Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2313/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA PENAL
RECURSO PARA A RELAÇÃO
Data do Acordão: 02/01/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: INCOMPETÊNCIA MATERIAL
Legislação Nacional: ART.º 82, N.º 1, DO C. P. PENAL
Sumário: No caso de interposição de recurso da decisão proferida em liquidação de execução de sentença prolatada em processo penal, a decisão desse recurso compete à secção civil do Tribunal da Relação competente.
Decisão Texto Integral:
Recorrente: Manuel Ribeiro Lopes.

Desavindo com a decisão prolatada no processo supra referido que julgando, parcialmente, procedente a liquidação de execução de sentença, impulsionada pelo demandante/exequente, Manuel Ribeiro Lopes, condenou a demandada/executada, “Companhia de Seguros Império, SA”, nas quantias de: a) – 374,80 euros, “a título de dano patrimonial referente à destruição do fato e sapatos que o exequente trazia vestido e calçados, na data do acidente; b) 11.5222,22 euros, “a título de dano patrimonial emergente do facto de o exequente não ter podido exercer a sua actividade profissional durante um certo período de tempo; c) – 20.949,51 euros, “a título de dano patrimonial futuro, em consequência das lesões sofridas, acrescendo às quantias liquidadas os juros moratórios “em conformidade com o estabelecido na sentença a cuja liquidação se procede”, recorre o demandante Manuel Ribeiro Lopes, pedindo que a executada seja condenada a pagar os juros moratórios vencidos desde a data da notificação para o pedido cível e devendo “as indemnizações a arbitrar ao exequente (ser calculadas) de acordo com uma incapacidade de 37%, fixada de acordo com a tabela nacional de incapacidades e fixando-se os períodos de incapacidade para o trabalho em 719 (dias)”.

Para o pedido que impetra alinha o recorrente as sequentes conclusões:

- o recorrente considera incorrectamente julgados os pontos 5,24 e 25 da decisão da matéria de facto e pretende que sejam alteradas as respostas dadas;

- Estabelece o nº1 al.a) do art. 712º do CPC, que a decisão do tribunal de 1ª instância pode ser alterada pela Relação, se do processo, constarem todos os elementos que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690º-A, a decisão com base neles proferida;

- Quanto ao ponto 25º, o tribunal respondeu “provado”, quando devia ter respondido “não provado”, pois os documentos de fls. 41 e 42, em que se baseou, não foram escritos pelo exequente e não tem força probatória plena para provar o real pagamento das importâncias neles referidas;

- Ou seja, não se encontra reconhecida a autoria dos documentos (no que diz respeito às declarações neles impressas), e portanto não têm força probatória formal e material plena relativa à emissão da declaração deles constante;

- Acresce que, dos autos, não consta qualquer documento comprovativo do envio dos recibos ao mandatário do exequente, nem foi ouvida nenhuma testemunha, em sede de audiência de julgamento, que comprovasse que tal envio ocorreu;

- Contrariamente ao que foi decidido em 1ª instância, não existe mora do credor, pois para que fosse legitima tal conclusão era necessário que tivesse sido invocado e provado – e não foi – que a executada ofereceu ao exequente a prestação devida, e que este, injustificadamente, a não recebeu;

- Por isso, deve a executada ser condenada no pagamento de juros moratórios, tal como foi peticionado, a contar da data da notificação para contestar a acção cível, até efectivo e integral pagamento;

- Também o ponto 5. da decisão da matéria de facto foi incorrectamente julgado, pois o tribunal devia ter respondido a este quesito com base nos elementos que constam do processo e que apontam para um período de doença de 719 dias, com incapacidade para o trabalho;

- Também o ponto 24., da decisão da matéria de facto foi incorrectamente julgado, pois a situação clínica do exequente, avaliada por um médico da especialidade, que elaborou um relatório, junto aos autos, e prestou depoimento, em audiência de discussão e julgamento, e tendo em conta os parâmetros fixados na tabela nacional de incapacidades, que é a única que existe no país;

- A tabela nacional de incapacidades, que tem por objectivo fornecer as bases de avaliação do prejuízo funcional sofrido em consequência de acidente de trabalho e doença profissional, com perda da capacidade de ganho (cfr. tabela nacional de incapacidades aprovada pelo DL nº 341/93, de 30.9), tendo em vista a determinação dos montantes das indemnizações ou pensões a que os trabalhadores vitimas de acidente de trabalho ou doença profissional, legalmente, têm direito;

- Esta tabela devia ter servido (e deve servir) também de orientação para a avaliação da perda da capacidade de ganho e determinação do montante da respectiva indemnização do exequente lesado em acidente de viação,

Com o que terão sido violadas as normas contidas nos art.s 342º, nº2, 373º, 376º,nº1 e 2, 388º, 389º e 787º, todos do Código Civil e 664º e 264º,nº1 do Código de Processo Civil.

A demandada/executada, “Companhia de Seguros Império, SA”, nas doutas contra-alegações que produziu, suscita, em questão prévia, o incumprimento e inobservância do preceituado, por banda do recorrente, do preceituado no art. 690º-A do CPC, na parte em, sob pena de rejeição, impõe ao recorrente impugnante da matéria de facto, que especifique “quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos concretos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, sendo que, tendo as provas sido objecto de gravação, “incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta”. Abona-se em doutrina e jurisprudência (Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, p.157 e Ac. Da rel. Do Porto, de 20.6.202, in www.dgsi.pt) e porque estima que o recorrente não deu cumprimento ao estipulado nos preditos preceitos, deve o recurso ser rejeitado.

Relativamente às questões suscitadas no âmbito do recurso, a demandada, refere que a resposta ao quesito 25 não sofreu reclamação, pelo que o tribunal decidiu que a executada cumpriu pontualmente o decidido na sentença condenatória, tendo enviado os recibos relativos á quantia em divida, pelo que estaria o credor em mora, não sendo licito imputar-se à executada o não pagamento atempado das quantias em que foi condenada. Discorrendo sobre este ponto específico, a executada refere que, depois da decisão proferida pelo tribunal da Relação de Coimbra, emitiu os respectivos recibos e enviou-os para o domicílio profissional do mandatário do recorrente, para que procedesse, depois da assinatura, à sua cobrança. Sem motivo justificado, ninguém procedeu em conformidade, não se concretizando o ressarcimento das quantias que a executada havia aceite i tinha posto á disposição do recorrente, em obediência ao decidido pelo tribunal da Relação. A prestação a que a demandada se sentia obrigada só não foi cumprida porque ocorreu falta de colaboração da demandante/exequente, pelo que acabou por se constituir em mora, a partir de 22 de Julho de 1999. Contesta a asserção do exequente de que a executada poderia ter feito cessar a mora do credor, bastando-lhe, para tanto, proceder à consignação em depósito da quantia que estava obrigada a cumprir, dado que este instituto se prefigura com uma faculdade do devedor.

Quanto à força probatória dos prints informáticos em que o tribunal se escorou para dar como provado que a executada enviou para o escritório do mandatário os recibos das quantias em divida, refere que, de acordo com o ensinado por Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa Comum, Coimbra Editora, pag.221 e decidido pelo Tribunal da relação de Lisboa, in Ac.de 18.1.1994, os referidos suportes constituem-se como “recibos relativos às quantias, pois não foram impugnados na sua exactidão”.

Finalmente, quanto à divergência manifestada relativamente à incapacidade arbitrada pelo tribunal, considera que a decisão se mostra devidamente assoalhada dado que teve como suporte o relatório elaborado pelo Instituto de Medicina legal. Também para este troço da discordância manifestada relativamente aos pontos de impugnação do recorrente, a executada se aforra em jurisprudência – Ac. do STJ in CJ, Ano IX, Tomo I, pag.8, relatado pelo Ex.mo Senhor Conselheiro José Sousa Dinis. Acresce, ainda, quanto a este ponto que o recorrente não reclamou do relatório elaborado pelo IML.

Como questão prévia/incidental, e em sintonia com anteriores decisões deste tribunal, proferidas em recursos versando sobre este especifico tema jurídico-processual da liquidação de execução de sentença, pensamos ser pertinente suscitar a questão da incompetência em razão da matéria desta secção para o julgamento do recurso.

A partir da entrada em vigor do novo ordenamento jurídico-processual penal o princípio mitigado de adesão para dedução do pedido cível decorrente de danos ocasionados por virtude da prática de um ilícito de natureza penal, que vigorava no anterior ordenamento jurídico-processual, foi substituído pelo princípio da adesão pleno da dedução de pedido resultante de uma acção ilícita típica no processo penal instaurado para apurara a responsabilidade jurídico-penal do autor da acção lesiva, bem como daqueles para quem a responsabilidade civil houvesse sido transferida – cfr, art. 71º do CPP. A formulação do pedido em separado só pode ser impelido nas situações elencadas no art. 72º do Mesmo diploma legal, ou naquelas situações em que o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, penal considere “que as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizam uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal” – cfr. nº3 do art. 82º do CPP.

Este preceito (art.82º do CPP) introduz, porém, regras para os casos em que o tribunal penal, por carência de elementos bastantes para fixar a indemnização, condene em montante ilíquido e haja, portanto, que liquidar o montante em execução de sentença. Nestes casos, estatui o nº1 do citado preceito que “a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título a sentença penal.

Os efeitos que a lei processual-penal atribui ao caso julgado da decisão penal, ainda que absolutória, parece inculcar a ideia de que o legislador quis vincar e deixar positivado na letra da lei aquilo que no domínio da legislação anterior se configurava com controvertido, pelo menos para aquele que veio o ser o principal arauto e obreiro do novo ordenamento jurídico-processual, o Prof. Figueiredo Dias, saber se a reparação arbitrada em processo penal assumia as características de uma verdadeira indemnização civil por perdas e danos. De jure constituendo defendia já este preclaro Professor que “ a decisão penal condenatória que conheça do pedido civil constituirá caso julgado, nos precisos termos em que a lei atribua essa eficácia à s sentenças cíveis”. In Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, pags.545 e 571.

Outras questões que na altura suscitavam dúvidas quanto à verdadeira natureza da acção cível dependente do processo penal, como a disponibilidade relativamente ao pedido, foram solucionadas no novo ordenamento, com a possibilidade de renúncia e desistência do pedido formulado.

Parece-nos, assim, que não se suscitarão dúvidas sobre a natureza civil da acção cível deduzida na dependência do processo penal.

Com este quadro jurídico-processual como pano de fundo, e tendo por assente que a liquidação corre perante os tribunais civis, parece lógico ter de deduzir-se que, interposto recurso da acção civil destinada a proceder à liquidação da execução da sentença penal, ele deverá prosseguir na secção civil, não só pela espécie de recurso, de apelação, que segue regras e tramitação próprias, como pela lógica e unidade sistémica que o processamento, e consequente decisão, devem adquirir no ordenamento jurídico geral. Afigura-se-nos não poder ser compaginável com as regras de coerência do sistema processual, uma situação em que a acção de liquidação devesse correr perante o tribunal civil, em comarca em que existisse jurisdição cível especializada, caso em que, parece-nos, não se poria em crise a competência, em caso de interposição de recurso, da secção cível do Tribunal da Relação territorialmente competente, e aqueloutro caso em que, por a acção para liquidação haver de ser intentada em tribunal de competência genérica, o recurso que viesse a ser interposto da decisão proferida neste tribunal viesse a ser decidida pela secção criminal.

De notar que todo o formalismo e tramitação do recurso segue os termos da apelação, com as alegações a serem apresentadas no prazo legal estipulado, e depois do despacho judicial de admissão do recurso, tudo bem diverso á tramitação em processo penal em que a motivação tem de ser apresentada com o requerimento de interposição do recurso. Não sendo este um argumento decisivo, como é óbvio, pois se o recurso é interposto de uma decisão cível deve seguir a tramitação própria dos recursos em matéria cível, não deixa de ser um ponto de diferenciação a anotar para a especificidade a atribuir ao regime e competência jurisdicional que deve ser fixada para a secção do tribunal de recurso a quem deve ser atribuída a competência para o julgamento

Por aquilo que deixamos explanado, pensamos que atina com as regras de distribuição de competência material, no caso de interposição de recurso da decisão proferida em liquidação de execução de sentença prolatada em processo penal, a decisão desse recurso pela secção civil do Tribunal da Relação competente.

III. – Decisão.

Acordam os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

- Declarar a incompetência material desta secção para julgar o recurso interposto, por considerar ser competente, de acordo com as regras de distribuição de competência a secção cível deste tribunal.

- Ordenar, após o trânsito em julgado da presente decisão, a remessa do processo à secção cível deste Tribunal.

Coimbra,