Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
60/03.2TANLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
REQUISITOS
Data do Acordão: 09/27/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REJEITADO
Legislação Nacional: ARTIGO 287º, Nº. 2, DO C. PROCESSO PENAL
Sumário: O requerimento para abertura de instrução, além das razões de facto e de direito da divergência relativamente ao despacho de não acusação, tem de revestir a forma de uma verdadeira acusação e ainda indicar especificamente as provas e diligências que o assistente pretende ver realizadas em ordem a comprovar que existem indícios suficientes da prática do ou dos crimes pelos quais pretende que o arguido seja pronunciado.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. Nos competentes Serviços do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, A... e esposa B...apresentaram denúncia contra C... e marido D..., tais como aqueles mais identificados nos autos, fundados na alegada prática por estes de factos consubstanciadores da co-autoria de um eventual crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b) do Código Penal [CP].
Findo o inquérito, o Ministério Público alicerçado no disposto pelo artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal [CPP] – seja, insuficiência de indícios relativamente à emergência do apontado ilícito ou de haverem sido os denunciados os seus co-autores –, determinou o respectivo arquivamento.
Pretendendo comprovar judicialmente esta decisão de arquivamento, os denunciantes, entretanto admitidos a intervir na veste de assistentes, solicitaram a abertura de instrução através do requerimento que é fls. 248 a 251 dos autos.
Admitida e tramitada tal fase processual, nomeadamente com a realização do devido debate, o M.mo JIC veio a proferir decisão instrutória, que ao que ora releva, reza como segue:
“ (…)
Questão prévia – da nulidade da instrução por falta de objecto:
Antes de prosseguirmos na análise da prova produzida em sede de inquérito e instrução, com vista a decidir se existem ou não indícios suficientes para pronunciar os arguidos, cumpre analisar o requerimento de abertura de instrução para determinar se este contém os elementos essenciais, de facto e de direito, que permitam ao arguido o exercício cabal do seu direito de defesa nesta fase processual e que possibilitem, a final, a pronúncia dos arguidos sem ofensa do disposto no artigo 309.º, do Código de Processo Penal.
De facto, nos termos da disposição citada, a decisão instrutória é nula quando pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial dos constantes na acusação pública, na acusação particular ou (no caso em apreço), no requerimento de abertura de instrução.
Nos termos do artigo 1.º, n.º 1, al. f), do CPP, é alteração substancial aquela que implica a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Assim sendo, é essencial que o requerimento de abertura de instrução, quando apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, contenha em si mesmo a descrição precisa dos factos imputados aos arguidos e a respectiva qualificação jurídica, exigindo os princípios acusatório e do contraditório, que tal descrição se faça nos termos em que o seria uma acusação.
Tais considerações remetem-nos para o disposto no artigo 283.º, n.º 3, do CPP, que refere que a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis [cfr. alíneas b) e c) da disposição citada, aplicáveis ao requerimento de abertura de instrução por força do artigo 287.º, n.º 2, in fine].
São estes assim os elementos mínimos para que se considere fixado o objecto do processo e para que, em face dos mesmos, o arguido possa exercer na sua plenitude o seu direito de defesa e é assim com base nestes que se determinará se a decisão a proferir constitui ou não alteração substancial dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução.
No caso dos autos e quanto aos factos imputados aos arguidos, o requerimento de abertura de instrução limita-se a dizer o seguinte:
“1. A ora Ofendida queixou-se dos Arguidos por os mesmos se terem apropriado dos bens móveis constantes da relação junta com a participação inicial, bens depositados no decurso do mês de Setembro de 1997 nas suas residências em Canas de Senhorim e em Beijós.
Bens cuja devolução foi sucessivamente negada à ofendida e que serviram para que em Dezembro de 2003 e Janeiro de 2004 a Arguida mulher encetasse num processo de chantagem com vista a obrigar a Ofendida a pagar-lhe elevada quantia em dinheiro.”
Nada mais é dito quanto aos factos imputados aos arguidos, entendendo os assistentes que os arguidos devem ser pronunciados pela prática de um crime de abuso de confiança agravado, sem no entanto referir as disposições legais aplicáveis, pelo que ficamos sem saber qual a circunstância agravante que concretamente deve ser imputada aos arguidos, das várias previstas nos n.ºs 4, als. a) e b) e n.º 5, do artigo 205.º, do Código Penal.
Resulta assim da análise do requerimento de abertura de instrução que faltam elementos essenciais para a imputação de um crime aos arguidos, em especial do crime de abuso de confiança, definido no artigo 205.º, n.º 1, do C. Penal como a apropriação ilegítima de coisa móvel entregue ao agente a título não translativo da propriedade.
Desde logo e mesmo que consideremos válida a remissão para a relação de bens apresentada com a participação quanto aos bens em causa e respectivo valor, o que não é indiscutível, falta a descrição dos factos que qualificam a qualidade alheia das coisas entregues, o título a qual foram entregues, bem como a concretização precisa das circunstâncias de tempo lugar e modo em que os factos ocorreram.
De igual modo não está concretizada de forma alguma o grau de participação dos arguidos nos factos em causa, nem tão pouco os factos relativos ao elemento subjectivo do tipo de crime ou à culpa dos arguidos, tudo elementos essenciais para que se lhes possa imputar a prática de qualquer ilícito criminal.
Assim sendo, qualquer decisão de pronúncia dos arguidos seria necessariamente nula, por implicar o aditamento de factos essenciais ao preenchimento do tipo legal de crime que não constam do requerimento de abertura da instrução, bem como a concretização das disposições legais aplicáveis, o que também não consta do referido requerimento.
É certo que a participação criminal deduzida contra os arguidos contém uma descrição dos factos mais elaborada, mas o requerimento de abertura de instrução nem sequer remete expressamente para tal participação, ao integrar os factos, remetendo apenas para a relação de bens que com ela foi junta, pelo que a participação não pode ser utilizada para colmatar as falhas no requerimento de abertura de instrução.
E nem se diga que o facto de se ter declarado aberta a instrução, sem se ter em momento próprio, indeferido liminarmente o requerimento de abertura de instrução, obsta a que se conheça da nulidade em causa neste momento, uma vez que o despacho que declara aberta a instrução não faz caso julgado, nem obviaria à necessária nulidade da decisão instrutória.
Resta assim a questão de saber se as falhas no requerimento de abertura da instrução poderiam ter sido colmatadas com um convite dos assistentes a aperfeiçoar tal requerimento.
Na esteira do que é a jurisprudência maioritária, nos tribunais judiciais superiores e no Tribunal Constitucional, entendemos que não.
De facto, devemos considerar que, por um lado, o prazo conferido ao assistente para deduzir a abertura da instrução constitui um direito do arguido, pelo que a apresentação de requerimento de abertura de instrução fora de tal prazo ou a sua correcção fora do mesmo ofenderia o direito de defesa do mesmo.
Com efeito, constitui matéria assente que o prazo para requerer a abertura da instrução é um prazo peremptório (cfr. Acórdão Para Fixação de Jurisprudência n.º 2/96, de 06.12.1995, DR-IS-A, de 10.01.1996 e Acórdão do Tribunal Constitucional de 30.01.2001, DR-IIS, de 23.03.2001).
Por outro lado, a estrutura acusatória do processo penal português, prevista no artigo 32.º, n.º 5, da CRP, impõe ao juiz uma atitude de completa neutralidade em face das posições assumidas pela acusação e pela defesa, pelo que não pode o julgador partir “em socorro” do assistente, convidando-o a corrigir imperfeições nas suas peças processuais, em prejuízo do equilíbrio e igualdade de armas entre este e o arguido, atitude que corresponderia a uma faculdade inquisitória que a lei não confere ao julgador (neste sentido, entre muitos outros, cfr. Ac. da Rel. do Porto de 15-12-2004, proc. n.º 0343660, in www.dgsi.pt).
De tudo o exposto, resulta que a presente instrução não pode ter decisão de mérito, por falta de objecto legal.
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Nestes termos e com os fundamentos expostos, decido não tomar conhecimento do mérito do requerimento de abertura de instrução, por falta de objecto legal.
(…) “.
1.2. Discordando do assim decidido, recorreram os denunciantes/assistentes motivando a peça respectiva e formulando conclusões em que, sinteticamente, alegam que o requerimento por si oferecido preenche todos os requisitos legais, respeitando quer o determinado pelo artigo 287.º, n.º 2 do CPP, quer o imposto pelo antecedente artigo 283.º, n.º 3, seja continha todos os elementos do tipo imputado aos arguidos.
Tudo para terminarem pedindo a revogação do despacho controvertido e substituição por outro que ordene a submissão dos denunciados a julgamento.
1.3. Admitido o recurso, notificados os sujeitos processuais, apenas os denunciados ofereceram resposta sufragando a subsistência do decidido.
Proferido tabelar despacho de sustentação do despacho recorrido, subiram os autos a este Tribunal, tendo o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitido parecer conducente ao seu não provimento.
Cumpriu-se com o disposto pelo artigo 417.º, n.º 2 do CPP.
No exame preliminar a que alude o n.º 3 do mesmo normativo consignou-se estarmos perante caso de rejeição do recurso.
Por isso, determinou-se a recolha dos vistos dos M.mos Adjuntos e submissão do processo à conferência.
Cabe apreciar.
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II – Fundamentação.
2.1. Como é consabido, o âmbito do recurso é fixado através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (cfr., entre outros, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça [STJ], de 19 de Junho de 1996, no BMJ, 458.º/pág. 98, bem como o artigo 412.º, n.º 1 do CPP). Na verdade, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar (vd. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. pág. 335), isto sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento daquelas que assumam carácter oficioso.
In casu, não se nos antolhando subsistir alguma destas, vendo-se as conclusões apresentadas pelos recorrentes, decorre que o estrito âmago do nosso conhecimento se limita a aquilatarmos se o despacho recorrido deve ser revogado por haver considerado que, atenta a falta de objecto legal, não era admissível ao M.mo JIC tomar conhecimento do mérito do requerimento de abertura da instrução.
2.2. O pedido de abertura da instrução está regulado nos artigos 286.º e 287.º, ambos do CPP, que, na parte ora relevante, preceituam:
(artigo 286.º)
“1. A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a julgamento.
2. A instrução tem carácter facultativo.”
(artigo 287.º)
“1. A abertura da instrução pode ser requerida:
(…).
b) Pelo assistente, se o procedimento criminal não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2. O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente á acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c).
3. O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal de instrução.
(…).”
Por seu turno, relativamente à decisão posterior à efectivação dos actos de instrução, disciplina o subsequente artigo 308.º, seus n.ºs 1 e 2:
“1. Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2. É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no artigo 283.º, n.ºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.”
Ainda que se relembre que o artigo 283.º dispõe, nomeadamente:
“ (…).
3. A acusação contém, sob pena de nulidade:
(…).
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada.
c) A indicação das disposições legais aplicáveis.
(…).”
Isto é, da conjugação de tais preceitos decorre que o requerimento para abertura da instrução, além das razões de facto e de direito da divergência relativamente ao despacho de não acusação, tem de revestir a forma de uma verdadeira acusação e ainda indicar especificamente as provas e diligências que o assistente pretende ver realizadas em ordem a comprovar que existem indícios suficientes da prática do ou dos crimes pelos quais pretende que o arguido seja pronunciado.
De tal requerimento tem de constar como o titular do inquérito deveria ter procedido, em vez de o arquivar, mas antes acusar e em que termos o deveria ter feito, invocando razões de dupla índole, que sustentam os elementos objectivos e subjectivos do tipo por que o arguido seja pronunciado.
A instrução assume na economia processual penal um carácter facultativo, mas sem que deixe de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória do julgamento, de controlo judicial da actuação do Ministério Público. A instrução é dirigida à resolução de um diferendo de indiciação factual, donde a importância primordial na sua indicação, cuja falta, aliás, conduz à respectiva inexequibilidade; um requerimento sem factos libertaria o juiz da sua vinculação temática.
2.3. No caso concreto, como resulta da decisão impugnada, estavam em causa as ausências da relação dos bens omitidos e respectivo valor, que se não mostra assente, a falta a descrição dos factos que qualificam a qualidade alheia das coisas entregues, o título pelo qual foram entregues aos denunciados, a concretização precisa das circunstâncias de tempo lugar e modo em que os factos ocorreram, o grau de participação dos arguidos nos factos em causa, os factos relativos ao elemento subjectivo do tipo de crime ou à culpa dos arguidos, o que tudo se mostrava essencial para que pudessem vir a ser sujeitos à imposição de uma reacção criminal.
Vingando a pretensão dos recorrentes, corolário seria a nulidade da decisão instrutória proferida, pois que se traduziria no aditamento de factos essenciais ao preenchimento do tipo legal de crime que não constam do requerimento de abertura da instrução, bem como na tipificação respectiva que igualmente nele se não descortina.
2.4. Tanto bastava para a apontada rejeição do recurso interposto.
Em todo o caso, três outras singelas ordens de razões imporiam idêntica solução:
Uma primeira, no sentido em que a mera remissão para a participação, mesmo que ocorresse (o que não é o caso), não teria a virtualidade de sanar a omissão apontada.
Uma segunda, para se relembrar que o simples despacho que permitiu a abertura da instrução não preclude (mormente pelo fundamento aduzido) o conhecimento da apontada nulidade.
Uma última, precisando que, em todo o caso, se mostrava agora impossível o convite para aperfeiçoamento ao requerimento apresentado pelos assistentes, por força do entendimento acolhido no Ac. n.º 7/2005, do STJ, publicado no Diário da República n.º 212, de 4 de Novembro.
Tudo a traduzir-se, então, na manifesta improcedência do recurso interposto, como inicialmente dito.
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III – Decisão.
São termos em que perante todo o exposto e sem necessidade de mais considerações, se rejeita o recurso interposto pelos assistentes.
Custas pelos recorrentes que arcarão, cada um, com 6 UCs de taxa de justiça, aqui se incluindo já a penalização aludida pelo artigo 420.º, n.º 4 do CPP.
Notifique.
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Coimbra, 28 de Setembro de 2006