Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | OLIVEIRA MENDES | ||
Descritores: | NULIDADE OU VÍCIOS DA SENTENÇA | ||
Data do Acordão: | 10/20/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | 1º JUÍZO - TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 374º, N.º 2, 379º, N.0 1, AL.A) E 410º, N.0 2, AL.B), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
Sumário: | O deficiente exame crítico das provas, quando a deficiência resulta da circunstância de se considerarem isentos e credíveis todos os depoimentos prestados e apenas se tomarem em conta, na decisão de facto proferida, alguns daqueles depoimen-tos em detrimento de outros, não constitui nulidade da sentença, antes configurando o vício da contradição insanável da fundamentação. | ||
Decisão Texto Integral: | *** Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra. No processo comum singular n.º 163/01, do 1º Juízo da comarca de Tomar, após a realização do contraditório foi proferida sentença que condenou cada um dos arguidos A..., B... e C..., devidamente identificados, como co-autores materiais de um crime de desobediência qualificada, previsto e punível pelo art.348º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 3,00 e, subsidiariamente, na pena de 53 dias de prisão. Foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por D..., com os sinais dos autos. Inconformados com a sentença, dela interpuseram recurso os arguidos e demandados, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da respectiva motivação: 1. A prova produzida, quer nos autos quer na audiência de discussão e julgamento, não permite concluir que os arguidos, em data indeterminada de Novembro de 2001, tivessem fechado o portão de acesso com correntes, e que esse facto fosse impeditivo da passagem; 2. Que os arguidos tivessem implantado o portão e as correntes em Novembro de 2001; 3. Que assim tivessem agido com o intuito de não cumprirem a decisão; 4. Que o queixoso, após Novembro de 2001, por facto praticado pelos arguidos, estivesse impedido de passar no caminho; 5. Que ao queixoso exista o direito a qualquer indemnização; 6. Que os arguidos Richard e Cristina tenham praticado qualquer facto; 7. A fundamentação indicada na douta sentença não justifica ou conduz à conclusão que o Meritíssimo Juiz indica; 8. Foram violados os artigos 348º, 1 e 2 e 31º, 2, al.b), ambos do CP. O recurso foi admitido. Respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público e o demandante, sendo que nas respectivas contra-motivações pugnam pela improcedência do recurso. O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido da nulidade da sentença por deficiente exame crítico das provas ou, pelo menos, da ocorrência do vício da contradição insanável da fundamentação. Ordenada e efectuada a transcrição da prova oralmente produzida no contraditório, colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir. *** Começando por delimitar o objecto do recurso, tendo em atenção as conclusões formuladas pelos recorrentes na motivação apresentada, verifica-se que a impugnação visa o reexame da matéria de facto sob a alegação de que a prova, designadamente a produzida em sede de contraditório, foi incorrectamente valorada e apreciada, posto que do exame e análise das declarações oralmente prestadas não é admissível concluir que os arguidos tenham praticado qualquer facto, concretamente que tivessem, em Novembro de 2001, implantado e/ou fechado o portão de acesso ao prédio do demandante com correntes, impedindo a passagem deste. Questão que também cumpre conhecer é a que foi suscitada pelo Exm.º Procurador-Geral Adjunto, qual seja a da eventual nulidade da sentença por deficiente exame crítico das provas ou a ocorrência do vício da contradição insanável da fundamentação. É do seguinte teor a decisão proferida sobre a matéria de facto ( - O que se segue é a transcrição ipsis verbis do texto da sentença recorrida.): «FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos: 1. Correram termos no 3º Juízo deste Tribunal Judicial da Comarca de Tomar, sob o nº 275-B/78, uns autos de restituição provisória de posse, instaurados por D... contra os arguidos, por apenso à acção sumária nº 275/98. 2. No âmbito daquele processo n º 275-B/78, por decisão de 24 de Maio de 2000, foi ordenado aos arguidos que restituíssem ... provisoriamente a posse do caminho de acesso ... à casa de habitação composta de rés de chão, com uma garagem, sita em Carvalheiros, com o nº 21-A, a confrontar a norte com Manuel António, sul com Olinda Marques, nascente com Joaquim Honório e poente com Olinda Marques, inscrita no artigo urbano da freguesia de Sta. Maria dos Olivais sob o nº 2472. 3. Caminho que tem uma largura de 2,5 m e 25 m de extensão. 4. Designadamente, ... retirando eventuais correntes ou quaisquer outros meios que impeçam a passagem. 5. Abstendo-se, por qualquer forma, de perturbarem o acesso de D... e familiares à casa, seja a pé, seja de carro. 6. Os arguidos tiveram conhecimento do conteúdo daquela decisão. 7. No dia 30 de Maio de 2000, foram pessoalmente notificados para, no prazo de 24 horas, desobstruírem a referida passagem, sob pena de incorrerem na prática de um crime desobediência qualificada. 8. A arguida A... é mãe de dos arguidos B... e C.... 9. A acção sumária nº 275/98 encontra-se pendente. 10. Em data indeterminada, mas depois de Novembro de 2001, os arguidos fecharam o portão de acesso com correntes. 11. Em virtude do que, Alfredo Duarte e os seus familiares tiveram de passar por um terreno de um vizinho para entrar e sair de casa. 12. Os arguidos actuaram em conjugação de esforços e execução de plano previamente traçado. 13. Os arguidos estavam cientes de que a ordem contida na decisão exarada nos autos de restituição provisória de posse nº 2715-B/78 era formal e substancialmente legítima e foi proferida pela entidade competente. 14. Ordem que, livre, deliberada e conscientemente, não acataram, cientes que as suas condutas eram vedadas por lei. 15. A conduta dos arguidos e demandados limitaram quotidianamente o demandante na utilização da passagem. 16. Tal conduta determinou incómodos, repulsa e emoção para o demandante Mais se provou que: 17. A arguida MARIA MANUELA FERNANDES aufere uma reforma mensal de Esc. 60.000$00. 18. Tem a 4ºclasse. 19. Não tem antecedentes criminais. 20. A arguida CRISTINA FERNANDES vive com a mãe. 21 Aufere o vencimento mensal de Esc. 60.000$00. 22. Tem o 12º ano. 23. Não tem antecedentes criminais. 24. O arguido C... vive com a mãe. 25. Aufere o vencimento mensal de Esc. 60.000$00. 26 Tem o curso de engenharia. 27. Não tem antecedentes criminais. E não se provaram os seguintes factos: 1. Em data indeterminada, mas no mês de Novembro de 2001, os arguidos edificaram dois muros, um de cada lado do caminho que dá acesso à residência de D.... 2. Inviabilizaram, assim, a passagem do veículo daquele último para a respectiva garagem. 3. Dias depois, colocaram naquele caminho vários blocos de cimento, bem como as grades que os transportavam. 4. Obstruíram, assim, a dita passagem. A convicção do Tribunal fundou-se com base na apreciação e valoração dos seguintes meios de prova. Os arguidos nas suas declarações negaram ter construído dois muros, um de cada lado do caminho. Negaram, também, terem colocado blocos de cimento, bem como as grades que os transportavam no caminho, de modo a impedirem a passagem do ofendido, pois limitaram-se a pavimentá-lo, fazendo-o de maneira a não estorvar a circulação por ele. Confirmaram a colocação de uma corrente no portão, mas disseram que a mesma nunca teve cadeado. O assistente declarou que, de facto, não foram construídos dois muros, um de cada lado do caminho, mas um outro muro na extrema norte do prédio dos arguidos, o qual lhe complicava o acesso com a sua viatura ao seu prédio. Confirmou que os arguidos colocaram blocos de cimento, bem como as respectivas grades, a obstruir a passagem e que colocaram uma corrente com cadeado no portão de acesso àquela passagem, o que impedia o acesso a sua casa pelo mesmo, tendo que passar pelo terreno de um vizinho. Esclareceu que estes factos causaram-lhe incómodos e uma grande perturbação. A testemunha Vítor Santos confirmou as declarações da testemunha anterior. As testemunhas António de Oliveira e José Francisco relataram factos ocorridos antes das datas constantes na acusação. As testemunhas Maria Alice Pereira, Sérgio Ribeiro e Henriqueta Nunes afirmaram, também, que os arguidos não construíram os dois mencionados muros, que não puseram blocos nem grades na passagem e que a corrente não tinha cadeado. Esclareceram, ainda, que os arguidos nunca impediram a passagem do ofendido e seus familiares pela passagem. A testemunha Virgílio José, que procedeu a obras no prédio dos arguidos, disse que construiu um muro na extrema norte daquele e que pavimentou com tacos de cimento a passagem em questão, o que fez em três dias, durante os quais sempre pôs o material usado nas bermas da passagem, de modo a não obstruí-la. Atendeu às certidões juntas de fls. 3 a 8, de fls. 12 a 14, de fls. 22, de fls. 23 e de fls. 24, bem como de fls. 121. As testemunhas depuseram com isenção e objectividade, pelo que mereceram credibilidade. Da prova produzida, o tribunal só pôde concluir que os arguidos desobedeceram à ordem que lhes foi notificada, por terem colocado correntes no portão de forma a obstruírem a passagem, a qual só foi retirada em 15 de Março de 2002, tal como consta no autos de restituição de posse de fls. 121, o que obstruiu o acesso de D..., e seus familares, à sua residência. Baseou-se, por fim , nos C.R.C juntos aos autos. Quanto aos factos não provados, não foi produzida prova em relação aos mesmos». *** Nulidade da Sentença Entende o Exm.º Procurador-Geral Adjunto que a sentença recorrida enferma de nulidade por deficiente exame crítico das provas ou, no mínimo, do vício da contradição insanável da fundamentação, porquanto na decisão proferida sobre a matéria de facto se consignou que as testemunhas depuseram com isenção e objectividade, pelo que mereceram credibilidade – referindo-se assim indiscriminadamente a todas as testemunhas – quando é certo que o tribunal a quo apenas valorou e considerou na decisão as declarações do demandante e de seu filho, declarações que, segundo consta da própria fundamentação, colidem frontalmente com as declarações prestadas pelos arguidos e pelas testemunhas Maria Alice Nunes Pereira Bento, Sérgio Miguel Simões Ribeiro e Henriqueta Rosa Nunes, posto que enquanto os primeiros afirmaram, além do mais, que os arguidos colocaram uma corrente com cadeado no portão que impedia o acesso à casa do demandante, os segundos referiram que, embora o portão tivesse uma corrente, não havia qualquer cadeado e que, sendo aquela amovível, nunca foi impedida a entrada do demandante ou dos seus familiares. Decidindo, dir-se-á. A contradição da fundamentação, designadamente no exame crítico das provas que serviram de base para formar a convicção do tribunal, não constitui nulidade da sentença, consabido que de acordo com o artigo 379º, n.º1, al.a), do Código de Processo Penal, só a falta ou omissão do exame crítico das provas constitui tal invalidade ( - O artigo 379º, do Código de Processo Penal, contém uma enumeração taxativa das situações, causas ou motivos da nulidade da sentença.). Tal anomia pode, porém, constituir o vício da sentença previsto no artigo 410º, n.º 2, al.b), caso se trate de uma contradição insanável. Do exame da decisão proferida sobre a matéria de facto, mais concretamente do segmento em que o tribunal a quo indicou e procedeu ao exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, resulta, como bem observou o Exm.º Procurador-Geral Adjunto, que as pessoas ouvidas na audiência de discussão e julgamento apresentaram versões diferentes e contraditórias sobre os factos objecto do processo, sendo que, apesar disso, o tribunal a quo considerou todos os depoimentos prestados isentos e objectivos, razão pela qual consignou atribuir-lhes credibilidade. Por outro lado, conquanto se haja consignado em sentença que a todos os depoimentos foi atribuída credibilidade, a verdade é que o tribunal a quo acabou por valorar alguns dos depoimentos em detrimento de outros. Deste modo, dúvidas não restam de que o tribunal a quo incorreu no vício da contradição insanável da fundamentação. A ocorrência de tal vício determina, em princípio, o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do artigo 426º, n.º 1, do Código de Processo Penal. No entanto, no caso vertente sucede que o tribunal de recurso dispõe de poderes de cognição amplos, designadamente de facto e de direito, o que lhe permite decidir a causa sem o recurso ao reenvio do processo, pois que tendo acesso a toda a prova oralmente produzida na audiência está em condições de reexaminar aquela e, assim, proferir decisão sobre a matéria de facto expungindo o vício cometido pelo tribunal recorrido. Incorrecta Valoração e Apreciação da Prova Reexaminado a matéria de facto verificamos que, ao contrário do sustentado pelo tribunal a quo, o demandante D... – transcrição de fls.539 a 617 – referiu insistentemente, a instâncias do próprio tribunal, que após a notificação aos arguidos da decisão proferida na acção de restituição provisória de posse n.º 275-B/78, os mesmos não mais voltaram a colocar a corrente no portão. Por outro lado, certo é que o demandante, apesar de repetidamente instado pelo tribunal para esclarecer de que forma é que a passagem lhe foi impedida pelos arguidos, a verdade é que não conseguiu dar qualquer explicação coerente. Por outro lado, ainda, verifica-se que, quer os arguidos (transcrição de fls.466 a 538) quer as testemunhas Maria Alice Nunes Pereira Bento (transcrição de fls.295 a 322), Sérgio Miguel Simões Ribeiro (transcrição de fls.322 a 375) e Henriqueta Rosa Nunes (transcrição de fls.376 a 420), referem que o acesso ao prédio do demandante, após a notificação da decisão proferida na acção de restituição provisória de posse, nunca esteve ou foi impedido, tendo esclarecido que a corrente colocada no portão não dispunha de cadeado ou de qualquer outro dispositivo impeditivo da abertura daquele. Deste modo, tendo por certo que só a testemunha Vítor Manuel Arsénio Duarte dos Santos (transcrição de fls.213 a 265), filho do demandante, depôs no sentido de que os arguidos, após notificados da decisão proferida na acção de restituição provisória de posse n.º 275-B/98, impediram a passagem ao demandante e seus familiares, mediante a colocação de uma corrente e respectivo cadeado no portão, há que reconhecer, como alegam os recorrentes, que a prova foi incorrectamente valorada e apreciada ( - A prova foi erradamente valorada já que o depoimento da testemunha Vítor Manuel Arsénio Duarte Santos não deve ser considerado isento e, consequentemente, credível, quer por se mostrar isolado quer por provir de pessoa ligada ao demandante por laços de sangue (pai/filho).) pelo tribunal a quo. Com efeito, a prova produzida não permite imputar aos arguidos os factos dados como provados nos números 10, 11, 12, 14, 15 e 16 da decisão de facto, factos que, por isso, ora se consideram como não provados, alterando-se aquela decisão na parte correspondente. *** Não se provando os factos nucleares pelos quais os arguidos foram acusados, ou seja, os factos preenchentes do tipo de crime aos mesmos imputado – desobediência qualificada – é evidente que a acusação pública deduzida terá de ser julgada improcedente e, consequentemente, dela absolvidos os arguidos. O mesmo sucede relativamente ao pedido de indemnização civil formulado pelo demandante. *** Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, julgando-se improcedente a acusação pública deduzida contra os arguidos A..., B... e C..., bem como o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante D... e, consequentemente, deles absolvendo aqueles. Não são devidas custas criminais. Custas cíveis pelo demandante em ambas as instâncias. *** Do exame dos autos resulta que na sequência do acórdão desta Relação a ordenar a efectuação de transcrição, estiveram os mesmos a aguardar despacho na 1ª instância por período superior a 4 (quatro) meses. Uma vez que não vemos razão ou justificação para tal atraso, ordena-se a extracção de certidão deste despacho e de fls.209 dos autos e sua remessa ao Conselho Superior da Magistratura para os efeitos tidos por convenientes. *** |