Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10/21.4T8PCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA LABORAL
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUIZO DE COMPT. GENÉRICA DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 79º, Nº 3 DA LAT.
Sumário: i) A competência em razão da matéria afere-se pela pelo pedido e causa de pedir;

ii) É da competência do Juízo Cível, e não do Juízo do Trabalho, a ação intentada pela seguradora laboral com vista ao exercício do direito de regresso previsto no art. 79º, nº 3, da Lei dos Acidentes de Trabalho.
Decisão Texto Integral:





I – Relatório

1. G..., S.A., com sede em ..., intentou ação declarativa contra o B..., peticionando a condenação deste no pagamento da quantia de 19.009,75€, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a citação.

Alegou, para o efeito, o direito previsto no art. 79º, nº 3 da L.A.T., porquanto, no âmbito das suas obrigações contratuais, enquanto seguradora do risco laboral (contrato de seguro celebrado entre a autora e a entidade patronal do sinistrado, o réu), despendeu as quantias descriminadas no art. 26º da p.i., decorrentes do acidente de trabalho sofrido por J..., trabalhador do réu, sendo que o acidente em apreço se ficou a dever à inexistência de equipamentos de proteção, individual ou coletiva, de prevenção de quedas em trabalhos em altura, dando o réu expressas instruções aos seus trabalhadores para que tais equipamentos não sejam instalados, por forma a não atrasar os trabalhos.

*

Foi, depois, proferido despacho liminar que declarou o Tribunal incompetente em razão da matéria, por ser competente o Juízo do Trabalho de Coimbra, absolvendo-se, em consequência, o R. da instância. 

2. A A. recorreu, concluindo que:

...

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

A factualidade a considerar é a que decorre do Relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Competência material do tribunal.

2. No despacho recorrido escreveu-se que:

“Dispõe o normativo inserto no artigo 64° do CPCivil “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Por sua vez, estatui o artigo 65° do mesmo diploma legal que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada”.

Já no que respeita à Lei da Organização do Sistema Judiciário (doravante LOSJ), dispõe o artigo 40º, sob a epígrafe competência em razão da matéria que:

“1. Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

2. A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada”. – nosso negrito.

No que releva ao presente caso, dispõe o artigo 85º deste último diploma legal, atinente aos Juízos do Trabalho, sob a epígrafe competência cível que competente aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, entre outras, as questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”.

Já no que respeita à competência dos Juízos locais cíveis, criminais, de competência genérica e de proximidade, prescreve o artigo 130º do mesmo diploma legal que lhes incumbirá, entre outras questões, decidir causas que não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada, sendo certo que “os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada” (nº 1 e 2 desse mesmo preceito legal).

A este propósito, cumpre desde logo referir que concordamos na íntegra com o entendimento propugnado no recente Ac. do STJ datado de 30/04/2019, no proc. nº 100/18.0T8MLG-A.G1.S1, disponível em www.dsgi.pt (Sr.ª Cons. Ana Paula Boularot) onde se defende, precisamente num caso idêntico ao que está em causa nestes nosso autos, que “seria uma incongruência concluir-se que o Tribunal de Trabalho era o competente para se aferir da responsabilidade da entidade seguradora nesta sede, por via da transferência das responsabilidades através da celebração obrigatória do contrato de seguro havido com a entidade patronal em sede de acidentes de trabalho, e, já não o seria, para averiguar, afinal das contas, se teria ou não ocorrido uma efectiva responsabilidade funcional desta na ocorrência do sinistro, por forma a desonerar aquela das obrigações assumidas, porquanto o que está em causa, a jusante e a montante, é o acidente de trabalho e as circunstâncias em que o mesmo se verificou. Consagra-se, assim, o princípio da absorção das competências, o que equivale a dizer que tendo os Tribunais de trabalho a competência exclusiva para a apreciação das problemáticas decorrentes dos acidentes de trabalho, a eles competirá, mutatis mutandis, igualmente, o conhecimento de todas as questões cíveis relacionadas com aqueles que prestem apoio ou reparação aos respectivos sinistrados, já que, o cerne da discussão se concentra na ocorrência do sinistro e eventual violação por banda da entidade empregadora das regras de segurança”. (nosso sublinhado e negrito).

Outrossim, como bem se refere naquele douto Acórdão, citando os preceitos legais da LOSJ supra transcritos, “o nó górdio, da presente impugnação recursiva, quanto à competência do Tribunal para a concretização do direito de regresso, parece diluir-se na leitura dos apontados normativos que indicam, sem margem para dúvidas, que a aptidão para o tratamento destas questões específicas, relativas a acidentes de trabalho, e doenças profissionais que aqui não curamos, se encontra deferida aos Tribunais de Trabalho por força do disposto no artigo 126º, nº1, alínea c) da LOFT. Não se trata aqui da análise de uma situação autonomizada – o direito de crédito da Recorrida accionado em sede de regresso - em relação a toda a factualidade consubstanciadora que conduziu a esse direito, isto é, o acidente de trabalho. Nos termos do artigo 40º, da LOFT, os Tribunais judiciais têm uma competência residual, apenas intervindo quando as causas não estejam atribuídas a outra ordem jurisdicional e a situação dos autos está expressamente afecta à jurisdição laboral, ex vi do artigo 126º, nº1, alínea c) do mesmo diploma, tendo em atenção o pedido e a causa de pedir em tela, encontrando-se prevista no CPTrabalho não só a tramitação do processo relativo ao acidente laboral, como também, todos os procedimentos destinados a ultimar a extinção e/ou a efectivação de direitos de terceiro conexos com o acidente de trabalho, prevendo que essas acções corram por apenso ao processo resultante do acidente, caso o haja, artigo 154º do CPTrabalho, no qual se predispõe «1 - O processo destinado à efectivação de direitos conexos com acidente de trabalho sofrido por outrem segue os termos do processo comum, por apenso ao processo resultante do acidente, se o houver. 2 - As decisões transitadas em julgado que tenham por objecto a qualificação do sinistro como acidente de trabalho ou a determinação da entidade responsável têm valor de caso julgado para estes processos”. – nosso sublinhado e negrito.”.

Dir-se-á, de imediato, que não se acompanha o entendimento expresso no citado aresto do STJ de 30.4.2019, seguido pelo despacho recorrido.

Isto, porque não é convincente, não se aceitando o seu nuclear argumento baseado no princípio da absorção de competências, que decorrerá do art. 126º, nº 1, c), da LOSJ, que reza, simplesmente, que é da competência dos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, as questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.

Não se divisando, assim, nenhuma incongruência na conclusão de que sendo o Tribunal de Trabalho o competente para aferir da existência de um acidente de trabalho, com a consequente responsabilidade da seguradora, por via da transferência da mesma por via da celebração de contrato de seguro com a entidade patronal, já não o ser, para averiguar, o direito de regresso legal, previsto no art. 79º, nº 3, da LAT,  invocado como causa de pedir pela seguradora, fundado no acidente de trabalho ocorrido, pagamento efectuado ao trabalhador e alegada responsabilidade da entidade patronal na ocorrência daquele sinistro.

Antes se considera mais ajustada a jurisprudência, largamente maioritária, que considera ser competente, num caso como o nosso, o tribunal judicial cível. 

Assim, sendo sabido de todos que a competência do tribunal, sendo um pressuposto processual, se afere pelo pedido e respetivos fundamentos, nos termos em que são configurados pelo autor, temos por acertado o que se expende no Ac. do STJ de 14.12.2017, Proc.3653/16.4T8GMR, em www.dgsi.pt, (apontado pela recorrente), aí se dizendo que:
“O fundamento da ação, que consubstancia a causa de pedir, assenta na alegação do direito de regresso, resultante da Recorrida, por efeito de contrato de seguro, ter satisfeito o pagamento das prestações devidas por acidente de trabalho, com atuação culposa da entidade empregadora.
Nestas circunstâncias, evidencia-se que o direito de crédito invocado na ação tem por fundamento ou justificação o direito de regresso a favor da Recorrida, que assumiu a responsabilidade pelo acidente de trabalho.
Deste modo, considerada a natureza do pedido e da causa de pedir da ação especificados, a competência material cabe aos tribunais comuns.
Embora o direito de regresso invocado possa resultar da responsabilidade assumida por acidente de trabalho, é por demais evidente que não é essa a problemática que se discute na presente causa.
Por isso, e ao contrário do que defende a Recorrente, a competência material para a ação não se enquadra no âmbito do disposto na alínea c) do n.º 1 do art. 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), segundo o qual “compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidente de trabalho e doenças profissionais”.
Na verdade, na ação, não está em causa qualquer questão emergente de acidente de trabalho, mas apenas o reflexo da responsabilidade, assumida pelo acidente de trabalho, por parte da seguradora.
(…)
Com efeito, a verificação do direito de regresso, nomeadamente quanto aos seus pressupostos legais, insere-se claramente no âmbito da apreciação do mérito da ação. Essa questão, no entanto, não interfere na determinação da competência material do tribunal da causa. Isto mesmo foi entendido pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de junho de 2006 (06B2020), acessível em www.dgsi.pt.
Nesta conformidade, não pode deixar de se concluir que compete aos tribunais comuns, nomeadamente de competência cível, conhecer da ação proposta por seguradora, no exercício do direito de regresso, contra a tomadora do seguro (entidade empregadora), para obter a sua condenação no reembolso das quantias pagas, em resultado de acidente de trabalho causado por violação das regras de segurança do trabalho.” – sublinhado nosso.
Ou como também se deixou dito no indicado aresto do STJ de 22.6.2006:
“A lei prescreve competir aos tribunais do trabalho em matéria cível, além do mais que aqui não releva, conhecer, por um lado, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
E, por outro, das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho, ou um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a de trabalho, por acessoriedade, complementariedade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente (artigo 85º, alíneas c) e o), da LOFTJ). – hoje arts. 126º, nº 1, c) e n), da actual LOSJ.
Decorrentemente, a competência em razão da matéria dos tribunais de trabalho abrange as acções que:
- tenham por objecto questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
- versem sobre litígios envolventes de sujeitos de relações jurídicas de trabalho.
- e cujo objecto emirja de uma relação jurídica conexa com a de trabalho em termos acessórios, complementares ou de dependência, envolva um sujeito da primeira e um terceiro e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal do trabalho seja directamente competente.
O referido nexo de acessoriedade, complementariedade ou de dependência justificativo da atribuição da competência aos tribunais do trabalho, a que se reporta o último dos referidos normativos pressupõe a natureza substantiva das relações conexas com a relação jurídica laboral.
Decorrentemente, não basta, para o referido efeito de competência,
a mera conexão processual.
Tendo em linha de conta a estrutura do pedido e da causa de pedir formulados na acção, certo é não estarmos perante um litígio relativo a questões emergentes de um acidente de trabalho, pelo que se não enquadra na alínea c) do artigo 85º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.

Ademais, a ação não veicula uma relação jurídica laboral cujos sujeitos sejam a agravante e a agravada, pelo que também se não enquadra na primeira parte da alínea o) do artigo 85º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Trata-se, na realidade, de uma ação em que a agravada figura como sujeito de uma relação jurídica laboral e a agravante figura em posição idêntica à de um terceiro no âmbito de uma outra relação jurídica de seguro conexa com a primeira em que ambas figuraram como sujeitos.
Todavia, também a referida situação se não integra na segunda parte da alínea o) do artigo 85º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, porque o pedido formulado pela agravante na ação não é cumulado com outro para o qual o tribunal do trabalho seja diretamente competente.

Em consequência, não estamos na espécie perante uma ação da competência dos tribunais do trabalho.
(…)
Vejamos, finalmente, na síntese da solução jurídica para o caso vertente decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.

Tendo em linha de conta o pedido e a causa de pedir formulados na ação, certo é não estarmos perante um litígio relativo a questões emergentes de um acidente de trabalho.
Trata-se de ação cuja causa de pedir se traduz numa relação jurídica conexa com uma relação jurídica laboral em que um dos sujeitos também o foi da relação jurídica laboral e o outro um terceiro em relação a ela, sem que ocorra uma situação de cumulação de pedidos.
A competência para conhecer da referida ação não se inscreve, por isso, nos tribunais do trabalho, mas nos restantes tribunais de competência cível exclusiva ou não, na espécie no tribunal da primeira instância onde a ação em análise foi intentada.” – o travessão e os sublinhados são da nossa autoria.

Ou, finalmente, como se propugnou nos Acds. desta Relação de Coimbra de 23.6.2015, Proc.4714.6TBMIR-A, e da Rel. Lisboa de 21.2.2019, Proc.605/17.0T8MFR, mesmo sítio, ambos no mesmo sentido.

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) A competência em razão da matéria afere-se pela pelo pedido e causa de pedir;

ii) É da competência do Juízo Cível, e não do Juízo do Trabalho, a ação intentada pela seguradora laboral com vista ao exercício do direito de regresso previsto no art. 79º, nº 3, da Lei dos Acidentes de Trabalho.

IV –Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando o despacho recorrido, declarando-se competente o tribunal a quo.

Sem custas   

                                                                   Coimbra, 22.6.2021

                                                                   Moreira do Carmo

                                                                   Fonte Ramos

                                                                   Alberto Ruço