Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
56/06.2TBTBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
ABANDONO DE SINISTRADO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 11/28/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 19º Nº1 AL.C) DO DL 522/85, DE 13/12 E 508º Nº3 DO CPC
Sumário: 1. Certa corrente jurisprudencial minoritária enveredou pela tese da ratio preventiva do direito de regresso da seguradora decorrente de abandono de sinistrado pelo condutor do veículo seguro, que considera que tal direito teria sido estabelecido com o propósito exclusivo de “prevenir um comportamento particularmente reprovável e que no nosso país assume graves proporções”.

2. Outra corrente jurisprudencial, largamente sedimentada, defendendo o que se poderia chamar a teoria do risco injusto ou imprevisível, considera que a seguradora deve suportar os danos provocados pelo acidente, ao abrigo do contrato de seguro, enquanto os danos, ou agravamento de danos advenientes do abandono de sinistrado, são da responsabilidade do condutor-abandonante que os causou.

3. O despacho-convite ao aperfeiçoamento, integrando o chamado de despacho pré-saneador, constitui um despacho vinculado que configura um poder-dever do Tribunal, de conhecimento e uso ex officio, cuja não observância gera nulidade e cujo não uso é sindicável por via de recurso.

Decisão Texto Integral: A... intentou na comarca de Tábua acção declarativa com processo ordinário contra B... pedindo a respectiva condenação no pagamento da quantia de € 168. 456,95, acrescida de juros de mora legais contados desde a citação até integral pagamento.
Alega, para tanto, e em síntese, que celebrou com o Réu um contrato de seguro do ramo automóvel; que este se viu envolvido num acidente de viação consistindo num embate entre o veículo seguro e um peão, por culpa exclusiva do Réu; que, no entanto, o mesmo prosseguiu a sua marcha, pondo-se em fuga do local da ocorrência; e que, em virtude de ela A. haver pago a terceiros o montante peticionado, tem direito de regresso sobre o demandado, ao abrigo do disposto na alª. c) do art. 19° do D.L. n° 522/85, de 31 de Dezembro.
Citado, o Réu contestou, impugnando a matéria fáctica articulada na petição inicial e afirmando que a Autora não alegou qualquer quota de responsabilidade nos danos sofridos pelo lesado em resultado da conduta integrante do abandono do sinistrado, inexistindo, de igual modo, qualquer alegação de que terá sido por causa desse abandono por parte do Réu que se verificaram os danos - ou o agravamento dos mesmos - que desencadearam o pagamento da indemnização. Terminou, advogando a improcedência da acção.
A A. replicou e foi apresentada tréplica pelo R.

No despacho saneador o M.mo Juiz, conhecendo do mérito da causa, proferiu sentença na qual, acentuando não haver referência na petição a factos concretos donde se possa concluir que a invocada actuação de abandono do sinistrado pelo Réu haja contribuído para a produção ou para o agravamento dos danos cuja indemnização a Autora satisfez, julgou a acção improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolveu o Réu do pedido.

É desta decisão que vem interposta a presente apelação pela irresignada Autora.

Nas pertinentes alegações são formuladas conclusões, delimitadoras do objecto do recurso (art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC), através das quais é defendido que o direito de regresso da apelante se funda numa ideia sancionatória e de protecção das vítimas, na esteira da reprovação penal, não sendo por isso legítima a interpretação restritiva da norma (perfilhada na sentença) quanto aos danos abrangidos pelo direito de regresso; que foi oportunamente alegado na petição que o abandono do sinistrado por parte do R. agravou naquele as consequências do acidente; pelo que, entendendo-se não ter sido aduzido o necessário nexo causal entre o abandono e os danos, sempre deveria a apelante-A. ter beneficiado do convite ao aperfeiçoamento do articulado.

O apelado contra-alegou pugnando pela manutenção do sentenciado.

Nos termos do nº 6 do art.º 713 do CPC, por não ter sido impugnada nem se impor qualquer alteração, remete-se para a matéria dada como provada na 1ª instância.

O objecto do recurso.
Questão: A natureza do direito de regresso da seguradora decorrente do abandono do sinistrado pelo condutor do veículo seguro (última parte da al.ª c) do nº 1 do art.º 19 do DL 522/85 de 13/12).

Entende a seguradora-apelante que a norma em apreço corresponde a uma finalidade sancionatória do segurado perante a censurabilidade social da conduta nela referenciada, em consonância com a tipificação que vem consagrada na lei penal.
Vejamos se assim é.
Não se desconhece que uma certa mas seguramente minoritária corrente jurisprudencial enveredou pela tese da ratio preventiva do direito de regresso agora em apreço. Segundo ela, tal direito de regresso das seguradoras teria sido estabelecido com o propósito exclusivo de "prevenir um comportamento particularmente reprovável e que no nosso país assume graves proporções" (Ac. do STJ de 3/07/03 com o nº SJ20007030012722 in http:/www.dgsi.pt/jstj, na esteira do Acórdão do mesmo Tribunal de 29/04/99, in BMJ 486-307).
A outra corrente, largamente sedimentada - cfr. os Acórdãos da RL de 2.4.92 - B. 416-697, do STJ de 27.1.93 - B. 423-560, da RC de 27.9.94 - Col. Jur. XIX-IV-36, da RL de 30.3.95 - B. 445-604, do STJ de 5.3.96 - B. 455-513, do STJ de 14.1.97- CJ, Acs. do STJ, V-I-57 e B. 463-562, e de 11.2.2003 - CJ, Acs. do STJ, XI-I-87 - faz antes uma interpretação restritiva da norma, de molde a que se opere uma separação de responsabilidades, em face do risco contratualizadamente assumido pela seguradora e o risco extraordinário proveniente do abandono da vítima.
Nesta perspectiva haveria que estabelecer um nexo de causalidade entre causas e efeitos: os danos provocados pelo acidente suportá-los-à a seguradora ao abrigo do contrato de seguro; os danos, ou o agravamento de danos advenientes do abandono de sinistrado, suporta-os o condutor-abandonante que os causou. O que se não pode é fazer incidir sobre este a responsabilidade de suportar danos que provêm de um facto que sempre estaria coberto pelo seguro. É a teoria do que se poderia chamar do risco injusto ou imprevisível que, salvaguardando as expectativas dos lesados, permite recolocar a seguradora dentro da geometria dos interesses que envolveram a celebração do contrato de seguro. Nela se evidencia uma convergência de fundamento com as outras situações de regresso estabelecidas na alínea citada: a condução sem habilitação legal e sob efeito de taxa de alcoolemia não permitida. Para essa tese, o abandono do sinistrado subsequente ao acidente extravasa o âmbito das prestações contratuais, constituindo um facto novo, ilícito, com uma natureza autónoma em relação ao convénio (por essa via extracontratual), que só deve responsabilizar o seu agente, ou seja, o condutor.
Deve dizer-se que esta orientação jurisprudencial se afigura perfeitamente coerente porquanto, distinguindo o risco inerente ao contrato, destrinça também os danos sofridos pelo sinistrado, consoante se conexionem, em termos de causalidade, com o acidente ou apenas com o acto do abandono. A haver danos específicamente consequentes ao abandono (sendo certo que eles só podem consistir no agravamento dos danos já decorrentes do acidente, que o lesado não sofreria se não tivesse sido objecto do abandono), importa que quem se arroga o direito de regresso os discrimine. Este direito, sendo consabidamente um direito nascido «ex novo» na esfera jurídica do respectivo titular, implica a alegação e prova do seu conteúdo (art.º 342 do CC), conteúdo que é integrado apenas por aquelas específicas consequências. Não bastando a alegação de que os danos finais sofridos pelo lesado foram agravados, sem a explicitação da medida dessa agravação.
Daí que tenham improceder as conclusões tecidas a tal respeito pela apelante.

2ª Questão: A falta de alegação pela A. do nexo causal entre o abandono e os danos resultantes do acidente por ela ressarcidos.

Esta questão do recurso foi suscitada perante a posição de princípio da sentença e o teor do alegado nos art.ºs 25 e 26 da petição.
Com efeito, mostra-se aqui afirmado que o "sinistrado se encontrava, inclusive, com a vida em risco e a padecer de dores fortíssimas, carecendo de uma rápida intervenção médica, o que o R. não fez, agravando as consequências ao estado em que o sinistrado se encontrava" (25º) e que "na rápida prestação de primeiros socorros em casos graves pode estar a diferença entre a vida e a morte ou entre uma vida com qualidade e uma vida dependente da ajuda de outros" (26º). Nos artigos 13, 14 e 15 do mesmo articulado inicial já havia sido alegado que o R., após o embate com o peão, continuou a sua marcha, deixando este prostrado no solo.
Argumenta a apelante que, mediante a matéria aludida, foi cumprido o ónus relativo à alegação de que os danos cuja indemnização vem peticionada decorreram do desinteresse do R. perante o peão que acabara de atropelar.
Ora, do que se trata ali é de uma insuficiência de exposição de factualidade essencial, que, todavia, se não deve confundir com a absoluta omissão do núcleo dos factos estruturante da causa de pedir.
Insuficiência, na medida em que se tornava imperioso precisar e averiguar quais as concretas consequências - com a respectiva tradução económica - que resultaram da fuga do Réu para a situação da vítima, ou seja, aquelas consequências que provavelmente não teriam ocorrido se o Réu, de imediato ao embate, tivesse providenciado pela prestação de socorro e meios assistência que o caso reclamava.
Prescreve o nº 3 do art.º 508 do CPC que o juiz pode convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
Já tem sido entendido (cfr. o Acórdão desta Relação de 6/03/2001 in CJ, 2001, 2º, p.15) que, diversamente do que acontece na hipótese prevista no nº 2, este despacho-convite ao aperfeiçoamento, integrando o chamado de despacho pré-saneador, não constituiria um despacho vinculado, pelo que a sua não observância pelo juiz não geraria uma qualquer nulidade ou irregularidade processual. Neste quadro, inexistindo ofensa de normas de natureza processual na omissão de tal convite, também esta falta seria insindicável por via de recurso.
Não podemos subscrever tal entendimento.
Tal atitude interpretativa, salvo o devido respeito, colocaria a parte numa situação inaceitável, pois que o aperfeiçoamento do articulado ficaria apenas dependente, aleatoriamente, da vontade, quiçá da atenção, do tribunal de 1ª instância.
Afigura-se mais conforme ao espírito do diploma reformador de 95 (DL 329-A/95 de 12/12) que introduziu tal regra adjectiva, configurar esse poder como um poder-dever do Tribunal, de conhecimento e uso ex officio, acarretando nulidade a sua não observância. Poder-dever cujo não uso é assim sindicável pela Relação, como instância julgadora em matéria de facto (neste sentido cfr. o Ac. da Relação do Porto de 25/06/98 in CJ, 1998, 3º-223).
Donde que, a este propósito, sejam de acolher as pertinentes conclusões do recurso.

Pelo exposto, julgando procedente a apelação, revogam o despacho saneador-sentença recorrido, a fim de que o M.mo Juiz profira despacho pré-saneador, ao abrigo do nº 3 do art.º 508 do CPC, convidando a A. a aperfeiçoar o afirmado nos art.ºs 25 e 26 da petição, sem prejuízo do subsequente contraditório, por forma a explicitar quais os danos que, resultando específicamente do facto de o R. ter abandonado o sinistrado, foram por ela objecto de ressarcimento.
Custas da apelação pelo R..