo art° 212° do Código Penal, na pena de 140 dias de multa, à razão diária de 5,50 euros e no pagamento ao demandante A... da importância de 1500,00 euros (mil e quinhentos euros a titulo de danos patrimoniais e não patrimoniais.

4. Dispõe o artigo 364° n° 1, do C.P.P., que “a documentação das declarações prestadas oralmente na audiência é efectuada, em regra, através de gravação… ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas…”.

5. Dispondo o art.° 363° do mesmo diploma legal, que “as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade”.

6. Constituindo irregularidade, devendo ser arguida pelo interessado.

7. Violou o Tribunal a quo os supracitados preceitos.

Por todo o exposto deve, pois, proceder-se à renovação da prova, enviando o processo para novo julgamento.

Por tudo o que foi exposto e pelo que mais for doutamente suprido, deve ser dado provimento ao recurso com o que se fará a costumada JUSTIÇA».


            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que a sentença recorrida deve ser mantida na íntegra.
            Conclui desta forma o MP:
«1. O recurso interposto pelo arguido J... não deve ser admitido, por ter sido interposto fora de tempo (art.°s 411º, n.° 1, al. b), e 414°, n.° 2, do Código de Processo Penal).
2. Na actual redacção do Código de Processo Penal, a não gravação e/ou a gravação deficiente da prova produzida em julgamento constitui uma nulidade sanável, sujeita ao regime dos art.°s 105°, n.° 1, 120°, n.° 1, e 121°, do Código de Processo Penal.
3. O termo inicial do prazo de 10 dias para arguir tal nulidade “ocorre no dia em que os suportes técnicos com o registo das gravações ficam à disposição dos sujeitos processuais, visto que só nesta data poderão os interessados tomar conhecimento da omissão ou deficiência da gravação do registo da prova, estando a partir desta data habilitados a arguir o respectivo vício”.
4. Consta dos autos, a fls. 221, que em 27 de Agosto de 2009 foi entregue à Ilustre Defensora Oficiosa do arguido um CD contendo a gravação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, sendo que dos mesmos não consta, ao invés, que o arguido tenha vindo perante o tribunal recorrido arguir tal nulidade, no prazo de dez dias de que dispunha para o efeito.
5. Donde, tal nulidade, a existir, encontra-se sanada.
Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso interposto pelo arguido (…)».

            4. O assistente A... respondeu a este recurso, defendendo a manutenção da douta decisão recorrida.

5. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 247 a 250, sendo de parecer «que, a não ser rejeitado o recurso por extemporaneidade do prazo, por não merecer a sentença qualquer censura, deverá improceder o recurso do arguido, mantendo-se aquela».

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, cumpre proferir decisão sumária, na medida em que se entende que deverá ser rejeitado o recurso interposto (artigos 417º, n.º 6, alínea b) e 420º, n.º 1, alínea b) do CPP), cabendo, assim, especificar sumariamente os fundamentos da nossa decisão (artigo 420º, n.º 2 do CPP).

            II – FUNDAMENTAÇÃO

            1. As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o objecto do recurso.

            A única questão suscitada no recurso prende-se com a alegada “irregularidade” da gravação do julgamento de 1ª instância.

Porém, há que decidir a questão prévia e cuja procedência obsta ao conhecimento do objecto do recurso - tempestividade ou não do recurso intentado.

2. A sentença recorrida foi datada de 15 de Julho de 2009, tendo sido depositada nesse mesmo dia (cfr. fls 219).

Em 25 de Agosto de 2008 (ou seja, estando já esgotados 16 dias do seu prazo de 20 dias para o recurso), veio a ilustre defensora oficiosa do arguido requerer ao tribunal recorrido cópia da gravação do julgamento (que decorreu em duas sessões), juntando para o efeito um CD.

Tal CD foi-lhe depois entregue no dia 27/8/2009.

Acaba por recorrer em 14 de Setembro de 2009.

E nesse recurso invoca a irregularidade da gravação deficiente do julgamento pelo facto da mesma estar prejudicada por uma estação de rádio local que impede a audição do que se encontra gravado.

Nesse recurso, o arguido é claro e delimita bem o âmbito do seu recurso.

A sua expressa lógica é esta:

«Discorda o arguido da sua condenação por entender que a douta sentença enferma dos vícios constantes das alíneas a) e c) do n° 2 do art° 410° do C.P.P., insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, vícios que resultam do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum determinando o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do disposto no art° 426° no 1 do CPP.

Conclui que pretendendo recorrer de facto e de direito, «vê-se, por tal motivo, impedido de apresentar o seu Recurso».

3. Como se vê, a recorrente pretende invocar os vícios oficiosos do artigo 410º do CPP, assim impugnado a matéria de facto dada como provada.

Não pretende assim reapreciar a matéria dada como provada, nos termos do artigo 4412º, n.º 3 do CPP.

Sabemo-lo bem - o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem:

- primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada (O QUE NÃO É O NOSSO CASO)

- e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.

Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

4. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

5. Já o erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.

Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

Como bem acentua Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)».

E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.Penal:

3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c)-As provas que devem ser renovadas».

A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

Diga-se ainda que a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do CPP) - relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do CPP).

E é nessa exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411.º, n.º 4 do CPP.

6. E daí que haja, em sede de motivação de recurso, a necessidade inelutável de haver uma separação de águas – não pode, pois, haver confusão entre a invocação destes dois tipos de erros, ambos relacionados com a matéria de facto.

No nosso caso, o que o arguido pretende é somente invocar os vícios do artigo 410º do CPP (cfr. 226) e não fazer uma impugnação ampla da matéria factual, capaz de legitimar a audição das gravações efectuadas.

            Como tal, nos termos do art. 411º do CPP, o prazo de recurso é de 20 dias.

Sabemos que, excepcionalmente, o prazo pode ser elevado para 30 dias, se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada[1].

Como já acima se deixou expresso e explicado, não se pode confundir recurso da matéria de facto com reapreciação da prova gravada – por conseguinte, para que o recorrente pudesse beneficiar do prazo de 30 dias, teria de deixar bem claro que queria a reapreciação da prova gravada, o que não fez.

Como tal, este recurso não tem por objecto a reapreciação da prova gravada[2] (relevando o que diz em alegações e não aquando do artigo 417º/2 do CPP), devendo ter sido intentado no prazo normal dos recursos em matéria penal que é de 20 dias.

No caso, podia ter sido intentado até 4/9 (quanto muito até 7/9, por força do prazo de benevolência ínsito nos artigos 145.º, n.º 5 do CPC e 107.º, n.º 5 do CPP).

Intentando-o em 14/9, foi-o muito depois do prazo legal, sendo, pois, intempestivo.

7. Tal prazo de 20 dias conta-se a partir do depósito da sentença, como ordena o artigo 411º, n.º 1, alínea b) do CPP.

A este propósito e sobre a provada deficiência de gravação do julgamento de 1ª instância (só com muito custo se consegue perceber - posso ouvir mas não percebo tudo - a prova gravada, tal o barulho musical de fundo que se ouve), diremos o seguinte:

A documentação deficiente das declarações prestadas oralmente constitui hoje uma nulidade sanável – artigo 363º do CPP, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto –, ficando prejudicada a jurisprudência fixada no acórdão do STJ n.º 5/2002, que entendia existir irregularidade neste caso e cuja não inconstitucionalidade foi confirmada pelo acórdão do TC n.º 208/2003.

Caracteriza-se tal deficiência pela documentação que não permite ou impossibilita a captação do sentido das palavras dos declarantes.

As disposições da referida Lei n.º 48/2007 – aplicáveis in casu - relativas à eliminação da transcrição da audiência de julgamento no caso de gravação magnetofónica ou audiovisual (artigos 364º n.º 1 e 412º, n.º 4 do CPP) aplicam-se imediatamente aos processos pendentes, incluindo as audiências de julgamento em curso na primeira instância, assim como as disposições relativas ao dever do recorrente referir as passagens das gravações que impõem decisão diversa da recorrida (artigo 412º n.º 4) e ao dever do Tribunal superior ouvir ou visualizar as passagens indicadas e outras que considere relevantes (artigo 412º, n.º 6) – Comentário ao CPP de Paulo Pinto Albuquerque – 2ª edição actualizada – página 1014).

Além de que “importa distinguir, para efeitos de aplicação da lei no tempo, entre regras que fixam as condições de admissibilidade do recurso e as que se limitam a regular as formalidades de preparação, instrução e julgamento do recurso, estas, sem margem para dúvidas, de imediata aplicação (cf. Alberto dos Reis, RLJ, Ano 86.º, págs. 49-53 e 84-87) – Acórdão do STJ de 5-06-2008.

No domínio do CPP vigente, o aplicável neste particular, a omissão ou deficiência da documentação das declarações orais na audiência (gravação) constitui nulidade, sanável, não se suscitando quaisquer dúvidas face à actual redacção do já citado artigo 363º do CPP, introduzida pela mencionada Lei n.º 48/2007 de 29/08, nulidade esta sujeita ao regime de arguição e de sanação dos art.º 105º n.º 1, 120º, n.º1 e 121º do CPP.

O momento em que é proferida a decisão será «aquele em que se configura o exercício do direito de dela recorrer, no pressuposto de que só depois de conhecida a decisão final surge na esfera jurídica dos sujeitos processuais por ela afectados, na decorrência de um abstracto direito constitucional ao recurso, o concreto 'direito material' em determinado prazo, deste ou daquele recurso ordinário ou extraordinário» (cf., v. g., José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, I, p. 189).

Deste modo, anteriormente à decisão final sobre o objecto do processo, no termo da fase do julgamento em 1.ª instância, não estão concretizados, nem se sabe se processualmente vão existir, os pressupostos de exercício do direito ao recurso, que como «direito a recorrer» de «decisão desfavorável», concreto e efectivo, apenas com aquele acto ganha existência e consistência processual.

No que respeita ao arguido, o momento relevante do ponto de vista do titular do direito ao recurso só pode ser, assim, coincidente com o momento em que é proferida a decisão de que se pretende recorrer, pois é esta que contém e fixa os elementos determinantes para formulação do juízo de interessado sobre o direito e o exercício do direito de recorrer.

Melhor, só a partir da data do levantamento do registo magnético da prova produzida em audiência terá o sujeito processual possibilidade de arguir ou reclamar do eventual vício técnico, incumbindo-lhe a diligência de o fazer nos limites do prazo para interposição do recurso, alargado pela Lei n.º 48/2007 para trinta dias quanto tem por objecto a “reapreciação da prova gravada”.

Entendimento diverso levaria a coarctar de forma desproporcionada o direito ao duplo grau de jurisdição em sede de apreciação da matéria de facto.

Afigura-se-nos também, no seguimento da opção defendida no Acórdão do STJ de 21/11/2007 – jurisdição cível – (relator: Conselheiro Sousa Grandão), por identidade de raciocínio, subscrever a tese de que «o prazo para a arguição ou reclamação do eventual vício técnico – nulidade processual secundária – se conta da data do levantamento do suporte registral».

Como tal, à luz dos princípios já coligidos – e conforme se adianta no Acórdão do STJ de 6/7/2006, proferido no agravo n.º 1899/06 – «... tem-se ... por manifesta a exigibilidade de que, numa actuação normalmente diligente, a parte se assegure que a gravação que lhe foi entregue permite efectiva reapreciação da prova produzida – e, tal assim, em termos de, no prazo geral de 10 dias, estabelecido no art.º 153º n.º 1 do CPC, reclamar de eventual deficiência que tal impeça».

Como aí se salienta, “…uma actuação prudente implicará sempre a verificação imediata da suficiente qualidade da gravação, razão pela qual “... o prazo em causa se inicia com a entrega das cassetes ao mandatário».

Em conclusão, tem-se entendido que o termo inicial do prazo de 10 dias ocorre no dia em que os suportes técnicos com o registo das gravações ficam à disposição dos sujeitos processuais, visto que só nesta data poderão os interessados tomar conhecimento da omissão ou deficiência da gravação do registo da prova, estando a partir desta data habilitados a arguir o respectivo vício.

Já aqui se disse: esta nulidade sana-se se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de dez dias (artº 105º, n.º 1 do CPP) a partir da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido.

Se a audiência de julgamento se prolongar por várias sessões, o prazo conta-se a partir de cada sessão da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido.

Assim:

· é uma nulidade a que se refere o artigo 363º do CPP e não uma irregularidade de acordo com os artigos 118º, n.º 2 e 123º, n.º 1 do CPP, ou uma irregularidade conforme o n.º 2 daquele artigo 123º do CPP (no fundo, a parcial deficiência de um determinado depoimento, com suficiente relevância para não permitir a sua completa percepção, gera nulidade);

· a nulidade deve ser invocada em 10 dias perante o tribunal de 1ª instância, a contar do dia em que se entregaram as cópias das gravações à parte requerente, o que não foi feito pelo arguido (fê-lo perante este tribunal de 2ª instância e fora até do prazo dos 10 dias contados desde 27/8/2009);

· pode ainda ser arguida em sede de recurso se os 10 dias em causa ainda se contiverem dentro do prazo normal de recurso, contado a partir dos momentos temporais do artigo 411º/1 do CPP (o que não foi o caso, pois tal prazo de 20 dias já havia expirado);

· pode a Relação conhecer de tal nulidade, não a devendo remeter à 1ª instância para conhecimento da nulidade.

8. Diga-se ainda o seguinte:

O acórdão do STJ de 3/3/2005, proferido no processo 05P335, refere:

«A gravação da prova, enquanto meio que permite a constituição de uma base para a reapreciação da decisão da matéria de facto pelo tribunal de recurso, obedece a modos regulamentados de execução constantes dos artigos 3.º a 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro (…).

Com efeito, como dispõe o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 39/95 (…), o tribunal facultará cópia das gravações, devendo o mandatário, com a solicitação da cópia, fornecer as fitas magnéticas necessárias; a resposta do tribunal, no prazo máximo que a lei impõe (oito dias) é inteiramente compatível com o exercício do direito ao recurso nos prazos fixados, sendo que, em caso de demora na disponibilidade das cópias, o interessado disporá da faculdade de invocar o justo impedimento».

E, como ficou exarado no Acórdão n.º 9/2005, do plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Outubro de 2005, «no rigor das coisas, os elementos necessários à impugnação da matéria de facto – suportes materiais da prova gravada – podem estar à disposição do recorrente desde o início do prazo para a interposição do recurso».
Chamado a pronunciar-se sobre a compatibilidade constitucional de certas interpretações normativas versando o prazo de interposição de recurso sobre matéria de facto, o Tribunal Constitucional, em decisões de 27-09-2006 e 14-03-2007 (Acórdãos n.ºs 545/06, 546/06 e 194/07, respectivamente), com diferenças de pormenor, julgou inconstitucional, «por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (redacção anterior à entrada em vigor da Lei 48/2007), interpretado no sentido de o prazo para a interposição de recurso em que se impugne a decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência tenham sido gravadas, se conta sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria, e não da data da disponibilização das cópias dos suportes magnéticos, tempestivamente requeridas pelo arguido recorrente, por as considerar essenciais para o exercício do direito do recurso».
Contudo, há que referir que, subjacente a estes juízos de inconstitucionalidade, não estava nenhuma conduta negligente imputável ao recorrente na demora no acesso à gravação.
Recorda-se o que atrás se explanou - de acordo com o disposto no artigo 411.º, n.º 1, do CPP, o prazo para interposição de recurso é de 20 dias e conta-se, no que agora importa considerar, a partir do depósito da sentença na secretaria.
Contudo, se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, aquele prazo é elevado para 30 dias (cfr. n.º 4 do mesmo artigo 411.º).
Por seu lado, dispõe o artigo 101.º, n.º 3, do CPP: «Sempre que for realizada gravação, o funcionário entrega no prazo de quarenta e oito horas uma cópia a qualquer sujeito processual que o requeira e forneça ao tribunal o suporte técnico».
Diz Alberto Mira, em decisão sumária proferida no Pº 180/01.8GBPBL.C2, datada de 17/12/2008, e nós com ele:
«A novidade deste normativo radica na cessação do dever de transcrição que antes era imposto. Hodiernamente, as cópias devem ser facultadas no prazo máximo de 48 horas, verificados que sejam os condicionalismos previstos naquele artigo.
Com a alteração que se regista, pretendeu o legislador permitir o controlo tempestivo da perceptibilidade da gravação pelos sujeitos processuais».
No nosso caso, a sentença proferida pelo tribunal da 1.ª instância foi publicitada e depositada no dia 15 de Julho de 2009.
Contudo, e sem razão aparente, só em 25 de Agosto de 2009 veio o arguido requerer cópia das gravações, as quais lhe foram entregues no prazo legalmente previsto (48 horas) – NO CASO, EM 27/8/2009.
O recurso apenas foi interposto em 14 de Setembro de 2009.
Voltamos a Alberto Mira:
«Actuando com a diligência devida, o recorrente poderia ter obtido, 48 horas após o depósito do acórdão, no máximo, as cópias das gravações da prova oralmente produzida nas sessões de julgamento, dispondo, assim, de prazo compatível (o legalmente fixado) para o exercício do direito de recurso.
Só no caso de requerida e não cumprida, no prazo da lei, a entrega dos suportes de gravação poderia perspectivar-se, dentro das soluções já partilhadas pela nossa jurisprudência, acima referidas, o dies a quo do cômputo do prazo para a apresentação da motivação do recurso ou a suspensão do prazo de recurso.
A aceitação da tese preconizada pelo recorrente atentaria de forma intolerável contra o princípio da fluidez do curso do processo para a obtenção da decisão em tempo adequado, pois permitiria o alargamento, para o dobro, do prazo peremptório estabelecido para a interposição do recurso: para tanto, bastaria que, no último dia do prazo de 30, o recorrente viesse requerer a entrega das cópias de gravação».
De facto, foi morosa a reacção do arguido, deixando passar cerca de 16 dias do seu prazo de recurso (e 16 dias em decurso de dias de trabalho e não em férias judiciais, só iniciadas em 1/8/2009) até pedir finalmente a cópia das gravações (note-se que a lei, no seu artigo 7º, n.º 2 do DL 39/95 de 15/2, aplicável também ao processo penal, estatui que. «incumbe ao tribunal que efectuou o registo facultar, no prazo máximo de oito dias após a realização da respectiva diligência, cópia a cada um dos mandatários ou partes que o requeiram).
E isso só pode correr contra si, pois então, tanto mais que, não querendo reapreciar a matéria de facto nos termos do artigo 412º/3 do CPP (relevando o que diz nas suas alegações de recurso e não aquilo que agora vem dizer, à luz do artigo 417º/2 do CPP, nomeadamente nos seus artigos 9º, 10º e 14º de fls 259-262), não havia sequer necessidade de se lançar mão das gravações efectuadas (os tais “elementos estranhos”) para decidir da sorte deste recurso.
Em conclusão:
· o prazo do recurso interposto pelo arguido, iniciado em 16 de Julho de 2009, contado o prazo de 20 dias e o prazo suplementar dos artigos 145.º, n.º 5 do CPC e 107.º, n.º 5 do CPP, esgotou-se em 7 de Julho de 2009.

9. Nos termos do artigo 420º do CPP, o recurso deve ser rejeitado se se verificar causa que devia determinar a sua não admissão, nos termos do art. 414º, n.º 2 do mesmo Código.

 Ora, o art. 414º, n.º 2 estipula que o recurso não é admitido quando interposto fora de prazo, não obstando à sua rejeição, nos termos do disposto nos artigos 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b) do CPP, o despacho de admissão que no tribunal a quo foi proferido, uma vez que o tribunal superior – este - a ele não está vinculado (cfr. o art. 414.º, n.º 3 do mesmo diploma).

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            III – DISPOSITIVO

            Em face do exposto, decide-se, sumariamente, REJEITAR o recurso intentado pelo arguido J..., por manifesta intempestividade (artigos 417º, n.º 6, alínea b) e 420º, n.º 1, alínea b) – que remete para o 414º, n.º 2 – do CPP).

            Custas pelo arguido (sem prejuízo do eventual apoio judiciário de que beneficia), fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs, a que acresce condenação no pagamento de 3 Ucs (artigo 420º, n.º 3 do CPP).

Notifique.


Coimbra, 9 de Dezembro de 2009

 (Consigna-se que a decisão foi elaborada e integralmente revista pelo signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)



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(Paulo Guerra)



[1]A ratio material subjacente ao maior prazo concedido para o recurso incidente sobre matéria de facto radica na maior dificuldade que se depara ao recorrente, quando pretende impugnar a matéria de facto, por virtude do dever legal de especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, das provas que devem ser renovadas, com a indicação das concretas passagens em que funda a impugnação (cfr. artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP).
[2] O recurso do arguido fala por si: mesmo que quisesse a reapreciação da prova gravada – o que, de todo em todo, não alegou -, há que dizer que o recorrente para arguir a “nulidade” da gravação deficiente da prova gravada teria de lançar mão do prazo de 20 dias e já não do prazo dos 30 dias, prazo esse que é fixado no pressuposto de que o recorrente precisou de tempo suplementar para ouvir as gravações, sendo tal tarefa morosa; ora, nesta nossa situação, o recorrente não ouviu as gravações, senão para constatar a deficiência da sua gravação – e para isso, não pode beneficiar do prazo dos 30 dias precisamente porque não “perdeu” tempo a ouvir a concreta prova gravada para tirar as consequências do artigo 412º/3 do CPP.