Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2144/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: RESCISÃO DE CONTRATO DE TRABALHO
AVISO PRÉVIO
DESPEDIMENTO ILÍCITO NO DECURSO DO PERÍODO DE AVISO PRÉVIO
Data do Acordão: 11/10/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº13º, NºS 1 E 2, DO DL Nº 64-A/89, DE 27/02 .
Sumário: I – O facto extintivo da relação laboral é a declaração de rescisão, funcionando o aviso prévio apenas como um termo suspensivo aposto à denúncia do contrato, determinando a rescisão a cessação do vínculo laboral, de modo diferido no caso de ter havido aviso prévio .
II – Em tais casos, os efeitos do contrato mantêm-se enquanto dura ou decorre o prazo de aviso prévio .

III – Se nesse período do aviso prévio a entidade patronal proceder ao despedimento sumário do trabalhador, verificar-se-á um despedimento ilícito, face ao qual o trabalhador tem direito apenas ao pagamento da importância correspondente ao valor das retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até à data do termo da sobrevida do vínculo laboral, uma vez que a extinção dos efeitos do contrato ficou fatalmente diferida pelo tempo do aviso prévio ( e sem direito a indemnização por antiguidade ) .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


I –

1 – A..., solteiro, com os demais sinais dos Autos, demandou no Tribunal do Trabalho da Guarda, a R. «B...», com sede em Gouveia, pedindo, a final, a sua condenação no pagamento de indemnização por despedimento ilícito, salários desde o despedimento até à sentença e horas extraordinárias, além do mais.

Pretextou para o efeito, em síntese útil, que foi contratado em Julho de 2001 para exercer as funções de motorista TIR ao serviço da R.
Em meados de Setembro de 2002 o A. enviou à R. uma carta manifestando a intenção de pôr termo ao contrato 60 dias depois, o que não chegou a concretizar, porque uns dias depois de receber a carta, o legal representante da R. chamou o A. à sua sede e, mostrando-se irritado e despeitado pela sua decisão de rescindir o contrato, agrediu-o com violência.
Nessa mesma ocasião comunicou ao A. que a partir de então estava despedido e ‘que não voltasse a pôr os pés na empresa, porque senão ainda levava mais’.
Esta atitude do legal representante da R. consubstancia um despedimento sem justa causa e sem precedência de processo disciplinar.
Discrimina depois os créditos laborais a que se acha com direito.

2 – Tentada sem êxito a conciliação, a R. veio contestar alegando no essencial e desde logo que o A. não foi contratado para motorista de transporte internacional, mas sim para desempenhar as funções de motorista de pesados, sendo que em Outubro de 2001 o A. se mostrou interessado em fazer transporte internacional.
As viagens eram curtas e planeadas de forma a que o A. não tivesse que fazer trabalho suplementar, sendo que em nenhuma das viagens a Espanha o A. trabalhou para além do período normal de trabalho.
Durante o tempo em que trabalhou para a R., as coisas não poderiam ter corrido pior.
Em finais de Setembro de 2002 foi-lhe solicitado que se dirigisse à sede da empresa para esclarecer o paradeiro de umas peças pertencentes a um semi-reboque, sendo então que chegaram a discutir sobre o assunto e o A. disse que não punha ali mais os pés.

3 – Discutida finalmente a causa, proferiu-se sentença a julgar a acção parcialmente procedente, condenando a R. a pagar ao A. a quantia de 15.682,16 €.

4 – Inconformada, a R. apelou, alegando e concluindo:
· Uma vez que o A. já tinha feito cessar o seu contrato de trabalho, por rescisão unilateral com pré-aviso, não deve a R. ser condenada a pagar-lhe mais do que o tempo em falta do pré-aviso dado pelo A.;
· Uma vez que a sentença proferida no processo comum singular n.º 130/02. 4 GBGVA, do Tribunal de Gouveia, é inócua em relação ao despedimento, não poderia ela servir de fundamento à matéria de facto do ponto 6º da matéria assente;
· Violou a douta sentença recorrida, entre outras, as seguintes disposições legais: arts. 13º e 38 do D.L. n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro.

5 – O recorrido respondeu, concluindo, por seu turno, que não pode inferir-se do conjunto de palavras que o contrato de trabalho entre A. e R. já tinha terminado, pura e simplesmente, porque não tinha, não causando nenhuma estranheza que a sentença de Gouveia, já transitada, tenha sido um dos suportes do ponto 6º da matéria de facto dada como assente.

Recebido o recurso e colhidos os vistos legais – com o Exm.º P.G.A. a emitir o douto Parecer de fls. 248-249, a que ainda reagiu o Recorrido, conforme fls. 252 e ss. – cumpre apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO

1 – DE FACTO
Vem seleccionada a seguinte factualidade:
1. – A R. dedica-se a transportes internacionais de mercadorias;
2. – No início de Agosto de 2001 contratou o A. para este exercer as funções de motorista TIR, sob as suas ordens, direcção e fiscalização;
3. – Embora o A. não o tenha em seu poder, foi celebrado contrato escrito por tempo indeterminado;
4. – Em 19 de Setembro de 2002, o A. enviou à R. uma carta manifestando a intenção de pôr termo ao contrato 60 dias depois;
5. – Uns dias depois de receber a carta, mais concretamente a 28 de Setembro, o representante legal da R. chamou o A. à sua sede e, mostrando-se irritado e despeitado pela decisão deste, reagiu com agressões físicas, sovando-o com violência;
6. – Nessa mesma ocasião comunicou ao A. que, a partir daquele momento estava despedido e ‘que não voltasse a pôr os pés na empresa porque senão ainda levava mais’;
7. – Ofendido com tal conduta, o A. apresentou na Delegação do MºPº de Gouveia a respectiva participação criminal, a que foi atribuído o n.º de Inquérito 130/02, sendo que neste momento há condenação do representante legal da R., com trânsito em julgado;
8. – A R. é associada da ANTRAN;
9. – Daí que à relação de trabalho entre as partes seja aplicável a Convenção Colectiva de Trabalho relativa ao Sector dos Transportes TIR e as tabelas salariais aprovadas pelos respectivos BTE’s;
10. – Sucede que desde o início do contrato o A. apenas recebeu um salário base de 535,24 € e as ajudas de custo;
11. – Nunca lhe foi pago o prémio TIR, nem qualquer quantia a título de horas extraordinárias;
12. – Também não recebeu o salário de Setembro de 2002 nem os proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal desse ano;
13. – Documento n.º1;
14. – Nos primeiros dois meses o A. não fez transportes internacionais;
15. – Entretanto o A. entrou de férias no dia 1.9.2002 e em 19.9.2002 enviou a carta de rescisão à R. com vista à cessação do contrato de trabalho – cfr. doc. 3;
16. – E em 28.9.2002 o representante legal da R. solicitou-lhe que se dirigisse à sede da empresa;
17. – Provado o que consta do documento n.º4;
18. – Provado o teor do documento n.º5.
__
2 – O DIREITO
Como se sabe, é pelas conclusões do recurso que se afere e delimita o seu objecto e âmbito, exceptuadas logicamente as questões que sejam de conhecimento oficioso e aquelas cuja solução tenha ficado prejudicada pela decisão dada a outras.

A R. recorrente restringe expressamente o objecto do recurso à parte da sentença que a condena no pagamento das importâncias previstas nos arts. 437.º, n.ºs 1 e 4 e 439.º/3 do Código do Trabalho, mais concretamente, como precisa mais adiante, na ‘Introdução’ das Alegações, no pagamento da indemnização por despedimento e das prestações vencidas desde um mês antes da propositura da acção e até à sentença condenatória.
Isto por entender que deveria ser absolvida dessa parte do pedido, atendendo a que o A. já tinha feito cessar, ele próprio, o contrato de trabalho à data do suposto despedimento…

Terá razão?

(Antes de prosseguir, importa anotar que os factos constitutivos do caso apreciando se consumaram em Setembro/Novembro de 2002, sendo-lhes aplicável a legislação vigente ao tempo, uma vez que o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, apenas entrou em vigor a 1.12.2003).

2.1 –
Alega a Recorrente desde logo que, tendo o Tribunal 'a quo' ficado a aguardar pela sentença a proferir no processo comum singular que correu termos no T.J. de Gouveia e no qual era ofendido/assistente o ora A. e arguido o legal representante da R., com o objectivo de verificar se ficava provado o despedimento – e visto o que a aí se provou a tal respeito – encontra-se mal decidido, por erro de julgamento, o ponto 6º da matéria de facto assente, pois a fonte dessa matéria, (a sentença do processo crime), não se lhe refere.

Salvo o devido respeito, não concordamos.
Não é assim.
Com efeito:
Começando pela análise do despacho do Exm.º Julgador 'a quo', a fls. 109, dele consta a certo passo:
‘Resulta dos Autos que terão ocorrido factos entre o A. e o legal representante da R. susceptíveis de integrar um ou mais crimes. Factos estes relacionados com a relação laboral que entre eles existia.
Assim, como estão em causa factos relacionados com o despedimento do A. e a sua legalidade, é óbvio que a condenação do mesmo em sede de responsabilidade criminal será importante para nos pronunciarmos acerca dos referidos factos que (es)tiveram na base daquele despedimento.
Nesta conformidade, é importante, do nosso ponto de vista, termos a certeza de que tais factos ocorreram e quais os seus responsáveis.
Dito de outro modo, o resultado do processo-crime é importante’.
Ora, ante isto, não é de todo rigoroso alegar-se, como se faz, que o objectivo da espera pela decisão a proferir no processo-crime fosse o de verificar se ficava provado o despedimento.
Isto, liminarmente, por um lado.
Por outro, o facto em causa não foi, como não tinha que ser, substantivamente considerado, tendo a expressão repescada mero significado circunstancial, explicativo, de enquadramento, não podendo retirar-se dela o alcance e conclusão jurídica que simplesmente não tem.
O facto de a recorrente a considerar inócua (inofensiva, que não prejudica) em relação ao despedimento, não significa que igual entendimento não tenha presidido à formação da convicção do Mm.º Julgador, ante os fundamentos por si adiantados sobre tal decisão, (maxime do questionado ponto 6.º), e em que relevaram conjuntamente outros meios de prova – cfr. fls. 173 e 179.
A dita expressão …‘para tratarem de questões relacionadas com a prestação de trabalho que efectuara até pouco tempo antes’ não é – além do já dito – sequer unívoca.
Não tendo a pretendida virtualidade, em termos da prova relevante neste foro, poderia querer reportar-se, por exemplo, à circunstância de o A. estar naquele momento em gozo de férias, como estava.
(Vide, sobre o alcance relativo da decisão penal condenatória e sua repercussão nas acções civis, o disposto no art. 674.º-A do C.P.C.).

Em resumo:
Servindo a referida sentença penal como simples meio adjuvante da formação da convicção do Julgador, entre outros, a fundamentada decisão de facto (concretamente o falado ponto 6.º) não consubstancia qualquer erro de julgamento.
A extrapolação da R., sendo lógica embora, é falaciosa, porque parte de uma premissa viciosa, como se deixou minimamente demonstrado.

2.2 –
No mais:
Pretexta a R. que não deveria ter sido condenada no pagamento da indemnização por despedimento e nas prestações vencidas desde um mês antes da propositura da acção e até à sentença condenatória, já que o A. tinha feito cessar ele próprio o contrato de trabalho à data do (suposto) despedimento.
A questão é interessante …e a R. tem razão!
Vejamos:
Em 19 de Setembro de 2002 o A. enviou à R. uma carta manifestando a intenção de pôr termo ao contrato 60 dias depois, como se especificou em sede de facto – cfr. item 4 do alinhamento constante na sentença 'sub judicio'.
Esse documento consta dos Autos a fls. 38 (doc. n.º 3, junto com a contestação) e dele consta textualmente que ‘Eu, …empregado da vossa firma, na qualidade de motorista de pesados, venho por este meio rescindir o meu contrato laboral convosco, após o prazo legal estabelecido a partir da data da presente missiva.
Agradeço que tenham (em atenção…) o facto de que tenho dias de férias para usufruir’. (Sublinhado agora).
Considerando a natureza receptícia de tal declaração negocial, a perfectibilização da sua eficácia, (torna-se eficaz logo que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida, nos termos da conhecida teoria da impressão do destinatário, acolhida no art. 224.º/1 do Cód. Civil), e sabido que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (art. 236.º/1 do Cód. Civil), é incontroverso que o A. fez cessar o vínculo em causa por rescisão com aviso prévio.
E não se diga – com o devido respeito – que apenas anunciou a intenção de…
O facto extintivo da relação é a declaração de rescisão, funcionando o aviso prévio apenas como um termo suspensivo aposto à denúncia do contrato (Vide, no mesmo sentido, entre outros, Pedro Furtado Martins, ‘Cessação do Contrato de Trabalho’, Edição Principia, pg. 171).
A rescisão determina a cessação do vínculo contratual, como ensina Pedro Romano Martinez (‘Direito do Trabalho’, Almedina, pg. 884), podendo a extinção dos efeitos ser imediata ou diferida.
Será diferida no caso de rescisão com aviso prévio.
Os efeitos do contrato mantêm-se, naturalmente, enquanto dura ou decorre o prazo de aviso prévio.
É o caso presente.
(A possibilidade de revogação da declaração de rescisão, sendo legalmente admissível no condicionalismo da Lei 38/96, de 31 de Agosto, é mero cenário que não tem por que considerar-se.
Sendo virtual, não é aqui equacionável.
Ainda assim, não deixa de anotar-se a existência de sérias dúvidas sobre qual o ‘dies a quo’ a considerar para os efeitos previstos no art. 2.º/1 da referida Lei.
Podendo a declaração de rescisão ser revogada pelo trabalhador, por qualquer forma, até ao 2º dia útil seguinte à data da produção dos seus efeitos, há quem entenda, consistentemente, que a Lei se reporta aos efeitos da declaração rescisória, ‘proprio sensu’ (seus, dela rescisão, que não do contrato, (que os deste, sim, só se extinguiriam diferidamente), ou seja, até ao 2º dia útil seguinte à data da perfeição da declaração negocial, da chegada desta ao poder/esfera do destinatário.
…E tinham já passado oito dias sobre o envio da comunicação da rescisão aquando dos factos ocorridos em 28.9.2002.
Não é pois assim tão seguro que o A. pudesse, em tese – como se alega no contraditório ao Parecer do Exm.º P.G.A. – revogar a declaração rescisória até ao último dia do prazo de aviso prévio concedido…).

Isto posto:
É fora de dúvida que, depois de ter recebido a carta a comunicar-lhe a falada rescisão com aviso prévio, mais precisamente a 28 de Setembro desse ano de 2002, o legal representante da R. comunica ao A. que estava despedido e que ‘não voltasse a pôr os pés na empresa porque senão ainda levava mais’.
Consuma-se assim, instantaneamente, na constância da relação laboral, um despedimento ilícito, como vem suficientemente caracterizado.
Como efeito directo da ilicitude do despedimento (art. 13.º/1 do D.L. n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro) tem o A. direito, por regra, ao pagamento da importância correspondente ao valor das retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até à data da sentença, (com as deduções previstas no n.º2 da norma), bem como à reintegração no seu posto de trabalho ou, em opção, a sua substituição por uma indemnização de antiguidade.

E dissemos ‘por regra’ porque, no caso presente, o vencimento dos previstos direitos consequentes ao despedimento ilícito tem como limite o termo da sobrevida do vínculo, uma vez que, como já se disse, a extinção dos efeitos do contrato ficou fatalmente diferida pelo tempo do aviso prévio.

Tem pois razão a Recorrente, desde logo, quando reclama a sua absolvição do pagamento das prestações vencidas desde um mês antes da propositura da acção e até à sentença condenatória.
E teria o A. direito à reintegração, nas factualizadas circunstâncias?
É que se não tiver direito à reintegração, não poderia nunca almejar o reclamado crédito da indemnização de antiguidade, que, sendo alternativa àquela, a pressupõe necessariamente.
Ora, se o A. rescindira já o vínculo, de moto próprio, aguardando apenas o decurso do concedido prazo de aviso prévio, (a acontecer a 19.11.2002), seria absurdo, no mínimo, condenar a R. a reintegrá-lo!
Não sendo exequível a reintegração, a direito alternativo à indemnização de antiguidade fica necessariamente obliterado.

Tem o A. apenas direito à importância correspondente ao valor das retribuições que auferiria desde o despedimento (28.9.2002) até à data da rescisão/cessação do vínculo laboral, por si unilateralmente assumida…
…Crédito esse que seria apenas virtual (a acção não foi proposta nos 30 dias subsequentes ao despedimento – n.º2, a), do citado art. 13.º da LCCT…), mas que a R. admite ser-lhe devido enquanto valor correspondente ao tempo em falta do aviso prévio e que perfaz a importância encontrada de € 874,20.

Seguindo os termos do cálculo do montante dos direitos conferidos ao A. – discriminados na sentença, a fls. 185 – constata-se que às rubricas em crise correspondem as verbas consignadas nas alíneas/parcelas A. e E., que perfazem a importância de € 8.028,72 (6.423+1.605,72).
Considerando o montante da condenação em crise, este valor e aquele crédito do A. de € 874,20, apura-se o valor final de 8.527,64 €. __

III – DECISÃO

Em conformidade com o exposto, deliberam os Juízes desta Secção conceder provimento à apelação e, revogando, em consequência, a sentença, na parte impugnada, absolvem a R. dos pedidos relativos às prestações vincendas e indemnização de antiguidade, nos sobreditos termos, ficando a R. condenada no pagamento ao A. da importância global final de € 8.527,64.
Custas em função do decaimento.
***

Coimbra,