Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
549/10.7TBPBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
Data do Acordão: 10/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.185, 186, 189 CIRE
Sumário: 1. A verificação, através dos correspondentes factos, das situações previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, determina a qualificação da insolvência como culposa, sem admissão de prova em contrário, bem como consequências gravosas sobre as pessoas singulares que, com a sua conduta, efectivamente contribuíram, de modo relevante, para a insolvência, sendo assim necessário avaliar a actuação concreta de quem for potencialmente atingível.

2. A previsão da alínea f) do n.º 2, do art.º 186º, do CIRE, aplica-se a situações de permanente ou contínuo uso dos bens ou do crédito do devedor/insolvente em proveito pessoal do afectado pela qualificação e contrariamente aos interesses daquele, enquanto não cesse essa utilização indevida, ainda que nenhuma modificação se verifique nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (v. g., uso de novos créditos ou de novos bens).

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. No Tribunal Judicial de Pombal, declarada a insolvência de S (…) Lda., por sentença de 10.5.2010, transitada em julgado, e aberto o incidente de qualificação de insolvência, veio a Administradora da Insolvência emitir parecer, nos termos do art.º 188º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa/CIRE (aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3)[1], propondo a qualificação da insolvência como culposa e a consequente afectação do sócio gerente da insolvente, J (…), referindo, em resumo, que este retirou do património da sociedade valores que, em 31.12.2009, atingiam € 102 476,34 e que correspondiam então a cerca de 36 % do activo da sociedade, circunstância que terá agravado a situação de insolvência da empresa, e que desde, pelo menos, 31.3.2008 a situação de insolvência era do seu conhecimento por o capital próprio apresentar um valor negativo de € 466 700 e, apesar disso, não se apresentou à insolvência, estando assim preenchidos os requisitos do art.º 186º, n.º 2, al. f) e n.º 3, al. a).

A Exma. Magistrada do M.º Público concordou com aquele “parecer”.

Notificada a devedora e citado pessoalmente o referido sócio, este deduziu oposição, para concluir que a insolvência devia ser qualificada como fortuita, alegando, designadamente, que os valores em débito da sua parte para com a insolvente resultam de uma “conta corrente” existente entre ambos, onde constam as suas remunerações enquanto gerente, alguns empréstimos e os depósitos de reembolso que foi fazendo, não existindo movimentos a débito nos anos de 2008 e 2009 e tendo sido feito um “acerto” da sua parte, em 2009, no valor de € 71 967,57; tem créditos de trabalho sobre a insolvente, por não terem sido processados os salários entre Setembro de 2006 e Março de 2010, no valor global de € 90 429,50 e que não foi processado contabilisticamente, devendo ser compensado com o dinheiro que foi recebendo da sociedade; não fez assim uso de créditos ou bens da empresa em seu proveito pessoal porque tinha direito a receber o seu salário da empresa, pelo que tais créditos não contribuíram para o agravamento da situação económica da empresa; em 2009 a empresa apresentou um lucro de € 7 757,84, tendo as contas sido aprovadas em Março de 2010, pelo que só a partir de tal data deveria o gerente pedir a insolvência; a situação de insolvência resultou de causas externas, em particular o aumento do preço dos combustíveis, que fez reduzir a procura, aliada à abertura de postos de abastecimento próximos, com preços mais favoráveis.

Foi proferido despacho saneador (tabelar) e seleccionada a matéria de facto (assente e controvertida), depois rectificada (fls. 191 e 261)

Efectuado o julgamento e decidida a matéria de facto, o tribunal recorrido qualificou a insolvência de S (…), Lda., como culposa, por verificação das alíneas f) e h) do n.º 2 do art.º 186º, afectando a qualificação o sócio gerente/administrador[2] da insolvente J (…), o qual ficou inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de três anos.

Inconformado, e visando a revogação da sentença e a qualificação da insolvência como fortuita, nos termos do art.º 185º, o referido J (…) interpôs o presente recurso de apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

1ª - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2ª - A actuação do gerente J (…), no período de referência de três anos, não foi nem dolosa nem com culpa grave, não tendo criado ou agravado a situação da empresa, dado que já em 2007, 2008 e 2009 a insolvente registara valores negativos de capitais próprios.

3ª - A situação economicamente deficitária da insolvente resultou fundamentalmente da concorrência desleal de postos de abastecimento de combustível de linha branca localizados a cerca de 5 km do único posto da insolvente, o que originou necessariamente uma redução das vendas desta, e, ainda, do facto da empresa não poder praticar preços livres por imposição da GALP.

4ª - A insustentabilidade da empresa resultou de razões de mercado e não de qualquer actuação do gerente, nem foi por este criada ou agravada.

5ª - A partir do momento em que a empresa deixa de ser economicamente rentável pelas razões sobreditas, o processo de degradação das suas contas, a prazo, não poderia deixar de conduzir à situação de insolvência.

6ª - A partir de 2006 o recorrente não mais aferiu qualquer remuneração a que tinha direito pelo exercício da gerência, contribuindo desta forma para não aumentar o passivo da empresa.

7ª - Em 2009, apesar da crise instalada no sector conseguiu interessado na compra de todo o imobilizado da empresa pelo preço de € 143 050, o qual serviu integralmente para amortizar dívidas da agora insolvente.

8ª - O débito que tinha para com a sociedade não foi nem criado nem agravado nos três anos em apreço, mas antes reduzido substancialmente, tendo sido contraído em data anterior a 2008.

9ª - A actuação do gerente J (…) não preenche a alínea f) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE; deve considerar-se a insolvência fortuita, nos termos do art.º 185º do CIRE.

10ª - Não basta qualquer incumprimento ou irregularidade para se verificar ipso facto a alínea h) do n.º 2 do art.º 186º, do CIRE, sendo necessário que esse incumprimento se verifique em termos substanciais ou que a irregularidade origine prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

11ª - In casu, verificou-se uma mera irregularidade contabilística não substancial, porquanto se tratou do não processamento de remunerações para com a pessoa do gerente da sociedade e não um fornecedor/terceiro, nem tal não processamento trouxe qualquer prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da empresa, porquanto ela já se revelava amplamente deficitária.

12ª - O mero não processamento das remunerações não preenche a alínea h) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, pelo que deve também, por isso, considerar-se a insolvência fortuita, nos termos do art.º 185º do CIRE.

13ª - Determinante para a qualificação da insolvência como fortuita é o facto de não existir qualquer nexo de causalidade entre uma eventual verificação das alíneas f) e h) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, o que só se admite como hipótese lógica de raciocínio, e o n.º 1 do mesmo art.º 186º.

14ª - Não é qualquer actuação do gerente que gera uma insolvência culposa, mas antes tem esta de ser havida e provada como dolosa ou com culpa grave, nos termos do n.º 1 do art.º 186º, do CIRE.

15ª - Na sentença não é alegado nem provado qualquer nexo de causalidade entre uma eventual verificação das alíneas f) e h) do n.º 2 do art.º 186º, do CIRE, e o seu n.º 1, pelo que, nunca a insolvência poderia ser considerada culposa.

Em resposta, o Ministério Público defendeu a improcedência do recurso.

Importa assim decidir se a factualidade apurada integra alguma das situações conducentes à afirmação/qualificação da insolvência como culposa.


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II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a) Por sentença transitada em julgado, proferida em 10.5.2010, foi decretada a insolvência de S (…), Lda.. (A)

b) A insolvência foi requerida no Tribunal Judicial de Pombal, em 16.3.2010, por (…). (B)

c) S (…), Lda., tinha como objecto social: posto de abastecimento de combustíveis, lubrificantes e outros produtos destinados a viação automóvel, comércio de pneus, peças e acessórios auto. (C)

d) A referida sociedade obrigava-se mediante a assinatura de dois gerentes, bastando para actos de mero expediente a assinatura de um gerente. (D)

e) Encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Comercial (CRC) de Pombal a designação como gerentes da insolvente de (…) (E)

f) A insolvente entregou as declarações para efeitos fiscais até 2009 e as respectivas contas foram depositadas na Conservatória do Registo Comercial até 2008. (F)

g) Em 2009, a insolvente declarou vender todo o imobilizado. (G)

h) Em 2007 a insolvente registou um valor negativo de € 466 700 de capitais próprios. (H)

i) Em 2008 a insolvente registou um valor negativo de € 458 942 de capitais próprios. (I)

j) Em 2009 a insolvente registou um valor negativo de € 497 238 de capitais próprios. (J)

k) Consta do balancete de contabilidade geral da insolvente que, em 31.12.2009, o volume de créditos da S (…), Lda., sobre terceiros ascendia a € 220 026,12, sendo € 117 549,78 relativos a créditos sobre clientes e € 102 476,34 relativos a empréstimos a J (…).[3] (L)

l) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) da Figueira da Foz, sob o n.º .../19970417, da freguesia Marinha das Ondas, o prédio urbano situado em Quinta dos Cozinheiros, inscrito na matriz sob o art.º ..., com a seguinte composição e confrontações: destinado à venda de combustíveis e afins com oficina e lavagem automática e constituída por: rés-do-chão nascente, com duas divisões para posto de assistência (oficina) e 1º andar parcial com duas divisões para escritório; rés-do-chão norte, com máquina de lavagem automática; rés-do-chão sul, poente, amplo, para armazém; rés-do-chão sul nascente, uma loja de apoio às bombas de combustível e compressor; 1º andar sul nascente – um espaço amplo para arrumos; rés-do-chão sul nascente – com dois espaços amplos para bar e ainda ilha de bombas de combustível – norte e nascente, estrada; sul e poente, .... (M)

m) Encontra-se inscrita na CRP da Figueira da Foz através de Ap. 409, de 2009/03/31, a penhora do prédio descrito em II. 1. l), no âmbito do processo de execução n.º 2165/08.4TBFIG, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, a favor de Banco ..., S. A.. (N)

n) Encontra-se inscrita na CRP da Figueira da Foz através de Ap. 4225, de 2009/09/08, a aquisição a favor de “(…)”, por compra, do prédio descrito em II. 1. l), a (…). (O)

o) Nos anos de 2008 e 2009 não houve movimentos a débito na conta corrente existente entre J (…) e a insolvente. (P)

p) Em 30.12.2009, na referida conta corrente, houve um acerto de saldos por parte de J (…), no valor de € 71 196,57. (Q)

q) No ano de 2006, a gerência da insolvente era remunerada com o valor mensal de € 2 493,99 e de € 150 de subsídio de refeição, num valor líquido mensal de € 1 808,59. (R)

r) Em 2007 a insolvente apresentou um resultado líquido negativo de € 146 475. (S)

s) Em 2008 a insolvente apresentou um resultado líquido positivo de € 7 757,84. (T)

t) Em 2009 a insolvente apresentou um resultado líquido negativo de € 38 295,83. (U)

u) O balanço e contas respeitantes ao exercício de 2008 foram aprovados na Assembleia-Geral Ordinária da insolvente realizada em 31.3.2009. (V)

v) O balanço e contas respeitantes ao exercício de 2009 foram aprovados na Assembleia-Geral Ordinária da insolvente realizada em 31.3.2010. (X)

w) O posto de abastecimento de combustíveis da insolvente encontrava-se instalado no prédio descrito em II. 1. l). (1º)

x) Em 2009, o imobilizado da insolvente foi vendido pelo valor de € 143 050. (2º)

y) Em 04.9.2009, a insolvente declarou vender o imobilizado indicado a fls. 110, cujo teor aqui se dá por reproduzido, pelo valor de € 3 900, a “(…)” e esta declarou aceitar a venda. (3º)

z) Em 04.9.2009, a insolvente declarou vender o imobilizado indicado a fls. 111 e 112, cujo teor aqui se dá por reproduzido, pelo valor de € 136 300, a (…) e esta declarou aceitar a venda. (4º)

aa) As remunerações previstas para a gerência referentes aos meses de Janeiro de 2007 a Setembro de 2009 e subsídios de natal e de férias não foram processados na contabilidade. (resposta aos art.ºs 6º e 7º)

bb) Entre Janeiro de 2007 e Setembro de 2009 estava prevista a remuneração da gerência da insolvente com o valor líquido mensal não inferior a € 1 800; durante esse período não foram recebidos pelo gerente tais valores e este facto não foi processado na contabilidade. (resposta ao art.º 8º)

cc) A abertura de postos de abastecimento de “linha branca” a cerca de 5 km, a preços mais favoráveis que os praticados na insolvente originou uma redução das vendas desta. (resposta ao art.º 9º)

dd) O preço de venda do combustível comercializado pela insolvente era fixado pela GALP. (10º)

ee) Em 28.7.2008, B (…), S. A., intentou acção executiva para pagamento de quantia certa, no valor de € 53 500,63, contra a insolvente, (…) dando à execução uma livrança, que correu termos sob o n.º 2165/08.4TBFIG, no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz.

ff) Por apenso à execução comum n.º 2165/08.4TBFIG, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, Banco ..., S. A., apresentou reclamação de créditos no valor de € 376 276,90, garantida por hipoteca sobre o prédio descrito em II. 1. l).

gg) Encontra-se inscrita através de Ap. 13/20081104, na CRC, a deliberação datada de 31.10.2008 - a redução do capital da sociedade insolvente, no montante de € 157 000, com a finalidade de cobertura de prejuízos, sendo o capital após a redução de € 5 000.

2. A situação de insolvência ocorre quando o devedor se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (art.º 3º, n.º 1).

            O n.º1 do art.º 185º identifica dois tipos de insolvência - culposa e fortuita.

O art.º 186º, no seu n.º 1, diz-nos que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, noção geral que se aplica indistintamente a qualquer insolvente/situação de insolvência.

Para efeitos do CIRE, são considerados administradores – não sendo o devedor uma pessoa singular – aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente; e são responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário [art.º 6º, n.ºs 1, alínea a) e 2].

É assim acolhida a noção corrente de administrador - pessoa que tem a seu cargo a condução geral de um determinado património; pessoa que administra, governa, dirige um organismo ou empresa, gere bens ou negócios[4] -, sendo que, normalmente, o exercício da administração cabe a quem esteja legal ou voluntariamente investido nas correspondentes funções.

3. Retomando o art.º 186º, o conceito de insolvência culposa pressupõe: a) que tenha havido uma conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito; b) que essa conduta tenha criado ou agravado a situação de insolvência; c) que essa conduta tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo que conduziu à insolvência; d) e que essa mesma conduta seja dolosa ou praticada com culpa grave.

Postula-se ali não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos administradores, mas também o nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência.[5]

            No mesmo art.º, nos seus n.ºs 2 e 3, estão previstas presunções de insolvência culposa, as do n.º 2, presunções iuris et de iure (não admitem prova em contrário) e, as do n.º 3, presunções iuris tantum (podem ser ilididas por prova em contrário) (art.º 350º, n.º 2 do CC).

Na verdade, quando o insolvente não seja uma pessoa singular, o n.º 2 considera a insolvência sempre culposa, se ocorrer qualquer dos factos enunciados nas suas alíneas, quando praticados pelos seus administradores/gerentes de direito ou de facto - “considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto”, tenham praticado alguns dos factos elencados nas diversas alíneas desse número.

Consagra-se, desta forma, naquele normativo, uma presunção inilidível de culpa grave, como do nexo de causalidade entre esses comportamentos e a criação ou agravamento da situação de insolvência, sendo que as várias alíneas do n.º 2 do art.º 186º exigem e pressupõem uma ponderação casuística, que atenda às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor, podendo, contudo, dizer-se que todas elas envolvem, directa ou indirectamente, efeitos negativos para o património do insolvente, geradores ou agravantes da situação de insolvência, tal como a define o art.º 3º.[6]

Assim - reportando-nos às situações consideradas na sentença recorrida -, se o administrador/gerente do devedor tiver feito de crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros e/ou incumprido  em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor  (cf. alíneas f) e h) do referido n.º 2), tais factos/situações, se demonstrados, determinam necessariamente a atribuição de carácter culposo à insolvência.[7]

4. Tendo presente o descrito factualismo e o apontado quadro normativo é irrecusável que a situação dos autos é merecedora de adequada sanção, fixada pelo Tribunal recorrido próximo do limite mínimo da “moldura” correspondente [cf. art.º 189º, n.º 2, alínea c)].

Na verdade e como se refere na decisão sob censura, o recorrente, na qualidade de sócio gerente da insolvente, beneficiou de empréstimos concedidos por esta envolvendo elevadas quantias monetárias: a dívida existente desde 30.12.2007 até 30.12.2009 foi de € 173 672,91 e, em 31.12.2009, era ainda devida a quantia de € 102 476,34, sendo que, na véspera, o recorrente “liquidara”/”amortizara” o valor de € 71 196,57 (levado ao denominado “extracto da conta 255103” sob a descrição “acerto de saldos”) [cf. documentos de fls. 149, 150 e 151 e II. 1. alíneas k) e p), supra].

Decorre também dos documentos juntos aos autos, nomeadamente, que em 06.6.2005 o valor devido pelo mencionado sócio gerente à sociedade insolvente [a quantia embolsada] era de € 41 059,34 e que o montante em dívida foi aumentando progressivamente e atingiu, em 30.12.2005 e 30.12.2006, os valores de 101 233,23 e € 195 264,34, respectivamente; de notar, ainda, que as “amortizações” foram levadas à contabilidade da empresa sob a designação “Emp. de Sócio” (Empréstimo de Sócio?] [cf. documentos de fls. 144 e seguintes].

Ora, se, por exemplo, tivermos em atenção que, em 2007, a empresa teve um custo global de “mercadorias vendidas e “matérias consumidas” de € 194 260,28 e que, em 31.12.2009, as contas “clientes”, “fornecedores” e “empréstimos obtidos” registavam os saldos de € 117 549,78 [D/saldo devedor], 413 040,15 [C/saldo credor] e € 274 397,94 [C/saldo credor], respectivamente [cf. documentos de fls. 18, 44 e seguinte e 57 e, nomeadamente, II. 1. alínea r), supra], não é necessário tecer largos considerandos sobre a gravidade da actuação do recorrente, ao “usar” daqueles valores pertencentes à empresa e, ao que tudo indica, sem que esta fosse de algum modo compensada por esse facto [v. g., através de juros remuneratórios] e mantendo esses montantes em seu poder ao longo dos anos e até à data da declaração de insolvência, evidenciando total alheamento pelas necessidades económico-financeiras e os interesses da empresa.

Ademais, a Administradora da insolvência não localizou os documentos de contabilidade relativos ao ano de 2008, todo o “imobilizado” da empresa foi alienado até Setembro de 2009, a sociedade encontrava-se numa situação de “falência técnica”, pelo menos, desde 2007 [registava um valor negativo de capitais próprios, pelo menos, desde essa altura] e a mesma Administradora, em face do que lhe foi dado conhecer, admitiu que a referida actuação do recorrente “foi um dos factores que terão agravado a situação de insolvência da empresa” [cf. o “parecer” de fls. 54 e seguintes e II. 1. alíneas h), i), j), x), y) e z), supra].

Como bem se refere na decisão sob censura, se é certo que tais empréstimos se reportam a data anterior a 2008, o processo de insolvência teve início em 16.3.2010 e durante os três anos anteriores à declaração de insolvência o recorrente não entregou à insolvente quaisquer quantias [à excepção da “operação” realizada em 30.12.2009], pelo que continuou a beneficiar, a título pessoal e para proveito próprio, de crédito da sociedade e contrariamente aos interesses desta. Por exemplo, de 2007 a 2009, a insolvente registou sempre valores de capitais próprios superiores a (-) € 450 000 e, em 2008, teve de reduzir o capital social para cobertura de prejuízos, enquanto aquele sócio gerente continuava devedor de elevadas quantias à sociedade insolvente – cf., designadamente, II. 1. alíneas h), i), j) e gg), supra.

Por conseguinte, apenas podemos concluir pelo preenchimento da situação prevista na alínea f) do n.º 2, do art.º 186º, dado o permanente ou contínuo uso (e abuso) dos bens/valores da insolvente em proveito do recorrente e contrariamente aos interesses daquela, porventura ao longo de toda a existência da empresa [i. é, desde a sua criação e, inclusive, durante a situação de falência técnica e prosseguindo para além da própria declaração de insolvência…[8]], chegando-se agora ao ponto de se propugnar um “acerto de contas/compensação de créditos” com a inclusão de retribuições do recorrente além do período da actividade da empresa e de componentes não devidas (por exemplo, 14 vezes/ano de subsídio de refeição), derradeira postura do recorrente que acaba por traduzir e renovar a sua perspectiva enviesada e particular/egoística da realidade societária, confirmando o sentido da sua pretérita actuação e, ainda assim, a “(a)normal” subsistência de um “saldo (eterno)” a favor da insolvente....

Neste enquadramento, irreleva a circunstância de o recorrente não ter feito uso de novas importâncias da insolvente nos anos de 2008 e 2009, porquanto, apesar da situação de agonia financeira por que passava a empresa, continuou embolsado de valores a ela pertencentes, sem que se dignasse restituir-lhe o que quer que fosse (à excepção, obviamente, da supra referida “operação” datada de 30.12.2009)… [cf. II. 1. alínea o), supra].    

E embora se admita que o limite temporal previsto no n.º 1 do art.º 186º se aplica igualmente às situações enunciadas no n.º 2 do mesmo art.º (para a relevância dos factos referidos nas suas diversas alíneas)[9], não podemos, de modo algum, acompanhar o recorrente quando diz que “o crédito que a sociedade tinha para com o gerente não foi nem criado nem agravado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”, pois, na situação dos autos, a actuação do recorrente teve directa, necessária e permanente repercussão na sociedade insolvente; acresce que a declaração da insolvência foi requerida em Março de 2010, pelo que, faltando ou não sendo possível localizar os elementos da contabilidade da empresa relativos a 2008 [cf. supra], nem sequer será possível concluir pela inexistência de “novos empréstimos” a partir de Março de 2007, sendo que o recorrente apenas refere que o “empréstimo” em causa foi “contraído em data anterior a 2008”...

5. Se a mencionada factualidade é suficiente para afirmar a insolvência culposa e respectivas consequências, pensamos que será de concluir que a factualidade provada se enquadra igualmente na alínea h) do n.º 2, do art.º 186º, a medida em que foi praticada irregularidade na contabilidade da empresa com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor [cf. II. 1. alíneas q), aa) e bb), supra].

Na verdade, além da promiscuidade inerente à denominada “conta corrente” existente entre o recorrente e a empresa insolvente, ocorreu ainda omissão (grave/substancial) na contabilidade, porquanto inviabilizava o conhecimento da situação patrimonial e financeira da devedora (originava um prejuízo para a compreensão e o conhecimento da situação da devedora) - a real situação económica e financeira da insolvente não se encontrava reflectida na respectiva contabilidade, existindo operações que não foram processadas contabilisticamente, mormente as respeitantes às remunerações da gerência, por determinação dessa mesma gerência (como resulta claro do explanado na “oposição” dos presentes autos).

6. A sentença qualifica a insolvência como culposa ou como fortuita e, sendo qualificada como culposa, o juiz deve identificar as pessoas [insolvente e, eventualmente, outras, sejam todos ou alguns dos seus administradores, de direito ou de facto] afectadas pela qualificação; declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos [art.º 189º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), c) e d)].

Extrai-se das diversas alíneas do n.º 2 do art.º 189º que a qualificação da insolvência como culposa determina consequências gravosas sobre todas as pessoas singulares que, com a sua conduta, efectivamente contribuíram, de modo relevante, para a situação que se verifica, tornando-se assim necessário avaliar a actuação concreta de quem for potencialmente atingível, em ordem a verificar a quem podem ser imputados os factos relevantes a considerar.[10]

Demonstrados os factos integradores das mencionadas alíneas e a inequívoca responsabilização do recorrente pela sua verificação, outras não poderiam ser as consequências assinaladas na sentença sob censura - perante a descrita factualidade e atendendo à presunção inilidível supra referida, impunha-se a qualificação da insolvência como culposa, sendo que, relembra-se, a lei institui no art.º 186º, n.º 2, uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em contrário.[11]

7. Em conclusão, ficaram provados factos imputáveis ao recorrente, legal representante da sociedade, que sustentam a qualificação da insolvência como culposa.

Daí que este deva ser afectado por essa qualificação, atenta a gravidade dos factos apurados.

 Soçobram desta forma as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas da apelação pelo recorrente.   


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Fonte Ramos ( Relator )

Carlos Querido

Virgílio Mateus


[1] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.

[2] Com o sentido aludido em II. 2., infra.
[3] Existirá lapso no montante global indicado ou, então, no valor referido a título de “créditos sobre clientes”.
[4] Vide Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001, pág. 87.
[5] Cf., de entre vários, os acórdãos da RC de 23.6.2009-processo 273/07.8TBOHP-C.C1, 19.01.2010-processo 132/08.7TBOFR-E.C1 e 23.11.2010-processo 1088/06.6TBPMS-A.C1, e da RL de 27.11.2007, publicados, os três primeiros, no “site” da dgsi e, o último, na CJ, XXXII, 5, 104.
[6] Vide, neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2009, págs. 610 e seguintes.
[7] Cf., entre outros, o citado acórdão da RL de 27.11.2007.
[8] A actuação do recorrente é comparável àquela que, no domínio penal, se identifica com a ocorrência de um delito permanente, em que a manutenção do estado ilícito depende da vontade do autor: não somente a sua produção mas também a sua duração realiza o tipo legal, e só a abolição do estado ilícito permite considerar “acabado” o facto punível – cf., entre outros, Johannes Wessels, Direito Penal (aspectos fundamentais), Porto Alegre, Fabris, 1976, pág. 9.
[9] Vide, neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 611.
[10] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 618 e 624.

[11] Vide, ainda, Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 270.

    Cf. ainda, de entre vários, os acórdãos da RC de 17.02.2009-processo 2740/05.9TBMGR-E.C1, 21.4.2009-processo 369/07.6TBCDN-B.C1 e 26.01.2010-processo 110/08.6TBAND-D.C1, publicados no “site” da dgsi.