Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8525/16.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL BANCÁRIA
CHEQUES
CONFERÊNCIA DE ASSINATURA
ABUSO DE DIREITO NA MODALIDADE DE ‘TU QUOQUE’
Data do Acordão: 11/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – J.L. CÍVEL DE COIMBRA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: REGULAMENTO DO SISTEMA DE COMPENSAÇÃO BANCÁRIA (SICOI).
Sumário: I - O banco sacado antes de proceder ao pagamento do cheque deve proceder à conferência da assinatura do sacador, comparando-a com o espécime existente no banco.

II - O saque é irregular quando se verificar divergência de assinatura, assinatura de titular que não conste da ficha de abertura de conta, insuficiência de assinatura ou assinatura não autorizada para realizar determinado saque.

III - A circunstância do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI) permitir que os cheques cujos montantes sejam iguais ou inferiores a determinada verba não sejam aferidos pela entidade sacada se colocados na rede interbancária, não sendo assim sujeitos a qualquer exame no que concerne à regularidade da sua emissão, não conduz à irresponsabilidade do banco, que tem que assumir o risco decorrente dessa conduta propositadamente omissiva, devendo indemnizar a clientela em todos os casos em que, não obstante se tratar de um saque irregular, o cheque é pago.

IV - Na situação dos autos, o banco sacado, em função dessa praxis, não procedeu à conferência das assinaturas em oito cheques que se mostram assinados por duas pessoas que não correspondem às que, de acordo com a ficha de assinaturas da conta em causa, tinham poderes para os emitir, mas que eram então sócios e gerentes da sociedade a quem pertencia a conta bancária, embora ainda não constassem do registo comercial enquanto tal.

V- Verifica-se que o A. na ação, no período em que esses cheques foram emitidos, continuou a ser sócio da sociedade em causa e seu gerente, sem que no entanto pudesse sozinho emitir cheques da conta em causa, na medida em que os mesmos só podiam ser emitidos por ele e outro gerente que renunciara à gerência, mostrando-se já registada essa renúncia.

VI - Estava o mesmo obrigado, nessas circunstâncias, a entregar a caderneta de cheques ao banco e a relatar ao mesmo as circunstâncias factuais em função das quais tinham entrado para a gerência da sociedade duas outras pessoas que não coincidiam com as que de acordo com a ficha de assinaturas tinham poderes para assinar os cheques.

VII – Não o tendo feito, manteve a possibilidade de, se movimentos nela houvesse que sendo provocados por cheques assinados pelos novos gerentes, não fossem do seu agrado, sempre os poder paralisar invocando a ilicitude do comportamento do banco.

VIII - Foi o que fez na presente ação, depois que, tendo aqueles oito cheques sido pagos por recurso ao plafond de crédito existente em contrato de abertura de crédito em conta corrente por cujo pagamento se responsabilizara pessoalmente, bem como a A. sua mulher, tendo para tal os mesmos assinado uma livrança, tendo deixado de existir plafond nessa conta, o banco não pagou um nono cheque.

IX - Pede ele e a mulher que se declare que o banco incumpriu culposamente as condições de movimentação da conta de que era titular a sociedade; que o mesmo incumpriu culposamente o contrato de abertura de crédito por conta corrente, quando efectuou o pagamento dos cheques, por conta desse crédito; que é ilegal o saldo negativo dessa conta criado para fazer face ao pagamento desses cheques, e por isso se declare que eles, como garantes das responsabilidades emergentes dessa conta, não têm ou não tinham, a obrigação de assumir o pagamento daquele saldo; e se condene o banco a pagar-lhes, a um e a outro, indemnização por danos patrimoniais e danos morais que ambos sofreram em consequência de, por virtude daquele não pagamento, o nome dos mesmos ter sido feito constar da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal.

X - Entende-se que os AA. agem na ação em abuso de direito na modalidade de tu quoque, pois quem violou primeiro a convenção de cheque ao omitir ao banco as alterações societárias entretanto ocorridas e não lhe fazendo entrega da caderneta de cheques foi o A., sendo que quando ele e a mulher acusam o banco de não ter cumprido a obrigação de ter verificado a regularidade dos saques dos acima referidos cheques se estão a prevalecer daquela sua primeira infração. Ora «aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo, a outrém, o acatamento das consequências daí resultantes».

XI - A A., colocando-se ao lado do marido como lesada pelo comportamento do banco, está também ela a aproveitar a situação ilícita que o marido criou junto deste e, por isso, também ela age em abuso de direito.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I – P... e mulher, C..., instauraram ação declarativa de condenação com forma de processo comum contra o  Banco S..., S.A., pedindo que:

- se declare que o réu incumpriu culposamente as condições de movimentação da conta nº ... de que era titular a P..., Lda., sediada no ...;

- que se declare que o réu incumpriu culposamente o contrato de abertura de crédito por conta corrente, denominado Conta Corrente Negócios quando efectuou o pagamento dos cheques, por conta desse crédito;

- que se declare a ilegalidade do saldo negativo da Conta Corrente Negócios criado para fazer face ao pagamento desses cheques e em consequência se declare que os autores como garantes das responsabilidades emergentes dessa conta não têm ou não tinham, a obrigação de assumir o pagamento daquele saldo;

- que se condene o réu a pagar aos autores uma indemnização por danos materiais de 6.250,29 €, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação, pelo facto de terem sido obrigados a efectuar um pagamento indevido dessa quantia no processo de execução nº ...;

- que se condene o réu a pagar aos autores uma indemnização pelos restantes danos materiais que sofreram ou que venham a sofrer em resultado da sua conduta ilegal quando os mesmos forem quantificados;

- que se condene o réu a pagar ao autor uma indemnização de 17.500,00 € e a pagar à autora uma indemnização de 12.500,00 € para compensação dos danos morais que ambos sofreram

Alegam, em síntese, que em 1996 o A. marido, conjuntamente com A... e S..., constituíram a sociedade P..., Lda, e que sendo sócios e únicos gerentes dessa sociedade, nessa qualidade, em 14/06/2005, abriram uma conta bancária em nome da sociedade no balcão do banco R.. Ficou estipulado e exarado na respetiva ficha de abertura de conta que as únicas pessoas com poderes para movimentar a conta eram o A. e S..., na qualidade de sócios-gerentes da sociedade, e que a movimentação dos fundos da conta, designadamente através de cheques, carecia necessariamente da assinatura conjunta dos dois. Em 10/07/2007 os AA. cederam a P... uma quota na sociedade, e o sócio C...  e mulher cederam uma quota a L... O sócio S... já cedera a sua quota na sociedade em 22/01/2007, tendo renunciado à gerência em 16/01/2007. Foram nomeados gerentes da sociedade os novos sócios, P... e L..., mantendo-se como gerente o ora A., P... Contudo, a nomeação dos dois novos gerentes não foi objecto de registo comercial. O A. só renunciou à gerência em 22/10/2007, e tal renúncia só foi objecto de registo comercial em 16/11/2007. Apesar destas alterações na vida da sociedade, não ocorreu qualquer alteração na ficha bancária acima referida. E apesar disso, os novos (mas não únicos) gerentes da sociedade, nomeados a partir de Setembro de 2007, sacaram, pelo menos, 9 cheques, no valor total de 17.526,1€ - cheques onde figuram apenas as assinaturas de P... e L..., pessoas que nos termos do contrato exarado na ficha bancária não tinham poderes para assinar cheques e para movimentar a conta bancária. Com excepção de um cheque de 7.500,00 €, emitido em 23/01/2008, todos os restantes  foram emitidos em data anterior à da renúncia do A. à gerência da sociedade. Apesar disso, o R. pagou os montantes apostos nos cheques, com o que violou grosseiramente as condições de movimentação da conta estabelecidas no contrato de abertura da mesma. Acresce que em 11/10/2006 fora celebrado entre o R. e P... um contrato de abertura de crédito por conta corrente, denominado "Conta Corrente Negócios", tendo ficado os AA. como garantes das responsabilidades emergentes desse contrato de abertura de crédito e tendo subscrito e avalizado uma livrança em branco com autorização de preenchimento. Em resposta a uma reclamação apresentada pelo A. marido no Banco de Portugal, o R. veio dizer, em 07/08/2013, que oito dos cheques referidos foram pagos pelo banco por via do recurso ao crédito resultante daquele contrato de abertura de crédito. Mais disse que o cheque no valor de 7.500,00€ não foi pago, por se ter esgotado o limite de crédito concedido através do referido contrato. Em 28/5/2013 o R. enviou aos AA. uma carta, através da qual denunciou o contrato de abertura de crédito, e alertou nessa carta para a necessidade de diligenciarem a regularização dos montantes em dívida na data do vencimento. Em 10/03/2014 o M... recusou uma proposta de crédito apresentada pela sociedade C..., Lda, da qual os AA. são sócios, pelo facto de haver na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal um registo de responsabilidade de crédito vencido dos AA. no valor de 5.010,00 €, responsabilidade que deriva da garantia prestada pelos autores no contrato de abertura de crédito referido e que resulta do não pagamento do referido cheque emitido em 23/01/2008. Em Junho de 2014 o R. instaurou execução contra os AA. e estes, para evitarem mais transtornos e para limparem o registo negativo do Banco de Portugal, procederem ao pagamento da dívida exequenda, juros e despesas da execução, num montante total de 6.139,69 €, antes de terem sido citados para a execução. Viram penhorados um veículo automóvel e uma mota no âmbito da execução, tendo pago a quantia de 110,60€ para cancelar os registos das penhoras. Entendem que estes prejuízos são consequência directa da acção ilícita do R., já que eram garantes apenas de responsabilidades resultantes de movimentações regulares e lícitas da conta bancária da sociedade, e o R. não devia ter pago tais cheques, e muito menos fazê-lo com utilização do crédito da Conta Corrente Negócios, da qual eram garantes e avalistas os AA. O R. actuou de modo ilícito e culposo e a sua acção causou danos materiais e morais aos AA.- os fornecedores passaram a exigir os pagamentos de mercadorias a pronto, quando antes lhes concediam crédito de prazo de 30 ou 60 dias, e foi-lhes doloroso enfrentar os funcionários dos Bancos com quem trabalham quando lhes chamavam a atenção para a informação negativa do Banco de Portugal; sentiram cólera, indignação, vergonha e desgosto, ficaram ansiosos, tendo passado a dormir mal, tendo menos apetite e perdendo alegria de vida.

O R. contestou, arguindo as exceções de ilegitimidade e caso julgado, e alegou que os AA. não invocam qualquer vício da vontade que legitime pôr em causa o pagamento que voluntariamente realizaram no âmbito da execução, pelo que é infundado o pedido de indemnização, mas se assim se não entender, sempre está precludida a sua pretensão, pois o momento adequado para o fazerem seria a dedução de embargos à execução. Alega ainda abuso de direito, entendendo que os AA. foram  responsáveis pela situação, por não terem sido diligentes na negociação com os adquirentes das quotas, não solicitando a sua desvinculação como avalistas da sociedade P..., Ldª (independentemente de saber se o banco aceitaria a sua desvinculação), bem sabendo, ou não devendo ignorar, que a dita sociedade podia, a todo o momento, utilizar o crédito aberto em seu nome e por si garantido. Servem-se de um facto a que deram causa – não comunicação atempada ao banco da sua saída da sociedade - para tentarem recolher um benefício. Por outro lado, as pessoas que sacaram os cheques em nome da sociedade eram aqueles que efectivamente tinham legitimidade para tal, já que eram os (novos) gerentes constituindo venire contra factum proprium que quem está obrigado a comunicar as mudanças na vida sociedade (maxime alterações de gerência), as omita ao banco e a seguir venha invocar que o pagamento dos cheques só poderia ser feito com a assinatura de pessoas que já não vinculavam a sociedade. Acresce que aquando da recepção da carta (notificação para regularização de cheque devolvido por falta de provisão) o A. não informou o banco de que já não era gerente, tendo o cheque sido regularizado, pois, caso contrário, a sociedade entraria na Listagem de Utilizadores de Risco do Banco de Portugal. Invocam ainda que os AA. sabem bem que os cheques que invocam são truncados, cheques em que os bancos, de acordo com o sistema SICOI, elaborado pelo Banco de Portugal, atento o seu montante, não verificam as assinaturas, e pretendem aproveitar-se dessa realidade conjugada com a omissão de comunicação atempada de mudança de gerência na sociedade para tentar obter um benefício (ilícito). Por último, bem sabem os AA. que se a sociedade desse uma ordem de transferência em vez de emitir os referidos cheques, o R. pagaria ao abrigo do plafond de crédito disponível. A R. alega ainda que o referido cheque de 7.500€ não foi pago, mas regularizado mediante entrega do original no balcão, o que impediu a rescisão da convenção do cheque.

 

Tendo tido lugar audiência prévia, foi nela proferido despacho saneador - no qual foram julgadas improcedentes as exceções de caso julgado e ilegitimidade - foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, declarando que o R. incumpriu culposamente as condições de movimentação da conta nº ... de que era titular a P..., Lda.; declarando que o R. incumpriu culposamente o contrato de abertura de crédito por conta corrente, denominado Conta Corrente Negócios, quando efectuou o pagamento dos cheques por conta desse crédito, bem como a irregularidade do saldo negativo da Conta Corrente Negócios criado para fazer face ao pagamento desses cheques e, em consequência, que os AA. não tinham a obrigação de assumir o pagamento daquele saldo; condenando o R. a pagar aos AA. uma indemnização por danos patrimoniais no montante de 6.250,29€, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação; condenando ainda o R. a pagar ao A. uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de 10.000,00€, e a pagar à A. uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de 7.500,00€.

II - Do assim decidido apelou o R., tendo concluído as respetivas alegações do seguinte modo:

...

Os AA. ofereceram contra alegações, que  concluíram nos seguintes termos:

...

III – O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

...

IV – Operando o confronto entre as conclusões do recurso e a sentença recorrida resultam para apreciação, correspondendo ao objeto do presente recurso, as seguintes questões:

A- a reapreciação da matéria de facto que foi objeto de impugnação pelo  apelante;

B-  se, sendo esta julgada procedente, a matéria de facto assim provada não permitirá que se conclua pela existência de danos patrimoniais e não patrimoniais por parte dos AA.;

C- se, de todo o modo, os danos não patrimoniais invocados não merecem a tutela do direito e, em qualquer caso, se os mesmos não justificam os valores das indemnizações conferidas;

D- se não se verifica nexo de causalidade entre os danos invocados e o facto ilícito;

E- se a actuação dos AA. nos presentes autos configura abuso de direito na modalidade de “tu quoque”;

F- se, caso se tenha dado como provado que foram os AA. que pagaram a  quantia exequenda na execução, esse pagamento voluntário precludiu os direitos que pretendem exercer nesta ação;

G- se, de todo o modo, se verifica culpa do lesado.

A- O Banco apelante impugnou a seguinte matéria de facto, pretendendo que a mesma seja julgada como não provada ou, no que a alguma respeita, provada apenas em parte: 

...

Importa saber se a prova produzida permite que se dê como provado que “Os Autores não solicitaram a sua desvinculação como avalistas da sociedade P..., Lda.” (facto 13), o que, obviamente, se relaciona com o facto que o banco/apelante pretende que se dê como provado que “os Autores sabiam que tinham dado garantias pessoais no crédito conta corrente onde se veio a verificar o débito resultante do pagamento dos cheques em causa e pediram a sua desvinculação, que foi recusada pelo Réu”.

Note-se que foi alegado pelo R. que os AA. «não foram diligentes na negociação com os adquirentes das quotas, não solicitando a sua desvinculação como avalistas da P..., Lda» (cfr art 28º da contestação).

Sendo manifesto que os AA. não podiam desconhecer serem garantes do contrato Conta Corrente Negócios, como consta desse próprio contrato – fls 108 e ss dos autos, e respectiva cláusula 9ª que rege a respeito de “Garantias e Caução”- e, na verdade,  o A., nas suas declarações, admitiu saber que, mesmo saindo da sociedade, continuava como garante nesse contrato - já não se entende que a prova produzida tenha sido no sentido de  que os AA.  pediram a sua desvinculação nesse contrato e que a mesma lhes foi recusada.

É verdade que a testemunha J... o referiu, dizendo concretamente, «Foi pedido por parte do senhor P... essa desoneração, em que o banco lhe comunicou por escrito que não o desonerava dessa responsabilidade, porque não tinha que o fazer».

Mas foi o único depoimento nesse sentido e, por isso, e não estando junto aos autos o escrito a que a testemunha aludiu, não se dará como provado, nem que “Os AA. não solicitaram a sua desvinculação como avalistas da sociedade P..., Lda.”, nem tão pouco que tenham pedido a sua  desvinculação, e que a mesma tenha sido recusada pelo R., sendo, afinal, o mais que a apelante pretendia ver provado - os AA. sabiam que tinham dado garantias pessoais no crédito conta corrente onde se veio a verificar o débito resultante do pagamento dos cheques em causa - matéria de direito.

É verdade, como o apelante o refere, que nenhuma prova foi feita relativamente ao facto de que “Pelo menos alguns dos montantes dos cheques não foram utilizados para pagar contas ou despesas da sociedade.” Apenas o A. aludiu a essa circunstância nas suas declarações, mas referiu-a em termos a que não pode dar-se maior valor do que correspondendo a uma sua mera suspeita ou conjectura.

Por isso, não se dá como provado o facto 19.

...

Deste modo e concluindo-se:

Julga-se como não provado que:

- “Os Autores não solicitaram a sua desvinculação como avalistas da sociedade P..., Lda.” (facto13);

-“Pelo menos alguns dos montantes dos cheques não foram utilizados para pagar contas ou despesas da sociedade.” (facto 19);

- “O cheque de 7.500,00€, emitido em 23/01/2008, foi pago (facto 22), resultando apenas provado a esse facto e ao 23, que “Relativamente ao cheque de 7.500,00€, emitido em 23/01/2008, o R., em 30/01/2008, enviou uma carta ao autor a solicitar a regularização desse cheque, que não foi pago.”;

- “Para evitar mais transtornos e para limpar o registo negativo do Banco de Portugal o autor pagou a dívida exequenda, juros e despesas da execução num montante total de 6.139,69€ ainda antes de os ora autores terem sido citados para a execução” (facto 29);

-“Os autores viram ainda penhorado um veículo automóvel e uma mota no âmbito da execução, tendo pago a quantia de 110,60€ para cancelar os registos das penhoras.”(facto 30);

- “Custou aos autores enfrentar os funcionários dos Bancos com quem trabalham quando lhes chamavam a atenção para a informação negativa do Banco de Portugal.” (facto 34)

-“O autor por diversas vezes foi ao balcão onde estava sediada a conta e alertou os funcionários para o comportamento do Banco por ter efectuado o pagamento dos cheques e dizendo que quer ele quer a esposa não podiam ser responsabilizados pessoalmente por esses movimentos bancários.” (facto 36), passando a constar desse facto, que, “o A. não comunicou ao banco a mudança na gerência da sociedade”.

            B- Tendo sido dado como não provado - factos 29 e 30 – que  “Para evitar mais transtornos e para limpar o registo negativo do Banco de Portugal o autor pagou a dívida exequenda, juros e despesas da execução num montante total de 6.139,69€ ainda antes de os ora autores terem sido citados para a execução” e “Os autores viram ainda penhorado um veículo automóvel e uma mota no âmbito da execução, tendo pago a quantia de 110,60€ para cancelar os registos das penhoras.”, e sendo o dano um elemento, por definição, imprescindível à responsabilidade civil, há que adiantar que –e  independentemente da presença ou não dos demais pressupostos desta responsabilidade - não pode a ação proceder relativamente ao pedido de condenação do R.  a pagar aos AA. uma indemnização por danos materiais de 6.250,29 €, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação, pelo facto de terem sido obrigados a efectuar um pagamento indevido dessa quantia no processo de execução nº ..., como vinha pedido, nesse segmento,  procedendo, desde já, a apelação. 

Tendo os AA. pedido também – e ainda em sede de reparação de danos patrimoniais - que se condenasse o R. a pagar-lhes «uma indemnização pelos restantes danos materiais que sofreram ou que venham a sofrer em resultado da sua conduta ilegal quando os mesmos forem quantificados», desde o momento em que na decisão recorrida nada se disse, e nada se decidiu relativamente a este  pedido, não tendo os AA. interposto recurso  em função dessa  omissão de pronúncia, e tão pouco tendo procedido em conformidade com o nº 2 do art 636º CPC, procedendo à ampliação do âmbito do recurso, vedado está a este tribunal conhecer do pedido em causa, desde logo para que não se desse o caso de violar o disposto no nº 5 do art 635º CPC. 

C - Provaram-se, no entanto, danos de ordem não patrimonial, pelo que, se mais pedidos não houvesse a implicarem o conhecimento das demais questões colocadas no recurso, sempre a presença de danos não patrimoniais o exigiria.

E, como é evidente, não pode simplista e liminarmente recusar-se o  ressarcimento desses danos dizendo-se que não merecem a tutela do direito, por estarem alegados apenas “aborrecimentos e incómodos”, até porque não foram apenas “aborrecimentos e incómodos” que os AA. alegaram – provou-se, com efeito que os mesmos sentiram ansiedade, indignação, vergonha e desgosto (facto 35). Naturalmente que em consequência de haver na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal um registo de responsabilidade de crédito vencido em seu nome no valor de 5.010,00 € e em função dessa circunstância, já de si negativa, terem visto recusado pelo M... a proposta de crédito que lhe tinham apresentado, o que lhes implicou dificuldades de pagamento, tendo acabado por terem  visto  afectada  a sua reputação de confiança e credibilidade junto de fornecedores, de tal modo que fornecedores houve que  passaram a exigir os pagamentos de mercadorias a pronto quando antes concediam crédito de prazo de 30 ou 60 dias.

De facto, foi intenção do legislador excluir da ressarcibilidade os danos não patrimoniais insignificantes, destituídos de gravidade, bem como aqueles, em relação aos quais, em função da consciência jurídica vigente, se mostre desrazoável a sua compensação pecuniária.

Mas não podem classificar-se os danos em referência – ansiedade, indignação, vergonha e desgosto - como «ofensas bagatelares», nas palavras de Rui Soares Pereira[1], «pretensões caprichosas ligadas a ofensas mínimas, que ferem apenas a hipersensibilidade individual, não afectam o núcleo individual do interesse em causa e são inidóneas para superar o limite da tolerabilidade civil». Tão pouco estarão em causa danos em que a respectiva compensação pecuniária se mostrasse contrária à Moral e à Ordem Pública, pese embora o que a final se concluirá. Por isso, porque «os fins/utilidades não patrimoniais frustrados se mostram juridicamente relevantes» – estando-nos aqui a servir das  palavras de Rui Soares Pereira -  se se verificar  a presença dos demais requisitos da responsabilidade civil, haverá, em princípio, que ressarcir os AA. dos danos em causa. 

Relega-se, pois, o juízo a respeito da adequação dos montantes indemnizatórios  fixados na 1ª instância  para depois da aferição daqueles requisitos.

D- Importa ainda em relação aos danos que se provaram aferir se assiste razão à apelante quando exclui que haja nexo de causalidade entre o facto ilícito e (tais) danos.

Refere a mesma em abono desse entendimento (conclusão 36ª), não ter ficado  demonstrado que “sem a ocorrência do facto (pagamento dos cheques), não se teria produzido o dano, pois, atendendo a que os pagamentos poderiam ter sido efectuados também por transferência bancária, em vez dos cheques, e que os AA. se mantinham garantes pessoais do contrato Conta Corrente Negócios, qualquer débito resultante de pagamentos efectuados ao abrigo desta conta, fosse por que meio de pagamento fosse, poder-lhes ia ser imputado”; mais referindo na conclusão 37ª: “Mesmo que os cheques nunca tivessem sido emitidos e pagos, essas quantias teriam sido pagas por outra via, ao abrigo igualmente do plafond do contrato Conta Corrente Negócios, e aí gerado um débito, pelo que esse valor poderia sempre ser exigido posteriormente aos AA., na qualidade de garantes pessoais, que como tal nunca foram desvinculados pelo Banco, não se podendo por isso concluir que do facto do banco ter permitido o pagamento dos cheques (automaticamente, através da compensação no sistema SICOI – como está dado como provado), resultou o dano alegado pelos AA., isto é, o registo no Banco de Portugal, a perda de crédito dos fornecedores, os danos morais e o pagamento das quantias devidas no processo executivo”.

É verdade que através de transferências bancárias [2]- quanto às quais impera a abstração relativamente à relação fundamental e o dever de não ingerência do banco  [3] - teria sido possível que se tivesse vindo a verificar  um débito  na conta bancária da sociedade que, porque, como sucedeu com o cheque de 7.500,00€, não viesse a ser pago pelo plafond de crédito da Conta Corrente Negócio, viesse a ser imputado aos AA. enquanto garantes no contrato em causa, gerando para os mesmos os danos que em substância aqui invocam.

Sucede que essa situação não se verificou.

Constituiria, pois, não uma causa real, mas meramente  virtual.

            Diz-se causa virtual de um dano certo facto que o produziria, se ele não fosse produzido por outro. Por outras palavras - um dano é causado por um facto, e este facto é a causa real, operante e efectiva; mas se o prejuízo não tivesse sido causado por esse facto, tê-lo-ia sido por outro que se apresenta como conjectural ou hipotético. Ou seja:  «O dano produziu-se em consequência de determinado facto, mas ter-se-ia igualmente produzido mesmo sem esse facto, em virtude de outra circunstância».[4]

Como é sabido a nossa ordem jurídica só confere relevância à causa virtual em termos negativos – tornando irresponsável o autor da causa real - em situações excepcionais, que se configuram, à partida, como de um agravamento da responsabilidade e em que aquela relevância surge como forma da ordem jurídica atenuar ou abrandar este regime mais severo, constituindo, no fundo, desvios à causalidade. È o que sucede nas situações previstas nos arts 491º, 492º e 403º, 807º/2, 1136º/2 todos do CC.

Na verdade a causa hipotética não exclui a causalidade real do primeiro facto. Por isso, se um facto produziu um dano, a circunstância de que este também teria sido produzido por outro facto, não afasta a causalidade daquele primeiro facto e, sendo assim como inegavelmente é, só em circunstâncias excepcionais, consagradas na lei e insusceptíveis de aplicação analógica, é que se mostra possível atribuir a referida relevância negativa à causa virtual. Foras dessas situações a causa virtual mostra-se irrelevante em termos de causalidade.

Por outro lado, e como é evidente, o R. não configurou sequer as referidas transferências bancárias como causa virtual, pois para que assim tivesse sido, teria que ter alegado e demonstrado que as mesmas se tinham efectivamente verificado, ainda que posteriormente à verificação da causa real.

Apenas as configurou como hipóteses conceptuais.

O que importa em termos de causalidade é que o facto tido como causa seja uma condição sine qua non da produção do dano e seja, além disso, causa adequada dele, como o refere Vaz Serra[5] , o que sucede relativamente à acuação do banco consistente em não ter procedido à verificação da regularidade das assinaturas nos cheques.

 G -È ainda no campo da causalidade que deve ser analisada a questão, também ela objecto do recurso, da culpa do lesado.

Com efeito, a aplicação do disposto no artigo 570º do CC, exigindo que o procedimento do lesado seja culposo - no entendimento de comportamento "censurável" ou "reprovável" - pressupõe que o facto do lesado seja também ele causa do dano, o que implica que a seu respeito se haja de estabelecer também o nexo causal, em termos de causalidade adequada.

O que significa que a aplicabilidade do art 570º requer a conclusão de que  para que um facto seja considerado causa não é necessário que o mesmo tenha só por si dado lugar ao dano, podendo, para o mesmo dano, terem concorrido outros factos.

Na concorrência de factos podem verificar-se duas hipóteses: nenhum dos factos ser por si suficiente para produzir o dano (trata-se do fenómeno da concausalidade) propriamente dita ou concorrência necessária), ou qualquer deles ser bastante para isso (fenómeno da causalidade cumulativa).

Refere Dario Martins de Almeida, que «são hipóteses de concausalidade as do art 570º CC»[6]

Não pode, porém, equacionar-se a culpa do lesado, sem a anteceder da ilicitude. 

Esta tem de colocar-se em função dos deveres implicados no contrato de abertura de conta em nome da sociedade P..., Lda, que ocorreu em 14/6/2005, e a subsequente convenção de cheques entre o banco e essa sociedade, e um pouco mais tarde, em 11/10/2006, no contrato de abertura de crédito, “Conta Corrente Negócios”. 

Segundo Menezes Cordeiro, e seguindo neste ponto, de muito perto, o Ac. R P 1972/2015[7], «a abertura de conta opera como um acto nuclear, cujo conteúdo constitui na prática o tronco comum dos diversos actos bancários subsequentes, permitindo o acesso a uma série de “produtos” oferecidos pela entidade bancária, ou seja, potencia a prestação, mais ou menos alargada, de uma série de serviços por parte da entidade bancária: o dever de aceitar depósitos, uma convenção quanto ao uso de cheques, o acesso a cartões de débito e de crédito, o dever de emitir extractos ou entregar cadernetas, o serviço de caixa (…). Trata-se, pois, de um contrato-quadro ou relação contratual global e não dispõe de qualquer regime legal explícito, assentando essencialmente, nas cláusulas contratuais gerais dos bancos e nos usos bancários. Desse contrato resulta um conjunto de deveres recíprocos, uns primários, outros de cuidado e protecção, com fundamento ético último na boa fé».

Importa nos autos especificamente a convenção quanto ao uso de cheques – também aqui e naturalmente, a mesma gera obrigações recíprocas para ambas as partes. Que advêm do contrato do cheque e do contrato de depósito que lhe está subjacente, bem como da Lei Uniforme Relativa ao Cheque (Anexo I, à Convenção de Genebra, de 19 de Março de 1931), da legislação destinada a proteger o uso do cheque, designadamente do DL 454/91, de 19/11, e do Regime Geral da Instituições de Crédito e Sociedade Financeiras, aprovado pelo DL 298/92, de 31/12.

«O banco, além do dever principal de pagar o cheque, em ordem a assegurar a perfeita execução desse dever primário, fica constituído nos deveres de fiscalização e de competência técnica, que se traduzem, entre o mais, no dever de verificar cuidadosamente o cheque, a autenticidade do mesmo, a autenticidade da ordem de pagamento que lhe está incorporada e a regularidade do saque e do endosso.

Já o depositante, obriga-se a guardar e a conservar os módulos de cheques; a assegurar a provisão necessária ao pagamento dos cheques que emite; a controlar e a fiscalizar os movimentos da sua conta através da verificação dos extractos bancários para aferir da respectiva conformidade com a realidade, designadamente entre cheques que efectivamente sacou e os respectivos débitos lançados na conta»[8].

Na situação nos autos, tendo em consideração os requisitos do cheque referidos nos art 1º e 2º da Convenção de Genebra de 19/03/1931, ratificada em Portugal pelo Decreto nº 23.721, de 29/03/1934, tem de se concluir que o R. procedeu ao pagamento dos oito cheques anteriores ao de 23/1/2008 sem que dos mesmos constasse a assinatura de quem, segundo a ficha de abertura de conta, tinha poderes para a movimentar.

Com efeito, aquando da abertura de conta da sociedade P..., Lda, ficou estipulado que a movimentação de cheques referente a essa conta exigia cumulativamente as assinaturas do aqui A., P..., e de S... Ora os oito cheques referidos – datados de 7/9, 13/9, 27/9, 30/9, 4/10, 7/10, 8/10, 9/10, todos de 2007 – mostram-se assinados por P... e L..., que, obviamente, não correspondem às pessoas do aqui A. e de S,,. Acresce que, sendo aqueles já então gerentes da sociedade, desde 10/7/2007, em função da escritura de “Divisão, Cessões de Quotas e Alteração do Pacto Social” que teve lugar nessa data, tais actos só foram registados em 16/11/2007. Como o A., e ao que parece também nenhum dos novos sócios e gerentes da sociedade, teve o cuidado de informar o banco destas mudanças societárias, não estando as mesmas registadas, o banco R. não as podia conhecer. No entanto, para todos os efeitos, estando tais cheques assinados por pessoas que não coincidiam com as constantes da ficha de assinaturas correspondente à da abertura na conta da sociedade, a verdade é que tais cheques não se mostravam regularmente sacados.

Segundo o disposto no Regulamento do Sistema Interbancário de Compensação (SICOI), constante actualmente da Instrução do Banco de Portugal nº 8/2018 e da instrução nº 3/2009, o Banco de Portugal assume que uma situação como a que se vem fazendo referência se enquadra no conceito de saque irregular.
De acordo com o respectivo Anexo IV (do Regulamento do SICOI), referente a “Procedimentos relativos à compensação de cheques”, é definido como saque irregular o que ocorra “
Quando se verificar divergência de assinatura, assinatura de titular que não conste da ficha de abertura de conta, insuficiência de assinatura ou assinatura não autorizada para realizar determinado saque[9].

Não se discute, pois, que o pagamento daqueles oito cheques – que veio a conduzir ao esgotamento do limite de crédito concedido pelo contrato de abertura de crédito por conta corrente, originando que o último dos cheques sacado, este já em 23/1/2008, não tenha tido pagamento – constitua um acto ilícito por parte do banco, nos termos que resultam afirmados na sentença recorrida.

Sucede que, e como é também evidente, o A. violou, com culpa, o dever de adequada guarda e conservação dos módulos de cheques, pois sabendo que os demais gerentes da sociedade, P... e L... – nomeados em 10/7/2007, segundo o referido documento dito de “Divisão, Cessões de Quotas e Alteração do Pacto Social”, que teve lugar nessa data - não tinham, à luz da convenção de cheque realizada com o banco R,. poderes para os emitir em nome da sociedade, não cuidou de guardar adequadamente os mesmos.

Mas a censurabilidade do comportamento do A. vai mais longe, pois a obrigação do mesmo junto do banco R., in casu, não se satisfazia com a de guarda e conservação da caderneta de cheques, mas apenas com a de entrega da mesma junto do banco.

Com efeito, ultrapassado como estava, desde 16/1/2007, que a sociedade se pudesse obrigar com a assinatura do A. e conjuntamente com a de S...,  já que  a renúncia deste à gerência foi registada nessa data, não podendo, pois, desde então, utilizar tais cheques – visto que  os não poderia  emitir apenas com a sua assinatura, já que na ficha da respetiva conta da sociedade junto do banco, à sua, se teria de somar a do referido S... -  e não podendo assiná-los os novos gerentes da sociedade, que não coincidiam com as pessoas que constavam da ficha de assinaturas, e não podendo o A., obviamente, desconhecer todos estes factos, estava obrigado a  entregar a caderneta de cheques no banco, relatando em simultâneo, e  naturalmente, as circunstâncias factuais que a isso o levavam.

Note-se, por outro lado, que os AA., mesmo depois de 10/7/2007 – data do referido acto de “Divisão, Cessões de Quotas e Alteração do Pacto Social” - continuaram sócios da sociedade, pois que dividiram a quota de que eram titulares no capital da sociedade, no valor nominal de €7.235,00, em duas quotas distintas, tendo reservado para si uma no valor nominal de €3.610,00, e tendo cedido a outra, de igual valor nominal, a P... E o A. continuou gerente da sociedade até 22/10/2007, sendo que apenas registou a renuncia à gerência  em 16/11/2007.

Isto significa que o A., enquanto gerente que se manteve, teria(rá) podido controlar os negócios da sociedade; mas seguramente que podia e devia ter controlado os extractos de conta da mesma, cuidado que se tivesse observado, teria certamente evitado o não pagamento do cheque de 23/1/2008.

Em situações como as referidas – de inobservância culposa de deveres por parte do banco e do cliente - a jurisprudência tem-se orientado no sentido da aplicação do disposto no art 570º CC, repartindo a responsabilidade proporcionalmente à culpa respectiva de uma e outra parte , entendendo  ser igual a medida de contribuição de cada um, quando os factos não permitirem fazer qualquer distinção sobre o grau de concorrência de culpas[10].

Não foi esse o entendimento da decisão recorrida, na qual, depois de se evidenciar que «o banco sacado deve, antes de proceder ao pagamento do cheque, tomar algumas precauções, respeitantes umas ao próprio cheque em si, outras à provisão e outras ao portador», cabendo-lhe «verificar a regularidade do cheque, mediante o exame do impresso e todos os requisitos do cheque e proceder à conferência da assinatura do sacador, comparando-a com o espécime existente no banco», e fazendo referencia à «praxis consagrada e autorizada nos bancos de que os cheques até determinadas verbas não são objecto de aferição de assinaturas, por razões de alternativa aos custos da operativa global de tal conferência», veio a concluir que, enquanto «outra face da mesma moeda», «os bancos assumem o risco decorrente de tal conduta propositadamente omissiva, devendo indemnizar a clientela em todos os casos em que, não obstante se tratar de um saque irregular, o cheque é pago» [11].

Por isso, entendeu relativamente ao caso sub judice que: « (…) apurou-se que ficou estipulado e exarado na respectiva ficha de abertura de conta, que as únicas pessoas com poderes para movimentar a conta eram, conjuntamente, o autor e o S..., na qualidade de sócios-gerentes da sociedade P... – e que a movimentação dos fundos da conta, designadamente através de cheques, carecia necessariamente da assinatura conjunta dos dois. Não obstante, os cheques acima referidos foram pagos, apesar de neles figurarem apenas as assinaturas de P... e L... - pessoas que na ficha bancária não tinham poderes para assinar cheques e para movimentar a conta bancária. Ao pagar esses cheques, o banco réu incumpriu o contrato de cheque, violando um dever essencial. A responsabilidade pelo pagamento dos cheques nas referidas circunstâncias recai sobre o Banco réu, que actuou culposamente, não ilidindo a presunção de culpa, pelo que se constituiu na obrigação de indemnizar os autores pelos danos causados – cfr. artºs 798º e 799º do Código Civil. O Banco-réu descurou as suas obrigações ao pagar cheques sacados por pessoas que não estavam autorizadas a movimentar a conta bancária. A conduta do banco foi, portanto, ilícita e culposa. Em síntese, estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual. E decorre do artº 799º do Código Civil que a culpa, na responsabilidade contratual, se presume do devedor».

E acrescentou a decisão recorrida a seguinte consideração: «A não comunicação atempada ao banco da saída do autor da sociedade é, para o caso, irrelevante. É que os outros sócios não podiam movimentar a conta - a movimentação dos fundos da conta, designadamente através de cheques, carecia necessariamente da assinatura conjunta do autor e do S..., não podendo ser feita por qualquer outra pessoa. Nem se diga que as pessoas que sacaram os cheques em nome da sociedade eram aqueles que efectivamente tinham legitimidade para tal, já que eram os (novos) gerentes. É que tais pessoas não estavam autorizadas a movimentar a conta bancária, tal como consta da respectiva ficha… O banco réu não provou que tenha dado cumprimento às obrigações que qualquer banco, com a diligência normal, teria de tomar nas circunstâncias em que foram apresentados os cheques».

Ora, não pode concordar-se com esta observação e com a conclusão do tribunal a quo.

É que, em primeiro lugar, o A. não saiu da sociedade, continuou a ser sócio e gerente dela.

 Bem sabendo, por não poder desconhecer, que a sua assinatura não era suficiente para movimentar a conta, e que o não eram igualmente as dos novos gerentes.

 E que, consequentemente, estavam todos impedidos de (legalmente) a movimentar.

Mantendo, pois, a possibilidade de, se movimentos nela houvesse que, de todo em todo, não fossem do seu agrado, sempre os poder paralisar com os argumentos a que lança mão nesta acção, obstaculizando, em última análise, à sua responsabilização pessoal por efeito da garantia que prestara no contrato de abertura de crédito em conta corrente, bem como à de sua mulher, também aqui A., igualmente garante nesse contrato. 

Veja-se que o A. tendo tido conhecimento enquanto gerente – ou podendo ter, tanto mais que tinha acesso à conta – do pagamento dos oito cheques que antederem o de 23/1/2008, e sabendo, como não podia deixar de saber, que o banco violara a convenção de cheque pagando cheques não regularmente emitidos, nenhuma atitude tomou junto do banco.

Por isso é-se do entendimento que o instituto da culpa do lesado  não satisfaria as exigências de justiça na situação dos autos, verificando-se, efectivamente, abuso de direito, susceptível de ser configurável como tu quoque (também tu!) , mais do que  um venire contra factum proprium[12].

Menezes Cordeiro afasta que o venire contra factum proprium possa integrar o tu quoque, referindo que neste «a contradição não está no comportamento do titular-exercente em si, mas nas bitolas valorativas por ele utilizadas para julgar e julgar-se» [13], vindo a concluir que no tu quoque «não está em jogo uma manifestação de tutela da confiança: antes a de um outro princípio concretizador da boa fé e a que damos o nome de princípio da materialidade subjacente».

 E- Segundo Menezes Cordeiro a ideia básica do “tu quoque” reside no seguinte: «aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo, a outrém, o acatamento das consequências daí resultantes: turpitudinem suam allegans non auditur. Caso pretendesse fazê-lo, a sua actuação seria detida pela excepção tu quoque»[14].

 Menezes Cordeiro coloca, aliás, a culpa do lesado, entre as várias «regras legais no Código Civil que podem exprimir a ideia básica da proibição de tu quoque», revelando-se serem todas elas situações em que «o agente penalizado violou concretamente e na mesma situação jurídica, a própria norma de que, depois, se pretendia prevalecer»[15].

Refere o mesmo autor, embora em obra subsequente (em 2005), que o instituto da culpa do lesado «teria um certo paralelo com o tu quoque: em ambos o prejudicado não pode, de algum modo, ser totalmente ressarcido por estar implicado numa prática desvalorizada». Assinalando no entanto esta diferença: «O paralelo é, no entanto, apenas descritivo pois, enquanto a compensação de culpas se prende com a imputação de um dano, no tu quoque os comportamentos das partes são desencontrados, não se reportando, ambos ao mesmo dano».

Chama, no entanto, a atenção para a circunstância de «o recurso ao tu quoque exigir cuidadas prevenções», referindo que se «repugna à consciência ético jurídica que alguém pretenda prevalecer-se da sua própria violação», «também não parece pensável que alguém possa perpetrar violações jurídicas a pretexto de outrem já ter feito outro tanto». Assinalando: «Para a operacionalidade da excepção de tu quoque, temos de exigir, além das diversas concretizações dos valores em presença na boa fé, um nexo muito estrito entre a situação violada pelo abusador e aquela de que se pretende prevalecer», referindo após, que, «a hipótese mais típica do tu quoque – o tu quoque contratual – reporta-se precisamente à violação do mesmo contrato»[16].

No Tomo IV da Parte Geral do seu Tratado de Direito Civil Português (de 1995), ao contrário da Parte I (que é de 1999), Menezes Cordeiro define melhor o tu quoque contratual – nele «o titular exercente excede-se por recorrer às potencialidades regulativas de um contrato que ele próprio já violara» - e relativamente ao tu quoque não contratual, salienta de forma muito expressiva: «A pessoa que, mesmo fora do caso nuclearmente exemplar do sinalagma, desequilibre, num momento prévio, a regulação material expressa no seu direito subjectivo, não pode, depois, pretender, como se nada tivesse ocorrido, exercer a posição que a ordem jurídica lhe conferiu. Distorcido o equilíbrio de base, sofre-lhe as consequências. A nova situação criada altera a configuração da posição jurídica do exercente. Cometida a violação pelo próprio, apenas formalmente tudo parece idêntico. A materialidade subjacente, porém, já é outra».

Na situação dos autos verifica-se o referido nexo «muito próximo» entre a situação violada pelo A. e aquela de que ele, e a A., sua mulher, se pretendem prevalecer, pois foi ele quem violou primeiro a convenção de cheque ao omitir ao banco as alterações societárias entretanto ocorridas e não lhe fazendo entrega da caderneta de cheques.

Se o A. não tivesse infringido a convenção de cheque, tendo informado devida e atempadamente o banco das alterações societárias e, na sequência das mesmas, tendo-lhe feito entrega dos cheques de que ainda dispunha, o banco não teria infringido o dever de verificar as assinaturas – omissão a que é levado por razões práticas admitidas pelo SICOI - Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária, e a que procede, em última análise, em função da confiança que deposita nas pessoas a quem confia os cheques.

A consequência jurídica do abuso do direito é a de o tribunal, sem negar a existência do direito, «entender que o direito que está a ser invocado, e tal como está a ser invocado, não funda aquela pretensão, tal como está a ser formulada». Assim se exprime Pais de Vasconcelos, que acrescenta: «O tribunal não nega que o exercente seja titular do direito que invoca: se não há direito não pode haver abuso; mas decide que esse direito não deve e não pode ser exercido do modo e com as consequências jurídicas que o titular pretende; por isso a decisão não extingue o direito subjectivo na esfera jurídica do titular, mas delimita a âmbito do seu exercício licito, e decide que aquela concreta pretensão não encontra fundamento naquele concreto direito subjectivo» [17].

Por isso, porque se entende que os AA. agem em abuso de direito, não pode declarar-se que  o R. incumpriu culposamente as condições de movimentação da conta nº ... de que era titular a P..., Lda., sediada no Balcão de ...; que o mesmo incumpriu culposamente o contrato de abertura de crédito por conta corrente, denominado Conta Corrente Negócios quando efectuou o pagamento dos cheques, por conta desse crédito; que é ilegal o saldo negativo da Conta Corrente Negócios criado para fazer face ao pagamento desses cheques, não podendo, em consequência, declarar-se que os autores, como garantes das responsabilidades emergentes dessa conta, não têm ou não tinham, a obrigação de assumir o pagamento daquele saldo; tão pouco se pode condenar o R. a pagar-lhes, a um e a outro, indemnização para compensação dos danos morais que ambos sofreram, como vem pedido, estando excluído como acima já se fez notar, que o mesmo fosse condenado a indemnizar os RR. pelos danos patrimoniais a que os AA. aludem no seu pedido.

Note-se que a A., colocando-se ao lado do marido como lesada pelo comportamento do banco, se está, afinal, também ela, a aproveitar da situação ilícita que o marido criou junto deste, e por isso também ela age em abuso de direito.

Ainda que assim se não pudesse entender, radicando o direito de indemnização a que se entende com direito na situação que o marido criou, não poderia deixar de ver serem-lhe comunicadas as consequências jurídicas do abuso de direito, nos termos dos arts  1692º al b) segunda parte e 1691º/1 al d) ambos do  CC.

Com o que improcede a ação.

F - Apesar de a questão se mostrar prejudicada, sempre se dirá que não assiste ao R/apelante razão quando pretende que os AA. não poderiam exercer os direitos a que se arrogam nesta acção por os mesmos se mostrarem precludidos pelo seu não exercício nos embargos de executado que poderiam ter oposto à execução, ao invés de terem procedido voluntariamente ao pagamento da mesma.

Com efeito, sendo correntemente entendido que deixando o executado de invocar um qualquer fundamento contra a execução, não poderá falar-se de um efeito preclusivo para além do próprio processo executivo, de modo que nada impedirá que o executado venha depois a invocar num outro processo o fundamento (a exceção) omitido(a) e que sempre podia ter invocado na oposição [18], também não poderá ser entendido que o executado que pague a quantia exequenda, antes mesmo de ser citado na execução, visando, com isso, obstar à realização da penhora, veja precludido com esse pagamento os fundamentos  com que se teria podido defender em embargos.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, julgando a ação improcedente e absolvendo o R. dos pedidos.

Custas na 1ª instância e nesta pelos AA./apelados.

Coimbra, 13/11/2019

(Maria Teresa Albuquerque)

(Manuel Capelo)

(Falcão de Magalhães)


***


[1]- «A Responsabilidade por Danos Não Patrimoniais no Incumprimento das Obrigações no Direito Civil Português», Coimbra Editora, 2009, p 237
[2] - «A ordem de transferência é a instrução incondicional dada pelo ordenante ao seu banco para que este execute uma transferência bancária de crédito, ou seja, para que coloque à disposição de um terceiro beneficiário através da respectiva instituição bancária, creditando a conta do beneficiário ou do respectivo banco» - «A Transferência Bancária», Catarina Martins Anastácio, Fev de 2004,  p 165
[3] - Autora e obra referida, p166 e 361
[4] - Vaz Serra, «Responsabilidade Civil», BMJ nº 84, p 50
[5] - Artigo referido, p 38
[6] - Obra referida, p 88
[7] - Relator, Fernandes Baptista
[8] - Estando-se aqui a seguir o Ac. R. P. 5/10/2013 (Fernando Samões)
[9] - Assim se referindo no Ac R E  2/5/2019 (Conceição Ferreira)

[10] - Assim, e a mero título de exemplo, Ac. R. P. 5/10/2013 (Fernando Samões); Ac. R. C. 18/10/2011 (Henrique Antunes)

[11] -Citando a este propósito o Ac. STJ 23/02/2010 (Alves Velho), disponível em www.dgsi.pt - em que se julgou que o referido SICOI regulamenta o Sistema de Compensação Interbancária, tendo como destinatárias as entidades bancárias participantes nesse Sistema, não sendo fonte directa de Direito; e por isso, não sendo oponível a quaisquer terceiros, não afasta o regime de responsabilidade legalmente aplicável em resultado de violação de normas de direito comum. O banco que abdica – por efeito do sistema bancário da truncagem – de proceder à conferência de assinatura do sacador a que se encontrava contratualmente obrigado, não procede diligentemente e deverá assumir os resultados dessa omissão, ainda que, em concreto, não lhe fosse exigível que detectasse essa vicissitude, por a mesma corresponder a uma falsificação perfeita..


[12] - Como o assinala Pais de Vasconcelos, «Teoria Geral de Direito Civil», 2012, 7ª ed, p 237, os tipos de abuso de direito «constituem modelos doutrinários jusculturais que, como tipos que são, têm limites difusos, são fragmentários e por vezes se sobrepõem total ou parcialmente uns aos outros. (…) A tipologia corrente é relativamente incoerente, fragmentária e com sobreposições. São tipos sociais, não legalmente estruturados, e por isso, com fronteiras e limites imprecisos, fluidos e difusos. È muitas vezes duvidoso se o caso em análise se encontra dentro ou fora de certo tipo, ou numa zona cinzenta de transição entre dois tipos ou no limite de um tipo».
[13] - Tratado de Direito Civil Português», I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, p 333
[14] - «Tratado de Direito Civil Português», I, Parte Geral, Tomo I, 1999, p 209
[15] - Regras que exprimem a ideia básica da proibição do “ tu quoque”, para além da do art 570º/1, segundo Menezes Cordeiro, obra referida, p 209/210:  art 275º/2, art 321º/2, art 339º/2 1ª parte, art 438º, art 475º, art 525º/2, art 526º/2, art 577º/2, art 647º, art 756º /a) e b), 765º/2, 892º, 1033º/al c), art 1602/al d), art 1779º/2, art 2034 /als a), b) e d) todos do CC.
[16] - Obra referida, p 211
[17] - «Teoria Geral do Direito Civil», 2012, 7ª ed, p 242

[18] - Neste sentido, entre outros, Ac. STJ 19/3/2019 (José Rainho), Ac. R. C. 16/10/2018 (Falcão de Magalhães), Ac. R. L. 16/1/2018 (Rijo Ferreira), Ac. R. G. 4/12/2008 (António Sobrinho).