Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
29/17.0GBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
CANABIS
RESINA
CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
CONSUMO MÉDIO DIÁRIO
GRAU DE CONCENTRAÇÃO MÉDIO
GRAU DE PUREZA
Data do Acordão: 11/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CELORICO DA BEIRA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 40.º, N.º 2, DO DL 15/93, DE 22-01; ART.2.º, N.º 2, DA LEI N.º 30/2000, DE 29-11; ART. 9.º DA PORTARIA N.º 94/96, DE 26-03
Sumário: I - A indicação, na tabela referida no artigo 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26-03, do valor correspondente ao consumo médio de resina de canabis (0,5g diários) pressupõe, conforme nota (3) e) inscrita na dita tabela, um grau de concentração médio de 10% de A9TIIC.
II – Revelando-se diferente o grau de pureza daquela substância estupefaciente, o valor referencial do consumo médio diário terá de ser casuisticamente adaptado.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

No âmbito do processo sumário n.º 29/17.0GBGRD que corre termos na Comarca da Guarda – Juízo de Competência Genérica de Celorico da Beira, em 14/3/2017, foi proferida Sentença, cujo Dispositivo é o seguinte:

III- DECISÃO

Pelo exposto decido:

- Condenar o arguido A... , pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência ao artigo 21.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão efetiva, sendo de descontar no seu cumprimento 1 (um) dia de prisão.

- Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça a pagar em 1UC.

- Declarar perdido ao favor do Estado o produto estupefaciente apreendido nos autos, determinando-se que, após trânsito em julgado da presente sentença, se proceda à sua destruição.

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Mantêm-se os pressupostos que fundamentaram a aplicação de medidas de coação, pelo que, até ao trânsito em julgado da presente sentença, deverá o arguido continuar sujeito à medida de coação aplicada (TIR), medida esta que apenas se extinguirá com a extinção da pena (dr. aI. e) do n.º 1 do artigo 214.º do Código de Processo Penal).

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Conforme supra se consignou, os factos em causa nos presentes autos - de 21 de Fevereiro de 2017 - ocorreram no decurso da liberdade condicional concedida ao arguido no âmbito do processo n.º 374/15.9TXCBR-A, do Tribunal de Execução de Penas, pelo que se determina que, de imediato, se comunique a presente sentença a tal processo, após trânsito a este remetendo-se ainda certidão da mesma, com nota de trânsito em julgado.

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Após trânsito remeta boletins à DSIC, comunique ao TEP e emitam-se mandados de detenção para condução do arguido ao EP.

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De imediato proceder-se-á ao depósito da presente sentença (dr. artigo 372,1', n.º 5 do Código do Processo Penal).
                                                                       *
            Notifique.”

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Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 24/4/2017, o arguido, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que condenou o arguido, ora recorrente, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25°/ alínea a) do Decreto-Lei n" 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão efetiva.

2. De facto o tribunal a quo condenou o ora recorrente considerando provados factos de que não foi feita prova, ou, pelo menos, suficiente, ou com a segurança que é exigida pelo nosso Direito.

3. Mesmo tendo sempre presente que / e nos termos da motivação explanada na douta sentença, “ os elementos de prova supra referidos, com exceção feita para a prova pericial, foram apreciados à luz do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal, ou seja, segundo as regras de experiencia e a livre convicção do julgador, já que o julgador é livre de decidir segundo o bom senso e a experiencia da vida, claro está tendo em mente a convicção a capacidade critica, o distanciamento e a ponderação que se impõem", entende o arguido, ora recorrente, que, e com o devido respeito que é muito, mal andou o tribunal a quo, na aplicação das regras, princípios e normas legais.

4. Se o produto se destinava pelo menos ao seu consumo, como provado, não se provando que se destinava exclusivamente ao consumo também nenhuma prova foi feita de que o destino fosse a cedência ou venda do mesmo!

5. O douto tribunal a quo manifestou desta forma claramente no ponto 3 dos factos provados e no ponto único dos factos não provados que lhe foi suscitada dúvida razoável sobre o destino do produto estupefaciente que o arguido, ora recorrente, tinha na sua posse.

6. E essa dúvida não é desfeita, antes subsiste na fundamentação da sentença.

7. Existe violação do princípio in dubio pro reo, pois que o princípio da livre apreciação da prova não abarca retirar de não factos, conclusões.

8. A obrigação de fundamentação das sentenças há-de concretizar-se pela enumeração dos factos provados e não provados essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes.

9. Acrescerá a exposição dos motivos de facto e de direito, que a fundamentam, com a indicação e respetivo exame critico das provas, de forma a exteriorizar e permitir apreender o raciocínio logico subjacente á convicção adquirida pelo julgador.

10. Esta obrigação de fundamentação decorre da exigência constitucional e legalmente estatuída nos artigos 2050 n" 1, da Constituição da República Portuguesa e 97' n" 1 e 5 do Código de Processo Penal.

11. O princípio in dubio pro reo - fórmula condensada por Stubel - que estabelece que, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, é um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.

12. Ora, e atrevemo-nos a dizer que parece que o douto tribunal a quo perante a dúvida, em vez de dar como deveria dar, aplicação ao principio in dubio pro reo, consagrado no artigo 32°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa recorreu à sua livre convicção, a qual como se demonstrou em nada foi infirmada pelos critérios objetivos que presidem e subjazem ao principio da livre apreciação da prova.

13. O Tribunal a quo, ao ter condenado o ora Recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade sem qualquer prova de facto que suporte tal condenação violou claramente o art. 127.º do CPP.

14. O princípio da "livre apreciação da prova" previsto naquele artigo não significa livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, mas a apreciação que se realiza de acordo com critérios lógicos e objetivos e, dessa forma, se determina uma convicção racional, logo, também ela, objetivável e motiváve1.

15. Por outro lado, ao dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento, violou -se, o disposto nos artigos 127 ° e 355.º, n.º 1, do CPP; e 32.º da CRP, artigos 21.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22-01.

Sem prescindir

16. A discordância com a decisão do tribunal recorrido, no que respeita à forma como sustenta uma errónea aplicação ao direito, face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento constitui o vício de erro notório na apreciação da prova.

17. O arguido tinha na sua posse produto estupefaciente, tendo-o entregue voluntariamente, assim que abordado pelos militares da GNR, o qual conforme confessou em audiência de discussão e julgamento, se destinava exclusivamente ao seu consumo.

18. O Tribunal a quo, ao ter condenado o ora Recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, sem qualquer prova de facto que suporte tal condenação violou claramente o art 127.° do CPP .

19. Dos autos nada resulta que o arguido tivesse faltado à verdade.

20. Pelo que a questão em apreço nos presentes autos, consiste afinal em aferir se da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e conjugação com a demais prova e se permitem aferir da culpabilidade do arguido, e

21. se o seu comportamento poderá ser subsumido á prática de um crime de trafico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25° da Lei n" 15/93 de 22 de janeiro, conforme se encontra acusado ou

22. caso assim se não entenda, se se subsume ao disposto no artigo 40.º do mesmo diploma legal, face á factualidade dada como provada.

23. Quais os factos sequer indiciadores que o produto estupefaciente se destinava a venda a terceiros? Que se destinava a cedência mediante contrapartida designadamente económica? Quais os atos indiciadores ou preparatórios de tráfico?

24. Não os conhecemos, nem o douto tribunal a quo os mostrou ou os fundamentou, por deles não haver qualquer prova.

25. O arguido relatou não pretender vender o produto estupefaciente, antes o adquirira para seu consumo.

26. Inquirida a testemunha, militar da GNR (NIC da Guarda), foi este claro ao afirmar que nada vislumbrou quer na abordagem quer na investigação posterior (que inclui busca em habitação do arguido) que pudesse ser tido ou considerado como ato de tráfico, ou preparatório desse ato.

27. O arguido, ora recorrente detinha na sua posse substância estupefaciente (Cannabis -resina), a qual segundo o exame de toxicologia, ultrapassava a quantidade necessária para o consumo médio individual, nos termos do disposto artigo 2° nº 1 e 2 da Lei n.º 30/2000 de 29 de Novembro.

28. Porém, e é já assente, na Jurisprudência e doutrina, que o mero exceder de quantidades permitidas, só por si não faz subsumir tal conduta no crime de tráfico de estupefacientes.

29. Veja-se a jurisprudência fixada (Ac. STJ n.º 8/2008) “o artigo 40° n.º 2 do DL n.º 15/93 de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só quanto ao “cultivo" como relativamente á aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substancias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior â necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias. ".

30. Deve assim considerar-se reduzido teleologicamente o alcance da revogação do artigo 28° da Lei n" 30/2000 de 29 de Novembro, e conjugando o artigo 2° n° 2 do mesmo diploma legal, considerar-se válido e actual o texto remanescente do artigo 4º.º do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

31. Os valores fixados no mapa anexo à Portaria n.º 94/96 de 26 de Março são para ser respeitados, mas, enquanto, valores meramente indicativos, devendo ser apreciados, conforme decorre do artigo 71° da Lei n° 15/93 de 22-01, por intermédio de critérios científicos inerentes à prova pericial ( artigo 163.º do Código de Processo Penal).

32. Obviamente que o mero exceder de quantidades permitidas, só por si não faz subsumir tal conduta no crime de tráfico de estupefacientes (artigo 21° e 25° do Decreto lei n° 15/93 de 22-01.).

33. o mesmo é dizer que, como in casu, se um individuo é apanhado com substâncias estupefacientes em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, inexistindo qualquer indicio de tráfico, nunca poderá ser punido pelos artigos 21.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22-01.

34. Assim, e salvo melhor e douto entendimento, sempre a conduta do arguido, poderia e deveria ser subsumida à previsão do disposto no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22-01.

35. Pelo que deveria o tribunal a quo convolar em termos de qualificação jurídica, a qual advém aliás da defesa do arguido que admitiu a detenção para seu consumo.

36. Quer na escolha da pena, quer na determinação da sua medida concreta, não foram atendidas de forma adequada as circunstâncias a favor do Recorrente, tendo sido valoradas de forma muito mais significativa as circunstâncias que militam em seu desfavor.

37. Figueiredo Dias afirma que o legislador de 1995 “assumiu precipitando no artigo 40° do CP, os princípios ínsitos no artigo 18°, n.º 2 da CRP (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário resumindo assim a teoria penal defendida:

1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial;

2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa

3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura geral de prevenção de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico;

4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. ( in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, Figueiredo Dias, pp 6511).

38. A lei torna claro que, na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto.

39. A individualização da pena, não deverá "desembocar, com a sua enorme envergadura, num ajuste global de contas com o acusado, pois não pode ser missão do Direito Penal trazer perante o tribunal toda a historia de vida de uma pessoa" (JESCHECK, tratado de Derecho Penal, op. Cit., p.80S).

40. Na sua tarefa o tribunal a quo deve impreterivelmente atender ao necessário para a reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário, de forma a aproximá-lo dos princípios dominantes na comunidade, o que o próprio arguido reconhece querer.

41. Sendo suficiente para cumprimento das finalidades de prevenção geral e especial a aplicação de uma pena de multa,

42. Ou caso assim se não entenda a substituição da pena da suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50.º do Código Penal) e da prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58.º do Código Penal) cujos pressupostos se encontram preenchidos in casu.

43. Em face do exposto, a douta decisão ora colocada em crise viola além dos princípios da legalidade e da tipicidade (art. 29.º da Constituição da Republica Portuguesa), do princípio in dubio pro reo (artigo 32° Constituição da Republica Portuguesa), o disposto no artigo 127.º e 355.º do Código de Processo Penal, bem como do disposto nos artigos 21°, 25° e 4º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro,

44. Bem como se violou o disposto nos artigos 50.º, 58.º, 70.º, 71.º e 77.º, todos do Código Penal.

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            O recurso, em 26/4/2017, foi admitido.

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O Ministério Público, em 26/5/2017, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, tendo apresentado as seguintes conclusões:

            1 - A sentença não padece de qualquer vício, muito menos o de ter valorado provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento, respeitando inteiramente o disposto no artigo 355°, n° 1, do Código de Processo Penal.

2 - A sentença resulta de uma apreciação conforme com as regras da experiência, como bem resulta do texto da mesma.

3 - O princípio in dubio pro reo é um princípio geral do direito processual penal, constituindo, em matéria de prova, a expressão do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, previsto no artigo 32°, n? 2, da Constituição da República Portuguesa.

            4 - Tal princípio significa que sempre que não se logre prova do facto imputado ao arguido para além de toda a dúvida razoável, o arguido não deverá ser desfavorecido.

5 - Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver a certeza sobre factos decisivos para a solução da causa.

6 - A violação deste pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando do texto da decisão recorrida, decorrer, de forma evidente, que o tribunal, na dúvida, decidiu contra o arguido.

7 - Conforme resulta do teor da sentença, o Tribunal não teve quaisquer dúvidas quanto à ocorrência dos factos que considerou provados, nem quanto a qualificação jurídica dos mesmos.

8 - Na verdade, a Meritíssima Juiz a quo apreciou a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e concluiu que se mostraram provados factos que determinaram a imputação do crime de tráfico de menor gravide ao arguido.

9 - Para tanto, bastou-se com as provas produzidas e analisadas em julgamento, que contribuíram para a formação da sua convicção de julgadora.

10 - Ao proferir a sentença que condenou o arguido, o Tribunal não teve dúvidas, as quais só relevariam se se manifestassem insanáveis após toda a produção de prova.

11 - Na trilha do defendido pelos Tribunais Superiores e pela conceituada doutrina, entendemos que para ser praticável a discussão desta questão, seria necessário que a julgadora se tivesse colocado diante de uma dúvida insanável sobre a verificação dos factos, o que não aconteceu, como resulta da exposição da motivação da matéria de facto e da subsunção jurídica da mesma.

12 - Os depoimentos produzidos e as declarações do arguido em audiência de julgamento foram livremente valorados pelo tribunal, sem outra limitação que não fosse a credibilidade que mereceram, em perfeita obediência ao princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127°, do Código de Processo Penal.

13 - O disposto neste preceito legal foi integralmente respeitado pela Meritíssima Juiz a quo, a qual procurou alcançar a verdade material a partir da prova que foi produzida em audiência de julgamento, com estrita observância das regras da experiência comum e conhecimentos genéricos, com recurso a critérios objetivos, devidamente motivados, como lhe era exigido.

14 - O princípio in dubio pro reo, que constitui um limite normativo a este princípio da livre apreciação da prova, apenas poderia determinar uma solução diversa que culminasse em decisão também diversa por dúvidas, se as dúvidas não permitissem formular uma convicção sobre a verdade, prevalecendo a dúvida sobre a certeza, o que, como já se referiu, não aconteceu.

15 - No que concerne à qualificação jurídica dos factos provados em audiência de julgamento, apenas se nos oferece remeter para a douta sentença recorrida, por com ela concordarmos integralmente, não se verificando, também nesta parte, qualquer violação de normativos jurídico-penais.

16 - Não se percebe o que poderá estar incorreto na sentença recorrida, uma vez que nesta se procedeu à análise dos factos e da prova, concluindo de acordo com as normas legais que vigoram para a matéria recorrida.

17 - Muito bem se exprimiu a sentença recorrida ao fundamentar a decisão com os motivos de facto e de direito que permitiram concluir pela condenação do arguido recorrente pela prática do aludido crime.

18 - O Ministério Público entende que a sentença recorrida só merece louvor, pelo que subscreve todo o seu teor.

Negando provimento ao recurso se fará a costumada Justiça.

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Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, em 9/6/2017, no sentido da improcedência do recurso.

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Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II. Decisão Recorrida:

“(…)

II - FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURIDICA:

A) DOS FACTOS

Factos Provados

Discutida a causa, com relevo para a decisão a proferir, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 21 de Fevereiro de 2017, pelas 17h30m, na Área de Serviço da A25, em Celorico da Beira, o arguido possuía um pedaço de Cannabis (Resina), com peso líquido de 17,710 gramas, correspondente a 54 doses individuais e com um grau de pureza de 15,1% e um pedaço de Cannabis (Resina), com o peso líquido de 3,132 gramas, correspondente a 29 doses individuais e com um grau de pureza de 39,6%.

2. O arguido conhecia a natureza estupefaciente dos produtos referidos em 1) e sabia que a sua aquisição, detenção, transporte e comercialização é proibida.

3. Ainda assim, o arguido quis possuir tal quantidade de produto para proceder, pelo menos, ao seu consumo.

4. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

5. Por sentença datada de 11 de Dezembro de 2007, transitada em julgado, proferida no âmbito dos autos com o n.º 127/06.5JElSB, que correu termos na 7.ª Vara Criminal de Lisboa, foi o arguido condenado, pela prática, a 1 de Outubro de 2004, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

6. Por sentença datada de 4 de Fevereiro de 2011, transitada em julgado, proferida no âmbito dos autos com o n.º 1758/07.1PFLRS, que correu termos no 3.º Juízo Criminal de Loures, foi o arguido condenado, pela prática, a 2 de Setembro de 2007, de um crime de violência doméstica, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

7. Por sentença datada de 11 de Março de 2015, transitada em julgado, proferida no âmbito dos autos com o n.º 232/13.1JAGRD que correu termos no Juízo Tribunal Cível e Criminal da Guarda (J1), foi o arguido condenado, pela prática, a 26 de Fevereiro de 2014, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 3 anos de prisão efetiva.

8. Por sentença datada de 22 de Setembro de 2015, transitada em julgado, proferida no âmbito dos autos com o n.º 374/15.9TXCBR-A que correu termos no Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, foi concedida ao arguido liberdade condicional, a partir de 22 de Setembro de 2015 e até ao termo da pena previsto para 26 de Fevereiro de 2017, no âmbito do processo da condenação referido em 7).

9. O arguido reside atualmente com a sua companheira na cidade do Porto, em casa arrendada, pagando de renda da mesma a quantia mensal de €400,O0. O arguido começou a trabalhar no Mercado do (...) , no início do mês de Fevereiro, encontrando-se à experiência, perspetivando auferir de salário a quantia mensal de €600,O0. A companheira do arguido trabalha numa Guest House, na cidade do (...), auferindo mensalmente a quantia de €600,O0 de salário. O arguido não possui viaturas, nem contraiu empréstimos. O arguido tem um filho menor, com 5 anos de idade, o qual reside com a progenitora, auxiliando o arguido nas despesas do mesmo, esporadicamente, embora não pagando qualquer pensão de alimentos. O arguido estudou até ao 9.º ano de escolaridade.

10. O arguido é consumidor esporádico de cannabis.

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Factos Não Provados

Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer factos para além dos que, nessa qualidade, se descreveram supra, designadamente, não resultando provado que o arguido destinasse o produto estupefaciente em causa exclusivamente ao seu consumo.

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Motivação

O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade dada como provada analisando e entrecruzando a prova pericial realizada (exame de toxicologia de fls. 40), documental junta aos autos (Certificado de Registo Criminal de fls, 24 a 30, auto de apreensão de fls. 5 e respetivo suporte fotográfico de fls. 7) com as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência - na medida em que as mesmas se revelaram credíveis - e o depoimento da testemunha ouvida em sede de audiência e julgamento (o militar da GNR, B... ), que depôs de forma serena, séria e coerente e cujo depoimento, por via disso, se afigurou credível.

Os elementos de prova supra referidos, com exceção feita para a prova pericial, foram apreciados à luz do disposto no artigo 127. do Código de Processo Penal, ou seja, segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, já que o julgador é livre de decidir segundo o bom senso e a experiência de vida, claro está tendo em mente a capacidade crítica, o distanciamento e ponderação que se impõem.

Assim, a formação da convicção do Tribunal dependeu essencialmente de duas operações: de um lado a atividade cognitiva de filtragem de informações dadas e sua relevância ético-jurídica; de outro lado, elementos racionalmente não explicáveis - ou pelo menos de explicação menos linear - como a credibilidade que se concede a um certo de meio de prova em detrimento de outro, já que não é quantidade de prova produzida que releva, mas antes a qualidade de tal prova.

Com efeito, desde logo quando estejam em causa depoimentos ou declarações, deverá o Tribunal formular um juízo de veracidade e autenticidade do declarado, o qual depende do contacto oral e direto com os declarantes e da forma como estes transmitem a sua versão dos factos - postura e comportamento, características de personalidade reveladas, carácter e probidade.

De salientar ainda que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e uma vez que jamais este pode basear-se na absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade, que permita afastar a situação de dúvida razoável.

Sinteticamente, podemos dizer que foi deste conjunto de vetores e da essência deste processo - sempre complexo - de apreciação e valoração da prova que resultou ou não comprovada a factualidade descrita em sede de acusação.

Concretizando, importa dizer, desde logo, que, prestando declarações, o arguido admitiu a totalidade da factualidade descrita na acusação, invocando, contudo, que o produto estupefaciente se destinava exclusivamente ao seu consumo e não à cedência e/ou venda a terceiros.

O arguido acrescentou que, à data da apreensão, regressava da Guarda (onde também reside em casa dos seus pais), em direção ao Porto (onde trabalha e reside com a sua companheira), sendo que o produto estupefaciente que trazia consigo havia sido adquirido num bairro da cidade do Porto (Ramalde), pelo valor total de €40,OO (tendo comprado um pedaço de cannabis por €10,OO e outro pedaço por €30,00), aquando da sua aquisição pretendendo apenas consumi-lo, alegadamente, por estar a passar por alguns problemas com a sua ex-companheira, tendo sentido a necessidade de adquirir tal produto, embora à data da aquisição do mesmo já não fosse consumidor habitual de cannabis, por ter cessado o seu consumo em 2014, tendo estado sem consumir durante três anos, justificando a sua atuação como tendo tido uma recaída.

Foi ainda referido pelo arguido que do produto apreendido nos autos, fumou uns 6/7 charros, em duas noites, sendo que a quantidade adquirida dar-lhe-ia para duas ou três semanas e que quando adquiriu a quantidade em causa não pensou nas consequências de deter tamanha quantidade de produto, tendo-o feito porque "achou barato" e porque lho "deram para a mão", pelo que não pensou em comprar uma quantidade inferior, já que o consumo, como o próprio referiu, seria esporádico.

Mais referiu, como já adiantámos supra, ter sido consumidor habitual de cannabis até 2014, tendo sido acompanhado pelo IRS, embora nunca tenha feito um tratamento à toxicodependência, tendo tido uma recaída quando comprou o produto estupefaciente em causa nos autos, pelos problemas que andava a ter com a sua ex-companheira, mãe do seu filho.

Por seu turno, a testemunha ouvida, B... , que procedeu à fiscalização e detenção do arguido e à apreensão do produto estupefaciente que este transportava, aludiu ao facto de o arguido, questionado por esta sobre se trazia produto estupefaciente, ter respondido de forma afirmativa, mais referindo ter sido realizada uma busca à residência do arguido, na cidade da Guarda, nada tendo, porém, sido apreendido.

Ora, analisando as declarações do arguido à luz das mais elementares regras da experiência comum, não se afigura verosímil que alguém que seja um mero consumidor esporádico (como invocou o arguido) e que se encontre em situação de liberdade condicional no âmbito de processo por condenação pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, compre, exclusivamente para consumir de forma esporádica, uma quantidade tão elevada de produto estupefaciente, suficiente para 83 doses (54+29) e se faça acompanhar dessa quantidade de produto estupefaciente, em deslocações do Porto para a Guarda e da Guarda para o Porto - não podendo o arguido deixar de colocar a possibilidade de ser fiscalizado e detetada a presença do produto em causa - de forma contraditória referindo o próprio que o produto seria para consumir nos dias em que o adquiriu e de forma esporádica, mercê da invocada "recaída" e acabando por admitir que a quantidade que detinha seria suficiente para duas ou três semanas; sendo que, considerando os antecedentes criminais do arguido, e desde logo, o facto de, aquando da prática dos factos, se encontrar em período de liberdade condicional, naturalmente, este não poderia deixar de estar particularmente alerta para o facto de que, deslocando-se do Porto para a Guarda, e vice-versa, na posse da droga, num veículo automóvel, o risco de poder vir a ser intercetado, mesmo numa fiscalização rodoviária de rotina, aumentaria de forma significativa, dizendo-nos pois a normalidade das coisas que, numa situação como a presente, estando em causa a mera satisfação do desejo/necessidade de consumo e o agente não se colocaria nessa situação de risco acrescido.

Afigura-se-nos, pois, incompreensível e, desde logo, inverosímil e ilógico que o arguido, pretendendo consumir, de forma esporádica, produto estupefaciente, tivesse a "necessidade" de comprar a quantidade que adquiriu e de o transportar até à Guarda, desde o Porto, quando, segundo alega, já não seria consumidor habitual; podendo, na ótica do arguido, caso se tratasse de uma efetiva "necessidade" ter optado por adquirir uma quantidade inferior, não colhendo, a nosso ver, a sua justificação de que o fez "sem pensar" e porque "lho deram para a mão", quando estamos a falar de alguém que foi já condenado por duas vezes pela prática de crime de idêntica natureza ao crime em causa nos presentes autos, e de alguém que estaria a 5 dias de terminar o período da liberdade condicional, estando, por isso, ciente dos riscos da sua atuação.

Acresce que, a circunstância de não ter sido apreendido ao arguido qualquer outro material respeitante à atividade de tráfico de estupefacientes, em nada releva para afastar a natureza da conduta do arguido, quando, à luz das regras de experiência comum, é sabido que o haxixe pode e é muitas vezes vendido sem ser sujeito a qualquer pesagem rigorosa, não carecendo pois o arguido de deter qualquer particular equipamento para lograr proceder à sua comercialização.

Deste modo, em face do depoimento da testemunha ouvida em sede de audiência julgamento que mereceu a credibilidade do Tribunal nos termos supra expostos e dos demais elementos probatórios constantes dos autos, mormente considerando a natureza e quantidade das substâncias apreendidas, e à míngua de quaisquer outros elementos probatórios que corroborem a versão do arguido, e exceção feita aos factos referentes à sua condição social e económica, as declarações do arguido não mereceram qualquer credibilidade, não logrando, por isso, convencer o Tribunal.

Em face do exposto, dúvidas não restam, pois, quanto ao apuramento da factualidade descrita em 1) e 10).

No que concerne ao vertido em 2) a 4), valorou-se a factualidade objetiva dada como provada, conjugada com as regras de experiência comum.

Com efeito, atentando na concreta forma de atuar do arguido - e não estando este limitado na sua vontade de querer e entender - naturalmente não poderá o arguido deixar de saber a natureza e as características do produto que detinha, como sendo estupefaciente, e que a sua aquisição, detenção, transporte e comercialização era proibida, não se coibindo de os deter; agindo livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei ¬conhecimento que existe, de resto, da parte do comum dos cidadãos.

No que tange aos antecedentes criminais do arguido (cfr. factos vertidos em 5) a 8), o Tribunal atendeu ao Certificado de Registo Criminal do arguido, junto aos autos a fls. 24 a 30.

Por seu turno, quanto à situação pessoal e económica (cfr. factos enunciados sob o número 9) relevaram as declarações do arguido que, porque feitas de forma espontânea e coerente quanto a esta matéria, se afiguraram credíveis.

Relativamente aos factos não provados dizer desde logo que não se produziu qualquer prova que permitisse dar como provado qualquer facto para além dos que nessa qualidade se consignaram - valendo aqui as considerações supra já tecidas -designadamente por não ter sido produzida prova por declarações ou documental bastante.

*

B) DO DIREITO

Do enquadramento jurídico-penal:

Vem imputada ao arguido a prática, como autor material, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência ao artigo 21.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.

O Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro tem como objetivo a definição do regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (cfr. artigo 1.º).

Tráfico e consumo são duas realidades de facto e jurídicas distintas.

O tráfico encontra-se regulado no artigo 21.º do referido Decreto-Lei n.º 15/93, o qual pune quem, sem autorização, cultive, produza, fabrique, extraía, prepare, ofereça, puser á venda, distribua, compre, ceda ou por qualquer título receba, proporcione a outrem, transporte, importe, exporte, faça transitar ou ilicitamente detenha determinadas plantas, substâncias ou preparações fora dos casos previstos no artigo 40.º.

O artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, consagra um privilegiamento do crime de tráfico de estupefacientes que só se verifica quando, a quantidade e qualidade de produto estupefaciente detido e as modalidades de cometimento do crime revelem uma menor ilicitude do facto.

O consumo encontra-se regulado no artigo 40.º daquele Decreto-Lei o qual previa a punição de quem consuma ou cultive, adquira ou detenha substâncias para o seu consumo; sendo que a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro passou a prever o consumo como atividade ilícita, mas em termos contraordenacionais, no seu artigo 2.º.

Sucede porém que, mercê do disposto no n.º 2 do citado artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro - que prevê que para efeitos de tal diploma, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias - surgiram várias teses, que aqui nos coibimos de aprofundar, quanto ao enquadramento jurídico a dar às situações em que o agente detivesse, para consumo próprio, uma quantidade de produto estupefaciente que excedesse a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias.

Desde uma tese que propugnava pelo entendimento de que não se teria operado apenas uma descriminalização, mas antes uma total despenalização do consumo ou detenção para consumo (sempre excluído o caso do cultivo), a uma outra que considerava que estaria em causa uma contraordenação, mas sempre, e independentemente da quantidade de droga detida; acabou por ser chamado o Supremo Tribunal de Justiça a pronunciar-se quanto a esta questão, através do Acórdão de Uniformização de Justiça de 25-06-2008 (publicado no D.R. I-A, n.º 146, de 05-08¬2008) que fixou jurisprudência - a cujos fundamentos aderimos inteiramente - no sentido de que:

«Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28. º da Lei n. º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só «quanto ao cultivo» como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».

Com a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o legislador pretendeu descriminalizar o consumo, aquisição e detenção de estupefacientes, por entender que a toxicodependência deve ser encarada como uma doença a ser tratada; não obstante, estabeleceu um limite quantitativo, a partir do qual já não nos encontramos perante um consumo, aquisição ou detenção legalmente descriminalizados.

Com as incriminações previstas desde logo nos artigos 21.º, 25.º e 40.º do Decreto-Lei n.º5/93, de 22 de Janeiro, o legislador pretendeu acautelar interesses coletivos e individuais e em primeira linha o bem jurídico da saúde pública, procurando garanti-la contra o perigo da circulação de estupefacientes; perigo este que é gerado, por si só, pela detenção destes produtos.

Acresce que os próprios trabalhos preparatórios, na origem da lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, apontam para a manutenção do desvalor legal do consumo de estupefacientes e portanto para a necessidade de criminalizar comportamentos a este associados - como a sua aquisição e detenção; no mesmo sentido dispondo as Convenções Internacionais de que Portugal é parte, nomeadamente, a Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1998 (cfr. artigo 3.º, n.º 2).

Sinteticamente, podemos dizer que resulta do regime legal atualmente em vigor que uma dose diária não transforma um consumidor em traficante, mas também não o exonera de eventuais responsabilidades criminais; não só porque a letra da lei não autoriza outra interpretação, mas também porque um consumidor não deixa de ser responsável quando associa o seu consumo pessoal a uma atividade criminalmente ilícita.

Dispõe o artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro que «quem, sem para tal estar habilitado, cultivar, produzir- fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos».

Já no artigo 25.º do citado diploma, sob a epígrafe "Tráfico de menor gravidade" prevê-se que:

«Se, nos casos dos artigos 21.2 e 22.2, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a lII, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.».

De referir ainda que o regime previsto no artigo 40.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, conforme resulta da própria letra da lei, prende-se apenas com as condutas de consumidores que, exclusivamente para o seu próprio consumo, cultivem, adquiram ou detenham plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV.

Assim, apenas se resultar provado que o produto estupefaciente em causa se destina exclusivamente ao consumo do agente, poderemos estar perante o ilícito previsto no artigo 40.º, dado que a mera detenção de produto estupefaciente, se não autorizada ou destinada em exclusivo a consumo próprio, é considerada crime de tráfico, sem que seja necessário que se prove a venda ou a cedência a outrem.

Este tipo-de-ilícito consubstancia um crime de perigo comum e abstrato, uma vez que, para além de proteger uma multiplicidade de bens jurídicos, para a sua consumação não se exige a verificação efetiva de qualquer dano, mas tão-só a perigosidade da ação para as espécies de bens jurídicos protegidos.

Para além disso, estamos perante um crime penal próximo dos chamados tipos plurais de crime, ou seja, daqueles cuja tipicidade "se preenche e perfectibiliza com ações que se insiram num dos itens encarados pelo legislador e ainda que só num dele" (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Novembro de 1999, in CJSTJ, ano VII, t. 3.º, pág. 199).

Resulta, pois, que, não obstante o referido tipo de crime abranger uma multiplicidade de ações que, em abstrato, são suscetíveis de preencher o elemento objetivo do crime, basta a prática de qualquer uma delas para que se verifique a sua consumação.

Ou seja, a simples aquisição e/ou detenção de qualquer planta, substância ou preparação compreendida nas tabelas anexas ao diploma legal supra mencionado é suficiente para se julgar verificado o elemento objetivo do tipo.

Não se olvida o enorme desvalor social da atividade de tráfico de estupefacientes; mas tal não obsta ao reconhecimento de que esta atividade apresenta graduações diversas exigindo respostas diferenciadas da lei.

Conforme afirmado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2008 (disponível em www.dgsi.pt) "a essência da distinção entre os tipos fundamental (art. 21º) e privilegiado (art. 25º) reverte ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objetiva que se revelem em concreto, e que devem ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativo contida na lei ( .. .}. As referências objetivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios, na modalidade ou circunstâncias da ação e na qualidade e quantidade das plantas."

Assim, verificada uma hipótese de tráfico, este só poderá ser tido como de menor gravidade se a "ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída", tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação e a qualidade e quantidade das substâncias estupefacientes em causa.

A cláusula geral, de conceito indeterminado, da "ilicitude do facto consideravelmente diminuída", tem sido considerado por alguns autores uma válvula de segurança do sistema, porque evita que situações de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionais e inadequadas (cfr., neste sentido, Lourenço Martins, in Nova Lei Anti-droga: um Equilíbrio Instável).

Com efeito, julgamos que o advérbio "consideravelmente" constante da previsão legal, não foi usado por mero acaso e, no seu significado etimológico, prevalece a ideia de notável, digno de consideração, grande, importante ou avultado.

Apesar de constarem expressamente da previsão legal índices caracterizadores da ilicitude, a utilização do advérbio "nomeadamente" significa que tal enunciação não é taxativa, devendo pois ser ponderadas todas as concretas circunstâncias de cada caso concreto, a fim de se poder concluir ou não, que, objetivamente, a ilicitude da ação típica tem menor relevo que a tipificada para os artigos 21.º e 22.º

Como escreveu Maria João Antunes (in "Droga, Decisões de Tribunais de 1ª Instância", 1993, Comentários, 296), "o artigo 25.º, ao estabelecer uma pena mais leve, impõe ao intérprete que equacione se a imagem global do facto se enquadra ou não dentro dos limites das molduras penais dos artigos 21.º e 22.º sob pena de a reação penal ser, à partida} desproporcionada. Ou seja, a concretização da considerável diminuição da ilicitude em cada caso concreto exige a aplicação de critérios de proporcionalidade que são pressupostos da definição das penas e depende, em grande parte, de juízos essencialmente jurisprudenciais" (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril de 2005, in CJ, XIII, II, pág. 174)

O tribunal deverá lançar mão de todas as circunstâncias concretas do caso, procedendo a uma valorização global dos factos imputados ao agente, por forma a densificar a referida cláusula geral, apenas concluindo pela verificação de uma ilicitude diminuída em casos excecionais.

A este respeito, refere-se o seguinte no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14 de Janeiro de 2009 (disponível in www.dgsl.pt), que, pela sua clareza e impressividade, se traz à colação: "No que à modalidade ou circunstâncias da ação respeita, releva essencialmente o grau de perigosidade para a difusão da droga, designadamente, a maior ou menor facilidade de deteção da sua penetração no mercado e o número de consumidores fornecidos. Quanto à qualidade das plantas) substâncias ou preparações} relacionada com a respetiva perigosidade} ela pode ser aferida pela sua colocação em cada uma das tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93 e pelos resultados da investigação científica. A quantidade das plantas substâncias ou preparações reporta-se ao maior ou menor risco para os valores tutelados pela incriminação e, apesar das dificuldades de avaliação que suscita, para tal pode ser tomado como índice, o disposto no artigo 26.º, n.º3, do diploma que vimos referindo. Para além destes elementos, porque o enunciação legal é ( .. .) meramente exemplificativo, podem ainda ser considerados, entre outros, a intenção lucrativa ¬ que, não sendo elemento do tipo, é inerente ao conceito de tráfico - e o sua maior ou menor intensidade e desenvolvimento, o facto de o agente ser ou não consumidor e, em caso afirmativo, se ocasional ou habitual - o que está diretamente relacionado com a atividade exercida ou não como modo de vida - e ainda o tempo da atividade".

Finalmente, estamos perante um crime doloso, que pode ser praticado em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.

Ora, no caso dos autos, resultou provado que no dia 21 de Fevereiro de 2017, pelas 17h30m, na Área de Serviço da A25, em Celorico da Beira, o arguido possuía um pedaço de Cannabis {Resina}, com peso líquido de 17,710 gramas, correspondente a 54 doses individuais e com um grau de pureza de 15,1% e um pedaço de Cannabis {Resina}, com o peso líquido de 3,132 gramas, correspondente a 29 doses individuais e com um grau de pureza de 39,6%.

Provado também que o arguido é consumidor esporádico de cannabis.

Verifica-se, também, resultar provado nos autos que o arguido conhecia a natureza estupefaciente dos produtos supra referidos e sabia que a sua aquisição, detenção, transporte e comercialização é proibida, ainda assim querendo o arguido possuir tal quantidade de produto para proceder, pelo menos, ao seu consumo, agindo livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.

Ora, a mera detenção de produto considerado estupefaciente pelas tabelas I a 111 anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, se não autorizada ou não destinada exclusivamente a consumo próprio, como vimos supra, é considerada crime de tráfico, sendo certo que, no caso em apreço, o arguido detinha o produto estupefaciente em causa, mostrando-se pois preenchidos os elementos objetivos e subjetivo do tipo matricial de ilícito em apreço, tendo o arguido atuado com dolo direto (cfr. artigo 14.º, n.º1 do Código Penal).

Com efeito, não resultando provado que a substância estupefaciente detida pelo arguido era para seu consumo exclusivo - mas apenas que este é consumidor e, pelo menos em parte, a destinaria ao seu consumo - a conduta em causa é integrável no crime de tráfico.

Acresce que, considerando a natureza do produto estupefaciente em causa, quantidade de produto detido pelo arguido e destino a este dado, afigura-se-nos estarem reunidos os pressupostos previstos no artigo 25.º, alo a) do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, estando pois em causa crime punível com prisão de um a cinco anos.

*

Da determinação da medida da pena:

(…).

*

Pena de Substituição:

(…).
                                                                       *

III. Apreciação do Recurso:

De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

As questões a conhecer são as seguintes:

1) Saber se há violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo.

2) Saber se a qualificação jurídica dos factos está correta.

3) Saber se a medida da pena aplicada em concreta é adequada.

                                                           ****

O nosso regime jurídico processual-penal consagra, no artigo 127.º, do CPP, o princípio da livre apreciação da prova.

A livre apreciação da prova pressupõe que esta seja considerada segundo critérios objetivos que permitam estabelecer o substrato racional da fundamentação da convicção, impedindo, assim, qualquer arbitrariedade por parte do julgador.

O princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o Tribunal decida a favor do arguido.

Pois bem, o tribunal de recurso só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.

O princípio in dubio pro reo encerra, portanto, uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.

No caso em apreço, em momento algum, resulta da sentença recorrida que, relativamente aos factos provados e objeto dos autos, o tribunal se defrontou com dúvidas que resolveu contra o recorrente ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção.

Há que nos cingirmos ao essencial.

Se bem repararmos, em termos objetivos, quanto à matéria de facto dada por assente – e é isso que aqui releva -, o facto provado n.º 3 só traduz que a substância estupefaciente se destinava ao consumo do arguido, o que vai ao encontro do afirmado por este em julgamento e no presente recurso.

Na verdade, o tribunal a quo acaba por dar como provado, expressamente, como destino do produto estupefaciente apreendido, o mero consumo, pois não se refere a qualquer outra modalidade de ligação do arguido ao produto estupefaciente, nomeadamente, através de transporte, cedência ou venda.

Logo, não podemos dizer que o julgador tenha, na dúvida, feito constar da sentença recorrida factos provados desfavoráveis ao arguido.

Soçobra, pois, nesta justa medida, a pretensão do recorrente.

****

2) Da qualificação jurídica dos factos:

O Arguido foi acusado da autoria material de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C anexo.

No entanto, os factos provados não permitem essa qualificação jurídica, já que se reconduzem apenas ao consumo de estupefacientes por parte do ora recorrente

O crime de consumo de estupefaciente está previsto no artigo 40.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (considera-se a Declaração de Retificação n.º41/2009, de 22.06, ao texto republicado pela Lei n.º18/2009, de 11.05), punindo-se “Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV” [n.º 1], diferenciando-se a correspondente reação penal, para uma moldura mais grave, se a respetiva quantidade desses produtos “exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias” [n.º 2].

É sabido que com a Lei n.º Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, passou a consagrar-se no seu artigo 2.º, n.º 1 que “O consumo, a aquisição e a e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contraordenação”.

Mas logo se acrescentou no seu n.º 2: “Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

Por outro lado, o artigo 28.º da Lei n.º 30/2000 revogou, expressamente, o mencionado artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, exceto quanto ao cultivo.

O n.º 2 do artigo 2.º, conjugado com a norma revogatória constante do artigo 28.º, veio suscitar a questão, largamente debatida, de como punir aquele que detém, para seu consumo, uma quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias.

Para solucionar o diferendo, o Supremo Tribunal de Justiça, através do seu Acórdão n.º8/2008, (publicado no DR I.ª Série, n.º 150, de 25 de Agosto], fixou a seguinte jurisprudência:

“Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só ‘quanto ao cultivo’ como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

                                                           ****                                                            

Como deve ser feita a quantificação do que seja o consumo médio individual?

O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que instituiu o ainda vigente regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, estabeleceu, no seu artigo 71.º, n.º 1, al. c):

«Os Ministros da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal, determinam, mediante portaria:

c) Os limites quantitativos máximo do princípio ativo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente».

Mais se acrescentou no seu n.º 3: “O valor probatório dos exames periciais e dos limites referidos no n.º 1 é apreciado nos termos do artigo 163.º do Código de Processo Penal”.

Da determinação da dose média individual com referência ao princípio ativo do estupefaciente pode depender a prática de um ou outro crime de tráfico ou então de consumo de estupefacientes e agora de uma contraordenação.

A Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, que de acordo com o seu preâmbulo, teve o propósito de viabilizar a realização da perícia médico-legal e do exame médico referidos nos artigos 52.º e 43.º do Decreto-Lei n.º 15/93, determinou no seu artigo 9.º que “Os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante”.

Nessa tabela e no que respeita à cannabis (resina) é indicado o valor de 0,5 gr, tendo subjacente a “dose média diária com base na variação do conteúdo médio do THC existente nos produtos da Cannabis” e como referência “uma concentração média de 10% de A9THC”, conforme encontra-se anotado nessa tabela.

Por sua vez e de acordo com o artigo 10.º, n.º 1 da mesma Portaria, “Na realização do exame laboratorial referido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 15/93, …, o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respetivo princípio ativo ou substância de referência”.

E esta tabela passou igualmente a servir para a determinação dos “limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária” no que concerne à delimitação dos tipos legais dos crimes de traficante-consumidor e de consumo (26.º, n.º 3 e 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93).

Ocorre que, no caso em apreço, o exame laboratorial junto aos autos, a fls. 40, identifica a substância em causa, o seu peso bruto e o peso líquido, e bem assim a concentração de A9THC.

Tendo os limites fixados na referida tabela um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, tal significa que o juízo a fazer sobre a suficiência ou insuficiência desses limites se presume subtraído à livre convicção do julgador, devendo este fundamentar qualquer divergência desse juízo.

Enfatize-se que a quantidade indicada para a cannabis-resina (0,5 gramas) se refere “a uma concentração média de 10% de A9THC”.

E daqui decorre que se determinada resina de cannabis, com o peso líquido de 5 gramas (por hipótese) tiver a concentração de 10% de tetraidrocanabinol, então corresponderá ao limite quantitativo máximo para consumo médio individual durante 10 dias (à tal razão de meio grama diária); porém, se a concentração for de 5%, a mesma quantidade de resina de cannabis corresponderá ao consumo médio individual durante 5 dias (como, de outro lado, se a concentração for de 20%, corresponderá ao consumo médio individual durante 20 dias, pois que quanto maior for a concentração da substância ativa, menor será a necessidade do consumidor do referido produto, para obter o efeito desejado) - ver Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6/11/2012, Processo n.º 5929/09.8TDLSB.L1-5, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Gonçalves; no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2/10/2013, Processo n.º 2465/11.6TAMTS.P1, relatado pelo Exmo. Desembargador Pedro Pato, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20/5/2013, Processo n.º 65/11.0PFBRG.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Paulo Fernandes Silva.

Ora, no caso vertente, uma vez que a concentração média de THC é superior aos 10%, considerados na tabela, como resulta do exame pericial de fls. 40, o ora recorrente detinha na sua posse substância para consumo que ultrapassava a quantidade necessária para o consumo médio individual durante 10 dias.

Em conclusão, o arguido praticou um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

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3) Da medida da pena:

Cumpre agora proceder à escolha e determinação da medida concreta da pena.

Como dispõe o artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são assim na filosofia da lei penal vigente a proteção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afetados.

Na proteção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afetem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).

As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objetivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.

No caso concreto a finalidade de tutela e proteção de bens jurídicos há-de constituir o motivo fundamento da escolha do modelo e da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afetados.

Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser em cada caso prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.

Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização será encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, nos termos do artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena (cfr. nomeadamente Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1ª edição, págs. 238 a 255).

Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, preceitua, na senda do citado artigo 40.º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o n.º 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido (a necessidade da pena revela-se desse modo em função da menor ou maior exigência do exercício da prevenção e da reintegração).

Em resumo, tendo como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, ou seja, tendo como primeira referência a culpa, a fixação da medida da pena perseguirá concomitantemente a prevenção (que, neste contexto, exige fixação de pena que seja entendida pela sociedade como a necessária à tutela do direito e adequada à confiança na aplicação da justiça) e, sempre, objectivos pedagógicos e ressocializadores, tudo tendo em vista a protecção de bens jurídicos e a reinserção social do agente. 

Dispõe o artigo 70.º, do Código Penal, que quando, como é o caso, forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

A conduta prevista no n.º 2, do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, é punível com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.

O arguido tem 30 anos de idade, começou a trabalhar recentemente, a sua companheira trabalha, ambos têm parcos salários, tem um filho menor, é consumidor esporádico de cannabis.

             Não lhe são reconhecidos quaisquer sinais de riqueza.

            Condenar o arguido em pena de prisão por causa dos factos descritos nos presentes autos, ocorridos a seis dias de terminar a liberdade condicional de que gozava o ora recorrente, salvo o devido respeito, revela-se excessivo, desde logo, pela sua própria dimensão.

            Sem dúvida que a conduta do arguido é censurável, nomeadamente pelo momento em que teve lugar, mas o ser humano está bem longe de ser perfeito…

            No entanto, estamos perante a mera apreensão de uma pequena quantidade de uma droga considerada leve, não constando dos autos qualquer cedência a terceiros.

            A aplicação de uma pena deve sempre servir para atingir a reinserção social de quem pratica um crime.

Tudo ponderado, entendemos, portanto, ser de fixar uma pena de multa, pois estamos perante factos de reduzida gravidade, graduando-a em setenta dias, à razão diária de cinco euros.


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            IV. Decisão:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, indo, em consequência, o arguido A... condenado, enquanto autor material de um crime p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à razão diária de 5 (cinco euros), perfazendo o total de 350 (trezentos e cinquenta) euros.

Sem custas.


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Comunique, de imediato, ao TEP (ver fls. 75).

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(Elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)

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Coimbra, 8 de novembro de 2017

(José Eduardo Martins – relator)

(Maria José Nogueira - adjunta