Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
105/06.4GCPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
IMPUGNAÇÃO
DECISÃO DE FACTO
PRINCIPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
REAPRECIAÇÃO PELO TRIBUNAL DE RECURSO
LIMITES À REAPRECIAÇÃO
ESPECIAL CENSURABILIDADE E PERVERSIDADE
EXEMPLOS-PADRÃO
Data do Acordão: 04/30/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 127.º E 355.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E ARTIGO 132.º, N.º 2 DO CÓDIGO PENAL.
Sumário: O princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, é um princípio de aplicação vinculada por exigir que o julgador ao dar como provado um determinado enunciado fáctico, justifique o processo de decisão mediante uma apreciação crítica e racional das provas que serviram para formar a sua convicção de modo a evidenciar que, das provas produzidas conjugadas com as regras da experiência e com os métodos da lógica indutiva, resulta uma convicção ancorada em critérios lógico-racionais que se imponha aos destinatários da decisão como sinal de uma verdade objectivada e motivada.
II. - Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss.).
III. - O recurso em matéria de facto perante os tribunais da Relação não se destina a realizar um novo julgamento, antes constitui um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância, possibilitando “uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados, com base na avaliação das provas que considera determinarem uma diversa decisão (cfr. Ac. do STJ de 19/12/2007, processo n.º 07P4203, em www.dgsi.pt
IV. – Porque ao tribunal de recurso está vedada a imediação e a oralidade que permitem ao julgador da 1ª instância percepcionar as reacções humanas e analisar psicologicamente os traços salientes de como se comporta cada testemunha ou declarante conferindo-lhe, deste modo, credibilidade ou afastando o seus depoimentos, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador fundada naquela prova, quando for feita a demonstração de que aquela opção viola as regras da experiência comum.
V. – A qualificação do homicídio no C. Penal é efectuada através da combinação de uma cláusula genérica de agravação, prevista no nº 1 do art. 132º – a especial censurabilidade ou perversidade do agente ou seja, um especial tipo de culpa – com a técnica dos exemplos-padrão ou exemplos típicos, enunciados no nº 2 do mesmo artigo.

VI. - Os exemplos padrão indiciam e explicitam o sentido da cláusula geral pelo que a verificação de um exemplo-padrão não significa, necessariamente, a realização daquele especial tipo de culpa e consequente qualificação do homicídio

VII. – Do mesmo passo que a não verificação de qualquer exemplo-padrão não impede a qualificação do homicídio o que é inculcado pela expressão “entre outras” inserta no nº 2 do art. 132º, indicativa de que não estamos perante um elenco taxativo.

VIII. - O que se exige é a verificação, no caso concreto, de elementos substancialmente análogos aos tipicamente descritos ou seja, que embora não expressamente previstos na lei, correspondam ao sentido, desvalor e gravidade de um exemplo-padrão (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 26, Prof. Augusto Silva Dias, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2ª Ed., AAFDL, 2007, 25 e ss., e Teresa Serra, Homicídio Qualificado, 73). Nestas condições, porque se mostra plenamente respeitado o princípio da legalidade, é admissível o homicídio qualificado atípico.

IX. - A qualificação do homicídio baseia-se num especial tipo de culpa, espelhado na especial censurabilidade ou perversidade do agente e prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas.

X. – Enquanto que a especial perversidade se reporta às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., 29), a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativamente ao facto (cfr. Teresa Serra, ob. cit., 64).

Decisão Texto Integral: 30

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
I. RELATÓRIO.
Pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Porto de Mós, mediante acusação do Ministério Público, acompanhada pela assistente TSMG, que lhe imputava a prática, em concurso real, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. b), d), g) e i), do C. Penal, de um crime tentado de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 22º, nºs 1 e 2, al. b), 23º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. b), g) e i), do c. Penal, e de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 6º, nº 1, da Lei nº 22/97, de 27 de Junho, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, o arguido ASAG, casado, operador de máquinas no desemprego, em Vila Moreira, Alcanena, residente, antes de detido, em Alcanena.
Pela assistente TSMG foi deduzido pedido de indemnização civil contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 25.000, por danos patrimoniais sofridos.
Ainda pela assistente e por RAMG e NMMG foi deduzido pedido de indemnização contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 131.796, por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência da morte de sua mãe, EOM.
Pelos Hospitais da Universidade de Coimbra foi deduzido pedido de reembolso contra o arguido, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 9.069,08, acrescida de juros de mora à taxa legal a partir da notificação do pedido e até integral pagamento, correspondente à assistência hospitalar prestada à assistente.
Pelo centro Hospitalar de Coimbra foi deduzido pedido de reembolso contra o arguido, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 2.960,53, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido e até integral pagamento, correspondente à assistência hospitalar prestada à assistente.
Por acórdão de 9 de Outubro de 2007, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 6º, nº 1, da Lei nº 22/97, de 27 de Junho, na pena de 10 meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, nºs 1 e 2, b), 23º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, i), do C. Penal (actualmente pelo art. 132, nºs 1 e 2, j), na redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro), na pena de 8 anos de prisão, e pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, d) e i), do C. Penal (actualmente art. 132º, nºs 1 e 2, e) e j), na redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro), na pena de 18 anos de prisão.
Em cúmulo, foi o arguido condenado na pena única de 23 anos de prisão.
Mais foi o arguido condenado:
- No pagamento à assistente de uma indemnização no montante de € 20.000, acrescidos de juros, desde a data da notificação do pedido e até integral pagamento, pelo sofrimento e dores sentidas em consequência dos ferimentos causados pelo demandado;
- No pagamento à assistente e aos demandantes civis AG e NG, de uma indemnização no montante global de € 117.796, acrescidos de juros à taxa legal, desde a data da notificação do pedido e até integral pagamento, pelos danos decorrentes da morte de EM;
- No pagamento aos Hospitais da Universidade de Coimbra da quantia de € 9.069,08, acrescidos de juros à taxa legal, desde a data da notificação do pedido e até integral pagamento e;
- No pagamento ao Centro Hospitalar de Coimbra da quantia de € 2.960,53, acrescidos de juros à taxa legal, desde a data da notificação do pedido e até integral pagamento.
Inconformado com a decisão, dela interpôs o arguido recurso, formulando no termo da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“ (…).
1. O Tribunal de Círculo de Alcobaça por Douto Acórdão condenou o arguido:
a) pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punível pelo artigo 6º n.º 1 da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, na pena de dez (l0) meses de prisão:
b) pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 131º, 132º, n.ºs 1 e 2, alínea i), 22º, nºs 1 e 2, alínea b). 23º do Código Penal vigente à data da sua prática (actualmente, pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea j), 22º, nºs 1 e 2, alínea b), 23º do Código Penal aprovado pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, na pena de oito (8) anos de prisão:
c) pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punível pelos artigos 131º, 132º n.ºs 1 e 2, alíneas d) e i), do Código Penal vigente à data da sua prática (actualmente, pelos artigos 131º, 132º nºs 1 e 2, alínea e) e j) do Código Penal aprovado pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, na pena de dezoito (18) anos de prisão:
d) Efectuando o cúmulo jurídico destas três penas, ao abrigo do artigo 77º do Código Penal, condena-se o arguido na pena única de vinte e três (23) anos de prisão, à qual será descontado o tempo de prisão por ele já sofrido, nos termos do disposto no artigo 80º n.º 1 do Código Penal actualmente em vigor.
2. Para tanto, fundamentou o tribunal "a quo" a sua decisão nos factos do ponto II destas alegações e que nestas conclusões se dão como integralmente reproduzidas.
3. O tribunal "a quo" na sua motivação diz que "A convicção probatória do Tribunal baseou-se no conjunto da prova produzida, e da sua análise crítica, com destaque para os seguintes meios de prova":
a) Documental: (…):
b) Pericial: (…):
c) Declarações do arguido prestadas em audiência (…);
d) Declarações da assistente TSMG (…):
e) Testemunhal: (…).
4. Como nenhuma das testemunhas ouvidas presenciou os factos ocorridos naquela noite, a matéria fáctica julgada provada atinente às acções empreendidas pelo arguido e as suas consequências resulta exclusivamente das declarações do próprio arguido e da assistente (que, de forma objectiva e desapaixonada relatou os factos de que foi vítima, bem como suo mãe, cfr. se pode ler no acórdão recorrido).
5. É convicção do arguido, ora recorrente, que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento (conjugação dos elementos probatórios trazidos dos autos pelas suas declarações sobre os factos, declarações da assistente e prova pericial), deveria ter resultado diferente matéria provada no que concerne ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, pelo que o presente recurso visa questionar a matéria incorrectamente ,julgada provada no que concerne à acusação pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 131º, 132º, n.ºs 1 e 2, alínea i), 22º, nºs 1 e 2, alínea b), 23º do Código Penal vigente à data da sua prática (actualmente, pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea j), 22º, nºs 1 e 2 , alínea b), 23º do Código Penal aprovado pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, e condenação na pena de oito (8) anos de prisão;
6. Em obediência, assim, ao estatuído no art. 412, n.º 3 e 4 do C. Processo Penal, vem apresentar impugnação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados, bem como indicar as concretas provas (transcrição especificada das passagens da gravação) da quais deve resultar decisão diversa da recorrida.
7. Tais factos concretos são:
14. Após o jantar, cerca das 21 h 40m, a EM e sua filha TSMG saíram do prédio e encontraram o arguido sentado.
32. Seguidamente, quando TG, que já se encontrava fora do veículo, corria em direcção à sua mãe, o arguido, achando-se frente a frente com ela, a uma distância de cerca de um metro, voltou a apontar a arma, desta vez à zona do pescoço e tronco da mesma, e disparou contra ela um novo tiro, de cima para baixo e da direita para a esquerda.
55. Do mesmo modo, ao utilizar a mesma arma apontando-a à zona do pescoço e do tronco da TG, onde sabia alojarem-se órgãos vitais, disparando também a uma distância de cerca de um metro, e tingindo-a nessa parte do corpo, quis igualmente causar-lhe a morte.
8. O facto dado como provado em 14 deveria ser: “Após o jantar, cerca das 21 h 40 m, a EM e sua filha TSMG saíram do prédio e depararam-se com o arguido, de pé, à entrada da porta, onde acabara de chegar”, pois como decorre das declarações do arguido e das da assistente, este acabara de chegar por volta das 21,30 horas, estacionara o carro e no momento em que acabara de chegar à entrada do prédio, mãe e filha desciam e depararam-se com o mesmo, de pé, conforme resulta das gravações que acima se transcrevem (cassete 1, lado A., cassete 2, lado B e cassete 3, lado A., com referência às rotações).
9. O facto dado como provado em 32) deveria/deve ser: Seguidamente, quando a TG, que já se encontrava fora do veículo, corria em direcção à sua mãe, o arguido, achando-se frente a frente com ela, a uma distância de cerca de um metro, disparou contra ela um novo tiro que a atingiu no ombro direito.
10. Face à prova discutida, dar-se como provado que o arguido voltou a apontar a arma, desta vez à zona do pescoço e tronco da mesma, configura um julgamento subjectivo e discricionário, sem qualquer correspondência com os factos, e, por isso, denegador da verdade material.
11. Na verdade, da declaração do arguido ressalta que ele disparou um segundo tiro contra a assistente quando ela corria em auxílio da mãe – caída no chão, depois de baleada –, mas apenas se pode dar como certo que a TG foi atingida no ombro direito. Não resulta de modo nenhum provado com certeza que desta vez à zona do pescoço e tronco da mesma (prova resultante das declarações do arguido cassete 1, lado B, rotações indicadas, que supra se indicaram)
12. Por sua vez, é também de relevância acrescida que da pronúncia constava "apontou a referida arma à zona do pescoço e do coração de TG”, sendo que dos factos provados não se provou “que o arguido apontou a arma à zona do coração desta". E se se deu como não provado que o arguido não apontou a arma à zona do coração, como é que se pode dar como provado, quando não existe prova alguma objectiva que acolha e faça prova que o arguido voltou a apontar a arma, desta vez à zona do pescoço e tronco da mesma.
13. A única prova que resulta inequívoca é o que se dá por provado no facto 33): "Atingindo-a na zona do ombro direito, alojando-se a bala no lado esquerdo do tórax da assistente T.
14. Também, da discussão e prova documental não se apresentam razões de ciência explicativas de que modo é que a bala se foi alojar do lado esquerdo do tórax, na região indicada no ponto 37) dos factos provados do douto acórdão, só porque se diz que o tiro foi dado de cima para baixo, o que faz tal explicação ser estranha, por aparentemente contraditória, quando, como se deu provado, no facto aqui impugnado que, "o arguido, achando-se frente a frente com ela, a uma distância de cerca de um metro (…).
15. Da leitura imediata do facto 55) fixado pelo tribunal "a quo" emerge a seguinte questão:
- o facto, em si próprio, encerra uma clara contradição, quando ali se diz: "Do mesmo modo (…), apontando-a à zona do pescoço e tronco da TG, onde sabia alojarem-se órgãos vitais (…), e atingindo-a nessa parte do corpo (…)":
E pergunta-se, afinal, que parte do corpo foi atingida: o pescoço, o tronco?
Mas basta atentar no ponto 33) do douto acórdão para de imediato se ficar a saber a resposta: a Teresa Gonçalves foi atingida na zona do ombro direito, onde nenhuns órgãos vitais se alojam.
Com toda a evidência, existe pois clara contradição na factualidade dada por apurada nos pontos 33) e 55).
16. Este facto concreto assim apurado gera ainda outras questões essenciais: se o agente queria cometer crime contra a assistente; se agiu com intenção de lhe causar a morte;
17. No que tange à prática do ilícito criminal cometido sobre a assistente, é de todo evidente que o arguido não representou nem quis cometer crime na pessoa da assistente, como decorre de toda a prova, pois que o recorrente procurava apenas E, com quem queria conversar para reatar o relacionamento afectivo, como declarou no âmbito do processo e manifestara ao longo dos meses de ruptura daquele relacionamento., como aqui se enuncia (cassete 1, lado A, cassete 1, lado B e cassete 3, lado A, e rotações que se indicam).
18. A outra questão é se lhe queria causar a morte. A prova trazida aos autos, contrariamente ao julgado, tendo em consideração as partes do corpo atingidas, com dois tiros, um na mão e outro na zona do ombro direito, não eram de forma a indiciar intenção de matar.
Não é, pois, curial dizer que "A qual não ocorreu por razões alheias à sua vontade”.
19. Temos assim, que do fundamento da impugnação do artigo 55), este ponto se deveria/deve ter-se como facto não provado ou, caso, assim, se não entenda, que o mesmo ponto 55) do douto acórdão recorrido passe a ter a seguinte redacção: Do mesmo modo, ao utilizar a mesma arma, apontando-a a TG, disparando também a uma distância de cerca de um metro, atingiu-a na zona do ombro direito, o que lhe causou as lesões referidas no ponto 37 da matéria provada.
20. Tendo-se por procedente que virão a ser corrigidos os factos que o recorrente impugnou, o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 131º, 132º, n.ºs 1 e 2, alínea i), 22º, nºs 1 e 2, alínea b), 23º do Código Penal vigente à data da sua prática (actualmente, pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea j), 22º, nºs 1 e 2, alínea b), 23º do Código Penal aprovado pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, com condenação na pena de oito (8) anos de prisão, deve ser convolado no crime de ofensa à integridade física grave, previsto no antigo e actual artigo n. o 144. alínea d) do Código Penal.
21. A subordinação às regras da punibilidade do art. 23.º do Código Penal, afastam a prática do crime na forma tentada, atentos os actos de execução externos ao crime e à intenção com o resultado que a acção do arguido pretendeu atingir, pois se pode concluir que aquele agiu com intenção de retirar também a vida à assistente, quando a zona do corpo atingida (zona do ombro direito) não tinha órgãos vitais com risco para a vida.
22. A condenação pela prática do homicídio qualificado, na forma tentada. (e outro na forma consumada) decorreu da verificação de circunstâncias qualificadoras do art. 132 do C. P. designadamente as das alíneas d) e i), agora alíneas e) e j) do Código Penal aprovado pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
Porém, ainda que não colha provimento a convolação em crime de ofensa à integridade física grave, o que só por mera hipótese se admite, cabe referir que se impugna, no entanto e desde já, que o(s) crime(s) pratificado(s) consubstancie
23. E mais se faz saber, por maioria de razão, que os fundamentos de tal discordância, que imediatamente infra se adiantam, valerão, da mesma forma, e de igual modo, se aquele vier a ser considerado como crime à integridade física grave.
24. Ora, da discussão da prova, o que resulta é que a acção do arguido contra a TG não foi levada a cabo motivada por nenhum destes impulsos, nem "antecipadamente programada" com uma calma e imperturbada reflexão no assumir do agente a resolução de matar. O arguido não procurava aquela, não o moviam sentimentos de perda em relação a ela, não agiu sob com vontade formada de modo lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, e como acto regido por uma preparação e execução persistente na resolução de a matar.
25. Sem que se questionem os critérios subjacentes às penas aplicadas por cada crime, e depois ao cúmulo jurídico, certo é que, pugnando pela diferentemente tipificação do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, convolando-o em crime de ofenda à integridade física grave, a pena quanto a este crime terá, naturalmente, de respeitar a respectiva moldura penal.
26. Em conformidade com tal, deve proceder-se à aplicação de uma outra pena pelo referido crime de ofensa à integridade física grave, com alteração do cúmulo jurídico e consequente diminuição da pena única.
27. O tribunal "a quo" violou entre outros, os artigos 127º, 410º, n.º 1 e 2 e 412, todos do C. P. P.
Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, e, em consequência, ser revogado o douto acórdão recorrido, sendo substituído por melhor nos termos supra requeridos.
Assim se fazendo JUSTIÇA.
(…)”.
Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, formulando no termo da sua contra-motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“ (…).
1 - O arguido AG foi condenado, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, de um crime de homicídio tentado qualificado e de um crime de homicídio qualificado consumado, nas penas de 10 meses, 8 anos e 18 anos de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico, na pena de 23 anos de prisão.
2 - Recorre pondo em causa – de facto e de direito –, "apenas", a sua condenação pela prática do crime de homicídio tentado qualificado.
3 - Defende, em resumo, que deveria ter sido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto no art. 144 al. d) do C. Penal ou, quando muito, pela prática de um crime de homicídio tentado não qualificado.
4 - Entende, para tal, que:
a) o tribunal não deveria ter dado por assentes os factos constantes dos pontos 14, 32 e 55 tal como constam do acórdão, antes com a formulação que o mesmo propõe;
b) há contradição entre os factos constantes dos pontos 33 e 55 da fundamentação;
c) qualquer que seja o crime por cuja prática o arguido deva ser condenado, o mesmo não deverá ser qualificado.
5 - Relativamente ao ponto 14, o arguido discorda de que dele conste que as vítimas encontraram o arguido sentado, ao saírem da casa da assistente Teresa, pois
6 - Entende que a factualidade do ponto 14 deveria ter a seguinte redacção:
"Após o jantar, … a E … e a sua filha T … saíram do prédio e depararam-se com o arguido, de pé, à entrada da porta, onde acabara de chegar".
7 - Porém, dos pontos anteriores ao 14, e, designadamente, dos pontos 12 e 13 não impugnados –, resulta que o arguido aguardava a mãe da assistente, que desconfiou poder estar em casa desta, como sucedia (depois de, todo o dia, a ter procurado noutros locais).
8 - Assim, dificilmente se poderia entender, como pretende o recorrente, que acabara de chegar à porta do prédio.
9 - Por outro lado, das declarações da assistente, gravadas nomeadamente na cassete 3, lado A, parte inicial, pode "concluir-se", precisamente, aquilo que foi dado por assente.
10 - Delas resulta, com clareza, que ela diz ter visto que o arguido se estava a levantar e que, por isso, não o tendo visto sentado, só podia calcular que o estivesse.
11 - Independentemente do exposto, não seria relevante, no que respeita à conduta de que foi vítima a assistente, o facto de o arguido estar ou não sentado (ou, até, de o mesmo estar, já, à espera da mãe daquela ou ter acabado de chegar à porta do prédio).
12 - Quanto ao ponto 32, questiona, o recorrente, que o tribunal tenha considerado assente que apontou a arma "… à zona do pescoço e tronco …" da assistente e, assim, que tivesse intenção de a matar, antes devendo ter considerado assente, apenas, que disparou e a atingiu no ombro direito, como resulta do ponto 33.
13 - Contudo, as próprias declarações, transcritas, do mesmo, permitem fundamentar a convicção do tribunal quanto ao aspecto em apreço, já que
14 - A pergunta do tribunal sobre o que é que o levara a disparar contra a assistente, respondeu "talvez disparasse contra o que quer que fosse que mexesse à minha volta"; e, à pergunta "porquê contra a filha [da vítima mortal]", respondeu: "Quando a mãe caiu no chão e a filha gritou eu voltei-me para trás, a sensação que eu tenho é que a filha vem para mim e disparo, disparo de qualquer maneira"; e a pergunta sobre se "levantou o braço e pôs o braço à altura do ombro", (não) respondeu, "curiosamente, "mas não procurei … a cabeça e órgãos vitais como se diz aí …".
15 - Admitindo, o arguido, que dispararia para tudo o que mexesse à sua volta, e de qualquer maneira; tendo apontado a pistola ao corpo da assistente, uma primeira vez, embora só a atingindo na mão esquerda; tendo-a atingido, depois, de novo, a curta distância, na zona do ombro direito, mas sendo a trajectória da bola de cima para baixo e da direita para a esquerda, onde ficou alojada, no interior do tórax; não conseguindo, o arguido, negar que tenha levantado o braço à altura do ombro, antes de disparar o segundo tiro; e sendo o arguido, como se constatou em audiência, de estatura superior à da vítima, não poderia o tribunal ter deixado de entender que o arguido apontou a arma à zona do pescoço e tronco da vítima, com o intuito de a matar.
16 - No que respeita ao facto 55, entende o arguido que tendo ficado provado que estava a um metro da vítima, de frente para ela, e atingindo-a no ombro direito, não poderia o tribunal dar por assente que pretendia atingi-la na zona do pescoço ou do tronco e, consequentemente, tirar-lhe a vida, devendo, antes, ter ficado assente que " … ao utilizar a mesma arma, apontando-a a Teresa Gonçalves, disparando também a uma distância de cerca de um metro, atingiu-a na zona do ombro direito, o que lhe causou as lesões referidas no ponto 37 da matéria provada".
17 - Porém, o tribunal deu por assente que o arguido apontou para a zona ou área do pescoço e tronco, não precisamente para o pescoço ou tronco.
18 - Estando o pescoço ligado à parte superior do tronco, ou tórax, o tribunal deu, assim, por assente que o arguido apontou para a área superior do corpo da vítima.
19 - E foi o ombro – parte do braço precisamente ligada à zona superior do tronco – que foi atingido, ficando, ainda, o projéctil alojado precisamente na zona torácica (na qual se encontram, de facto, órgãos vitais, como o coração, nomeadamente).
20 - Por outro lado, o arguido já disparara um primeiro tiro na direcção do corpo da vítima; aquando do segundo tiro, esta estava em movimento, na direcção da mãe; a bala teve uma trajectória descendente e da direita para a esquerda, explicável pela altura do arguido e por eventual flexão do pulso do mesmo.
21 - Por isso, o tribunal teria de entender – como fez – que o arguido quis atingir a vítima na parte, zona ou área do corpo referida.
22 - Mesmo a não ter considerado assente que o arguido apontou a pistola à zona do pescoço e tronco da vítima, mas apenas – como pretende o recorrente – que, " … ao utilizar a arma, apontando-a a TG …, atingiu-a na zona do ombro direito, o que lhe causou as lesões referidas no ponto 37 …", nada impediria o tribunal – antes pelo contrário – de concluir, "de facto", que o arguido quis tirar a vida àquela.
23 - Com efeito, a prova de elementos subjectivos, como a representação e vontade (dolo) do agente, só pode conseguir-se por dedução, a partir dos factos objectivos assentes.
24 - Estes, não impugnados, só poderiam ter levado o tribunal a concluir que o arguido quis tirar a vida à assistente, embora o não tenha conseguido, por razões alheias à sua vontade.
25 - O arguido defende a existência de contradição entre os factos constantes dos pontos 55 e 33.
26 - A existir, estaria verificado o vício previsto no art. 410. 2 aI. b) do CPP, a justificar eventual alteração da matéria de facto, em novo julgamento ou por correcção a efectuar no tribunal ad quem (cfr. arts. 426. 1 e 428, respectivamente, do CPP).
27 - A contradição não existe, designadamente pelas razões aduzidas de 17 a 21.
28 - A parte, área, ou zona visada pelo arguido foi, de facto, atingida (sendo disso prova as lesões sofridas pela assistente).
29 - E nela estão, com efeito, órgãos vitais.
30 - Não no ombro, mas em zona próxima do mesmo, no interior do tórax, área nomeadamente visada e atingida.
31 - O tribunal deu como não provado que o arguido tivesse visado directamente o coração.
32 - Também por isso se compreende que tivesse considerado assente que visou uma área e não um preciso órgão,
33 - Mas querendo matar a assistente, como toda a sua conduta objectiva, não impugnada, evidencia.
34 - O recorrente entende que o crime não deveria ter sido considerado qualificado pela frieza de ânimo, nos termos dos ns. 1 e 2 al. i) – actual al. j) – do art. 132 do C. Penal.
35 - Considera, com efeito, que a sua " … actuação … não foi levada a cabo motivada por nenhum destes impulsos, nem "antecipadamente programada" com uma calma e imperturbada reflexão no assumir do agente a resolução de matar … não agiu com vontade formada de modo lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, e como acto regido por uma preparação e execução persistente na resolução de matar"
36 - A generalidade da jurisprudência e da doutrina, nomeadamente as citadas no acórdão, relacionam, habitualmente, a frieza de ânimo, que qualificou o homicídio tentado, com a reflexão do agente, a persistência na intenção de matar e a premeditação.
37 - O tribunal relevou, especialmente, a natureza fria, indiferente, insensível, da actuação do arguido, que disparou, por duas vezes, contra a assistente, sem motivo aparente e quando ela pretendia auxiliar a mãe, acabada de cair, atingida pelo recorrente.
38 - Dissociou, assim, a frieza de ânimo da reflexão e da persistência na intenção de matar, da premeditação, configurando-a, antes, como uma actuação caracterizada pela insensibilidade e indiferença.
39 - Precisamente como entendeu defensável o STJ – em acórdão de 30/11/2006 –, nos teremos do qual a frieza de ânimo pode ser " … frieza na execução do crime – uma frieza que … se traduz num particular modo de actuar, com apelo a uma personalidade singularmente distanciada, insensível e, portanto, dominada por um certo calculismo".
40 - Foi essa, precisamente, a actuação do arguido, portador de uma personalidade com "acentuação de traços que denotam egocentrismo, desconfiança, hostilidade e tendência à racionalização dos seus comportamentos".
41 - Por isso, foi correcta a deliberação do tribunal, ao considerar qualificado, pela frieza de ânimo, o crime de homicídio tentado de que foi vítima a assistente.
42 - Pelo exposto, e ao contrário do preconizado pelo arguido, o tribunal deliberou, de facto e de direito, correctamente e sem violação de qualquer disposição legal.
43 - O recurso interposto deve, em consequência, improceder.
(…)”.
Também a assistente respondeu ao recurso, formulando no termo da sua contra-motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“ (…).
1.º Por acórdão de 9 de Outubro de 2007 foi o arguido recorrente condenado na pena única de 23 anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares relativas às condenações de 10 meses de prisão pelo crime de detenção de arma ilegal, 8 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, e 18 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado, na forma consumada.
2.º O recurso do arguido refere-se unicamente à pena a que foi condenado pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada.
3.º É o próprio arguido quem se conforma com as decisões condenatórias em relação a uma enorme parte do acórdão, aceitando tanto a valoração probatória como a própria justeza da aplicação do quadro normativo ao caso concreto, considerando assim correctas as condenações que lhe foram aplicadas.
4.º Não é, na sua motivação, traçada uma linha delimitadora entre factos incorrectamente julgados, e que deram azo, no entender do recorrente, a uma condenação injusta, e factos correctamente apreciados e que levaram, também no seu entender, a várias condenações correctas.
5.º Nenhum dos três factos dados como provados e que ora são colocados em crise deverá ser objecto de outro entendimento.
6.º A apreciação da globalidade da prova obtida no julgamento contradiz o depoimento do arguido, segundo o qual ele não se encontrava à espera das ofendidas.
7.º Levando também a conclusão de que o arguido tentou efectivamente atingir a assistente na zona do tronco e pescoço, com a intenção de a matar.
8.º Bem como foi sua intenção cometer o crime que cometeu na pessoa da assistente, tendo inclusivamente disparado uma arma quando ela se encontrava agachada a menos de um metro à sua frente.
9.º É absurda a tese de que está excluído o homicídio na forma tentada apenas porque se falhou.
10.º Não foi por acaso que fez uma longa viagem para consumar um crime na pessoa apenas da mãe, quando o poderia ter feito junto à sua casa: ele procurou encontrar a mãe junto da filha, e só por isso se deslocou a Mira de Aire.
11.º Deve o douto acórdão ser integralmente sustentado, e consequentemente ser mantida a pena única de 23 anos de prisão a que o arguido foi condenado.
12.º Não se vislumbra, no douto acórdão recorrido, qualquer violação de qualquer preceito legal, pelo que com a sua manutenção farão V. Excias. a costumada Justiça!
(…)”.
Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no qual, louvando-se na argumentação expendida pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância, e acrescentando que o recorrente se limita a discorrer sobre as declarações prestadas em audiência por si mesmo e delas extraindo conclusões diversas das tiradas pelo tribunal recorrido, assim impugnando o processo de formação da sua convicção, esquecendo o princípio da livre apreciação da prova, quando aquele processo se mostra devidamente explicitado na fundamentação do acórdão, concluiu pelo não provimento do recurso.
Foi cumprido ao disposto no art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
No gozo da faculdade conferida pelo nº 1, do art. 403º do C. Processo Penal, e a coberto da alínea c), do nº 2 do mesmo artigo, o arguido limitou o recurso interposto à sua condenação pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada.
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões que urge decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
1. De facto:
- O incorrecto julgamento dos pontos de facto 14, 32 e 55 do acórdão recorrido;
- A contradição entre os pontos de facto 33 e 55 do acórdão recorrido, e o vício do art. 410º, nº 1, b), do C. Processo Penal.
2. De direito:
- Absolvição pelo não preenchimento do tipo do crime de homicídio qualificado na forma tentada, e sua convolação para o crime de ofensa à integridade física grave;
- Desqualificação do crime de homicídio tentado;
- Alteração da pena concretamente aplicada e suas consequências na pena única de prisão resultante do cúmulo.
Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da decisão objecto do recurso. Assim:
A) O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
1. O arguido manteve uma relação afectiva extraconjugal com EOM durante cerca de 9 anos e seis meses.
2. Durante esse período de tempo, o arguido pernoitava habitualmente em casa de EM, sita em Ourém, dormindo na sua residência, onde vivia a esposa, um ou dois dias por semana.
3. O relacionamento entre o arguido e a EM durou até ao dia 6 de Maio de 2006, data do casamento da filha desta, TSMG, e em que a E pôs termo à relação, na sequência de um conflito gerado entre ambos nesse dia por o arguido se ter mostrado desagrado pelo facto de o ex-marido da Emília ter entrado na casa desta para tirar fotografias com a filha.
4. O arguido não aceitou o termo da relação, tendo passado constantemente a procurar a E para reatarem a ligação.
5. No dia 5 de Agosto de 2006, após ter tomado o pequeno-almoço em sua casa, deslocou-se até à cidade de Ourém, no sentido de localizar EM.
6. Para o efeito, conduziu o veículo de marca …, modelo …., com matrícula …..
7. Nessa ocasião, levava consigo, no bolso das calças do lado direito, uma pistola semi-automática de marca Tanfoglio, de modelo GT 28, originalmente de calibre nominal 8 mm e destinada essencialmente a deflagrar munições de alarme posteriormente adaptada a disparar munições com projéctil de calibre 6, 35 mm, apresentando as inscrições originais de calibre, fabricada por "Fratelli Tanfoglio", em Gardone, Brescia, Itália, a qual se achava municiada com, pelo menos, 5 munições com projéctil de calibre 6,35 Browning, de marca Geco, de origem alemã.
8. A referida arma tem um funcionamento semi-automático de movimento directo (acção simples), com um cano com o comprimento aproximado de 61 mm, com seis estrias irregulares de sentido dextrógiro no seu interior, com sistema de segurança por fecho e por posição intermédia do cão.
9. E a mesma achava-se em boas condições de funcionamento.
10. O arguido procurou EMo dia todo.
11. Não logrando encontrá-la em Ourém, quando chegou a noite decidiu dirigir-se a Mira de Aire, a fim de aí a encontrar,
12. Encaminhando-se para a Rua 5 de Outubro, naquela localidade, onde sabia que a TM, filha da E, tinha a sua casa.
13. Em frente ao lote B2, local de residência daquela, aguardou.
14. Após o jantar, cerca das 21 h 40 m, a EM e sua filha TSMG saíram do prédio e encontraram o arguido sentado.
15. Este, quando as avistou disse "Boa noite!", enquanto se encaminhava para ambas.
16. A TG dirigiu-se para o veículo automóvel com matrícula…, de marca …., modelo …., que se encontrava estacionado na via pública, em frente ao referido lote.
17. Enquanto a EM foi despejar o lixo do outro lado da rua, um pouco mais abaixo, a cerca de 10 m.
18. Durante esse período de tempo o arguido perguntou a TG se queriam ir tomar um café.
19. Esta respondeu que não, enquanto abriu o veículo e entrou no seu interior.
20. Entretanto a EM regressou e aproximou-se do veículo, tendo o arguido lhe perguntado se queria ir tomar um café com ele.
21. Esta respondeu negativamente, referindo que estava cansada e queria ir para casa.
22. O arguido virou-se então para T e perguntou-lhe se havia algum problema em sair com a sua mãe.
23. Esta disse-lhe que a mãe ia já consigo para casa.
24. Perante tal recusa da E em o acompanhar, o arguido levou a sua mão direita ao bolso e retirou a pistola acima descrita.
25. Apontou a arma em direcção à cabeça de EM, do lado esquerdo, e disparou um tiro, que acertou no temporal esquerdo da mesma.
26. A direcção do trajecto foi da esquerda para a direita, da frente para trás e ligeiramente de cima para baixo.
27. Disparou de imediato outro tiro para o corpo desta.
28. O arguido encontrava-se a cerca de um metro de EM quando efectuou os disparos.
29. A E desfaleceu e caiu no chão inanimada.
30. Acto contínuo, o arguido apontou a pistola ao corpo de TG, que se encontrava a segurar a porta do lado esquerdo do veículo …., a qual estava aberta, e disparou um tiro.
31. Atingindo-a na mão esquerda, com um trajecto transversal.
32. Seguidamente, quando a TG, que já se encontrava fora do veículo, corria em direcção à sua mãe, o arguido, achando-se frente a frente com ela, a uma distância de cerca de um metro, voltou a apontar a arma, desta vez à zona do pescoço e tronco da mesma, e disparou contra ela um novo tiro, de cima para baixo e da direita para esquerda.
33. Atingindo-a na zona do ombro direito, alojando-se a bala no lado esquerdo do tórax da assistente T,
34. Fazendo com que a mesma caísse no chão, sem forças, próximo de sua mãe.
35. E, enquanto a assistente gritava por socorro, o arguido fugiu do local para a parte de cima da rua, onde deixara estacionado o veículo em que se fez até ali transportar, e, entrando no mesmo, tomou a direcção de Alcanena, onde o veio a deter na Avenida Marquês de Pombal, junto ao Edifício Avenida, entrando no café Avenida, onde ingeriu, pelo menos, uma cerveja.
36. Depois de ai ter permanecido pelo menos trinta minutos, deixando estacionado o veículo no local acima mencionado, dirigiu-se a pé até à sua residência, ….onde ficou até ser abordado por militares da GNR.
37. Como consequência directa e necessária da actuação do arguido, a TG sofreu traumatismo da mão esquerda (entrada e saída de projéctil a nível de articulação metacarpofalângica do 4º dedo) e traumatismo penetrante do tórax, com entrada de projéctil pelo ombro direito, a nível da região escapulo-umeral, indo alojar-se na região justadiafragmática esquerda, com insuficiência respiratória aguda, contusão pulmonar direita, hemotórax à direita, coagulopatia do consumo, contusão pulmonar com insuficiência respiratória.
38. Em virtude de tais lesões, ficou internada no Serviço de Medicina Intensiva do HUC, entubada, ventilada e com dreno torácico.
39. Esteve em risco de vida até ao dia 8 de Agosto de 2006, data em que iniciou ventilação espontânea, sendo extubada.
40. O referido comportamento do arguido determinou à assistente T um período de doença de 60 dias, sendo todos com afectação da capacidade para o trabalho em geral e para o trabalho profissional.
41. A mesma ficou com cicatrizes na face lateral do hemitórax direito e no membro superior direito, na face anterior do ombro e na face dorsal da mão, junto à articulação metacarpofalângica do 4º dedo, bem como um corpo estranho intratorácico (bala).
42. Do evento resultou, em concreto, perigo para a vida de TG.
43. Como consequência directa e necessária dos comportamentos do arguido acima referidos, EM sofreu fractura multiesquirolosa da tábua interna do occipital à direita com uma área de 2 centímetros de diâmetro, fractura orificial do temporal esquerdo com arrancamento de esquírolas da tábua interna correspondente ao orifício de entrada da bala, com cerca de 3 milímetros de diâmetro.
44. A bala ficou alojada na região occipital, à direita.
45. E determinou hemorragia meníngea subdural e subaracnoideia das porções occipitais de ambos os hemisférios cerebrais e cerebelo, extensa laceração da duramater a nível das fracturas descritas na abóbada, com trajecto em túnel do encéfalo, infiltrado de sangue, interessando o lobo esfeno-temporal esquerdo à frente, dirigido da frente para trás, ligeiramente de cima para baixo e da esquerda para a direita e contusão com desagregação do parênquima na base do hemisfério cerebral direito, tronco cerebral e lobo direito do cerebelo,
46. Que foram causa directa e necessária da sua morte.
47. A qual foi verificada às 22 h 35 m daquele dia.
48. EM não estava sob o efeito de algum álcool, drogas ou medicamentos.
49. O arguido adquiriu a arma acima identificada pelo menos duas semanas antes, em Lisboa, a pessoa não identificada, por 200,00 €, e desde então passou a fazer-se acompanhar da mesma, sempre municiada.
50. No momento dos eventos já não havia luz diurna.
51. A zona é bem iluminada.
52. O arguido fez parte dos quadros da …., durante cerca de cinco anos, até Janeiro de 1986, tendo prestado serviço nas …..
53. Durante esse período efectuou curso de ingresso no …, tendo sido admitido, mas sem que haja prestado funções no referido ….
54. Ao utilizar a arma com as características da acima descrita, que conhecia, apontando-a em direcção à cabeça da EO, e disparando para a zona visada a uma distância de cerca de um metro, quis, como conseguiu, tira-lhe a vida.
55. Do mesmo modo, ao utilizar a mesma arma, apontando-a à zona do pescoço e tronco da TG, onde sabia alojarem-se órgãos vitais, disparando também a uma distância de cerca de um metro, e atingindo-a nessa parte do corpo, quis igualmente causar-lhe a morte,
56. A qual apenas não ocorreu por razões alheias à sua vontade, designadamente por a mesma ter sido prontamente socorrida e de ter sido submetida a tratamento hospitalar.
57. Em ambas as circunstâncias, disparou subitamente e de surpresa sobre as vítimas, que não puderam se defender.
58. Abandonando-as no local sem o menor gesto de preocupação com o sofrimento que lhes infligiu ou cuidado em as retirar dali.
59. O arguido quis causar a morte à Emília pelo facto de a mesma se recusar a reatar a relação afectiva que com ele mantivera.
60. Disparou ainda sobre a sua filha, TG, depois de ter atingido a EM, quando aquela, apercebendo-se que a mãe, atingida pelos disparos efectuados pelo arguido, caíra no solo, corria em socorro da mesma, completamente insensível à aflição da assistente.
61. Realizada perícia médico-psiquiátrica ao arguido, a pedido deste, pelo Instituto de Medicina Legal, delegação de Coimbra, concluiu a mesma que o arguido "não padece de doença mental no sentido estrito e rigoroso do conceito", não se tendo apurado "razões substantivas de natureza psiquiátrica que permitam excluir ou atenuar a sua imputabilidade", apresentando o mesmo uma personalidade com "acentuação de traços que denotam egocentrismo, desconfiança, hostilidade e tendência à racionalização dos seus comportamentos".
62. A arma que o arguido tinha consigo e que usou para atingir as vítimas, não se achava manifestada e registada, nem a mesma era sequer registável, não sendo ele possuidor de licença de uso e porte de arma, o que bem sabia.
63. Como igualmente sabia que era proibida por lei a posse e utilização de arma de fogo naquelas condições.
64. Em qualquer das situações, o arguido agiu livre e conscientemente.
65. Conhecendo a natureza proibida das suas condutas.
66. Ao mesmo não é conhecida prática de qualquer outra infracção.
67. Com referência à data da prática dos factos, achava-se desempregado havia sete meses, sendo a esposa quem o sustentava e lhe dava dinheiro para os seus gastos pessoais, nomeadamente combustível.
68. Do seu casamento tem três filhos.
69. TSMG, RAMG e NMMG são filhos da falecida EOM.
70. A demandante T, apesar de casada e de ter casa própria, residia com a mãe a maior parte do tempo, dado o marido trabalhar fora.
71. O demandante N vivia diariamente com a mãe, residindo o demandante R em Inglaterra.
72. A falecida E tinha 53 anos de idade quando foi atingida mortalmente pelo demandado, era pessoa saudável, alegre, divertida, cheia de vida.
73. Estava reformada, mas trabalhava "à hora", como empregada doméstica.
74. Ela e os filhos mantinham óptimas relações afectivas e de entreajuda.
75. E constituíam uma família feliz.
76. Era a falecida E quem cuidava da casa e do seu agregado familiar, quem preparava as refeições e cuidava da roupa, e custeava as despesas necessárias à habitação e alimentação do mesmo agregado.
77. Era pessoa querida na cidade de Ourém.
78. Era ela quem cuidava de uma senhora com mais de 80 anos de idade, MIB, a qual não tinha familiares próximos, preparando-lhe as refeições, fazendo-lhe as compras, levando-a a sair, tratando-lhe da casa e acompanhando-a quando carecia de cuidados médicos.
79. Fazia-o por motivos de gratidão que a ligavam à referida senhora idosa, que foi sua madrinha de casamento.
80. Após a morte da mãe, os demandantes tomaram sobre si o encargo de zelar pela referida MIB.
81. A demandante T viu a mãe ser atingida a tiro pelo demandado, não tendo podido prestar-lhe socorro por ela própria ter sido por ele baleada.
82. A morte da Estado-Membro causou aos demandantes um desgosto profundo.
83. Sentindo os mesmos ainda hoje grande tristeza pela perda da mãe.
84. A qual, no caso da demandante T é ainda mais intensa.
85. Tendo a mesma perdido a vivacidade e a alegria de viver.
86. A EM, embora não voltasse a falar após ter sido baleada, não teve morte imediata, tendo vindo a falecer já depois da chegada dos bombeiros ao local.
87. Pôde aperceber-se que poderia morrer, o que lhe causou sofrimento.
88. Os demandantes pagaram à …. a quantia de 1.796,00 €, a título de despesas do funeral da sua mãe, EOM.
89. A demandante Teresa conhecia o arguido/ demandado e confiava nele.
90. A mesma nunca teve em relação a ele qualquer comportamento agressivo ou incomodativo, sempre o tendo tratado com respeito.
91. Em virtude da actuação do demandado, sofreu os ferimentos e lesões anteriormente descritas, que demandaram o seu internamento e assistência hospitalar nos moldes já também referidos.
92. Deixando-lhe as sequelas também já mencionadas.
93. Após o baleamento e nos momentos que se lhe seguiram, a demandante T, que sempre permaneceu consciente, sofreu grande angústia por ansiar por socorro e por temer não resistir aos ferimentos e perder a vida.
94. Sofreu dores pelo menos durante o período de convalescença.
95. Antes era uma rapariga alegre e divertida, sendo hoje uma pessoa triste e abatida.
96. TSMG, em virtude das lesões causadas pela actuação do arguido, foi, no dia 6 de Agosto de 2006, assistida no Serviço de Urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde ficou internada, no Serviço de Medicina Intensiva, até ao dia 10 do mesmo mês de Agosto.
97. Durante esse período foi-lhe prestada assistência hospitalar cujos encargos importaram na quantia de 9.069,08 €.
98. Ainda em consequência das mesmas lesões causadas pelo demandado, a TSMG deu entrada, no dia 10.08.2006, no Centro Hospitalar de Coimbra, onde permaneceu internada até ao dia 14.08.2006.
99. Durante esse período foi-lhe prestada assistência hospitalar cujos encargos importam na quantia de 2.960,53 €.
100. As importâncias referidas em 97) e 99) ainda se acham por liquidar.
(…)”.
B) Considerou não provados os seguintes factos não provados (transcrição):
“ (…).
(Com relevo para a causa, não se provaram os seguintes factos: i) Da acusação:)
- que, durante o tempo em que manteve a relação afectiva com a Emília Marques, o arguido pernoitava em casa desta um ou dois dias, após o que voltava para a sua residência;
- que a pistola que o arguido tinha consigo se achava municiada com seis munições;
- que, em frente ao lote B2, o arguido se sentou num patamar de umas escadas de acesso ao referido prédio;
- que a EM, quando o arguido lhe perguntou se queria ir tomar café com ele, lhe disse que já tinha um homem à sua espera em Ourém;
- que o arguido lhe tenha perguntado se estava a dizer a verdade e que esta respondeu que sim;
- que a TG, após ter sido atingida na mão, tenha caído ao chão;
- que o arguido apontou a arma à zona do coração desta;
- que o arguido, para além dos quatro tiros disparados contra as vítimas, disparou ainda outros dois tiros para local desconhecido;
- que o arguido pertenceu ao ….;
(ii) Do pedido de indemnização civil formulado a fls. 400 a 407:)
- que a EM trabalhou na casa de MIB até à idade adulta, como empregada doméstica;
- que a referida IB é madrinha dos três filhos da E, e que estes a consideram avó;
- que a E sempre recebeu daquela senhora o maior apoio;
- que a E era amiga de todos, prestando auxílio a quem necessitasse;
- que os demandantes vivem em estados depressivos constantes.
(…)”.
C) E dele consta a seguinte motivação de facto (transcrição):
“ (…).
A convicção probatória do Tribunal baseou-se no conjunto da prova produzida, e da sua análise crítica, com destaque para os seguintes meios de prova:
a) Documental: reportagem fotográfica de fls. 9 a 23, auto de busca e apreensão (veículo) de fls. 27, auto de apreensão (camisa que o arguido vestia no momento da prática dos factos) de fls. 34, certificado de registo criminal de fls. 350, elementos clínicos referentes à assistente TS de fls. 472 a 474, documentos de fls. 378 e 417;
b) Pericial: auto de exame directo de fls. 108-109, perícia médico-legal (à assistente T), de fls. 117 a 120 e fls. 332, relatório de exame à arma e projécteis de fls. 161 a 167, relatório de autópsia de fls. 193 a 206, relatório de exame (stubs) de fls. 432 a 434, relatório da perícia psiquiátrica realizada ao arguido de fls. 606 a 610;
c) declarações do arguido prestadas em audiência, que, no que concerne aos factos a si imputados, admitiu a materialidade dos mesmos, confessando ter efectuado os disparos contra as vítimas, referindo ter efectuado dois disparos seguidos contra a Emília, quando a mesma se achava de frente para si, a conversar consigo, a uma distância de um metro, tendo a mesma caído logo ao primeiro disparo, que a atingiu na cabeça, disparando depois contra a Teresa quando esta, alertada pelo som dos primeiros, gritou e correu em direcção a si, estando a uma distância de si de também cerca de um metro. Aludindo à relação afectiva que manteve com a EM, à qual se refere como sua amante, sua segunda mulher, explicou em que circunstâncias a mesma pôs termo a essa relação, afirmando que não aceitou o fim desse relacionamento, porque "era a mulher que amava, estava perdido por ela, estava obcecado por ela, morbidamente, estava disposto a tudo", que nos dois meses que antecederam os factos passou a procurá-la quase diariamente para reatarem a ligação, e que no dia em que os factos ocorreram a procurou todo o dia em Ourém, sem que aí a encontrasse. Negando que a fosse procurar a Mira de Aire e dizendo que foi por mero acaso que aí a encontrou com a filha, admitiu, todavia, que sabia que esta aí morava. Referiu que cegou quando a E, depois de lhe ter proposto que fossem tomar um café, lhe disse que não ia, que tinha um homem à sua espera em Ourém, facto que a filha confirmou, tendo sido nessa altura, sentindo que a tinha perdido, que puxou da arma que trazia no bolso das calças, do lado direito. Acerca dessa arma, esclareceu que a comprara em Lisboa, passando, havia duas semanas antes, a andar com ela carregada sempre que saía de casa, aludindo ter sido ameaçado pelo filho da T, N, facto que, depois de convidado a concretizar, não logrou convencer. Referiu ainda que, após os disparos, fugiu do local, sem verificar se as vítimas estavam vivas ou mortas, tomando a direcção de Alcanena, tendo, nesse trajecto, tirado a última bala que restava na câmara, deitando-a fora, parando, em Alcanena, num café, onde estavam as filhas e o seu futuro genro, a quem contou tudo o que acabara de acontecer, bebendo aí, pelo menos uma cerveja, e onde permaneceu, pelo menos meia hora; saiu dali a pé, deixando a viatura em que se deslocara estacionada perto do local, chegou a casa cerca de quinze minutos depois, tirou a camisa que vestia, lavou a cara e as mãos, quando, entretanto, aí chegou a GNR, tendo ficado "sem pinga de sangue", e, confrontado com os factos ocorridos em Mira de Aire, disse-lhes não saber de nada;
d) declarações da assistente TSMG, que, de forma objectiva e desapaixonada, relatou os factos de que foi vítima, bem como a sua mãe, precisando ter o arguido disparado contra a mãe depois de esta ter recusado um convite daquele para tomar um café, dizendo-lhe que estava cansada e que queria ir para casa, negando que a mesma alguma vez tivesse aludido à existência de outro homem que a esperasse. Esclarecendo em que circunstâncias e de que modo o arguido efectuou os disparos contra a sua mãe e contra si, viu, após os mesmos, o arguido fugir. Forneceu explicações acerca do relacionamento que o arguido manteve com a sua mãe, ao termo dessa ligação, ocorrida no dia do seu casamento, e as razões que estiveram na origem desse rompimento, precisando que o arguido não aceitou o fim desse relacionamento, passando a procurá-la constantemente para reatarem a anterior ligação, ao que a mãe se negava. Esclarece que nos últimos tempos o arguido era agressivo com a mãe, expressando-se por palavras essa agressividade, sendo, já antes do seu casamento, frequentes as discussões entre ambos, mostrando a mãe medo dele, o qual se revelava uma pessoa desconfiada, com um ciúme doentio da mãe, controlando todos os seus passos;
e) Testemunhal: depoimento das seguintes testemunhas, que revelaram objectividade nos depoimentos prestados e conhecimento acerca dos factos a que depuseram:
• NEJV, …., onde presta funções há sete anos, exercendo as mesmas no departamento de Leiria da mesma Polícia desde Novembro de 2004, o qual se deslocou ao local onde os factos ocorreram, aí tendo recolhido os elementos de prova mencionados nos autos, designadamente os invólucros e fragmentos de projécteis apreendidos, tendo ainda procedido à apreensão da camisa que o arguido vestia quando efectuou os disparos contra as vítimas, esclarecendo que a mesma lhe foi facultada pela esposa do arguido, o qual, quando se achava detido no posto da GNR, envergava uma outra que não aquela;
• JAFV, especialista-adjunto, desempenhando tais funções no departamento de Leiria da … há 10 anos, tendo efectuado a reportagem fotográfica documentada nos autos, e procedido à recolha de stubs no arguido e na viatura que o mesmo conduzia aquando da prática dos factos, esclarecendo que a simples lavagem das mãos após a realização de disparos é suficiente para delas retirar quaisquer vestígios de pólvora que aí pudessem ser encontrados;
• JGOA, soldado da GNR, que exerceu funções no posto da GNR de Mira de Aire, estando aí colocado no ano de 2006, o qual, estando de patrulha na noite dos factos, acorreu ao local onde os mesmos tiveram lugar, esclarecendo que quando aí chegou o local já estava vedado, encontrando-se já aí duas ambulâncias, nas quais se achavam as vítimas, tendo recebido de um bombeiro um invólucro acondicionado num saco de plástico, tal como fez menção no auto que elaborou;
• MMF, que presta serviço nos Bombeiros Voluntários de Mira de Aire há cerca de 27 anos, o qual, como motorista daquela corporação, conduziu até ao local dos factos uma ambulância, a qual aí se manteve até à chegada da equipa de INEM. Foi ele quem encontrou o invólucro que entregou ao soldado da GNR no corpo da vítima mortal, que tentaram reanimar no local, sem o conseguirem, entre o sutiã e o peito da mesma;
• Nelson Vieira Paisana, que presta serviço nos Bombeiros Voluntários de Mira de Aire há 4 anos, tendo chegado ao local dos factos na primeira ambulância que aí se deslocou: encontrou as duas vítimas caídas no chão, estando a mãe inconsciente, enquanto a filha pedia auxílio, dizendo que ia morrer, pedindo também socorro para aquela. Em face do que encontrou, pediu a vinda de uma outra ambulância e a intervenção do INEM. Refere que tentou a reanimação da Emília, que ainda lhe apanhou por momentos a pulsação, mas que logo a perdeu;
• OCR, que, morando num prédio em frente ao local dos factos, depois de ouvir sons de disparo, e depois gritos de socorro, chamou a GNR;
• MJGA, filha do arguido, a qual, de forma pouco consistente e credível, referiu que na noite da prática dos factos, estando no café Avenida, em Alcanena, chegou ao mesmo o pai que chamou o namorado da depoente, tendo esta, algum tempo depois, se juntando a ambos, tendo o pai contado a ambos o que acontecera, mencionando-lhes depois que ia a pé para casa para espairecer a cabeça, o que fez, tendo antes ingerido uma cerveja;
• LCP, que, durante 12 anos, foi amiga da falecida T, passando também a ter uma relação de amizade com o arguido, quando ambos se passaram a relacionar afectivamente, tendo convivido com ambos, frequentando com assiduidade a casa da vítima: mencionou que a sua amiga T já, antes dos factos, tinha mandado o arguido embora por diversas vezes, e, tendo desabafado algumas vezes com a depoente, disse-lhe que queria acabar com a relação que mantinha com o arguido, mas que tinha medo dele, que a magoava, era violento. Desde 2002 chegou a presenciar algumas fúrias do arguido, no decurso das quais este gritava com a vítima, apertava-lhe o pescoço, depois ficava sério e dizia que estava a brincar. Referindo-se aos factos que estiveram na origem do fim do relacionamento da falecida E e do arguido, ocorridos no dia 6 de Maio de 2006, dia do casamento da assistente T, ao qual assistiu, esclareceu que a certa altura desse dia, tendo chegado a casa da E deparou com esta a chorar, apresentando sangue no pescoço e na camisola, enquanto os filhos dela falavam muito alto, ouvindo-a dizer que tinha medo do arguido. Refere que depois disso e antes de regressarem ao banquete, mudaram a fechadura da casa, tendo a depoente mais tarde visto em casa da Emília uma porta e o armário partidos, achando-se o frigorífico também "metido para dentro";
• MJRCAH, que foi amiga da falecida, com quem conviveu e também com os filhos da mesma, referindo-se ao relacionamento de todos eles entre si, à forma como os filhos sentiram a perda da mãe, e ao estado psíquico em que a assistente T ainda hoje se encontra;
• JMSC, tio, por afinidade, dos demandantes, sendo casado com uma irmã do ex-marido da falecida E, que igualmente aludiu ao relacionamento desta e dos filhos entre si, ao sofrimento que a morte da mãe causou aos seus sobrinhos, especialmente à T, a quem chegou a visitar no Hospital, quando aí se achava internada, referindo que antes dos factos era uma miúda alegre, divertida, e que agora anda sempre muito triste, vivendo ainda o que aconteceu no dia dos factos;
• LPMM, que era amiga da falecida Emília há quinze anos, a qual chegou trabalhava no seu estabelecimento de pastelaria em limpezas, à hora, convivendo também com os filhos dela, referindo-se ao relacionamento entre a falecida e os filhos, esclarecendo que a assistente Teresa que, antes era uma pessoa alegre e bem disposta, é hoje uma pessoa muito triste, aludindo ainda à tristeza que a morte da mãe causou a todos os filhos.
(…)”.
Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto (incorrecto julgamento dos pontos de facto 14, 32 e 55 do acórdão recorrido)
1. Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis (art. 124º do C. Processo Penal). O tema da prova abrange portanto, todos os factos juridicamente relevantes para o processo.
Em processo penal são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei (art. 125º do C. Processo Penal), o que significa que são admissíveis para a prova dos factos relevantes, todos os meios de prova que não sejam proibidos, estejam eles tipificados na lei, ou não (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Ed., 119 e ss.).
Consagra o art. 127º do C. Processo Penal o princípio da livre apreciação da prova segundo o qual esta, salvo disposição legal em contrário, é apreciada em conformidade com as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
A livre convicção do julgado não significa porém, o arbítrio ou a decisão irracional “puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação” (Prof. Castanheira Neves, citado por Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, 4ª Ed., 85).
Pelo contrário, a livre apreciação da prova exige uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, mas também nas da lógica e da ciência, e tudo para que dela resulte uma convicção do julgador objectivável e motivável, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.
Doutrina o Prof. Figueiredo Dias (Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.), que no processo de formação da convicção há que ter em conta os seguintes aspectos:
- A recolha dos dados objectivos sobre a existência ou não dos factos com interesse para a decisão, ocorre com a produção de prova em audiência;
- É sobre estes dados objectivos que recai a livre apreciação do tribunal, como se referiu, motivada e controlável, balizada pelo princípio da busca da verdade material;
- A liberdade da convicção anda próxima da intimidade pois que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos conhecimentos não é absoluto, tendo como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, portanto, as regras da experiência humana;
- Assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição.
Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss.).
A livre apreciação da prova não é pois, livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos e, dessa forma, determina uma convicção racional, logo, também ela, objectivável e motivável (Ac. do STJ de 04/11/1998, CJ, S, VI, III, 201).
O recurso em matéria de facto perante os tribunais da Relação não se destina a realizar um novo julgamento, apenas constituindo remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância.
Por isso, no que concerne à valoração da prova testemunhal e da prova por declarações, existe uma enorme diferença entre a apreciação e valoração feita na 1ª instância e a que pode ser efectuada pelo tribunal de recurso, com base na transcrição dos depoimentos ou mesmo, na audição das respectivas gravações.
É que a impressão produzida no julgador pela prova testemunhal e por declarações, e que se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e análise psicológica que traçam o perfil de cada testemunha ou declarante, só alcança a sua plenitude através da imediação ou seja, do contacto próximo entre o tribunal e as testemunhas e outros intervenientes processuais.
Daí que, quando o julgador atribui ou não, credibilidade a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, porque a opção tomada se funda na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador fundada naquela prova, quando for feita a demonstração de que aquela opção viola as regras da experiência comum. De outra forma, seriam violados os princípios da imediação e da oralidade.
O recurso da matéria de facto não pressupõe portanto, uma reapreciação pelo tribunal superior dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida – o tribunal de recurso não efectua um novo julgamento nem forma uma nova convicção –, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados, com base na avaliação das provas que considera determinarem uma diversa decisão (cfr. Ac. do STJ de 19/12/2007, processo nº 07P4203, em http://www.dgsi.pt).
Também o Tribunal Constitucional vem aceitando que o verdadeiro julgamento da causa é o realizado na 1ª instância, onde regem os princípios da imediação e da oralidade, onde são produzidas todas as provas e o tribunal contacta directamente com os intervenientes processuais (Ac. nº 59/2006, de 18/01/2006, proc. nº 199/2005, http://www.tribunalconstitucional.pt).
Posto isto.
2. Pretende o recorrente que o ponto de facto 14 da matéria de facto provada que consta da decisão recorrida foi incorrectamente julgado.
Tem este ponto de facto o seguinte teor:
Após o jantar, cerca das 21h 40m, a EM e sua filha TSMG saíram do prédio e encontraram o arguido sentado.”.
Funda o recorrente a sua pretensão na circunstância de, em seu entender, das suas próprias declarações e das declarações da assistente, decorrer que chegara ao local por volta das 21h 30m, estacionara o carro e no momento em que acabara de chegar à entrada do prédio a mãe e a filha desciam, tendo-o encontrado em pé, pois a própria assistente afirmou não ter visto o recorrente sentado mas calculou que ele estivesse.
E conclui que deveria antes considerar-se provado que: “Após o jantar, cerca das 21h 40m, a EM e sua filha TSMG saíram do prédio e depararam-se com o arguido, de pé, à entrada da porta, onde acabara de chegar.”.
Como se vê, a divergência do recorrente prende-se apenas com dois particulares aspectos do ponto de facto questionado: saber se estava sentado ou em pé, e saber se tinha acabado de chegar.
Tal como afirma o recorrente na sua motivação, da leitura da fundamentação do acórdão recorrido resulta que a convicção do tribunal colectivo, relativamente à forma como decorreram os factos na noite do dia 5 de Agosto de 2006, se fundou apenas, no que à prova por declarações concerne, nas do recorrente e da assistente, pois nenhuma das testemunhas inquiridas terá presenciado os factos.
Ouvidas as gravações que têm por objecto as declarações do recorrente relativas ao questionado facto, delas resulta ter o mesmo afirmado o que se mostra transcrito na motivação do recurso, a fls. 749 ou seja, e em síntese:
- Chegou a Mira de Aire cerca das 21 h 30 m, descendo a serra e viu a E e a assistente T em casa desta;
- Parou o carro com o qual circulava, na rua que passa por trás da casa da assistente, receando que a E o visse e o evitasse;
- E quando chegava junto do carro que estava estacionado à porta do prédio, estavam elas, E e assistente, a chegar à porta e a abri-la;
- Não sendo verdade que estava sentado na escadaria à espera delas.
Ouvidas as gravações que têm por objecto as declarações da assistente relativas ao mesmo facto, delas resulta ter afirmado o que se mostra transcrito na motivação do recurso, a fls. 750 mas não apenas isso. Com efeito, o que a assistente afirmou, em síntese, foi que:
- Quando desceram de casa e vê o arguido, este estava a levantar-se, pois ao lado da entrada para as lojas, existem dois degraus. Nunca viu o arguido sentado à espera, mas calcula que estivesse. Mas ao sair do prédio deparou com ele já em pé.
Sendo irrelevante que o arguido aguardasse a E sentado ou de pé, certo é que o facto questionado coloca a vítima e a assistente a saírem do prédio e a encontrarem o recorrente sentado.
Mas isto não é, como vimos, afirmado pela assistente. Esta disse que, quando se apercebeu do recorrente, estava ele a levantar-se. Daí que também tenha dito que não o viu sentado mas concluiu que o tenha estado.
Esta conclusão da assistente tem pleno cabimento em termos de lógica, mas a questão não se coloca nestes termos. Efectivamente, se a assistente, quando vê o recorrente, constata que este está a levantar-se, é seguro que ela e logo, também a sua mãe, não o encontraram sentado.
Que imediatamente antes, o recorrente tinha estado sentado, é o que decorre das declarações da assistente, mas esta circunstância está para além do facto em questão.
Não havendo razões para divergir da credibilidade que mereceram ao tribunal colectivo as declarações da assistente a qual, como nota o Digno Magistrado do Ministério Público, não foi sequer beliscada pelo recorrente, o que delas há que reter é que:
- O recorrente esteve sentado, aguardando-as;
- No entanto, quando foi avistado pela assistente e mãe, estava a levantar-se.
Assim, o conteúdo do facto provado deve ser compatibilizado neste aspecto, ainda que lateral, com as declarações da assistente e com o que delas se extrai.
Já quanto à parte final da pretendida redacção do recorrente – o segmento “onde acabara de chegar” – não se vê que tal possa ser dado como provado.
Isto porque “acabado de chegar” tem o significado de algo de imediato, o que não é compatível, desde logo, com a circunstância de o recorrente, ter aguardado sentado que a Emília e a assistente saíssem de casa, conjugada com o teor do ponto 13 dos factos provados, não impugnado.
Concluindo, o ponto 14 dos factos provados do acórdão recorrido passa a ter a seguinte redacção:
Após o jantar, cerca das 21h 40m, a E e sua filha TSMG saíram do prédio e encontraram o arguido, que tendo estado sentado, se levantava.”.
3. Pretende o recorrente que o ponto de facto 32 da matéria de facto provada que consta da decisão recorrida foi incorrectamente julgado.
Tem este ponto de facto o seguinte teor:
Seguidamente, quando a TG, que já se encontrava fora do veículo, corria em direcção à sua mãe, o arguido, achando-se frente a frente com ela, a uma distância de cerca de um metro, voltou a apontar a arma, desta vez à zona do pescoço e tronco da mesma, e disparou contra ela um novo tiro, de cima para baixo e da direita para a esquerda.”.
Entende, para tanto, que face às suas declarações, apenas pode ter-se como certo que a assistente foi atingida no ombro direito, resultando de um julgamento subjectivo e discricionário ter-se dado como provado que voltou a apontar a arma à assistente, desta vez à zona do pescoço e tronco, não se entendendo como, sendo o disparo efectuado a um metro da assistente, não é esta atingida no lugar visado, nem se entendendo como foi a bala alojar-se do lado esquerdo do tórax, nem como pode ter tido uma trajectória de cima para baixo, quando o recorrente estava de frente para a assistente.
E conclui que deveria antes considerar-se provado que:”Seguidamente, quando a TG, que já se encontrava fora do veículo, corria em direcção à sua mãe, o arguido, achando-se frente a frente com ela, a uma distância de cerca de um metro, disparou contra ela um novo tiro que a atingiu no ombro direito.”.
Também aqui a convicção do tribunal colectivo resultou das declarações do arguido e da assistente, conjugadas, naturalmente, com o relatório de perícia médico-legal 117 a 120 e os documentos fotográficos de fls. 9 a 23.
Ouvidas as gravações que têm por objecto as declarações do recorrente relativas ao questionado facto, delas resulta ter o mesmo afirmado o que se mostra transcrito na motivação do recurso, a fls. 751 a 752, mas não apenas isso. Com efeito, o recorrente afirmou, em síntese, que:
- Perante a recusa da E em ir consigo ao café para falarem, e tendo ela dito que tinha um homem à espera em Ourém, ficou cego, puxou da arma, direccionou-a e atingiu-a na cabeça, presume que só acertando uma vez embora tenha efectuado dois disparos, tendo a vítima caído logo;
- Com o barulho dos disparos e a queda da mãe a assistente gritou e vinha na sua direcção, e nessa altura disparou contra ela, pois talvez disparasse contra tudo o que se mexesse à sua volta, pois estava fora de si; virou-se para a assistente e fez dois disparos seguidos, a cerca de um metro dela; a assistente gritou, o recorrente voltou-se, tem a sensação de que ela vem para si e dispara de qualquer maneira;
- Disparou a direito mas não pode dizer que rigorosamente na horizontal; não fez os disparos na direcção do chão mas na da assistente;
- Perguntado se levantou o braço à altura do ombro, começou por dizer que não procurou a cabeça, o coração e órgãos vitais, mas que disparar, disparou; perguntado de novo se levantou o braço à altura do ombro, o esticou e disparou, respondeu que sim;
- Quando disparou, a assistente estava em pé, ao lado do carro do lado do condutor, e vinha em direcção a si mas podia estar a dirigir-se para a mãe.
Ouvidas as gravações que têm por objecto as declarações da assistente relativas ao mesmo facto, delas resulta ter afirmado, em síntese, que:
- Estava sentada dentro do seu automóvel, um … comercial, e ouviu o recorrente perguntar à mãe, então junto à traseira do carro, se queria ir tomar um café, tendo ela respondido apenas que não, porque estava muito cansada e queria ir para casa;
- Ouviu então um tiro e logo a seguir, ainda dentro do carro, outro tiro atingiu-a na mão esquerda;
- Já atingida, olhou para trás e viu a mãe caída no chão; saiu do carro e correu para ela, e sentiu o segundo tiro que a atingiu no ombro, caindo no chão.
Os documentos fotográficos de fls. 10, 12 e 15 corroboram as declarações da assistente, quer quanto à posição da vítima relativamente ao veículo …, quer quanto à posição da assistente quando foi atingida pelo primeiro disparo.
Por sua vez, o relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls. 117 a 120, relativo à assistente, menciona:
- Um traumatismo na mão esquerda, com entrada e saída de projéctil ao nível da articulação metacarpofalângica do 4º dedo;
- Um traumatismo torácico, com entrada do projéctil pelo ombro direito, ao nível da região escápulo-umeral, indo alojar-se na região justadiafragmática esquerda;
- Uma contusão pulmonar direita;
- Uma lesão na face anterior do ombro direito;
- Uma lesão na face dorsal da mão esquerda;
- O trajecto do projéctil que atingiu a mão esquerda foi transversal;
- O trajecto do projéctil a nível torácico foi de cima para baixo e da direita para a esquerda.
A região escápulo-umeral corresponde à zona do corpo humano onde se situa a articulação escapulo-umeral ou seja, a articulação do ombro. Esta articulação é composta, além do mais, pela clavícula, pela omoplata e pelo úmero.
Por sua vez, o diafragma é o grande músculo que, nos mamíferos, separa a cavidade torácica da cavidade abdominal e tem importante papel na função respiratória. Assim, a região justadiafragmática esquerda é a que se situa junto àquele músculo, à esquerda.
Atentas as zonas corporais atingidas pela segunda bala e a sua descrita trajectória, podemos concluir que quando o recorrente efectua o segundo disparo, a pistola está situada a um nível ligeiramente superior à linha dos ombros da assistente, o que é facilmente explicado pela circunstância de a assistente estar em movimento rápido ou seja, em passo de corrida em direcção à mãe e portanto, com o tronco inclinado para diante, e pela forma como o recorrente executa o disparo (braço levantado).
Já a trajectória que o projéctil tomou no interior do corpo da assistente, implica que quando o disparo é efectuado, o recorrente estivesse virado para a assistente e esta, em movimento, estivesse pelo menos ligeiramente de lado, em relação ao atirador, quando é atingida, pois a bala, entrando pela face anterior do ombro direito, tomou uma trajectória transversal ao corpo desta e oblíqua à linha dos ombros.
Assim, como resulta de fls. 10 e 12 que nos dão a posição da vítima caída no chão, conjugados com a afirmação do recorrente, de que estava a cerca de 2 metros do carro, e da assistente, de que a sua mãe se encontrava junto à bagageira quando é atingida, a assistente, saindo do carro, para chegar junto da mãe, teria que passar entre o carro e o recorrente, oferecendo-lhe a frente e o lado direito, atenta a dinâmica do movimento que executava, como alvo.
Esclarecidas estas dúvidas, facilmente se percebe a razão de o tribunal colectivo ter dado como provado que o recorrente visou a zona do pescoço e do tronco.
É que, tendo o recorrente levantado o braço que empunhava a pistola à altura do ombro, embora em posição não absolutamente horizontal, e disparado contra a assistente quando esta passava a um metro de si em direcção à mãe, a zona visada poderia ser precisamente a do tronco e a do pescoço, pois este, em termos anatómicos, está ligado ao tronco.
Por outro lado, a circunstância de o orifício de entrada da bala se situar na face anterior do ombro direito da assistente, ficou atrás explicada, sendo certo que o projéctil veio a lesionar o pulmão direito da assistente, órgão que, com toda a certeza, se situa no seu tórax.
Por tudo isto se considera que, ao contrário do pretendido pelo recorrente, o facto 32, excepção feita à posição relativa dos intervenientes, que se rectificará, não contém um julgamento subjectivo e discricionário, antes se mostra apoiado na prova produzida e se mostra conforme as regras da lógica e da experiência.
E assim, o ponto 32 dos factos provados do acórdão recorrido passa a ter a seguinte redacção:
Seguidamente, quando a TG, que já se encontrava fora do veículo, corria em direcção à sua mãe, o arguido, achando-se virado para ela, a uma distância de cerca de um metro, voltou a apontar a arma, desta vez à zona do pescoço e do tronco da mesma, e disparou contra ela um novo tiro, de cima para baixo e da direita para a esquerda, relativamente ao corpo da assistente.”.
4. Pretende o recorrente que o ponto de facto 55 da matéria de facto provada que consta da decisão recorrida foi incorrectamente julgado.
Tem este ponto de facto o seguinte teor:
Do mesmo modo, ao utilizar a mesma arma, apontando-a à zona do pescoço e tronco da Teresa Gonçalves, onde sabia alojarem-se órgãos vitais, disparando também a uma distância de cerca de um metro, e atingindo-a nessa parte do corpo, quis igualmente causar-lhe a morte.”.
Começa o recorrente por invocar a existência de uma contradição entre este facto provado e o ponto de facto 33, suscitando desta forma a existência do vício previsto no art. 410º, nº 2, b), do C. Processo Penal.
4.1. Dispõe o art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Em qualquer uma destas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, tais como, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Cons. Maia Gonçalves, C. Processo Penal Anotado, 10 ª Ed., 729, Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 339 e Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 77 e ss.).
Por último, cabe ainda referir que o conhecimento destes vícios é oficioso (Acórdão nº 7/95 de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995).
Existe contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada, entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, entre a fundamentação probatória da matéria de facto, e ainda entre a fundamentação e a decisão (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 340 e ss.).
Assim, existe contradição insanável da fundamentação, quando após a realização de um raciocínio lógico, se conclui que a fundamentação conduz a uma decisão oposta à que foi tomada, ou se conclui que a decisão, face à incompatibilidade dos fundamentos invocados, não é esclarecedora (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 71 e ss.).

Como se disse, pretende o recorrente que existe clara contradição entre os pontos de facto 33 e 55 que constam da matéria de facto provada do acórdão posto em crise o que implicará então a existência do apontado vício. Vejamos se assim é.
Os pontos de facto em questão têm o seguinte teor:
- 33 – “Atingindo-a na zona do ombro direito, alojando-se a bala no lado esquerdo do tórax da assistente T.”;
- 55 – “Do mesmo modo, ao utilizar a mesma arma, apontando-a à zona do pescoço e tronco da TG, onde sabia alojarem-se órgãos vitais, disparando também a uma distância de cerca de um metro, e atingindo-a nessa parte do corpo, quis igualmente causar-lhe a morte.”.
E adiantando a resposta, não vemos que exista a invocada contradição.
Na verdade, o recorrente esquece a segunda parte do conteúdo do ponto de facto 33 ou seja, o local onde a bala ficou alojada.
Como atrás vimos, trata-se da região justadiafragmática esquerda, situada no tórax.
Ainda que o ponto de entrada da bala tenha sido na região anterior do ombro direito, o facto de, no seu trajecto, ter lesionado o pulmão direito e de ter ficado alojada junto ao diafragma, significa que atingiu a assistente também no tórax.
Assim, se no ombro não existem órgãos vitais, existem seguramente, no tórax, designadamente, os pulmões.
Desta forma, não se evidencia no acórdão recorrido, o vício previsto no art. 410º, nº 2, b), do C. Processo Penal.
4.2. Quanto ao errado julgamento do facto 55, entende o recorrente que, resultando das suas declarações que apenas procurava a E a fim de reatar o relacionamento que com ela mantivera, é evidente que não representou nem quis cometer crime na pessoa da assistente, tanto mais que esta afirmou não encontrar razões anteriores que levassem o recorrente a atingi-la, e as concretas zonas atingidas não indiciam a intenção de matar.
E conclui que não deveria o facto ser considerado provado ou, assim não se entendendo, apenas se deveria considerar provado que: “Do mesmo modo, ao utilizar a mesma arma, apontando-a a TG, disparando também a uma distância de cerca de um metro, atingiu-a na zona do ombro direito, o que lhe causou as lesões referidas no ponto 37 da matéria provada.”.
Discute portanto o recorrente, a verificação do elemento subjectivo do crime de homicídio, o dolo, o conhecimento e vontade de realizar o facto.
O dolo, enquanto facto da vida interior do agente, tem natureza subjectiva, não sendo susceptível de apreensão directa.
Por isso, é através da verificação de determinados factos objectivos, de certos factos materiais, conjugados com as regras da experiência comum, que ele pode ser extraído ou concluído.
No caso concreto do crime de homicídio, tais factos materiais são, entre outros, o número e extensão dos ferimentos, o tipo de instrumento utilizado na sua produção, o grau de violência posto na agressão, e a zona corporal atingida.
Ouvidas as gravações que têm por objecto as declarações do recorrente relativas ao facto questionado, delas resulta ter o mesmo afirmado, no essencial, o que se mostra transcrito na motivação do recurso, a fls. 754 a 755. Com efeito, o recorrente afirmou, em síntese, que:
- Na véspera, esteve com a E que lhe disse que falavam no dia seguinte;
- Procurou todo o dia (5 de Agosto de 2006) a E em Ourém, sem a encontrar e cerca das 19 horas, lembrou-se de passar por Mira de Aire;
- Queria falar com a E para que ela o ouvisse, para lhe oferecer flores, era o dia de anos dela;
- No caminho, encontrou dois amigos na localidade de Giesteira, e esteve com eles a conversar e nos copos, mais de 2 horas;
- Sabia que a filha da E, a assistente, morava em Mira de Aire;
- A casa da assistente fica no trajecto que levava, não havia desvios;
- Veio pela estrada que vai de Fátima para Alcanena que fazia regularmente;
- Ao descer a serra, vê-se o bloco onde fica o 3º andar da assistente, e viu a E em casa da filha a esfregar a cozinha, enquanto a assistente fechava um estore, e foi para a rua que passa atrás do bloco;
- Perguntado se tinha ido a Mira de Aire procurar a Emília, respondeu que não, que foi mero acaso encontrá-la, sendo normal passar por ali;
- O caminho normal entre Alcanena e Ourém não passa por Mira de Aire;
- Nunca teve nada contra a rapariga (assistente);
- Esteve cinco anos na … tendo pedido a exoneração em 1986.
Ouvidas as gravações que têm por objecto as declarações da assistente, esta afirmou efectivamente, que não encontra razão para ter sido atingida, talvez o tendo sido só pelo facto de estar ali com a mãe.
Não é certamente pela circunstância de o recorrente pretender encontrar (procurar) a E, para tentar reatar o seu relacionamento afectivo com ela, conjugada com a circunstância de nada ter contra a filha daquela, que se torna evidente não ter agido com intenção de causar a morte à assistente.
Assim, tendo em vista a verificação (ou falta dela) do dolo de homicídio, relativamente à assistente, temos a considerar que:
- O recorrente é um …. portanto, um cidadão com um conhecimento sobre armas e sua utilização, superior ao cidadão comum;
- O recorrente disparou contra a assistente imediatamente depois de ter abatido a mãe, com um disparo na cabeça, efectuado a cerca de um metro desta;
- O recorrente efectuou o primeiro disparo contra a assistente, estando esta sentada no carro, com a porta do mesmo aberta, e efectuou o segundo disparo quando, já ferida na mão, tendo-se apercebido do que havia sucedido à mãe, tinha saído do carro e corria para esta;
- Este segundo disparo sobre a assistente foi efectuado a uma distância de cerca de um metro, tendo o recorrente, para o efeito, levantado o braço sensivelmente à altura do ombro, apontando à zona do pescoço e tronco, quando a assistente passava entre si e o carro de onde saíra, em direcção à mãe.
Explicada que foi a razão pela qual, apontando o recorrente à zona do pescoço e tronco da assistente, o orifício de entrada da bala se situa na face anterior do ombro direito desta, a realização de um disparo à distância referida ou seja, quase à queima-roupa, para a zona visada vindo a ser atingido um pulmão, efectuado por um agente experiente no manejo de armas de fogo, que acabara de abater a mãe da visada com um disparo na cabeça, apoiados na afirmação do recorrente de que disparou contra a assistente, na direcção desta, porque dispararia contra o que quer que fosse que se mexesse, permite à luz das regras da experiência comum deduzir, como o fez o tribunal colectivo, que o recorrente quis causar a morte daquela.
Entendemos pois, que não se mostra incorrectamente julgado o ponto de facto 55, mantendo-se o mesmo tal como consta dos factos provados do acórdão recorrido.
Da absolvição pelo não preenchimento do tipo do crime de homicídio qualificado na forma tentada, e sua convolação para o crime de ofensa à integridade física grave
5. Pretende o recorrente que, na sequência das modificações por si pretendidas na decisão da matéria de facto, deixará de estar preenchido o tipo do crime de homicídio qualificado tentado, que deverá por isso, ser convolado para um crime de ofensa à integridade física grave.
Na base do raciocínio exposto está a pretendida ausência de prova relativamente ao dolo de homicídio do crime em questão.
Como se viu, o ponto de facto 55, que a tal elemento do tipo se refere, foi mantido integralmente.
As modificações operadas nos pontos de facto 14 e 32 foram pontuais, nada têm a ver com o elemento subjectivo do tipo, e não afectam o preenchimento do tipo objectivo.
Dos factos provados, após as modificações decididas, continua a resultar que o recorrente, querendo causar a morte da assistente, à distância de um metro, contra ela efectuou um disparo com uma pistola, visando a zona do pescoço e tórax, tendo a bala entrado pela face anterior do ombro direito, lesionado o pulmão esquerdo e ficado alojada na zona junto ao diafragma à esquerda, da assistente, a qual esteve em risco de vida, mas cuja morte não sobreveio por razões alheias à vontade do recorrente, designadamente pelos prontos cuidados hospitalares a que foi submetida.
Assim, estão preenchidos os elementos do tipo do crime de homicídio tentado, tal como são desenhados pelos arts. 22º, nºs 1 e 2 e 131º, do C. Penal, não havendo lugar à pretendida convolação para o crime de ofensa à integridade física grave e consequente absolvição por aquele outro.
Da desqualificação do crime de homicídio tentado
6. Pretende o recorrente que, a entender-se ter cometido um crime de homicídio tentado, não é o mesmo qualificado pois não se verifica a premeditação. Vejamos.
O tipo legal fundamental, o tipo base, dos crimes contra a vida encontra-se previsto no art. 131º do C. Penal.
O crime de homicídio qualificado, previsto no art. 132º do mesmo código, mais não é do que uma forma agravada do homicídio simples previsto no art. 131º.
A qualificação do homicídio no C. Penal é efectuada através da combinação de uma cláusula genérica de agravação, prevista no nº 1 do art. 132º – a especial censurabilidade ou perversidade do agente ou seja, um especial tipo de culpa – com a técnica dos exemplos-padrão ou exemplos típicos, enunciados no nº 2 do mesmo artigo.
Para tanto, os exemplos padrão indiciam e explicitam o sentido da cláusula geral que, por sua vez, corrige o conteúdo objectivo daqueles.
Por isso, a verificação, no caso concreto, de um exemplo-padrão não significa, necessariamente, a realização daquele especial tipo de culpa e consequente qualificação do homicídio.
Da mesma forma que, a não verificação de qualquer exemplo-padrão não impede a qualificação do homicídio, desde logo porque o uso, no nº 2 do art. 132º, da expressão “entre outras” indica que não estamos perante um elenco taxativo. Mas o que se exige é a verificação no caso concreto, de elementos substancialmente análogos aos tipicamente descritos ou seja, que embora não expressamente previstos na lei, correspondam ao sentido, desvalor e gravidade de um exemplo-padrão (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 26, Prof. Augusto Silva Dias, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2ª Ed., AAFDL, 2007, 25 e ss., e Teresa Serra, Homicídio Qualificado, 73). Nestas condições, porque se mostra plenamente respeitado o princípio da legalidade, é admissível o homicídio qualificado atípico.
Sintetizando, as circunstâncias qualificativas do homicídio não são de funcionamento automático, e o respectivo elenco é meramente exemplificativo.
Pode dizer-se que a qualificação do homicídio se baseia num especial tipo de culpa, espelhado na especial censurabilidade ou perversidade do agente.
A especial censurabilidade – sendo certo que é o conceito de censurabilidade que fundamenta a concepção normativa da culpa – prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas.
A especial perversidade reporta-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., 29).
Enquanto a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativamente ao facto, a especial perversidade reporta-se aos componentes da culpa relativas ao agente (cfr. Teresa Serra, ob. cit., 64).
Assim, ainda que a qualificação da conduta homicida seja sempre determinada por um mais acentuado desvalor da atitude do agente, no elenco dos exemplos-padrão, enquanto uns se fundam numa atitude mais desvaliosa do agente, outros há que radicam num mais acentuado desvalor da acção ou da conduta.
7. Revertendo agora para o caso concreto, o recorrente vem condenado pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, resultando a especial censurabilidade ou perversidade do acto praticado da verificação da circunstância da alínea i), do nº 2 do art. 132º do C. Penal, na redacção em vigor na data da sua prática, e actualmente, pela alínea j) do mesmo nº 2 (redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro).
Cumpre dizer que a Lei nº 59/2007, apenas modificou a designação da alínea, por alteração da respectiva letra (passou da i, para a j), mas não alterou o conteúdo da circunstância.
Dispõe o art. 132º, nº 2, alínea i), do C. Penal, na redacção anterior à citada lei que:
2 – É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(…);
i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
(…).
Aqui, sem que a lei o diga expressamente (como sucedia na versão originária do C. Penal), prevê-se a circunstância da premeditação.
Em vez de definir o seu conceito, optou o legislador por nela integrar três índices de maior censurabilidade que correspondem a três distintas doutrinas sobre a premeditação.
Assim, na antiga doutrina portuguesa e francesa, com reflexos no C. Penal Português de 1886 (art. 352º), a premeditação supunha uma resolução tomada que, depois se prolonga até à execução, por um considerável espaço de tempo. A firmeza e irrevocabilidade da resolução previamente tomada revela uma tão intensa vontade criminosa que o agente, apesar da “mora habens”, não se deixou demover pelos contra motivos sociais e ético-jurídicos.
A doutrina italiana, para além da persistência do desígnio criminoso, passou a exigir também o agir com calma, o agir com frieza de ânimo.
Já na doutrina alemã a premeditação se liga à ideia de reflexão no tomar da resolução criminosa e no sentido de uma clara ponderação dos motivos e contra-motivos, ligados aos fins visados pelo agente e às actividades e meios necessários para os alcançar. Esta reflexão, que poderia apenas ter lugar imediatamente antes da execução, deveria verificar-se durante toda ela, e implica uma maior intensidade do dolo (cfr. Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, Vol. II, 295 e ss., Prof. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, Verbo, Vol. I, 646 e ss., Profª. Maria Fernanda Palma, Direito Penal, Parte Especial, 1983, 66 e ss., e Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., 39 e ss.).
Assim, o que torna mais censurável a conduta do agente, à luz desta circunstância qualificativa, é uma vontade criminosa particularmente intensa do agente que, com mais ou menos tempo, pensou o crime antes de o por em prática, não tendo portanto, agido sob a emoção, sob o impulso ou as circunstâncias do momento.
Naturalmente que os três índices supra referidos não constituem requisitos cumulativos para a verificação da premeditação, sendo qualquer um deles, por si mesmo, susceptível de indiciar um tipo de culpa agravado (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., 40).
8. Aqui chegados, relembremos, de forma sintética embora, a matéria de facto provada pertinente:
- O recorrente, …, e EM, mãe da assistente TMG, mantiveram durante cerca de nove anos e meio uma relação afectiva extraconjugal, à qual a E pôs termo no dia do casamento da filha, em Maio de 2006, termo que o recorrente não aceitou, passando a partir de então a procurar a E, com vista ao reatamento de tal relação;
- No dia 5 de Agosto de 2006, aniversário da E, o recorrente saiu de sua casa pela manhã, munido de uma pistola de alarme, adaptada ao disparo de munições calibre 6,35 mm, devidamente municiada, que tinha comprado duas semanas antes e que desde então sempre o acompanhava carregada, e dirigiu-se de automóvel para Ourém, onde residia a E, a fim de a encontrar, o que não conseguiu, apesar de a procurar nesta localidade todo o dia;
- Quando chegou a noite decidiu o recorrente dirigir-se a Mira de Aire, a fim de encontrar a E, pois sabia que nesta localidade tinha a assistente a sua casa;
- O recorrente chegou a Mira de Aire e encaminhou-se para a rua onde a assistente tinha a casa, aí tendo aguardado diante do respectivo bloco;
- Cerca das 21 h 40 m a E e a assistente saíram do prédio e foram abordadas pelo recorrente que perguntou à assistente, enquanto a Emília foi despejar o lixo um pouco mais abaixo, se queriam ir tomar café, tendo a assistente respondido negativamente, enquanto entrava no seu veículo automóvel;
- Entretanto, a E regressou e aproximou-se do veículo onde se encontrava a filha, tendo-lhe nessa altura o recorrente perguntado se queria ir tomar café com ele, ao que ela respondeu negativamente, por estar cansada e querer ir para casa;
- Perante esta recusa da E, o recorrente empunhou a pistola, e a cerca de um metro daquela, efectuou um disparo na direcção da sua cabeça, atingindo-a no temporal esquerdo, após o que efectuou outro disparo para o corpo daquela que, entretanto, caiu no chão, inanimada;
- Acto contínuo, o recorrente efectuou um disparo visando o corpo da assistente que segurava a porta esquerda do carro, atingindo-a na mão, e quando esta corria já em direcção à mãe, o recorrente, a cerca de um metro, apontou a pistola à zona do pescoço e tronco da assistente e efectuou novo disparo contra ela, de cima para baixo e da direita para a esquerda relativamente ao corpo da assistente, entrando a bala pela zona do ombro direito e ficando alojada no lado esquerdo do tórax, na região justadiafragmática esquerda, depois de lesionar o pulmão direito, tendo a assistente caído próximo da mãe;
- O recorrente fugiu do local enquanto a assistente gritava por socorro, vindo a ser internada nos HUC, onde ficou entubada e ventilada, correndo risco de vida até 8 de Agosto de 2006;
- O recorrente, ao apontar a pistola à zona do pescoço e tronco da assistente, onde sabia alojarem-se órgãos vitais, e ao efectuar o disparo a cerca de um metro de distância, atingindo-a naquela zona, quis causar-lhe a morte, a qual apenas não ocorreu por razões alheias à sua vontade,
- O recorrente disparou de surpresa sobre a assistente, que não se pôde defender, abandonou-a no local sem o menor gesto de preocupação com o sofrimento que lhe causou, tendo disparado completamente insensível à aflição da assistente que corria em socorro da mãe.
8.1. Apesar de se ter provado que o recorrente havia comprado a pistola com que efectuou os disparos contra a assistente (bem como, contra a vítima mortal), duas semanas antes aos factos, e que a partir da data da aquisição passou a andar com ela municiada, não se mostra no entanto provado, que a compra da arma tivesse já como fim a prática dos factos designadamente, alcançar a morte da assistente.
Assim, não resulta provado que o recorrente tenha persistido na intenção de matar por mais de 24 horas, pelo que a sua conduta não é subsumível à última parte da alínea i), do nº 2, do art. 132º do C. Penal (redacção anterior à da Lei nº 59/2007).
8.2. Relativamente ao agir com reflexão sobre os meios empregados, face ao que atrás se deixou exposto, não vemos que possa ter-se por verificado este índice da premeditação. Com efeito, a atitude reflexiva do agente no tomar da resolução homicida e na ponderação dos prós e dos contras ligados àquela resolução, não encontram expressão nos factos provados relativamente à assistente. Aliás, procurando o recorrente a Emília, o facto de esta surgir com a filha e não a assistente, pode até ter surgido, no momento, como inesperado para o recorrente.
8.3. Relativamente ao agir com frieza de ânimo, cabe agora referir que esta, a frieza de ânimo, é um atributo da personalidade do agente, um modo de ser do seu temperamento (Nelson Hungria, citado pelos Cons. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, II Vol., 1996, 48).
Actua com frieza de ânimo o agente que forma o seu desígnio criminoso – no caso, o de matar outra pessoa – através de um processo frio, pensado, reflexivo, cauteloso e calmo quanto à execução, e persistente quanto à resolução. E é neste modo frio e reflectido de actuar que se revela no agente, a sua enorme insensibilidade e indiferença pela vida humana.
Em todo o caso, também neste índice a agravação resulta do processo de formação da vontade no cometimento do crime ou seja, na persistência da resolução criminosa.
E, como já dissemos, dos factos provados não resulta determinado o momento em que o recorrente tomou a resolução de matar a assistente. Pelo contrário, diríamos que a circunstância de ter sido atingida deriva de um impulso do momento, por banda do recorrente.
8.4. Entende-se pois, que a conduta do recorrente, relativamente ao crime de homicídio tentado, não se mostra qualificada pela alínea i), do nº 2, do art. 132º, do C. Penal (redacção anterior à da Lei nº 59/2007).
9. O tribunal recorrido, admitindo a possibilidade de a actuação do recorrente, no que concerne ao homicídio tentado, não se enquadrar no conceito de frieza de ânimo, expressou o entendimento de que sempre tal conduta se poderia reconduzir à previsão genérica e atípica do nº 1 do art. 132º do C. Penal ou seja, de que se trataria de um homicídio qualificado atípico tentado.
Como atrás deixámos dito, o recurso à figura do homicídio qualificado atípico só é admissível quando, no caso concreto, se verifiquem elementos substancialmente análogos aos tipicamente descritos, pois só assim se respeitará o princípio da legalidade.
9.1. Pois bem, no que respeita à alínea i), do nº 2, do art. 132º do C. Penal (redacção anterior à Lei nº 59/2007), já vimos que o sentido da tipificação da premeditação é a persistência do desígnio criminoso ao longo do tempo.
E se assim é, o segmento da factualidade provada relativa ao crime de homicídio tentado não dá corpo a uma situação substancialmente análoga à prevista na alínea.
9.2. Antes parece, quanto a este aspecto, que o tribunal recorrido pôs o acento tónico numa assistente “desprotegida e indefesa” (fls. 32 do acórdão), relacionado com o facto provado 57, com o seguinte teor: “Em ambas as circunstâncias, disparou subitamente e de surpresa sobre as vítimas, que não puderam se defender.”.
E aqui, sempre se poderia colocar a questão de saber se não estaria efectivamente preenchida a alínea h), do nº 2, do art. 132º, do C. Penal (redacção anterior à da Lei nº 59/2007) ou seja, a de ter o recorrente actuado utilizando um meio insidioso.
Meio insidioso é todo o meio enganador, subreptício, dissimulado ou oculto (Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., 39). O agente usa o engano, a traição para reduzir as possibilidades de defesa da vítima.
A qualificação de uma determinada conduta como actuação insidiosa passa pela análise da concreta situação da vítima e da forma como o agente executou o acto.
Resulta dos factos provados que, antes de ter dirigido a sua atenção para a assistente, o recorrente desferiu dois tiros em direcção da mãe daquela, tendo-a atingido com o primeiro. E fê-lo, empunhando a pistola de que era portador.
Assim, ainda que para a assistente a conduta do recorrente possa ter sido inesperada quando atingiu a Emília, certo é que com este acto revelou o recorrente a detenção da pistola.
E a partir deste momento cremos que não mais, relativamente à assistente, se poderia falar de insídia.
Por outro lado, também quanto a esta alínea entendemos que a factualidade provada não corporiza uma situação substancialmente análoga à prevista.
9.3. Concluindo, cometeu o recorrente na pessoa da assistente, um crime de homicídio tentado, p. e p. pelos arts. 22º, nº 1 e 2 , b), 23º, nº 2, 73º, nº 1, a) e b), e 131º, do C. Penal, na redacção anterior à da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro.
Das penas
10. Pretende o recorrente que, pugnando pela diferente tipificação do crime de homicídio qualificado tentado, a sua convolação para o crime de ofensa à integridade física grave, a pena respectiva terá que ser alterada.
Tendo sido improcedente a pretendida convolação, mas tendo-se entendido não ser o crime de homicídio tentado, qualificado, a questão suscitada pelo recorrente apenas se coloca agora relativamente à pena do crime tentado.
Decorre das disposições conjugadas dos arts. 23º, nº 2, 73º, nº 1, a) e b), e 131º do C. Penal (redacção anterior à da Lei nº 59/2007) que a moldura penal abstracta aplicável ao crime de homicídio tentado é a de 1 ano 7 meses e 6 dias de prisão a 10 anos e 8 meses de prisão.
Posto isto.
10.1. Dispõe o art. 40º, nº 1 do C. Penal, que tem por epígrafe “Finalidades da penas e das medidas de segurança”, que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente da sociedade.
Em caso algum, porém, e nos termos do nº 2 do mesmo artigo, a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Doutrina o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, 214 e 227 e ss.) que culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser determinada a medida concreta da pena. A prevenção reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto. A culpa, dirigida para a pessoa do agente do crime, constitui o limite inultrapassável daquela.
E assim, a medida da pena será dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – temperada pela necessidade de reintegração social do agente, e com o limite inultrapassável da medida da culpa (cfr., no mesmo sentido, Prof. Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida Concreta da Pena Privativa de Liberdade, 570).
A moldura penal abstracta de cada crime é fixada pelo legislador, tendo em conta todas as formas e graus de cometimento do facto típico, fazendo corresponder aos de menor gravidade o limite mínimo da pena e aos de maior gravidade o limite máximo da pena.
E a determinação da medida concreta da pena, balizada por estes limites, é então feita em função da culpa do agente e das necessidades de prevenção, devendo o tribunal para tal efeito a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal).
Entre outras circunstâncias, deve o tribunal atender ao grau de ilicitude do facto, ao seu modo de execução, à gravidade das suas consequências, ao grau de violação dos deveres impostos ao agente, à intensidade do dolo ou da negligência, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, à motivação do agente, às condições pessoais e económicas do agente, à conduta anterior e posterior ao facto, e à falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).
É muito elevado o grau de ilicitude do facto, o recorrente agiu com manifesta superioridade em razão da arma, reduzindo enormemente as possibilidades de defesa da assistente, e graves foram as suas consequências, atentas as lesões causadas.
É elevada a intensidade do dolo com que o recorrente actuou no caso, dolo directo.
O recorrente não tem antecedentes criminais.
Embora a confissão não conste dos factos provados, pode ler-se no acórdão recorrido que (fls. 42), “Em audiência confessou, na sua essencialidade, a materialidade dos factos cometidos. Fê-lo, todavia, numa atitude auto-vitimizante e auto-desculpante, sem indícios convincentes de arrependimento, e sem qualquer contributo significativo para a descoberta da verdade.”. Em suma, o recorrente confessou parcialmente (na sua materialidade) os factos.
Quanto à sua situação económica e familiar do recorrente, apurou-se que, na data da prática dos factos se encontrava desempregado há já sete meses, sendo sustentado pelo cônjuge.
Assim, porque as circunstâncias agravantes sobrelevam as atenuantes, impondo-se alguma severidade no juízo de censura a exercer sobre o recorrente, face à moldura penal abstracta atrás referida, fixa-se a pena para o homicídio tentado em 6 anos de prisão.
10.2. O recorrente foi também condenado no acórdão recorrido, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na pena de 18 anos de prisão, e pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, na pena de 10 meses de prisão, condenações estas que não foram objecto do recurso.
Cabe pois agora proceder ao cúmulo jurídico daquelas penas, com a pena agora fixada para o homicídio tentado.
Para tanto há que considerar em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art. 77º, nº 1, do C. Penal).
É muito elevado o grau de ilicitude dos factos, relativamente aos crimes contra a vida, como reprovável foi o seu modo de execução.
O recorrente agiu sempre com dolo directo.
O recorrente é portador de uma personalidade egocêntrica, com traços de desconfiança e hostilidade e tendência para a racionalização dos seus comportamentos.
A acumulação de infracções exige um severo juízo de censura a exercer sobre o recorrente e que deve resultar expresso na pena única a aplicar.
Assim, atenta a moldura penal abstracta que resulta do disposto no art. 77º, nº 2 do C. Penal – 18 anos de prisão a 24 anos e 10 meses de prisão – e o que atrás se escreveu, fixa-se agora a pena única, em 21 anos e 6 meses de prisão.
III. DECISÃO.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso.
Consequentemente, decidem:
A) Modificar a decisão da matéria de facto, relativamente aos pontos 22 e 45 dos factos provados que constam do acórdão recorrido, que passam a ter a seguinte redacção:
- Ponto 14, “Após o jantar, cerca das 21h 40m, a EM e sua filha TSMG saíram do prédio e encontraram o arguido, que tendo estado sentado, se levantava.”.
- Ponto 32, “Seguidamente, quando a TG, que já se encontrava fora do veículo, corria em direcção à sua mãe, o arguido, achando-se virado para ela, a uma distância de cerca de um metro, voltou a apontar a arma, desta vez à zona do pescoço e do tronco da mesma, e disparou contra ela um novo tiro, de cima para baixo e da direita para a esquerda, relativamente ao corpo da assistente.”.
B) Absolver o recorrente AAG da prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, i), do C. Penal vigente à data da prática dos factos.
C) Condenar o recorrente ASAG pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, nº 1 e 2, b), 23º, nº 2, 73º, nº 1, a) e b), e 131º, do C. Penal, na redacção anterior à da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, na pena de 6 (seis) anos de prisão.
D) Em cúmulo, condenar o recorrente AAG na pena única de 21 (vinte e um) anos e 6 (seis) meses de prisão.
E) Confirmar quanto ao mais, o acórdão recorrido.