Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1404/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: CONCURSO DE CRIMES
Data do Acordão: 09/27/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 30º, N.º 1, DO C. PENAL E 23º, N.º 1, AL. A) DO D. L. 28/84 E 222º, N.º1 E 2, 224º, N.º 1, AL. A) E C) E ART.º 245º, N.º 1 E 3 (COM REF.ª AO ART.º 323º, AL. A), D) E F), DO C. P. INDUSTRIAL)
Sumário: 1- O crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos protege o interesse comercial da marca. O crime de fraude nas mercadorias protege o interesse do público em geral.

2- Mesmo sem ser industrial de fabrico de roupas o arguido atenta contra o interesse comercial da marca quando as vende, sabendo que a marca anunciada não corresponde à realidade.

3- Existe uma relação de concurso efectivo de crimes, quando a conduta do agente preenche o crime de fraude sobre mercadorias (p. e p. pelo art.º 23º do D. L.28/84) e o crime de contrafacção de marcas (p. e p. pelo art.º 324º do C. P. Industrial –D. L. 36/2003, de 5/3).

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

No Processo comum singular n. 04/04, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, após audiência de discussão e julgamento o arguido A..., foi condenado como autor material, de um crime de fraude nas mercadorias, p. e p. pela al. a) do n.º 1 do art. 23º do Regime Jurídico da Infracções Antieconómicas e Contra a Saúde Pública, aprovado pelo Decreto-lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro na pena de cinco meses de prisão, substituída por 150 dias de multa e ainda na pena de 80 dias de multa, cumuladas nos termos do nº 1 do art. 6º do Decreto-lei nº 48/95 de 15 de Março, em 230 dias de multa à taxa de € 5,00, num total de € 1.150,00, ou subsidiariamente, caso não a cumpra, na pena de 153 dias de prisão (nº 1 do art. 49º do Código Penal, aplicável por força do nº 2 do art. 6º do Decreto-lei nº 48/95) e pela prática, em autoria material, em concurso efectivo, de uma contra-ordenação por falta de documentação nas transacções, p. e p. pela al. a) do n.º 1 do art. 65º do RJIACSP e uma contra-ordenação por não identificação do vendedor, p. e p. pela al. c) do n.º 1 do art.65º do RJIACSP nas coimas parcelares de € 800,00 e, em cúmulo jurídico, na coima única de € 1.000,00.
Neste processo foi o arguido absolvido da prática, como autor material, de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelos n. 1 e 2 do art. 222º, n.º 1 do art. 224º, als. a) e c) do n.º 1 e n.º 3 do art. 245º e do art. 324º, este último com referência às als. c), d) e f) do art. 323º do Código da Propriedade Industrial.
Inconformado com a decisão, na parte em que absolveu o arguido, o Ministério Público interpõe recurso e formula as seguintes conclusões:
1.- O numero de infracções determinar-se pelo numero de valorações que, no mundo Jurídico/criminal correspondem a uma certa actividade. Pelo que, se diversos valores ou bens Jurídicos são negados, outros tantos crimes haverão de ser contados, independentemente de, no plano naturalístico, lhes corresponder uma só actividade, isto é, de estarmos perante um concurso ideal. Inversamente, se um só valor é negado, só um crime existirá, já que a especifica negação de valor que no crime se surpreende reúne em uma só actividade todos os elementos que o constituem.
2.- Existe concurso efectivo, a punir como tal, nos termos do disposto nos art. 30° n° 1 e 77° do Código Penal, entre:
- crime de fraude nas mercadorias p.p. pelo art. 23° n° 1 al. a) do Decreto - Lei n° 28/84, de 20 de Janeiro ( Regime Jurídico das Infracções Antieconómicas e Contra a Saúde Publica )
- crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos p,p, pelos art. 222° n° 1 e 2, 224° n° 1 al. a) e c) e 245° n° 1 e 3, este ultimo com referência ao art. 323° al. c), d) e f) , todos do Código de Propriedade Industrial.
4 - Por serem diversas as previsões normativas preenchidas pela conduta do arguido, diferentes os fundamentos da sua punição e diferentes os bens jurídicos protegidos pelas referidas normas incriminadoras;
5.- Enquanto que no crime de fraude nas mercadorias se protege imediatamente a confiança que deve merecer aos cidadãos o sistema económico instituído, no crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos protege-se a defesa dos titulares das marcas das práticas concorrenciais ilegais;
6.- Nenhuma das normas em presença se apresenta como um tipo especial em relação á outra, pelo que não se regista a regra da especialidade que impõe o afastamento da lex generalis em benefício da lex specialis, não se verificando uma relação de mais para menos entre as normas (no sentido de que a realização do mais grave inclui a realização do menos grave) e, como supra se referiu, os valores protegidos pelas mesmas são diversos, pelo que não pode dizer-se que uma das normas consome já a protecção que a outra visa, e isto afasta a regra da consunção.
7.- A sentença a quo não procedeu ao correcto enquadramento jurídico da matéria de facto ali dada como provada, razão pela qual violou o disposto nos art. 30° n° 1 e 77° , ambos do Cod. Penal.
8. - Pelo que deverá a douta sentença proferida ser substituída por outra que, nesta parte, condene o arguido A..., para além do crime de fraude nas mercadorias, pela prática em autoria material e em concurso efectivo, nos termos dos art. 14° n° 1, 26°, 30° n° 1 e 77° , todos do Cod. Penal, pela prática do crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos p.p. pelos art. 222° n° 1 e 224° n° 1 al. a) e c) e 245° n° 1 e 3, este ultimo com referência ao art. 323° al. c), d) e f) , todos do Código de Propriedade Industrial, em pena adequada de acordo com a gravidade dos factos, necessária e suficiente para a salvaguarda das necessidades de prevenção geral e especial que, no caso, se impõem e de acordo com o disposto nos art. 40°, 70° e 71º todos do Código Penal.

O recurso foi admitido.
Na resposta o arguido nada disse.

Nesta instância o Exmº Srº Procurador-Geral Adjunto acompanha a posição do recorrente.

O presente recurso tem por única questão averiguar e decidir se há concurso efectivo entre o crime de fraude nas mercadorias p.p. pelo art. 23° n° 1 al. a) do Decreto - Lei n° 28/84, de 20 de Janeiro ( Regime Jurídico das Infracções Antieconómicas e Contra a Saúde Publica ) e o crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos p,p, pelos art. 222° n° 1 e 2, 224° n° 1 al. a) e c) e 245° n° 1 e 3, este ultimo com referência ao art. 323° al. c), d) e f) , todos do Código de Propriedade Industrial.

Com interesse para a decisão da causa está provado que:
- No dia 25.01.2004, pelas 12h45m, na estrada das Matas, em Pataias, Alcobaça, o arguido A... detinha, com vista à sua exposição e venda em feiras, tinha:
- vinte e sete fatos de treino que ostentavam, nos lugares próprios e habituais, os símbolos e “dizeres” da marca “Adidas”, no valor total aproximado, no mercado interno, de € 1.620,00;
- duas camisolas que ostentavam, nos lugares próprios e habituais, os símbolos e “dizeres” da marca “Nike”, no valor total aproximado, no mercado interno, de € 70,00;
- uma camisola, que ostentava, nos lugares próprios e habituais, os símbolos e “dizeres” da marca “Adidas”, no valor total aproximado, no mercado interno, de € 35,00;
- uma camisola, que ostentava, nos lugares próprios e habituais, os símbolos e “dizeres” da marca “Lacoste”, no valor total aproximado, no mercado interno, de € 35,00;
- uma camisola, que ostentava, nos lugares próprios e habituais, os símbolos e “dizeres” da marca “Nike”, no valor total aproximado, no mercado interno, de € 35,00,
tudo no valor global de € 1.820,00 (mil oitocentos e vinte euros);
. tais artigos de vestuário foram adquiridos pelo arguido A... com conhecimento de que, aquando da sua produção, lhe haviam sido apostos todos os símbolos e referências das marcas supra referidas, de forma que em tudo se tornavam semelhantes às verdadeiras marcas, que não está autorizado a usar e que se encontram patenteadas e registadas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial para artigos de vestuário;
. quer os símbolos, quer o próprio tecido daqueles artigos de vestuário, não são das marcas “Nike International, LTD” e “Adidas Sportschuhfabriken Adi Dassler Stiftung & Co KG”, nem foram fabricadas com o conhecimento e/ou com autorização dos respectivos proprietários;
. as peças de vestuário que ostentavam os símbolos e dizeres da marca “Nike” são diferentes das originais, uma vez que não tinham apostas três etiquetas, uma delas de tamanho e fabrico, outra de composição e a última com a referência do produto e de código de barras;
. as peças de vestuário que ostentavam os símbolos e dizeres da marca “Nike” não fazem parte das colecções da verdadeira marca “Nike”;
. por sua vez, as peças de vestuário que ostentavam os símbolos e dizeres da marca “Adidas” são diferentes das originais, uma vez que:
- não fazem parte de nenhuma colecção de marca “Adidas”;
- os modelos não são originais da marca “Adidas”;
- não ostentam as etiquetas estampadas com as instruções de lavagem, tamanhos e origens de fabrico das mesmas, originais da marca “Adidas”;
- o material em que foram fabricadas, assim como os acabamentos, bordados e estampados não respeitam os padrões de qualidade exigidos pela marca “Adidas”;
- não têm apostas as etiquetas de cartão com as referências, as cores, tamanhos e códigos internos dos respectivos artigos;
- não têm apostas as etiquetas decorativas da marca “Adidas”;
- não se encontravam embaladas em sacos de plástico da marca “Adidas”;
. os símbolos referidos e as semelhanças dos modelos e dos tecidos eram susceptíveis de sugestionar o público consumidor de, ao comprá-las, estar a adquirir os verdadeiros fatos de treino e camisolas das verdadeiras marcas;
. o arguido tinha conhecimento de que aqueles artigos eram mera imitação das marcas “Nike International, LTD” e “Adidas Sportschuhfabriken Adi Dassler Stiftung & Co KG”, até porque bem sabia que estes artigos têm um preço não inferior, em média, a € 100,00 por unidade, quando tinha adquirido cada facto de treino ao preço de € 12,00, e pago a quantia de € 5,00 por cada camisola e que propunha vender aqueles, respectivamente, por preço situado entre os € 25,00 e os € 10,00;
. o arguido pretendia retirar dessa actividade vantagens patrimoniais a que sabia não ter direito, ciente que o fazia em prejuízo do público consumidor, bem como dos proprietários das marcas supra referidas;
. o arguido, porque tinha conhecimento que as peças de vestuário em questão ostentavam marcas não correspondentes às verdadeiras, aceitou recebê-las para o comércio sem qualquer factura ou guia de remessa, por não lhe ter sido passada nem por ele exigida, apesar de saber que não é permitida a circulação de tais mercadorias, mesmo de origem nacional, sem estarem acompanhadas dessas facturas ou guias de remessa contendo a data, nomes e residências dos vendedores e compradores e suas assinaturas, menção de sua origem ou procedência, qualidade e quantidade, marcas e números, cores e quaisquer outros sinais de diferenciação;
. o arguido tinha consciência de que, sem tais documentos, lhe estava vedado a detenção, transporte e exposição para venda desses produtos, assim como que a lei lhe impunha a obrigação de identificar o vendedor a quem adquiriu as mercadorias;
. o arguido actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente bem sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei;
. o arguido e a esposa trabalham nas feiras, auferindo, em média, € 250,00 mensais;
. o arguido beneficia do rendimento social de inserção;
. o arguido um filho menor;
. o arguido foi condenado, por sentença datada de 28.05.2004, na pena de 50 dias de multa à taxa de € 5,00 diários pela prática de um crime de receptação, p. e p. pelo nº 2 do art. 231º do Código Penal.

Do concurso de crimes

Considerou a sentença recorrida que o arguido detinha para venda um conjunto de peças de vestuário que ostentavam símbolos e dizeres referentes às marcas registadas “Adidas”, “Nike” e “Lacoste”, sendo em tudo semelhantes, mas não verdadeiras.
Tais bens não apresentavam as características das originais quanto ao dizeres apostos, havendo, como tal, similitude gráfica, fonética e figurativa, sendo susceptível de induzir o público consumidor em erro ou confusão.
Por fim, estavam em causa peças de vestuário do tipo comercializado pelas respectivas marcas, ainda que não pertencentes à colecção da marca.
Ainda que estes factos sejam passíveis de se subsumir a qualquer dos tipos objectivos dos crimes imputados ao arguido, decidiu que estamos em face de uma conduta una, o que, aliado à imputação a título de dolo, arreda desde logo a possibilidade de nos depararmos com uma situação de concurso efectivo.

E expressa esta conclusão no seguinte raciocínio:
O legislador, no n.º 1 do art. 30º do Código Penal, estabeleceu que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.
Tendo em vista uma ou várias acções do agente, na primeira parte do preceito estamos em face do concurso heterogéneo (realização de diversos crimes), sendo que, na segunda parte, nos deparamos com o concurso homogéneo (realização plúrima da mesma norma incriminadora).
No entanto, para a afirmação de um concurso efectivo, não basta a ocorrência deste condicionalismo, já que cada crime tem um tipo objectivo e um tipo subjectivo, sendo ainda essencial a afirmação da culpa do agente.
A referência do n.º 1 do artigo 30º do Código Penal a “tipo de crime” deve ser lida, pois, como a “tipo legal objectivo e subjectivo”, havendo que ter em consideração o acto de vontade pressuposto por cada crime ou cada preenchimento do mesmo crime.[ Eduardo Henriques da Silva Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, Coimbra, 1996 (2ª reimp.), págs. 94 e ss.; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Coimbra, sumários policopiados, Universidade de Coimbra, 1976, págs. 119 e 120; Ac. STJ 15.05.1991, CJ, ano XVI, tomo III, pág. 16 e ss.; Ac. STJ 12.01.1994, CJSTJ, ano II, tomo I, pág. 190 e ss.; Ac. RC 21.11.1996, CJ, ano XXI, tomo V, pág. 52 e ss.; Ac. RC 10.01.2001, CJ, ano XXVI, tomo I, pág. 47 e ss.]
No caso vertente, estando em causa a imputação dos crimes de fraude nas vendas e de contrafacção a título de dolo, para que se verifique uma situação de concurso efectivo tem de se afirmar, nomeadamente, o dolo do tipo, mais propriamente o elemento volitivo do dolo.
Ora, não é curial que, sendo a conduta única, o arguido tivesse uma pluralidade de resoluções criminosas em termos de se poder imputar a prática, em concurso efectivo, de dois crimes e, como tal, dirigir-se uma duplicidade de juízos de censura.
O que existe, sim, é um concurso de normas ou aparente, em que o crime de fraude nas vendas, por mais amplo, já que tem em vista a protecção do público consumidor em geral e reflexamente os titulares das marcas, prescindindo mesmo do seu registo.
Trata-se de um caso nítido da relação consumpção entre normas, já que, nas palavras do Professor Doutor Eduardo Correia, “entre os valores protegidos pelas normas verificam-se por vezes relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa”.[ Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. II, Almedina, Coimbra, 1993 (reimp.), pág.205]
Mais concretamente, dado ter uma maior abrangência, a norma que consagra o crime de fraude nas vendas assim como um âmbito de protecção, mesmo ao nível do bem jurídico tutelado, afirma-se como lex consumens, abarcando o desvalor da conduta subsumível à norma que prevê o crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, que se erige como lex consumpta [ Ac. RP 02.06.1999, CJ, ano XXIV, tomo III, pág. 237 e ss.; Ac. RP 12.02.2000, CJ, ano XXV, tomo IV, pág. 223 e ss.].
Diferente seria já a hipótese de ser o arguido o fabricante da roupa e ulteriormente proceder à sua venda, caso em que, eventualmente se poderia cogitar da hipótese de concurso efectivo, atenta a cisão temporal dos comportamentos, compatível com uma pluralidade de resoluções [ Esta parece ser o caso sobre que versa o Ac. RP 07.01.2004, www.dgsi.pt; o Ac. RG 04.04.2005, CJ, ano XXX, tomo II, págs. 305 e 306; e o Ac. RP 12.10.2005, www.dgsi.pt; adoptando a posição-regra do concurso efectivo em virtude da dualidade de bens jurídicos, vide Ac. RP 05.02.2003, CJ, ano XXVIII, tomo I, pág. 217 e ss.; Ac. RG 17.03.2003, www.dgsi.pt], ao contrário do que sucede no caso sub iudice...
Em face do exposto, e uma vez que o arguido, ao deter para venda peças de vestuário que ostentavam os dizeres de marcas diversas sem que correspondessem a produtos originais, preencheu o tipo objectivo do crime de fraude nas mercadorias pelo qual vem acusado.
Por sua vez, agiu com conhecimento de que tais bens não eram originais, bem como que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, e, ainda assim, não se absteve de a levar a cabo, estando igualmente afirmados os elementos intelectual e volitivo do dolo do tipo.
Esta sua conduta espelhou uma atitude de desrespeito e contrariedade face aos bens jurídicos defendidos pelo Direito Penal, estando igualmente a afirmada a sua culpa na forma de dolo.

Com base nesta argumentação decidiu absolver o arguido da prática, como autor material, de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelos n.os 1 e 2 do art. 222º, n.º 1 do art. 224º, als. a) e c) do n.º 1 e n.º 3 do art. 245º e do art. 324º, este último com referência às als. c), d) e f) do art. 323º do Código da Propriedade Industrial.

Ou seja, considerou a sentença recorrida que sendo a conduta única não há duplicidade de censura porque o mesmo bem jurídico está desde logo protegido na fraude nas vendas. O crime de fraude nas vendas tem em vista a protecção do público consumidor em geral e reflexamente os titulares das marcas, prescindindo mesmo do seu registo.
Desde logo e sem questionar o acerto da doutrina e jurisprudência citada, a sentença parte de um pressuposto errado: os crimes protegem interesses jurídicos distintos. O crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos protege o interesse comercial da marca e o crime de crime de fraude nas mercadorias protege os interesses do público em geral.
Assim sendo é pertinente atender ao disposto no art. 30 n.1 do Código Penal quando refere que o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos.
Mesmo sem ser industrial de fabrico das roupas o arguido atenta contra o interesse comercial da marca quando as vende, sabendo que a marca anunciada não corresponde à realidade.
Existe uma relação de concurso efectivo de crimes, quando a conduta do agente preenche o crime de fraude sobre mercadorias, p e p pelo art. 23º do Dl 28/84 e o crime de contrafacção de marcas, p e p pelo art. 324 do Cód Propriedade Industrial, aprovado pela L nº 36/2003, de 5 de Março.
Na verdade, as normas do artigo 324º do C.P.I. e a do art.23º. nº1, al. a), do Dec. Lei nº28/84, de 20-01, não punem os mesmos factos, ou seja, tutelam distintos bens jurídicos.

No crime de fraude sobre mercadorias, o bem jurídico protegido é a confiança dos adquirentes/consumidores na genuidade e qualidade dos produtos, susceptíveis de ser defraudadas pela aparência imitativa da mercadoria e idónea a enganar.

No art. 23º, do DL 28/84, prevê-se a fraude sobre mercadorias, como crime contra a economia. O interesse aqui protegido é, essencialmente, o do consumidor. Aqui protege-se a boa-fé nas relações, negociais. Este interesse não está dependente da existência ou não duma marca, como tal. O seu âmbito é mais amplo. Pune-se já não apenas o uso da marca, ou a venda de mercadorias com marcas contrafeitas ou imitadas, mas mais do que isso, pune-se quem, nas relações negociais.... puser em circulação... mercadorias contrafeitas, falsificadas ou depreciadas, fazendo-as passar por autênticas, não alteradas ou intactas.

O escopo desta punição não está na defesa da marca, mas na boa-fé das negociações, na depreciação das mercadorias seu objecto. Enquanto que na venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos é a protecção da titularidade da marca registada, como elemento constitutivo do direito de propriedade industrial, que não a autenticidade dos produtos, se bem que em todos eles esteja subjacente um engano (voluntário na fraude sobre mercadorias) e o propósito de causar prejuízo a outrém ou de alcançar um beneficio ilegítimo (na venda de material contrafeito).

A contrafacção de "marcas registadas" põe em causa a tutela legal contra a falsificação das marcas de procedência, ou seja, os sinais indicativos da pertença de uma mercadoria a uma empresa determinada, que permitam diferenciá-la das similares dos seus competidores no mercado.
Não estamos, pois, perante uma situação de concurso legal, aparente ou impuro de crimes, em que a conduta do arguido, como se sentenciou, preencheu formalmente os indicados crimes mas, por via da interpretação se concluiu e decidiu que o cerne da conduta é totalmente abrangido por um só dos tipos violados.
Ocorre a consumpção sempre que o preenchimento de um tipo inclui já o preenchimento de um outro tipo de menor abrangência, assegurando ou consumindo já a protecção visada por este, só aquele podendo ser aplicado, sob pena de violação do princípio "ne bis in idem".
A conduta do arguido espelha uma relação de concurso efectivo de crimes, de fraude sobre mercadorias, previsto e punido pelo artº 23º, nº1. al. a) do Dec. Lei nº 28/24, de 20/1, e Venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos p e p pelo art. 324 do Cód Propriedade Industrial, por aplicação do disposto no artº 30º, nº1 do Cód. Penal, face à comprovada violação, pelo arguido, com a sua conduta, daqueles distintos bens jurídicos [ Veja-se neste sentido Acórdão da RP de 12/10/05, de 5/0203 ( na base de dados da DGSI ) e de 2000/06/28 IN CJ T3 ANOXXV pag. 239.].

Apurado que o arguido tinha conhecimento de que aqueles artigos eram mera imitação das marcas “Nike International, LTD” e “Adidas Sportschuhfabriken Adi Dassler Stiftung & Co KG” e que actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente bem sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei; encontram-se preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de venda, circulação ou ocultação de produtos e por ele deve ser punido.
Ao crime corresponde pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias- art. 324º do Código de Propriedade Industrial.
No caso, a pena de multa satisfaz plenamente as finalidades da punição e como tal deve ser aplicada.
Tudo ponderado considerando os limites fixados na lei para o tipo legal de crime; a mediana gravidade da ilicitude, aferida em função do conjunto de mercadoria apreendida; a intensidade da culpa diminuída em função da condição sócio-cultural do arguido, pouco sensível à percepção dos objectivos da norma e à sua desfavorável condição económica é adequada a pena de 90 dias de multa à taxa diária de 5 €.

Termos que na procedência do recurso, condena-se o arguido A... pela prática, como autor material, de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelos n. 1 e 2 do art. 222º, n.º 1 do art. 224º, als. a) e c) do n.º 1 e n.º 3 do art. 245º e do art. 324º, este último com referência às als. c), d) e f) do art. 323º do Código da Propriedade Industrial na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 5 €.

- Em cumulo jurídico, fixa-se a pena única de multa em 320 dias à taxa diária de 5 € e subsidiariamente, caso não a cumpra, na pena de 213 dias de prisão (nº 1 do art. 49º do Código Penal).
- Mantém-se no mais a decisão recorrida.

Custas pelo recorrido - 2 UC de taxa de justiça.