Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
420/08.2TBFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: CASO JULGADO
PEDIDO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 11/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 456º, 498º/1 E 673º DO CPC
Sumário: 1 – A identidade do pedido pressuposta pela excepção de caso julgado não pode deixar de atender ao objecto da sentença anterior e às relações de implicação dele decorrentes, bem como à interpretação que o tribunal fez dos fundamentos invocados pelas partes.

2 – No actual conceito de litigância de má fé, compreende-se a temeridade na lide.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

  

  A... e B..., AA. na acção, residentes ...., interpuseram recurso de apelação da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Figueiró dos Vinhos.

   Pretendem a revogação da sentença, com consequente prosseguimento dos autos.

   Formulam as seguintes conclusões:

   Não há similitude integral de pedidos.

   A condenação anterior não abrange todas as questões suscitadas na presente acção.

   É determinante saber quais os limites e extensão do caminho, qual a realização e implantação do mesmo e quais as extremas dos prédios confinantes, se a abertura do caminho, para além dos 8m, não constitui abuso de direito.

   Por erro de interpretação e/ou aplicação da fundamentação não se mostram correctamente observados e aplicados os princípios do processo civil e os dispositivos aplicáveis e, concretamente, o disposto no Artº 498º do CPC.

   C... e D...., RR. na acção, residentes ....., não contra-alegaram.

   Mostra-se também interposto recurso de apelação da decisão relativa à litigância de má fé, este da autoria dos RR., C.... e D.....

   Os RR. formulam aí as seguintes conclusões:

   A sentença foi excessivamente benevolente para com os AA. quando considera que eles não vêm litigando de má fé, mas tão só de forma temerária.

   Os apelados litigam de má fé, pelo que devem ser condenados nos termos peticionados.

   Também aqui os AA., A... e B..., não contra-alegaram.


*


   O processo resume-se ao seguinte:
   Os AA. pedem a condenação dos RR.  (1) a reconhecer que a faixa de terreno afecta ao antigo caminho que existiu, com a largura de 2,5m, entre a actual Av. .... e o entroncamento, do lado nascente do prédio dos RR., faz parte integrante do prédio dos AA., (2) a reconhecer que, sobre o prédio dos AA. nenhum direito real de gozo têm desta faixa de terreno e os RR., eventualmente, só necessitariam de se servir da extensão da faixa, de cerca de 8,00m, desde a Av. ..., para nascente, (3) a reconhecer que a estrema ou linha divisória entre os prédios confinantes de AA. e RR. se encontra estabelecida desde o muro existente a nascente do prédio dos RR., topo lado norte, passando em recta, entre os ditos muretes, e pelo meio dos pilares onde se mostram fixados os portões de RR. e AA., prolongando-se em recta até atingir a Av. ..., a poente e (4) a reconhecer que a demolição do murete, pilares e rede dos AA., desde os 8,30m até ao aludido entroncamento, constituiria um abuso de direito.
   A título subsidiário pedem ainda os AA. a condenação dos RR. a (1) reconhecer que se encontram obrigados a concorrer para a demarcação dos prédios e estabelecimento da estrema entre o seu prédio e o dos AA., (2) nessa eventualidade, a linha de estrema deverá ser definida e estabelecida conforme o ponto 3 do pedido.
   Alegam para o efeito, e em síntese, que são donos de um prédio que identificam, que os RR. estão condenados por decisão transitada em julgado a reconhecer que os AA. são donos de tal prédio, que os RR. são donos de outro prédio e que na acção em que foi proferida a sentença supra mencionada os RR. pediram, em reconvenção, a reabertura de um caminho, o que se encontra em fase de execução para prestação de facto por parte dos AA. (reabertura de um caminho com a largura de 2,5m ao longo do lado norte do prédio dos RR., com início na Av. ... ... até ao entroncamento do lado nascente do terreno dos RR.), que o espaço de terreno destinado ao caminho está disponível a AA. e RR., que, daí em diante se construiu um murete, que foram colocados portões por ambos nos respectivos prédios, que os RR. renunciaram a qualquer passagem pelo referido caminho, que os RR. não necessitam do caminho para aceder ao seu prédio.
   Os RR. contestaram invocando a excepção de caso julgado decorrente da decisão proferida no âmbito do processo nº ...3/2000, alegando que nesta acção os AA. viram recusada a sua pretensão de fazerem seu o espaço correspondente ao caminho que confronta, parcialmente, com ambos os prédios e foram condenados a reabrir o caminho que sempre existiu, com a largura de 2,5m, ao longo do lado norte do prédio... até ao entroncamento do lado nascente do terreno dos RR., com início na Rua ..., decisão que ainda não cumpriram e que está em execução, pelo que não tendo os RR. nunca questionado o direito dos AA. sobre o seu prédio com as confrontações decididas na mencionada acção, no pedido que agora fazem os AA. repetem-se porquanto voltam à questão das confrontações e do direito de propriedade sobre a faixa de terreno que faz parte integrante do caminho.
   Os RR. vieram também deduzir litigância de má fé contra os AA. alegando que os mesmos trazem á acção motivações falsas que não podem desconhecer, que repetem o pedido, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não podem ignorar.
   Os AA. responderam á matéria da excepção invocando que não existe identidade de pedido, nem de causa de pedir porquanto a presente acção visa também a condenação dos RR. a reconhecerem que a faixa de terreno afecta ao caminho entendido a separar os prédios dos AA. e RR. faz parte integrante do seu prédio e sobre a mesma têm domínio e que ao Tribunal não foi posta ainda a questão de apreciar e decidir qual a natureza do caminho e a propriedade da faixa de terreno a ele afecta.
   Igualmente os AA. deduzem litigância de má fé contra os RR..
    O Tribunal a quo, na fase do saneador, proferiu decisão julgando verificada a excepção de caso julgado e absolvendo os RR. da instância, tendo, quanto à litigância de ma fé concluído que os AA. litigaram de forma temerária, mas não de má fé e, quanto aos RR., os mesmos se limitam a defender no estrito formalismo legal, nada havendo a apontar ao seu comportamento processual, pelo que não há que condenar nem AA., nem RR., como litigantes de má fé.


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   O Tribunal recorrido considerou de relevo para a decisão a seguinte factualidade:


A)

   Os aqui AA. apresentaram em Juízo no dia 06-11-2006 petição contra os aqui RR. à qual, apresentada à distribuição, coube o número ...3/2000.

B)

   Nela, pediam os AA. que os RR. fossem judicialmente condenados a: 1) Reconhecer que os AA são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 1º da petição; 2) Absterem-se doravante e definitivamente de, directa ou indirectamente, por si ou por interposta pessoa, por qualquer forma, invadir ou passar pelo prédio dos AA, bem como destruir o muro que estes ali tinham erguido e vão de novo edificar; 3) A indemnizar os AA pelos danos causados, materiais e não patrimoniais, no valor de 339.000$00 (trezentos e trinta e nove mil escudos), acrescidos de juros legais, até efectivo pagamento e dos que se vierem a liquidar, em execução de sentença; 4) Nas custas e procuradoria condigna.

C)

   O “prédio identificado no artigo 1º da petição” é o seguinte: Casa de habitação de cave e rés-do-chão, casa de arrecadação de rés-do-chão e 1º andar com terreno anexo, sita na Avenida Dr. ..., em ..., inscrito a parte urbana sob os artigos ... (casa) e ... (arrecadação) e a parte rústica sob o artigo ... da freguesia de ..., a confrontar no seu todo, de norte com via pública, do nascente com E.... ..., do sul, em parte, os RR e do, poente, com a Avenida Dr. ....

D)

   Como causa de pedir, alegavam os AA então que: 1) A parte rústica do descrito em c) adveio à titularidade e posse dos AA por contrato de compra e venda celebrado mediante escritura pública no dia 14-09-1979, lavrada no Cartório Notarial de ..., de fls. 5 a 47 do livro 284, tendo sido vendedores E.... e mulher F....; 2) A parte urbana do descrito em c) foi construída de raiz pelos AA, na sequência da aquisição do dito terreno; 3) Após a aquisição do prédio rústico, os AA, em parte, continuaram a praticar actos de posse e, noutra parte, construíram a sua casa de habitação; 4) Logo após a conclusão da casa de habitação, os AA ali passaram a viver, concretamente a confeccionar e a tomar as refeições, a dormir, passar os momentos de lazer, dia após dia, à vista de generalidade das pessoas; 5) No rés-do-chão da casa de habitação, os AA instalaram um pequeno comércio, denominado restaurante “O Emigrante”, aberto ao público em geral; 6) Pelo que os AA, por usucapião, adquiriram o direito de propriedade; 7) Os RR, sem título ou posse válida, em Julho de 1999, em parte do prédio, mais concretamente junto à Avenida Dr. ... e, do lado sul, no acesso de pé e de carro que os AA fizeram para a sua habitação e estabelecimento, destruíram parte do muro lateral desse mesmo lado no cumprimento de 8,30 metros, por uma altura de 0,70 metros, e por onde pretendem entrar e passar para um outro prédio rústico a que os RR se intitulam donos; 8) Com tal actuação, os RR causaram prejuízo material aos AA, correspondente ao custo das obras que destruíram; 9) Os AA, face à conduta dos RR, com invasão, destruição, devassidão e ocupação parcial do seu prédio, têm vivido uma situação de grande intranquilidade, inquietação, angústia, tristeza e desgosto, o que os fez andar abatidos, tristes e doentes.

E)

   Em reconvenção, os RR. pediram ali a condenação dos AA a: a) Reabrir o caminho que sempre existiu, com a largura de 2,5 metros, ao longo do lado norte, até ao entroncamento do lado nascente do terreno dos RR/reconvintes, com início na Avenida Dr. ...; b) Demolir a construção que fizeram sobre a parede de suporte de terras da propriedade dos RR/reconvintes.

F)

   Como causa de pedir, alegavam os RR/reconvintes que: a) A propriedade rústica dos AA, inscrita na matriz predial sob o artigo ... da freguesia e concelho de ... não confronta a sul com terreno dos RR; b) Tal terreno situa-se a sul e oeste do dos AA, e a separá-los a sul sempre existiu um caminho; c) Os AA fizeram desaparecer esse caminho, ocupando a sua área, em finais dos anos “80”; d) Para tanto, muraram os seus prédios, anexando toda a área do caminho; d) Tal posse nunca foi pacífica nem nunca os antepossuidores dos prédios dos AA ocuparam aquela faixa de terreno, em que se consubstanciava o caminho; e) Os RR efectivamente destruíram em Julho de 1999 a secção daquele muro que existia sobre o caminho, mas no exercício de um direito próprio; f) O mesmo já havia sido declarado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, nos autos de processo comum nº 3/1999, que correram termos neste Tribunal.

G)

   Após decisão na 1ª Instância, aqueles autos nº ...3/2000 subiram à apreciação do Tribunal da Relação de Coimbra, em recurso de apelação interposto por AA e RR.

H)

   Aí se decidiu, por acórdão de 2-12-2003, há muito transitado em julgado, julgar em parte procedentes os recursos de apelação interpostos e, em consequência: a) Confirmar a sentença proferida na 1ª Instância, quando reconheceu aos AA o domínio ou direito de propriedade sobre o imóvel identificado em C); b) Julgar, no mais, a acção improcedente, absolvendo os RR do demais peticionado; c) Julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional e, em consequência, condenar os AA/Reconvindos a reabrir o caminho que sempre existiu, com a largura de 2,5 metros, ao longo do lado norte do prédio dos RR, até ao entroncamento do lado nascente desse terreno, com início na Avenida Dr. ...; d) Julgar, no mais, a reconvenção improcedente, absolvendo os AA/Reconvindos do demais peticionado.

I)

   Mais se escreveu naquele Acórdão que: “Da prova produzida, não resulta a quem pertence esse pedaço de terreno. Mas resultou provado que os RR e antecessores se serviam desse caminho e que os RR e todos os vizinhos se serviam do mesmo caminho. Isto é, resultou provado que os AA e os RR exerceram sobre o caminho um direito de acesso aos seus prédios, e que os AA procuraram expandir o seu prédio para essa faixa de terreno, eliminando aquele direito de passagem dos RR, perturbando estes no exercício do seu direito. Face à prova produzida, não se vê que os AA dispusessem de qualquer título válido e legitimo para eliminarem o direito de passagem”.

J)

   Mais se lê que: “Diversamente, não se provou que essa parcela de terreno estivesse afectada à satisfação de outra utilidades, nomeadamente para cultivo da própria terra” (fls. 31-verso); “Considerando que se deu como provado que a faixa de terreno constitui um caminho, cremos que se deve reconhecer, tanto aos AA como aos RR um direito de passagem, como direito de acesso aos respectivos prédios, através da mencionada parcela de

terreno, qualificado como um direito de servidão de passagem ou serventia de passagem, com a largura de 2,5 metros”.


K)

   Mais explicitamente ainda, aí se escreveu que “Os AA não fizeram a prova de que o terreno em que assentou a construção do muro destruído pelos RR faça parte integrante do seu prédio”.

L)

   Encontram-se pendentes neste Tribunal os autos de execução para prestação de facto, tendo por objecto a reabertura do aludido caminho – processo nº ...3-A/2000.

M)

   Nestes autos, os AA pedem que os RR sejam judicialmente convencidos a reconhecer que: a)“…A faixa de terreno afectada ao antigo caminho que existiu, com a largura de 2,5 metros, entre a actual Av. ... e o entroncamento, do lado nascente dos prédios dos RR, faz parte integrante do prédio dos AA”; b) “…Que sobre o prédio dos AA nenhum direito real de gozo têm desta faixa de terreno”; c) “Que a estrema ou linha divisória entre os prédios confinantes de AA e RR se encontra estabelecida desde o muro existente a nascente do prédio dos RR, topo lado norte, passando em recta, entre os ditos muretes e pelo meio dos pilares; onde se mostram fixados os portões, de RR e AA, prolongando-se em recta, até atingir a Av. ..., a poente”; d) “…Que a demolição do murete, pilares e rede dos AA, desde os 8,30 m até ao aludido entroncamento, constituiria um abuso de direito”. Quando assim se não entenda, pede-se ainda que os RR reconheçam: “e) “…Que… se encontram obrigados a concorrer, para a demarcação dos prédios e estabelecimento da estrema, entre o seu prédio e o dos RR; f) Nessa eventualidade, a linha de estrema deverá ser definida e estabelecida conforme c).


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   Das conclusões apresentadas, extraem-se as seguintes questões a decidir:

A) Recurso dos AA: Inexistência de caso julgado.

B) Recurso dos RR.: Litigância de má fé por parte dos AA..


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   Apreciemos a primeira das enunciadas questões – o caso julgado.

   Alegam os AA. que não existe similitude integral de pedidos, porquanto é determinante saber quais os limites e extensão do caminho, qual a realização e implantação do mesmo e quais as estremas dos prédios confinantes, se a abertura do caminho para além dos 8m não constitui abuso de direito.

   A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, repetição essa que assenta na identidade de elementos definidores de ambas as acções.

   A causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (Artº 498º/1 do CPC).

   No caso concreto, a discussão incide sobre a identidade de pedidos.

   Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (nº 3).

   Conforme ensina Lebre de Freitas, “na definição de identidade do pedido há que atender ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem” (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª Ed., 349).

   Por outro lado, e conforme decorre do que dispõe o Artº 673º do CPC, a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, o que leva o mesmo autor a escrever que “a interpretação do âmbito objectivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença” relevando “a leitura que a sentença faça sobre o objecto do processo”, de tal forma que, tendo o caso julgado a extensão objectiva definida pelo pedido e pela causa de pedir, “não é indiferente a interpretação que o próprio tribunal faça da extensão de um e de outra...” (ob. cit., 718).

   Dito de outra forma, não é indiferente ao caso julgado a fundamentação colhida para obtenção da decisão.

   Como se escreve na decisão em recurso, citando Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 3ª Ed., 201, “a nós afigura-se-nos que ponderadas as vantagens e inconvenientes das duas teses em presença, que a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim da estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidos por aquele critério ecléctico, que, sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva”, solução para a qual, assumidamente, se propendeu.

   Pretendem os AA. nesta acção a condenação dos RR. (1) a reconhecer que a faixa de terreno afecta ao antigo caminho que existiu, com a largura de 2,5m, entre a actual Av. ... e o entroncamento, do lado nascente do prédio dos RR., faz parte integrante do prédio dos AA., (2) a reconhecer que, sobre o prédio dos AA. nenhum direito real de gozo têm desta faixa de terreno e os RR., eventualmente, só necessitariam de se servir da extensão da faixa, de cerca de 8,00m, desde a Av. ..., para nascente, (3) a reconhecer que a estrema ou linha divisória entre os prédios confinantes de AA. e RR. se encontra estabelecida desde o muro existente a nascente do prédio dos RR., topo lado norte, passando em recta, entre os ditos muretes, e pelo meio dos pilares onde se mostram fixados os portões de RR. e AA., prolongando-se em recta até atingir a Av. ..., a poente e (4) a reconhecer que a demolição do murete, pilares e rede dos AA., desde os 8,30m até ao aludido entroncamento, constituiria um abuso de direito.

   Ora, na acção ...3/2000 decidiu-se, com trânsito em julgado, reconhecer aos AA o domínio ou direito de propriedade sobre o imóvel identificado em C), ou seja, “prédio urbano sito na freguesia de ... composto por casa de arrecadação composta de rés do chão com duas divisões e 1º andar com 2 divisões, sito na Rua Dr. ..., que confronta de norte com a via pública e sul, nascente e poente com o próprio, inscrito na matriz predial sob o artº 2822”; b) Julgar, no mais, a acção improcedente, absolvendo os RR do demais peticionado, ou seja, dos pedidos com a seguinte formulação: “2) Absterem-se doravante e definitivamente de, directa ou indirectamente, por si ou por interposta pessoa, por qualquer forma, invadir ou passar pelo prédio dos AA, bem como destruir o muro que estes ali tinham erguido e vão de novo edificar; 3) A indemnizar os AA pelos danos causados, materiais e não patrimoniais, no valor de 339.000$00 (trezentos e trinta e nove mil escudos), acrescidos de juros legais, até efectivo pagamento e dos que se vierem a liquidar, em execução de sentença”.

   Ainda na mesma acção, decidiu-se, com trânsito em julgado, condenar os AA/Reconvindos a reabrir o caminho que sempre existiu, com a largura de 2,5 metros, ao longo do lado norte do prédio dos RR, até ao entroncamento do lado nascente desse terreno, com início na Avenida Dr. ...; d) Julgar, no mais, a reconvenção improcedente, absolvendo os AA/Reconvindos do demais peticionado.

   Pretendem os apelantes que a condenação anterior não abrange todas as questões suscitadas na presente acção.

   Ora, se, por um lado, uma acção judicial não se destina a responder a questões, por outro o que releva são os pedidos concretamente formulados.

   E, não restam dúvidas, de que pedindo-se aqui a condenação dos RR. (1) a reconhecer que a faixa de terreno afecta ao antigo caminho faz parte integrante do prédio dos AA., (2) a reconhecer que, sobre o prédio dos AA. nenhum direito real de gozo têm desta faixa de terreno e os RR., eventualmente, só necessitariam de se servir da extensão da faixa, de cerca de 8,00m, desde a Av. ..., para nascente, (3) a reconhecer que a estrema ou linha divisória entre os prédios confinantes de AA. e RR. se encontra estabelecida desde o muro existente a nascente do prédio dos RR., topo lado norte, passando em recta, entre os ditos muretes, e pelo meio dos pilares onde se mostram fixados os portões de RR. e AA., prolongando-se em recta até atingir a Av. ..., a poente e (4) a reconhecer que a demolição do murete, pilares e rede dos AA., desde os 8,30m até ao aludido entroncamento, constituiria um abuso de direito, contende com o que decidido foi naquela acção.

   Na verdade, ali se decidiu já que o caminho, com os limites ali mencionados (em extensão e em largura) deve ser reaberto pelos AA., o mesmo é dizer que tal caminho não lhes pertence em exclusivo e que, porque o hão-de reabrir, os RR. têm direito de passagem sobre o mesmo.

   Conforme bem ensina Lebre de Freitas, é “inadmissível a formulação, em nova acção, dum pedido inverso ao da primeira” (ob. cit., 349), que é, no fundo, o que aqui se pretende.

   Donde, falecem por completo as conclusões apresentadas pelos apelantes AA., sufragando-se, por bem fundada, a sentença recorrida.

   Analisemos agora o recurso interposto pelos RR., limitado à questão da litigância de má fé por parte dos AA..

   Defendem os apelantes que a sentença foi excessivamente benevolente para com os AA., ora apelados, quando considera que estes não litigam de má fé, mas tão só de forma temerária.

   Alegam que há muito que os AA. vêm usando os meios judicias para provocar os RR. com a finalidade de protelar, durante o máximo tempo possível, a reabertura do caminho, conforme processo de execução ...3-A/2000, resultante da condenação dos mesmos referida nestes autos, intentando para o efeito a presente acção, bem sabendo que o pedido já fora tratado em processo há muito tempo transitado em julgado. Mais alegam, que há intenção dos RR. em litigar por litigar, deduzindo pretensão que bem sabem ser infundada.

   Os RR. pedem na acção a condenação dos AA. em multa e indemnização, devendo esta consistir no reembolso das despesas a que derem causa com o presente litígio, designadamente honorários de advogado, despesas deste para acompanhar o processo e deslocações ao Tribunal, bem como de outros prejuízos que causarem, tais como despesas com deslocações e lucros cessantes.

   A litigância de má fé, tendo como limite inultrapassável a garantia constitucional de acesso aos tribunais, tem como pressuposto a impossibilidade de, ao abrigo de tal garantia, as partes quererem fazer valer teses infundadas, injustas, ilegais, com o manifesto propósito de descredibilizar a Justiça e obstaculizar à célere resolução dos conflitos.

   Assim, se é verdade, que não se pode vedar ao cidadão o acesso á Justiça e aos tribunais, também é verdade que estes têm o dever de acatar as decisões judiciais, e, previamente, de formular pretensões justas e fundadas no direito.

   É por isso que, conforme decorre do que dispõe o Artº 456º do CPC, tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e indemnização á parte contrária (Artº 456º/1 do CPC).

   Litiga de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar (Artº 456º/2-a) do CPC).

   Na decisão em recurso considerou-se como temerária a litigância dos AA., assim se afastando a condenação.

   Ocorre porém que, após a reforma de 1995, e com a finalidade de atingir uma maior responsabilização das partes, se passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária.

   Na verdade, conforme decorre da norma supra citada, incorre em litigância de má fé quem actuar com grave negligência.

   Ora, “a lide diz-se temerária quando”... as “regras são violadas com culpa grave ou erro grosseiro, e dolosa, quando a violação é intencional ou consciente” (Lebre de Freitas, ob. cit., 219).

   Desta forma, se conclui desde já, que a sentença incorre em erro quando, classificando a lide como temerária, não condena os AA. em conformidade.

   Mas, para além disso, e como alegam os RR., ora apelantes, há, da parte dos AA. uma notória intenção de litigar por litigar, deduzindo pretensão que sabem ser infundada. E sabem-no porque a mesma já foi objecto de decisão transitada em julgado.

   Dos autos resulta ainda á saciedade que os AA. visam entorpecer a acção da justiça.

   Os AA. foram partes numa acção em que se discutia o pedido aqui também discutido, não obtiveram vencimento, tendo sido condenados a uma determinada prestação, os RR. estão a executar a sentença proferida a esse propósito e os AA. vêm interpor a presente acção com a finalidade já assinalada.

   De salientar ainda que destes autos, mais concretamente da matéria que acima se exarou, resulta que por causa do caminho em questão, foram já diversas as acções interpostas, com recursos até à Relação. A saber, para além daquela acção ...3/2000, da execução que lhe está anexa, e destes autos, ainda e também o procº 3/1999.

   Não se trata aqui de ousar na construção de teses jurídicas, nem de interpretar de forma distinta as regras do direito vigente e, muito menos, de falta de prova de factos que se aleguem.

   Trata-se aqui de litigar de má fé, na acepção pressuposta pela alínea a) do nº 2 do Artº 456º do CPC.

   Devem, por isso, os AA., ser condenados no pedido formulado, que é ilíquido.

   A multa, não dependendo de liquidação, poderá e deverá, desde já arbitrar-se.

   Considerando que a acção deu entrada em 3/10/2008, à multa aplica-se o regime decorrente do CCJ então vigente, pelo que, de acordo com o disposto no Artº 102º/b), a mesma se fixa em 10UC.


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   Em conformidade com o exposto, acorda-se em:

a) julgar improcedente a apelação apresentada pelos AA. e, em consequência, confirmar a decisão recorrida na parte em que absolveu os RR. da instância e

b) julgar procedente a apelação interposta pelos RR. e, em consequência, revogar, nessa parte, a decisão recorrida, condenando os AA. na multa de dez (10) UC e no pagamento, aos RR., de indemnização, devendo esta consistir no reembolso das despesas a que derem causa com o presente litígio, designadamente honorários de advogado, despesas deste para acompanhar o processo e deslocações ao Tribunal, bem como de outros prejuízos que causarem, tais como despesas com deslocações e lucros cessantes, a liquidar em execução de sentença.

   Custas pelos AA..

   Notifique.


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   Elabora-se o seguinte sumário:

   1 – A identidade do pedido pressuposta pela excepção de caso julgado não pode deixar de atender ao objecto da sentença anterior e às relações de implicação dele decorrentes, bem como à interpretação que o tribunal fez dos fundamentos invocados pelas partes.

   2 – No actual conceito de litigância de má fé, compreende-se a temeridade na lide.