Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14/10.2EACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: FUNÇÃO JURISDICIONAL
DESPACHO DE REVOGAÇÃO DE ANTERIOR DESPACHO
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 09/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 666º, Nº 1 E 3 CPC E 380º CPP
Sumário: Proferida decisão em que, a solicitação da arguida, se deferiu a não transcrição no registo criminal da sentença condenatória, não pode o juiz, em segundo despacho, revogar o primeiro com base em erro de julgamento, porque a tal se opõe não só o princípio do esgotamento do poder jurisdicional como tal consubstanciaria uma modificação essencial.
Decisão Texto Integral: 1.
A arguida “WW..., Ldª”, foi condenada na pena de 200 dias de multa, à taxa de 15 € diários, pela prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, dos art. 3º, nº 1, 7º, 24º, nº 1, al. c) e 2, al. c), e 82º, nº 1 e 2, al. c), do D.L. nº 28/84, de 20/1.

A arguida solicitou, entretanto, a não transcrição no registo criminal da sentença condenatória.

Por despacho de 28-10-2011 o pedido foi deferido.

Por despacho de 17-2-2012 o tribunal decidiu revogar o despacho de 28-10-2011 e indeferir o pedido de não transcrição da condenação no registo criminal.

2.
Inconformada, a arguida recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:
«1 – Com a prolação do despacho de 28/10/2011, que ordenou a não transcrição da condenação no registo criminal da ora recorrente, ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto àquela concreta matéria, nos termos do artigo 666º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal.
2 – Esgotado o esgotamento do poder jurisdicional que lhe assistia, o tribunal pronunciou-se sobre questão de que não podia tomar conhecimento, o que determina a nulidade do douto despacho proferido, nos termos do art. 379º, nº 1 alínea c) do Código de Processo Penal, nulidade essa que ora expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
3 – Por outro lado fê-lo sem qualquer fundamentação, não permitindo à ora recorrente aferir das razões – que entende não existirem – do mesmo douto despacho, o que determina a sua nulidade nos termos do art. 379º, nº 1, alínea a), nulidade essa que também ora expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
4 – Não pode ser aplicado o nº 1 do artigo 17º da Lei 57/98, na redação que lhe foi dada pela Lei 114/2009, uma vez que tal disposição é claramente inconstitucional, por violador dos princípios da universalidade, da igualdade, da proporcionalidade, do direito ao trabalho e do direito a escolher o género de trabalho, devendo ser recusada a sua aplicação com tal fundamento.
5 – Deve, pois, ser desaplicado o nº 1 do artigo 17º da Lei 57/98 de 18/08, na sua redação atual, dada pela Lei 114/2009 de 22/09, por inconstitucional, aplicando-se, em sua substituição, o nº 1 do artigo 17º da Lei 27/98 de 18/08, sem aquela alteração.
6 – Ao decidir da forma explanada no douto despacho recorrido e ao aplicar o referido dispositivo legal violou o douto tribunal a quo, entre outros, os artigos 666º do Código de Processo Civil, 379º, nº 1, als. a) e c) e 380º do Código de Processo Penal, 17º, nº 1, da Lei 57/98 de 18/08, 12º, 47º e 58º da Constituição da República Portuguesa e os princípios, penal e constitucionalmente consagrados, da legalidade, da universalidade e da igualdade e do direito ao trabalho e a escolher o género de trabalho».

3.
O recurso foi admitido.

4.
O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do decidido.

O Exmº P.G.A. junto desta relação pronunciou-se pelo provimento do recurso, isto por o juiz não ter legitimidade para revogar um despacho anteriormente proferido, por o poder jurisdicional para se pronunciar sobre a questão estar, já, esgotado.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

5.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.
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FACTOS PROVADOS

6.
Dos autos resultam os seguintes elementos, essenciais à decisão:
1º - por sentença de 11-7-2011 a arguida “WW..., Ldª”, foi condenada na pena de 200 dias de multa, à taxa de 15 € diários, pela prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, dos art. 3º, nº 1, 7º, 24º, nº 1, al. c) e 2, al. c), e 82º, nº 1 e 2, al. c), do D.L. nº 28/84, de 20/1;
2º - em 19-9-2011 a arguida requereu a não transcrição da condenação no registo criminal;
3º - em 13-10-2011 o Ministério Público disse nada ter a opor ao pedido de não transcrição da sentença;
4º - em 28-10-2011 foi proferido o seguinte despacho:
«A fls. 262 veio a arguida WW... requerer que a decisão de condenação não fosse transcrita no seu registo criminal.
Notificado de tal requerimento o Ministério Público promoveu o seu deferimento (cf. fls. 264).
Nestes termos cumpre apreciar e decidir.
Nesta matéria dispõe o art. 17º, nº 1, da Lei 57/98, de 18/8, que “os tribunais que condenem em pena de prisão até um ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de continuação de prática de novos crimes, a não transcrição da respectiva sentença nos certificados a que se referem os artigos 11º e 12º deste diploma”.
Daqui decorre que a regra é a transcrição da sentença no registo criminal, a qual só em casos excepcionais, devidamente fundamentados, designadamente da inexistência de perigo de prática de novos crimes, é que a não transcrição pode ser determinada.
Ora, no caso em apreço é entendimento do tribunal que as circunstâncias em que os factos foram praticados, mudança de instalações, não são repetíveis no futuro pelo que se pode concluir que não existe perigo da arguida vir a praticar novos crimes desta natureza.
Pelo exposto defiro o requerido pela arguida ordenando a sua não transcrição no registo criminal …»;
5º - em 8-2-2012 o Ministério Público emitiu a seguinte promoção, relativa à não oposição ao pedido de não transcrição da condenação no certificado de registo criminal:
«… por lapso da nossa parte não atentámos, em tal promoção, à alteração legislativa operada no normativo em apreço e que tinha já entrado em vigor à data da prática dos factos. Esta alteração restringe a possibilidade de não transcrição às pessoas singulares, concretizando a norma geral anterior, pelo que entendemos que foi intenção do legislador excluir as pessoas colectivas dessa possibilidade legal, razão pela qual também não será de colocar a possibilidade de uma aplicação analógica. Pelo exposto deverá o despacho de fls. 266 ser revogado e substituído por outro que indefira o requerido, o que promovemos»;
6º - em 17-2-2012 o tribunal recorrido proferiu o seguinte despacho: «tendo em atenção a data dos factos o regime aplicável é o instituído pela Lei 114/2009, de 22.9. Dispõe o art. 17º da Lei 57/98 dada pela lei supra citada, que “1. os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até um ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de continuação de prática de novos crimes, a não transcrição da respectiva sentença nos certificados a que se referem os artigos 11º e 12º”. Nestes termos não é legalmente possível aplicar às pessoas colectivas tal regime, pelo que se revoga o despacho anterior, indeferindo-se liminarmente a requerida não transcrição da condenação no registo criminal».

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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir respeita à legalidade do despacho que se pronunciou sobre questão já decidida e revogou despacho anterior.
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Dispõe o art. 666º do Código de Processo Civil, cuja epígrafe é “extinção do poder jurisdicional e suas limitações”:
«1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2 - É lícito, porém, ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformá-la, nos termos dos artigos seguintes.
3 - O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, até onde seja possível, aos próprios despachos».
Esta norma é, como bem sabemos, tributária do princípio da segurança jurídica, que exige estabilidade das relações jurídicas de forma a proteger a confiança legítima dos cidadãos.
Se não unânime é, pelo menos, posição largamente maioritária o entendimento que esta norma é aplicável ao processo penal, por via do art. 4º do C.P.P., que dispõe que nos casos omissos são de observar as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal Neste sentido vide, para além do mais, o decidido pelo S.T.J. nos acórdãos de 5/7/2007, processo 07P1398, relatado pelo sr. conselheiro Pereira Madeira, e de 29-3-2012, processo 1239/03.2GCALM.L1.S1, relatado pelo sr. conselheiro Sousa Fonte.. Sufragamos, em absoluto, um tal entendimento.

A primeira regra constante do art. 666º do CPC é que proferida a sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz.
O C.P.P. não tem norma semelhante. Assim, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional com a prolação da sentença vale no processo penal por via da aplicação no direito penal da regra importada do processo civil.

Não obstante este esgotamento do poder de pronúncia o juiz mantém a possibilidade de corrigir a sentença.
Quanto ao âmbito do poder de correção da sentença penal, este já não é determinado pelo referido art. 666º do C.P.C., pois o C.P.P. contém norma própria sobre a questão, que consta do art. 380º.
Nos termos do nº 1 desta norma o tribunal pode corrigir a sentença – ou um qualquer ato decisório, conforme permite o seu nº 3 -, se não tiver sido observado o art. 374º e, ainda, se ela contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
Para além do caso não ser de correção, a verdade é que a lei também não permite ao juiz proceder a qualquer correção que importe modificação essencial.
Ora, retirar aquilo que anteriormente havia sido concedido integra o conceito de modificação essencial.

Por fim, a terceira regra que consta daquele art. 666º é que o princípio do esgotamento do poder jurisdicional também se aplica aos despachos.

Assim, e sem necessidade de maiores indagações, o despacho recorrido é ilegal, porque se pronunciou sobre questão já decidida por despacho anterior, em violação do disposto nos art. 666º, nº 3, do C.P.C. e 4º do C.P.P.
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DISPOSITIVO

Pelo exposto, e na procedência do recurso, anula-se o despacho recorrido por violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, constante do art. 666º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil.

Sem custas.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.


Coimbra, 2012-09-19