Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
338/07.6TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: NULIDADE
ANULAÇÃO
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
CONVERSÃO DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 09/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTºS 292º E 293º DO C. CIVIL
Sumário: I – De acordo com o artº 292º do Código Civil (CC), se a nulidade ou anulação de certo negócio jurídico forem parciais, não determinam a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.
II - A nulidade ou a anulabilidade do negócio jurídico constituem, pois, pressuposto fundamental para que se possa operar a redução (ou a conversão - artº 293º do CC) desse negócio.
III - Enquanto que a redução do negócio jurídico só encontra justificação quando uma das partes do seu objecto é nula ou anulável e não quando a nulidade é total, a conversão pressupõe a invalidade integral do negócio.
IV - A integração da lacuna do negócio jurídico, na falta de disposição supletiva que possa aplicar-se directamente faz-se, em princípio, como resulta do citado artº 239º, de acordo com a vontade hipotética ou conjectural das partes.
V - A vontade hipotética, ou conjectural, das partes, de que trata o artº 239º do CC, não é matéria de quesitação directa, antes resultando da ponderação do julgador em face dos elementos que os autos lhe ofereçam em ordem a permitir-lhe reconstruir o que teria sido, à luz dos ditames da boa fé, o consenso negocial hipotético das partes quanto ao aspecto que deixaram por regular.
VI - Contudo, se acaso se constata que o apurado quanto à vontade hipotética das partes diverge da solução que os ditames da boa fé apontam, o artº 239º determina que se proceda à integração segundo estes últimos, postergando aquela vontade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1)E… e mulher, M…, residentes na …, intentaram, em 12/02/2007, na Vara de Competência Mista de Coimbra, contra J… e C…, acção declarativa, de condenação, sob a forma de processo ordinário, alegando, em síntese, ser nula a cláusula 5ª de uma transacção que, respeitando a dois lotes de terreno, firmaram com os ora RR nos autos de processo ordinário nº…, pediram, invocando o disposto nos artºs 280º e 292º do Código Civil:

- Que se considerasse tal cláusula como sendo nula, ou, simplesmente, como não escrita e sem qualquer valor, mantendo-se, contudo, válida, a transacção, no que respeita ao seu restante teor;

- Que os RR fossem condenados a reconhecer que os lotes 1 e 2 têm a implantação indicada na planta em anexo.

2) - Contestaram os réus, que, para além de impugnarem, parcialmente, os factos articulados na petição:

a)- Alegaram a sua ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, em razão de não terem também sido demandados os respectivos cônjuges;

b)- Deduziram reconvenção, pedindo;

- Que fosse declarada válida a cláusula 5ª do termo de transacção; ou, não o sendo, que fosse declarado que a mesma vincula os AA/Reconvindos, que com ela acordaram e a ela se vincularam;

- Que os RR fossem condenados a elevar o muro de acordo com a implantação indicada nos artigos 31º e 68º da reconvenção.

Concluíram pugnando pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção.

3) - Os AA apresentaram réplica onde suscitaram a intervenção principal provocada idónea a suprir a invocada falta de litisconsórcio e, pugnando pela improcedência da reconvenção, mantiveram o alegado na p.i.;

4) - No despacho saneador, admitiu-se a reconvenção e considerou-se assegurada a legitimidade dos RR. Foram fixados os factos que se consideravam já assentes e foi elaborada a base instrutória.

B) - Prosseguindo os autos os seus ulteriores termos, veio a ter lugar a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova, após o que foi proferida sentença - em 24/10/2011 -, que, julgando a reconvenção improcedente, julgou a acção procedente, declarando «…que o muro a que se alude na cláusula 5ª deverá ser implantado a uma distância de 3 metros do edifício referido no ponto 5. e em observância do projecto de construção do mesmo.».

C) - Inconformados com esta decisão, dela apelaram os RR, que findaram a alegação do recurso oferecendo seguintes conclusões:

Terminaram pedindo que, dando-se procedência ao recurso, se decretasse a sua absolvição.

D) - Questões a resolver:

Em face do disposto nos art.ºs 684, nº 3 e 4, 690, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2, “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [2]).

Assim, a questão a solucionar, consiste em saber, se, em face da factualidade provada, se mostra acertada a procedência da acção decidida pelo Tribunal “a quo”.

II - A) - Na sentença da 1.ª Instância considerou-se como factualidade provada, a seguinte matéria:

B) - De acordo com o artº 292º do Código Civil (CC), se a nulidade ou anulação de certo negócio jurídico forem parciais, não determinam a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.

A nulidade ou a anulabilidade do negócio jurídico constituem, pois, pressuposto fundamental para que se possa operar a redução (ou a conversão - artº 293º do CC) desse negócio.

Enquanto que a redução do negócio jurídico só encontra justificação quando uma das partes do seu objecto é nula ou anulável e não quando a nulidade é total, a conversão pressupõe a invalidade integral do negócio.[3]

Constituindo um negócio jurídico, rectius, um contrato (cfr. artºs 1248º a 1250º do CC), a transacção está sujeita às regras estabelecidas nos citados preceitos legais que disciplinam a redução e a conversão.

E o que os AA pretenderam na presente acção, foi, precisamente, a “redução da transacção judicial (Negócio Jurídico) nos termos do Art. 292.º do C.C.”, com fundamento na nulidade da respectiva cláusula 5ª, pedindo que esta cláusula fosse assim considerada (ou entendida como não escrita e sem qualquer valor), “mantendo-se contudo, válida a transacção no que respeita ao restante teor da mesma”.

A causa de pedir, nas acções que visam a declaração de anulação ou de nulidade, é o vício específico que se invoca para obter o efeito pretendido (artº 498, nº 4 do CPC).

Ora, o que desde já importa adiantar é que, não obstante na sentença se ter afirmado que se julgava a acção “procedente, por provada”, não se decidiu exactamente assim, pois que não se considerou que a cláusula em causa enfermasse de nulidade ou de anulabilidade, não se tendo, naturalmente, declarado - ao invés daquilo que os RR expressamente peticionaram - a nulidade dessa cláusula.

O que sucedeu, no presente caso, foi que, como se disse, a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, não considerando que a cláusula contratual em questão enfermasse de nulidade, não julgou a causa à luz do disposto do artº 292º, que pressupunha o reconhecimento da invalidade parcial da transacção, antes tendo considerado verificar-se uma omissão no acordo quanto à distância (em metros) a que se devia localizar o muro que se refere na cláusula 5ª, omissão essa que entendeu consubstanciar lacuna a integrar de acordo com a vontade hipotética das partes, nos termos do artº 239º do CC.

O que foi declarado na parte dispositiva da sentença não foi pedido pelos AA e assentou, até, em pressuposto oposto àquele que consubstanciava o peticionado por estes, que alicerçaram a sua pretensão na nulidade da cláusula 5ª da transacção e na parcial invalidade do negócio jurídico cuja redução pediram.

Assim, nem o declarado na parte dispositiva da sentença coincide com o pedido formulado pelos AA, nem o fundamento do julgado se molda à causa de pedir invocada para suportar aquele.

Houve, assim, violação do disposto no artº 660º, nº 2 do CPC, enfermando a sentença, nessa parte, da nulidade do excesso de pronúncia, prevista no artº 668.º, nº 1, d) do CPC, nulidade essa que, contudo, não foi suscitada por qualquer das partes e que este tribunal não pode oficiosamente declarar.[4]

Importará atentar, por outro lado, que, tendo-se emitido um juízo negativo quanto à invocada invalidade da cláusula 5ª da transacção e, consequentemente, quanto à invalidade parcial deste negócio, as partes não contrariaram tal julgamento - os AA não recorrerem e os RR, que sempre pugnaram pela validade da dita cláusula, naturalmente, não englobaram essa questão no objecto do recurso - pelo que esta Relação não poderia, ainda que visse motivos para tal – o que, diga-se, não sucede - alterar o assim decidido pela 1ª Instância (684, n.º 4 do CPC).

Significa isto que, ainda que a este Tribunal fosse lícito apreciar a mencionada nulidade de sentença, sendo-lhe defeso dar como verificada a nulidade invocada pelos RR quanto à referida cláusula 5ª, estaria irremediavelmente arredada a possibilidade de proceder à peticionada redução.

Postergada que está, pois, em vista do exposto, a possibilidade da Relação extrair as consequências legais da apontada violação da lei adjectiva que se traduziu na referida pronúncia indevida, resta verificar se, de facto, ocorreu violação da lei substantiva, ou seja - que é nesse plano em que se situa a expressa divergência dos Apelantes relativamente à decisão recorrida -, se na sentença se desrespeitou o estatuído no artº 239º do CC.

De acordo com este artº 239º, “na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução por eles imposta.”.

Reflectindo sobre este preceito legal escreveu-se no Acórdão desta Relação, de 29/04/2008 (Apelação nº 1784/05.5TBGRD.C1)[5]: «…a integração da declaração negocial ocorre quando existe uma lacuna, um caso omisso ou um minus cogitatum nas estipulações negociais. As partes não incluíram no negócio jurídico, podendo fazê-lo, a regulamentação de certas questões que se relacionam com a composição de interesses nele consubstanciada. Não prevêem as partes todos os aspectos dos negócios que celebram. Como escreve Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, p. 321, “as partes costumam pensar sobretudo em termos económicos ou mais genericamente em termos práticos (…) Muitas vezes - se não até como regra geral - descuram totalmente a estruturação da correlativa disciplina jurídica. Não pensam nisso. Pretendem que os seus objectivos práticos sejam juridicamente tutelados, mas não cuidam de fixar a regulamentação apropriada. (…) Nas declarações negociais, como na lei, pode portanto haver lacunas”. A lacuna da declaração negocial pressupõe, assim e necessariamente, que as partes não esgotaram o seu poder de auto-regulamentação, não estipulando no negócio jurídico o mais completo regime jurídico permitido por lei e que se mostre adequado à ordenação dos interesses a que se refere o negócio. A figura da integração a que se refere aquela norma é, pois, uma operação intelectual destinada a suprir as lacunas do contrato, isto é, a falta de regulamentação, neste, do modo de resolver alguns problemas que se apresentam durante a sua execução e que as partes não previram, não tendo, portanto, convencionado soluções a dar-lhes.

A necessidade de integração da declaração negocial surge ou só se coloca depois da interpretação, lidando esta figura com efectivas e reais declarações de vontade, com a determinação do sentido ou conteúdo do negócio, visando perscrutar os termos em que as partes quiseram ou declararam querer o negócio, ou seja, o quid dictum. Só após a interpretação da declaração negocial, a realizar nos termos dos arts. 236º, 237º e 238º do CC, é que o intérprete pode concluir pela necessidade de integração».

Ora, no caso “sub judice”, afigura-se-nos, salvo o devido respeito por entendimento diverso, que as partes, prevendo, na cláusula 5ª da transacção, a construção do muro e aí estabelecendo as referências que haveriam de nortear a respectiva implantação, estipularam deficientemente sobre este último aspecto, já que não especificaram a que distância (em metros), relativamente ao prédio edificado, esse muro deveria ser erguido, sendo certo que uma tal regulamentação, respeitando, é evidente, os condicionalismos legais, é, afinal, indispensável à completa concretização do que se estabeleceu na transacção em causa.

Sucede, pois, que o negócio jurídico que consubstanciou a referida transacção, em cujos termos as partes acordaram, carecia, para permitir o seu integral cumprimento - e, assim, esgotar o escopo que as partes com ela visavam -, da aludida regulamentação adicional, sem o que, conforme se salientou na decisão recorrida, se queda inviabilizado o integral cumprimento do negócio.

Existe, assim, uma verdadeira lacuna do negócio jurídico que a mencionada transacção integra, pelo que, à correcta aplicação do direito revela-se insuficiente a interpretação desse negócio, exigindo que se proceda à respectiva integração.

A integração, como diz Manuel de Andrade, «…pode portanto ter lugar, segundo a directriz apontada, adentro dum negócio jurídico validamente concluído e para o efeito de se estatuir de modo adequado sobre qualquer detalhe de regulamentação acerca do qual as partes não proveram.».[6]

E como exemplo de situação em que se evidencia a carência de integração, refere Andrade, aquela em que “…a regulação do ponto lacunoso for indispensável para se dar execução ao restante conteúdo das declarações negociais”.[7]

Os apelantes sustentam que o alegado pelos recorridos e a matéria de facto dada como provada não permitiriam sustentar o concluído pelo tribunal “a quo” quanto à vontade hipotética das partes.

Diga-se, antes do mais, que os AA. tendo junto a documentação em que se conforta o declarado na parte dispositiva da sentença quanto à concreta implantação do dito muro, muito embora hajam defendido, como se disse, a nulidade da cláusula 5ª, não deixaram de alegar a verificação de um consenso negocial hipotético respeitador do plasmado no projecto camarário e na lei, dizendo (artº 34º da p.i.): «Além do mais, se as partes tivessem tido noção do vício à data da concretização da transacção, certamente que teriam alterado a Cláusula Quinta, de modo a que a demarcação dos lotes fosse efectuada de acordo com o estipulado no projecto camarário e teriam à mesma celebrado o negócio jurídico, pois não seria uma questão de mera demarcação que os demoveria e muito menos quereriam ir de encontro ao estipulado na lei».

A integração da lacuna do negócio jurídico, na falta de disposição supletiva que possa aplicar-se directamente faz-se, em princípio, como resulta do citado artº 239º, de acordo com a vontade hipotética ou conjectural das partes. Adverte Manuel de Andrade: «Não se trata aqui da vontade real provável das partes. Trata-se da vontade que presumivelmente elas teriam tido se tivessem previsto o ponto omisso; do modo como elas o teriam regulado se o ponto não tivesse ficado estranho às suas previsões. Para a determinação desta vontade deve o juiz, colocando-se no plano das partes, orientar-se, acima de tudo, por uma recta apreciação dos interesses em jogo, segundo as normas de boa fé: e também pelos usos da prática, e por quaisquer outras circunstâncias que razoavelmente possam ser chamadas ao caso”[8].

Ora, salvo o devido respeito, afigura-se-nos ter sido nestes moldes, que se acabaram de expor, que a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” procedeu, como resulta daquilo que se expendeu na sentença, onde, após se destacar a matéria elencada na fundamentação de facto, sob os nºs 5, 12, 9, 10, 11 e 8, se escreveu: «O recurso à vontade hipotética das partes conduz, em face de tudo o que já dissemos, concretamente dos demais termos do acordo, do cumprimento já efectuado de outras cláusulas, e do facto do edifício no lote 1 já estar construído quando o mesmo foi celebrado, a que entendamos que o muro a que se alude na cláusula 5º deverá ser construído respeitando a distância de três metros relativamente ao edifício e em observância com o projecto de construção que foi aprovado para o mesmo».

No caso “sub judice” não se procedeu à conversão do negócio, pelo que não se vê sentido útil na chamada à colação desta figura e na argumentação que, a propósito da mesma, fazem os Apelados, referindo, designadamente, que o recurso à vontade hipotética das partes apenas permite modificar o negócio “quando seja de admitir que as partes contratantes queriam o negócio sucedâneo.”.

A vontade hipotética, ou conjectural, das partes, de que trata o artº 239º, não é matéria de quesitação directa, antes resultando da ponderação do julgador em face dos elementos que os autos lhe ofereçam em ordem a permitir-lhe reconstruir o que teria sido, à luz dos ditames da boa fé, o consenso negocial hipotético das partes quanto ao aspecto que deixaram por regular.

Daí que se entenda que a operação do julgador em ordem a perscrutar aquela vontade consubstancie questão de direito.[9]

Citando-se Pedro Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, 2005, 3.ª ed., p. 401), escreveu-se no Acórdão da Relação do Porto, de 14/11/2005 (Agravo nº 0553733)[10]: “Não se procura, pois, construir ou reconstruir a vontade hipotética de cada uma das partes, mas o que teria sido o consenso negocial hipotético. É para a construção deste consenso negocial hipotético que é necessário fazer apelo à boa fé, como se faz no artigo 239º. Pergunta-se, então, em que é que aquelas partes teriam anuído. Para isto é necessário encarar e assumir as partes como pessoas sérias e honestas, como pessoas de bem, isto é, como pessoas de boa fé. A referência à boa fé, não obstante a redacção literal do preceito, não traduz uma dualização de critérios, mas a integração da vontade hipotética e da boa fé, na globalidade dum consenso comum tipicamente sério e honesto”.

Contudo, se acaso se constata que o apurado quanto à vontade hipotética das partes diverge da solução que os ditames da boa fé apontam, o artº 239º determina que se proceda à integração segundo estes últimos, postergando aquela vontade.

Já Rui Alarcão dizia: «Sempre que a justiça contratual - a boa fé exija que a regulamentação das declarações lacunosas (integração) seja diversa daquela que as partes teriam estabelecido, deve o julgador afastar-se da vontade conjecturai das partes para se ater antes às exigências da boa fé».[11]

Compreende-se, assim, que o STJ tenha entendido que «…os ditames da boa fé impõem-se sempre ao resultado a que chegue a vontade conjectural que com eles conflitue, pelo que a integração se deve fazer na obtenção de uma solução justa e adequada à economia do acto, ponderado o "occasio negoti" e as estipulações nele contidas».[12]

Em idêntico sentido vai o Professor Carlos Alberto da Mota Pinto, ao dizer que o juiz deverá afastar-se da vontade hipotética ou conjectural das partes, «…quando a solução, que estas teriam estipulado, contrarie os ditames da boa fé; neste caso, deve a declaração ser integrada de acordo com as referidas exigências da boa fé, isto é, de acordo com o que corresponda à justiça contratual (ao que as partes devem querer agora (2) e não propriamente o que deveriam ter querido)».[13]

Assim “ex abundanti”, dir-se-á, que, no caso “sub judice”, a boa fé sempre imporia que as partes se pautassem, ao estipularem os termos do negócio, de acordo com as normas regulamentares existentes, designadamente, aquelas que, se não observadas, embora não gerando a invalidade do negócio, inviabilizassem a execução integral do nele acordado, acordo este, diga-se, à sombra do qual (cláusula 4ª), os ora AA já cumpriram a obrigação que assumiram, de pagarem a importância de 35.000.000$00, pelo que, ainda que não se concluísse que a vontade hipotética das partes ia no sentido declarado na sentença, os ditames da boa fé conduziriam a que se suprisse a lacuna negocial nos termos aí declarados.

Improcedendo, pois, em face de tudo o exposto, as conclusões dos Apelantes, é de manter “in totum” a sentença da 1.ª Instância.

III - Decisão:
Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelos Apelantes.
Coimbra, 18/09/2012


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(Luís José Falcão de Magalhães)

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(Sílvia Maria Pereira Pires)

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(Henrique Ataíde Rosa Antunes)



[1] Os preceitos que deste Código forem citados, reportam-se, salvo indicação em contrário, à redacção anterior à introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[2] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ, ou os correspondentes sumários, citados sem referência de publicação.
[3] Cfr. J. Domingues Damas, “A redução do negócio jurídico”, in Revista da Ordem dos Advogados, III, 1985, pág. 748.
[4] Cfr. Acórdão desta Relação, de 24/01/2012 (Apelação nº 448/09.5TBTND.C1), consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase”.
[5] Consultável em “http://www.dgsi.pt/btrc/btrc.nsf?OpenDatabase”.
[6] Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 325, ALMEDINA, COIMBRA – 1974 (o sublinhado é nosso).
[7] Obra e volume citados, págs. 324 e 325.
[8] Obra e pág. 325, acima citados.
[9] Cfr., com sumário disponível em “http://www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios”, o Acórdão do STJ, de 09/05/2006 (Revista n.º 1003/06 - 1.ª Secção).
[10] Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”.
[11] “Exposição de motivos”, “in” BMJ nº 84, pág. 339, citado por Rodrigues Bastos em “Das Relações Jurídicas” Segundo o Código Civil de 1966, vol III, pág. 51.
[12] Sumário do Acórdão do STJ, de 30/11/1994 (Revista nº 085739), consultável em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase.
[13] Teoria Geral do Direito Civil, 1976, págs. 428 e 429.