Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
236/11.9TTCTB.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: ASSÉDIO NO TRABALHO
ASSÉDIO MORAL
CONTRA-ORDENAÇÃO
TESTEMUNHAS
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 47º, Nº 3 DA LEI Nº 107/09, DE 14/09; 29º, Nº 1 DO CT/2009.
Sumário: I – A norma do artº 47º, nº 3 da Lei nº 107/09, de 14/09, onde se impõe a limitação ao MP e ao arguido de poderem arrolar apenas duas testemunhas por cada infracção, não padece de inconstitucionalidade.

II – Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.

III – O assédio moral pode concretizar-se numa de duas formas: o assédio moral discriminatório (em que o comportamento indesejado e com efeitos hostis se baseia em qualquer factor discriminatório que não o sexo – discriminatory harassement) e o assédio moral não discriminatório (quando o comportamento indesejado não se baseia em nenhum factor discriminatório, mas pelo seu carácter continuado e insidioso, tem os mesmos efeitos hostis, almejando, em última análise, afastar o trabalhador da empresa – mobbing).

IV – Não constituem assédio moral as seguintes situações que devem ser consideradas simples conflitos existentes nas organizações: o stress; as injúrias dos gestores e do pessoal dirigente; as agressões (físicas e verbais) ocasionais não premeditadas; outras formas de violência como o assédio sexual, racismo, etc.; as condições de trabalho insalubres, perigosas; os constrangimentos profissionais, ou seja o legítimo exercício do poder hierárquico e disciplinar na empresa,…

V – Só pode ter-se por registada uma situação de mobbing naqueles casos em que subjacente ao comportamento indesejado do empregador ou dos superiores hierárquicos esteja a pretensão de forçar o trabalhador a desistir do seu emprego.

VI – Deve entender-se que a contra-ordenação correspondente à prática do mobbing tem necessariamente de ser cometida sob a forma dolosa em qualquer das modalidades em que o dolo pode registar-se: directo, necessário ou eventual.

Decisão Texto Integral: I) Relatório

A AUTORIDADE PARA AS CONDIÇÕES DO TRABALHO, Centro Local da Beira Interior, condenou a recorrente ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE A..., com sede ..., na coima de € 2.754,00 pela prática da contra-ordenação muito grave negligente prevista e punível pelos arts. 29º/1/3 e 554º/4/a do CT/09.
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Inconformada, deduziu a arguida impugnação judicial, tendo a decisão da entidade recorrida sido integralmente confirmada pelo Tribunal do Trabalho de Castelo Branco (fls. 316 a 328).
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Mais uma vez inconformada, recorreu a arguida para esta Relação, pugnando pela anulação do julgamento; a não entender-se assim, deveria a recorrente ser absolvida da contra-ordenação pela qual foi condenada.
Apresentou as seguintes conclusões:
[…]
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Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido, pugnando pela integral improcedência do recurso e manutenção do julgado.
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Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público entende que o recurso não merece provimento.
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Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir.
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II) Questões a decidir

São as seguintes as questões a decidir no âmbito deste recurso:
1ª) se o disposto no art. 47º/3 da Lei 107/09, de 14/9, padece de inconstitucionalidade;
2ª) se a sentença recorrida é nula por violação do art. 374º, nº 2, do CPP, e 659º, nº 2, do CPC;
3ª) se os factos provados permitem concluir pela comissão, pela recorrente, da contra-ordenação pela qual foi condenada.
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III) Fundamentação

A) De facto
Na sentença recorrida foram dados como provados os factos a seguir transcritos:
[…]

B) De direito
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Atento o disposto no art. 75º/1 do RGCO (DL 433/82, de 27/10, na redacção em vigor), os poderes de cognição deste tribunal abrangem apenas a matéria de direito.
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Primeira questão: se o disposto no art. 47º/3 da Lei 107/09, de 14/9, padece de inconstitucionalidade.

Importa referir, antes de mais, que estamos no âmbito deste processo no domínio do direito contra-ordenacional, diferente do direito penal, sendo de natureza distinta a tutela conferida por cada um desses ramos do direito: enquanto o ilícito penal empresta uma protecção jurídico-penal, o ilícito de mera ordenação social limita-se a proporcionar uma tutela mais administrativa.
Por outro lado, enquanto no ilícito penal
se exige sempre a intervenção judicial, quem aplica as coimas no ilícito de mera ordenação social é a administração e só em caso de não conformação ou de concurso de crime e contra-ordenações  é que poderá haver a intervenção jurisdicional.

Além disso, são de natureza distinta as sanções correspondentes a esses dois tipos de ilícito: a sanção típica do ilícito penal é a pena, sendo a coima aquela que corresponde ao ilícito de mera ordenação social.
O direito de mera ordenação social está ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, tendo-se pretendido construir, através dele, um modelo de protecção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação ainda assim justificaria reacções que devam exprimir uma censura de natureza social levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa.
Estão aqui em causa comportamentos humanos igualmente ilícitos, mas merecedores de uma censura com menor ressonância que as condutas criminais.
Tendo em consideração as diferenças acabadas de apontar, bem se compreende que normas processuais contra-ordenacionais tenham uma dimensão não tão marcadamente garantística como as congéneres penais, sem prejuízo de deverem assegurar os direitos de audiência e de defesa (art. 32º/10 da CRP).
Note-se, apesar disso, que o art. 32º/10 da CRP não exige que o processo contra-ordenacional, enquanto processo sancionatório, assegure um conjunto de garantias equivalentes às previstas no processo criminal; o que essa norma implica é, apenas, a inviabilidade constitucional da aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), reagindo contra uma acusação prévia, apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cfr. acórdão do TC n.° 659/06; Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo 1, Coimbra, 2005, p. 363), tendo sido inclusivamente rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar a extensão, ao arguido nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios, de “todas as garantias do processo criminal” (...).
Tudo a significar, assim, que conquanto o processo contra-ordenacional tenha de subordinar-se ao reconhecimento de um conjunto de garantias inerentes à respectiva natureza sancionatória, tal não o equipara ao processo penal, não conduzindo, por isso, no plano da aplicação do direito ordinário, à directa transposição para o primeiro de todas e quaisquer garantias expressamente previstas para o segundo,
É justamente nesse âmbito de menores garantias conferidas pelo processo de contra-ordenação que surge a limitação imposta pelo art. 47º, nº 3, da Lei 107/09, de 14/9, ao determinar o MP e o arguido podem arrolar, apenas, duas testemunhas por cada infracção.
Em tese e abstractamente, não vislumbramos que essa norma seja de molde a ofender o direito de defesa do arguido em processo contra-ordenacional, contanto que se conjugue devidamente esse direito de arrolar duas testemunhas com a possibilidade de o arguido poder requerer a produção de outros meios de prova, designadamente documental e, mesmo, pericial.
Na situação concreta em apreço, também não vislumbramos que ocorra essa ofensa.
Na verdade, logo no requerimento de interposição de recurso e face à limitação legal do número de testemunhas acima mencionada, a recorrente nada alegou para justificar a circunstância de ter arrolado mais do que duas testemunhas; em especial, nada alegou quanto à limitação do seu direito de defesa decorrente do facto de estar limitada quanto ao número de testemunhas que poderia arrolar.
Por outro lado, notificada do despacho que limitou a duas as testemunhas a ouvir pelo Tribunal no decurso da audiência, de entre as por si alegadas, a recorrente nada requereu na sequência do mesmo, antes se remeteu ao silêncio, sinal de que se conformou com aquele despacho, tudo levando a crer, pois, que a própria recorrente considerou que poderia assegurar integralmente a sua defesa mediante a inquirição de apenas duas testemunhas de entre as quatro que tinha arrolado no seu requerimento de interposição do recurso.
De resto, tanto quanto pode depreender-se da suas alegações de recurso, foi a recorrente que indicou as testemunhas que pretendia ouvir em audiência.
Além disso, a recorrente nem sequer sugeriu ao Tribunal a importância de que porventura se pudesse revestir, para sua defesa, a inquirição de outras testemunhas para lá daquelas que o foram, de molde a que o Tribunal pudesse tomar, no exercício do seu poder-dever de realizar as diligências necessárias à descoberta da verdade material, a iniciativa de inquirir outras testemunhas importantes para a realização daquele desiderato.
A tudo acresce que a limitação ora em apreço se aplica não apenas à recorrente, como também ao Ministério Público, com estrita observância, nessa matéria, da igualdade de armas entre acusação e defesa que deve ser respeitada.
Improcede, pois, a arguição de inconstitucionalidade que está em apreciação.
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Segunda questão: se a sentença recorrida é nula por violação do art. 374º, nº 2, do CPP, e 659º, nº 2, do CPC.

A recorrente faz decorrer tal nulidade do facto de no ponto 26 dos factos provados se ter feito constar que o comandante B... “… elaborou um conjunto de regras.”.
Comece por dizer-se que o carácter conclusivo do aludido segmento do ponto 26 dos factos provados mais não faz do que reproduzir, letra por letra, o que de conclusivo já contava do art. 25º de fls. 87 das alegações da recorrente – ali se escreveu, textualmente, “… elaborou um conjunto de regras..
Consequentemente, não pode a recorrente assacar à sentença recorrida um vício que consiste em dar como provado, exactamente, o que a recorrente alegou.
É certo que a recorrente procurou concretizar algumas dessas regras, especialmente na parte em que das mesmas resultaria que o aludido comandante terá instituído uma proibição de acesso à central telefónica a todos os trabalhadores da recorrente que não fizessem parte, como a trabalhadora C... não fazia, do grupo de pessoas que esse mesmo comandante tinha destacado para exercer funções na dita central (arts. 27º a 34º de fls. 88).
Sucede que essa matéria de facto contida nos aludidos arts. 27º a 34º foi expressamente dada como não provada na sentença recorrida (cfr. penúltimo parágrafo de fls. 320).
Para lá dessa matéria referente a essa regra de proibição, a única outra concreta regra que a recorrente invocou, para integração do aludido conjunto de regras, foi a alegada no art. 26º de fls. 88, sendo que esta foi dada como provada no ponto 27 dos factos provados.
Tudo para concluir no sentido de que foram expressamente abordadas todas as concretas regras que a recorrente invocou nas suas alegações de recurso para efeitos da integração da alegação conclusiva do “… conjunto de regras…” constante do art. 25º de fls. 87.
Assim sendo, reproduzindo a sentença recorrida aquele segmento conclusivo e tendo-se expressamente pronunciado sobre os concretos factos alegados pela recorrente para efeitos do preenchimento do mesmo segmento, dando-os como provados ou não provados, não se vislumbra que se registe a nulidade sob apreciação, com a consequente improcedência da pretensão da recorrente ver decretada a anulação do julgamento.
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Terceira questão: se os factos provados permitem concluir pela comissão, pela recorrente, da contra-ordenação pela qual foi condenada.

Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.” – art. 29º/1 CT/09
O assédio moral pode concretizar-se numa de duas formas, a saber: o assédio moral discriminatório, em que o comportamento indesejado e com efeitos hostis se baseia em qualquer factor discriminatório que não o sexo (discriminatory harassement); e o assédio moral não discriminatório, quando o comportamento indesejado não se baseia em nenhum factor discriminatório, mas pelo seu carácter continuado e insidioso, tem os mesmos efeitos hostis, almejando, em última análise, afastar o trabalhador da empresa (mobbing).
No caso dos autos, não resulta dos factos provados que a recorrente tenha assumido um qualquer comportamento indesejado e hostil baseado num qualquer factor de descriminação do tipo dos enunciados no art. 24º/1 CT/09, razão pela qual deve concluir-se no sentido de que a recorrente não cometeu qualquer comportamento susceptível de ser enquadrado no assédio moral discriminatório.
Resta apurar se os comportamentos da recorrente podem subsumir-se ao assédio moral na sua forma não discriminatória ou mobbing.
Júlio Manuel Vieira Gomes (Direito do Trabalho, Volume 1, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, pág. 428 a 430) ensina que aquilo que caracteriza o mobbing são "três facetas: a prática de determinados comportamentos, a sua duração e as consequências destes. Quanto aos comportamentos em causa, para Leymann tratar-se-ia de qualquer comportamento hostil. Para Hirigoyen, por seu turno, tratava-se de qualquer conduta abusiva manifestada por palavras (designadamente graçolas), gestos ou escritos e muitos outros comportamentos humilhantes ou vexatórios. Daí a referência a uma polimorfia do assédio e, por vezes, a dificuldade em distingui-lo dos conflitos normais em qualquer relação de trabalho. (...) tais comportamentos são, frequentemente, ilícitos, mesmo quando isoladamente considerados; mas sucede frequentemente que a sua ilicitude só se compreende, ou só se compreende na sua plena dimensão atendendo ao seu carácter repetitivo. E esta é a segunda faceta que tradicionalmente se aponta no mobbing... é normalmente o carácter repetitivo dos comportamentos, a permanência de uma hostilidade, que transforma um mero conflito pontual num assédio moral. A terceira nota característica do assédio, pelo menos para um sector da doutrina, consiste nas consequências deste designadamente sobre a saúde física e psíquica da vítima e sobre o seu emprego. O assédio pode produzir um amplo leque de efeitos negativos sobre a vítima que é lesada na sua dignidade e personalidade, mas que pode também ser objecto de um processo de exclusão profissional, destruindo-se a sua carreira e mesmo acabando por pôr-se em causa o seu emprego...".
E mais adiante, a páginas 431/433, acrescenta Júlio Gomes "O assédio converte-se em meio para contornar as proibições de despedimento sem justa causa, transformando-se num mecanismo mais expedito e económico da empresa para se desembaraçar de trabalhadores que, por qualquer razão, não deseja conservar. As práticas e os procedimentos para o fazer são praticamente inumeráveis; a título de exemplo, refira-se apenas a mudança de funções do trabalhador, por exemplo, para funções muito superiores à sua experiência e competência para levá-lo à prática de erros graves, a atribuição de tarefas excessivas, mas também, e frequentemente, o seu inverso, como seja a atribuição de tarefas inúteis ou o esvaziamento completo de funções. Como se disse, os meios empregues podem ser os mais diversos: frequentemente adoptam-se medidas para impor o isolamento social do trabalhador, que podem consistir em proibir aos outros trabalhadores que lhe dirijam a palavra, em reduzir-lhe os contactos com os clientes ou mesmo em impor-lhe um isolamento físico....".
O mobbing consiste numa “… prática persecutória reiterada, contra o trabalhador, levada a efeito, em regra, pelos respectivos superiores hierárquicos ou pelo empregador, a qual tem como objectivo ou como efeito afectar a dignidade do visado, levando-o eventualmente ao extremo de querer abandonar o emprego.” – Guilherme Drey, Código do Trabalho Anotado, obra colectiva, 4ª, pág. 124.
Margarida Barreto define o assédio moral no trabalho como “a exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais subordinado(s), desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização, forçando-o a desistir do emprego.” - Uma Jornada de Humilhações. 2000 PUC/SP, disponível em http://www.assediomoral.org/site/assedio/AMconceito.php.
O assédio moral tem ínsitos, desde logo (e conforme ensinam os mais importantes autores que têm tratado este tema, de Marie France Hirigoyen a Leymann e Einarsen, designadamente), três elementos fundamentais:
Por um lado, o ser um processo, ou seja, não um fenómeno ou um facto isolado, mesmo que de grande gravidade, mas antes um conjunto mais ou menos encadeado de actos e condutas, que ocorrem com um mínimo de periodicidade (por exemplo, pelo menos uma vez por semana ou por mês) e de reiteração (designadamente perdurando ao longo de 6 meses).
Por outro lado, a circunstância de esse conjunto mais ou menos periódico e reiterado de condutas ter por objectivo o atingimento da dignidade da vítima e o esfacelamento da sua integridade moral e também física, quebrando-lhe a sua capacidade de resistência relativamente a algo que não deseja, e buscando assim levá-la a “quebrar” e a ceder.
Por fim, pode dizer-se que constitui também traço característico do assédio moral o aproveitamento da debilidade ou fragilidade da vítima ou de um seu autêntico “estado de necessidade” (por exemplo, decorrente da sua posição profissional hierarquicamente inferior, o que é o mais frequente, ou então da precariedade do respectivo vínculo laboral e da extrema necessidade da manutenção deste para conseguir garantir a subsistência própria e dos filhos por exemplo, ou até do chantageamento decorrente de factos incómodos ou desprimorosos da respectiva vida pessoal e/ou familiar).

É hoje e infelizmente muito frequente, quando o titular de uma organização empresarial pretende “ver-se livre” de um dado trabalhador mas não tem ao seu alcance qualquer modo, pelo menos formalmente legal, de pôr termo ao respectivo contrato de trabalho (por exemplo a cessação durante o período experimental, caducidade do contrato a termo, ou a cessação por extinção do posto de trabalho, na sequência da 10ª “reestruturação” do mês…), nem o trabalhador se mostra disponível para aceitar o “mútuo acordo de rescisão” que lhe é então proposto, que trate de o sujeitar a um processo de assédio moral visando precisamente levá-lo a ceder e a acabar por, não aguentando mais, aceitar finalmente aquilo que inicialmente fora por ele rejeitado.” - Garcia Pereira, O assédio moral, http://www.ospelicanos.org/files/AssedioMoral_GarciaPereira.pdf.
Importa ter presente, contudo, que nem todas as situações de conflito existentes no local de trabalho constituem assédio moral.
Assim, não constituem assédio moral as seguintes situações que devem ser consideradas simples conflitos existentes nas organizações: o stress; as injúrias dos gestores e do pessoal dirigente; as agressões (físicas e verbais) ocasionais não premeditadas, outras formas de violência como o assédio sexual, racismo, etc; as condições de trabalho insalubres, perigosas, etc; os constrangimentos profissionais, ou seja, o legítimo exercício do poder hierárquico e disciplinar na empresa (exemplo: a avaliação de desempenho, instaurar um processo disciplinar, etc) – cfr. Paula Cristina Carvalho da Silva, Assédio Moral no Trabalho, consultável in http://www4.fe.uc.pt/fontes/trabalhos/2007003.pdf, citando Marie-France Hirigoyen, O assédio no Trabalho – como distinguir a verdade, Editora Pergaminho, 2002.
Garcia Pereira refere também que “o assédio moral no trabalho não se confunde nem com o stress (ainda que este possa, por vezes, ser um instrumento de prática daquele), nem com uma relação profissional dura (por exemplo, em virtude de uma chefia muito exigente e pouco cordata mas que não visa esfacelar a integridade moral de ninguém), nem sequer com um mero e isolado episódio mais violento (designadamente, um incidente ou uma discussão particularmente intensos mas sem sequelas).” – obra supra citada.
Assim sendo, a pergunta surge inevitável: qual o critério em função do qual se há-de distinguir uma situação de
mobbing de outra de mero conflito laboral?
Respondendo, diremos que o que verdadeiramente diferencia o conflito laboral do assédio moral é a intencionalidade que está por detrás de um e de outro, sendo que neste último existe, como motivação da conduta, uma clara e manifesta intenção do agressor se livrar da pessoa assediada, ao passo que no primeiro não existe da parte do agressor uma intenção deliberada de livrar-se do trabalhador; sem essa intenção do agressor não existe assédio moral – no sentido de que a verificação de uma situação de mobbing exige a demonstração de uma conduta persecutória intencional da entidade empregadora sobre o trabalhador, podem consultar-se os acórdãos do STJ de 29/3/2012, proferido no âmbito do processo 429/09.9TTLSB.L1.S1, e da Relação de Lisboa de 13/4/2011, proferido no âmbito do processo 71/09.4TTVFX.L1-4.
A acrescer a essa intenção, o comportamento subsumível ao conceito de assédio moral há-de ser sistemático, repetitivo e com clara premeditação de realização daquela intenção.
Resulta de tudo quanto vem de referir-se que, conquanto isso não resulte explícito do art. 29º/1 do CT/09, só pode ter-se por registada uma situação de mobbing naqueles casos em que subjacente ao comportamento indesejado do empregador ou dos superiores hierárquicos esteja a pretensão de forçar o trabalhador a desistir do seu emprego; dito de outro modo, essa pretensão constitui, a nosso ver, um elemento objectivo implícito do tipo de contra-ordenação em análise.
Ora, lida a decisão recorrida logo se verifica que nela não vem dado como provado o que quer que seja quanto à intencionalidade da recorrente ao assumir os comportamentos que estão dados como provados.
Tanto basta para concluir no sentido de que não pode ter-se por preenchido este elemento objectivo do tipo de contra-ordenação em apreciação, razão pela qual a recorrente não deveria ter sido condenado pela prática da mesma.
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Mesmo a entender-se que aquela pretensão de forçar o trabalhador a abandonar o emprego não constitui elemento típico da contra-ordenação em análise e conquanto a negligência nas contra-ordenações laborais seja sempre punível (art. 550º do CT/09), afigura-se-nos juridicamente insustentável, face ao atrás exposto quanto à necessidade de demonstração de uma conduta intencionalmente persecutória do agressor, que a contra-ordenação correspondente à prática do mobbing possa ser cometida sob a forma negligente.
Ou seja, essa contra-ordenação tem necessariamente de ser cometida sob a forma dolosa, em qualquer das modalidades em que o dolo pode registar-se  – directo, necessário ou eventual.
Na verdade, como se disse, subjacente a uma conduta integrável no mobbing estará sempre uma intenção persecutória da entidade empregadora, designadamente com vista a furtar-se às proibições de despedimento sem justa causa, socorrendo-se de um mecanismo mais expedito e económico da empresa para se desembaraçar de trabalhadores, ou seja, a intenção da entidade empregadora forçar o trabalhador a desistir do seu emprego.
Por isso, é a própria lei que exige no art. 29º/1 CT/09, que o comportamento indesejado seja assumido com o objectivo de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador; nesta vertente, não subsiste qualquer dúvida  de que a contra-ordenação será necessariamente dolosa e, mais do que isso, específica, porque necessariamente assumida com intenção de ser alcançado um resultado específico; trata-se, por isso e nesta dimensão, de uma contra-ordenação intencional, não importando para a sua consumação a produção de um qualquer resultado.
Assim sendo, nesta dimensão, a contra-ordenação tem indiscutivelmente de revestir a forma dolosa, não podendo nunca assumir a forma negligente.
É certo, também, que numa outra dimensão, o citado art. 29º/1 CT/09 se basta como o facto do comportamento indesejado ter o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.
Nesta outra dimensão a contra-ordenação em questão é, claramente, uma contra-ordenação de resultado; ou seja, aquele resultado tem de produzir-se, sem o que a contra-ordenação não se consumará.
Ora, se o objectivo último do empregador ao assumir o comportamento indesejado é o de forçar o trabalhador a desistir do seu emprego, então terá de concluir-se, necessariamente, no sentido de que a produção daquele resultado de que depende a consumação da contra-ordenação tem de estar abrangido pelo dolo do empregador, em qualquer das suas modalidades legais.
Ora, percorrida a matéria de facto provada logo se conclui que nela não está dado como provada uma actuação da recorrente com o objectivo intencional e específico de perturbar ou constranger a sua trabalhadora, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador; por outro lado, dela também não consta a descrição de factos que permitam concluir no sentido de que a recorrente pretendeu, de forma directa, necessária ou eventual, produzir o resultado enunciado no citado art. 29º/1 CT/09.
Dito de outro modo, não resultaram provados factos que permitam concluir no sentido de que a recorrente actuou de forma dolosa, o que seria necessário, a nosso ver, para a mesma ser condenada como autora da contra-ordenação em questão.
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Mesmo a considerar-se que a contra-ordenação em causa pode ser consumada sob a forma negligente, então seremos forçados a concluir que essa possibilidade se circunscreve aos casos em que a mesma se reconduz à supra aludida dimensão de contra-ordenação de resultado.
E, assim, para ter-se por preenchida a contra-ordenação de resultado na forma negligente, necessário é que se sustente que a empregadora previu ou devia ter previsto, se tivesse actuado com o cuidado de que era capaz e a que estava obrigada, a possibilidade do referido resultado indesejado se produzir.
Ora, os factos dados como provados não permitem tal conclusão.
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Tudo para concluir, assim, no sentido de que não pode ter-se por preenchido o elemento subjectivo da contra-ordenação em causa nestes autos, qualquer que seja o entendimento sobre a questão de saber se a mesma tem ou não de assumir necessariamente a forma dolosa.
Como assim, também por esta via tem de considerar-se que a recorrente não deveria ter sido condenada pela prática da contra-ordenação em apreciação.
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Não pode subsistir, pois, a condenação da recorrente.
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IV) Decisão
Termos em que se delibera no sentido de julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se a recorrente da contra-ordenação pela qual foi condenada.
Sem custas.


Jorge Manuel Loureiro (Relator)
Ramalho Pinto