Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2007/08.0TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
MÚTUO
COMPRA E VENDA
RESERVA DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 01/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 18º, Nº 1, DO DEC-LEI Nº 54/75, DE 12/2; ARTIGO 409.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A menção feita no artigo 18º, nº 1, do Dec-Lei nº 54/75, de 12/2, ao “contrato de alienação” deve ser entendida como referindo-se, igualmente, ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva da propriedade;

2. A mutuante com reserva do direito de propriedade sobre veículo inscrita a seu favor no registo pode lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo regulado nos artigos 15º e 16º do Dec-Lei nº 54/75, de 12/2.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO

O “A...., S.A.”, instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, o presente procedimento cautelar de apreensão de veículo, nos termos dos artºs 15º e segs. do Dec. Lei nº 54/75, de 12/02 (com a redacção constante do Dec. Lei nº 178-A/2005, de 28/10) contra:
- B...., pedindo a apreensão imediata do veículo com a matrícula 65-51-VD.
Alegou, para tanto, em resumo, que concedeu ao requerido um crédito no montante de € 12.900,00, destinado a financiar a aquisição daquele veículo, o qual devia ser pago em setenta e duas prestações mensais com o valor unitário de € 248,12; para garantir o pagamento integral das prestações, reservou para si a propriedade do veículo, que inscreveu no registo automóvel; sucede, porém, que o requerido apenas pagou as sete primeiras prestações, encontrando-se em dívida todas as demais vencidas desde Maio de 2007; por tal motivo, o contrato celebrado com o requerido foi resolvido, sendo certo que este continua a circular com o veículo, desgastando-o e desvalorizando-o.
Foi dispensada a audição da parte contrária, para não pôr em risco o fim ou a eficácia da providência, procedeu-se à audição de uma testemunha arrolada pela requerente e, por fim, veio a verter-se nos autos sentença que julgou improcedente o requerido procedimento cautelar.
Inconformada com o assim decidido, interpôs a requerente recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito suspensivo.
Alegou, oportunamente, a apelante, a qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª – “É legítimo, à luz dos critérios interpretativos impostos pelo Legislador no artigo 9º do Código Civil, concluir do artigo 409º do Código Civil que é admissível a cláusula da reserva da propriedade no contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo;
2ª – O Recorrente, atento o incumprimento do contrato de crédito, tem direito ao veículo automóvel objecto do financiamento, porquanto beneficia de reserva de propriedade a seu favor;
3ª – Existe fundado receio de desgaste do veículo, estando reunidos os pressupostos do “periculum in mora”;
4ª – Na sentença recorrida, ao decidir-se pela forma como se decidiu, claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto nos artigos 15º, 16º e 18º do Dec. Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro, bem como nos artigos 409º do Código Civil e 26º do Código de Processo Civil;
5ª – Termos em que, se deve julgar procedente o presente recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que ordene a apreensão do veículo automóvel marca Volkswagen, modelo Golf, com a matrícula 65-51-VD”.

Não foi apresentada contra-alegação, sendo de realçar que o apelado não foi ainda ouvido.


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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C. de Proc. Civil, na versão introduzida pelo Dec. Lei nº 303/2007, de 24/8.
De acordo com as apresentadas conclusões, a questão a decidir por este Tribunal é a de saber a apelante, enquanto mutuante e com reserva da propriedade do veículo registada a seu favor, pode lançar mão do presente procedimento cautelar.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.


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OS FACTOS
Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1º - No exercício da sua actividade bancária, requerente e requerido celebraram, em 29 de Setembro de 2006, o acordo escrito intitulado “contrato de crédito nº 80002859495”, ao qual efectuaram uma adenda datada de 10 de Outubro de 2006, nos termos do qual, aquela declarou emprestar a este o montante de € 13.248,36 para aquisição do veículo automóvel de marca Volkswagen, modelo Golf, com a matrícula 65-51-VD e cujo preço era de € 13.900,00;
2º - Mais declararam e ficou a constar do documento referido em 1º que a quantia emprestada venceria juros à taxa nominal de 10% e que o requerido (por evidente lapso, na sentença escreveu-se requerente) entregaria à requerente setenta e duas prestações mensais e sucessivas, no valor unitário de € 248,12, vencendo-se a primeira em 29 de Outubro de 2006 e as seguintes nos dia 29 dos meses subsequentes;
3º - Mais acordaram que a importância de cada uma das referidas prestações mencionadas em 2º seria paga por débito bancário a efectuar aquando do vencimento de cada uma delas, na conta bancária indicada pelo requerido;
4º - O requerido declarou autorizar a requerente a transferir o valor do crédito que lhe foi solicitado para a conta do fornecedor do veículo, o stand de automóveis “Via Centro – Comércio de Automóveis, L.da”;
5º - Ficou a constar da cláusula 7 do documento referido, além do mais, o seguinte: “(…) o presente contrato poderá ter associada a Reserva de Propriedade do Bem financiado a favor da Credibom ou, sujeita a autorização desta, a favor da Entidade Vendedora Identificada nas Condições Particulares;
O correspondente registo manter-se-á até que o(s) Consumidor(es) pague(m) à Credibom tudo quanto lhe é devido por força do financiamento da aquisição do respectivo Bem. As despesas com a realização do registo e do correspondente cancelamento serão um encargo dos Consumidor(es).
No caso de Reserva de Propriedade do Bem a favor da Entidade Vendedora, o(s) Consumidor(es) autoriza(m) que seja dado conhecimento de qualquer incumprimento das obrigações de pagamento emergentes do financiamento efectuado pela Credibom, para que aquela Entidade Vendedora ceda a esta Instituição de Crédito a garantia consistente na Reserva de Propriedade.
O(s) Consumidor(es) autoriza(m) a manutenção da Reserva de Propriedade nestes termos e a Entidade Vendedora a ceder esta garantia à Credibom. (…)”;
6º - Para garantia do pagamento integral das prestações referidas em 2º, a requerente declarou reservar para si a propriedade do veículo, promovendo o registo do veículo em nome do requerido e, concomitantemente, registando a seu favor, na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, a reserva de propriedade do veículo identificado em 1º, pela apresentação número 04661, datada de 22 de Dezembro de 2006;
7º - O requerido deixou de proceder ao pagamento das prestações referidas em 2º, desde Maio de 2007;
8º - Apesar de sucessivamente interpelado pela requerente para regularizar os valores em atraso, o requerido não efectuou mais qualquer pagamento.

Para além destes factos, extrai-se ainda dos autos o seguinte:
9º - Por carta registada com data de 23 de Abril de 2008, a Requerente comunicou ao Requerido que devia proceder à liquidação, no prazo de cinco dias, do montante de € 3.619,82 em dívida, sob pena de, findo tal prazo, considerar o contrato de crédito com ele celebrado resolvido por incumprimento definitivo (doc. de fls. 18 e 19).


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O DIREITO

A questão a decidir consiste em saber se a apelante, enquanto mutuante do requerido e com reserva do direito de propriedade sobre o veículo de matrícula 65-51-VD, pode lançar mão do procedimento cautelar previsto nos artºs 15º e 16º do Dec. Lei nº 54/75, de 12/2.
A questão não é pacífica, como dá conta a sentença recorrida, que defendeu o entendimento de que a Requerente, enquanto mutuante e com a reserva de propriedade do veículo inscrita a seu favor no registo, não podia lançar mão do referido procedimento.
No acórdão desta Relação de 6/5/2008 (proferido no processo nº 2247/07.0TVLSB.C1), por nós subscrito, que se debruçou sobre caso idêntico ao dos presentes autos, sufragámos entendimento contrário ao expresso na sentença recorrida, ou seja, no sentido de que o mutuante com reserva do direito de propriedade pode lançar mão do procedimento cautelar em causa.
Não vemos razão bastante para alterar o ali decidido, pelo que aqui seguiremos de perto o que deixámos escrito naquele aresto.
Aquele diploma legal procedeu a uma profunda remodelação do sistema de registo automóvel, “delineando-o em termos que bem se ajustem à natureza muito especial das coisas que constituem o seu objecto, particularmente caracterizadas pela limitadíssima duração e extrema mobilidade negocial inerentes aos veículos automóveis, e, simultaneamente, possibilitem o eventual funcionamento do sistema no regime de tratamento automático” (vide respectivo preâmbulo).
Nos termos do respectivo artº 15º, vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos (nº 1).
O requerente exporá na petição o fundamento do pedido e indicará a providência requerida, devendo a sua assinatura ser reconhecida por notário (nº 2).
A petição será instruída com certidão, fotocópia ou cópia, obtida por qualquer processo de reprodução mecânica, dos registos invocados e dos documentos que lhes serviram de base (nº 3).
E, nos termos do referido artº 16º, provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo (nº 1).

No caso presente, segundo decorre do alegado na petição inicial, o requerido adquiriu uma viatura, tendo celebrado com a requerente um contrato de mútuo para aquisição a crédito da mesma viatura automóvel. A requerente reservou para si o direito de propriedade sobre tal viatura, direito que se encontra devidamente registado.
Estamos, pois, em presença de um contrato de compra e venda conexo com um contrato de crédito ao consumo, articulados entre si. Na verdade, para além do contrato de compra e venda que teve por objecto a viatura em causa, foi celebrado entre a apelante e o apelado um contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo, destinando-se o respectivo capital ao pagamento do preço do veículo (vide artºs 1º e 2º, nº 1, al. a), do Dec. Lei nº 359/91, de 21/9).
Estes contratos, como se escreveu no Ac. da R. de Lisboa de 31/01/2008 (disponível em www.ggsi.pt), que aqui acompanhamos, embora coexistindo com autonomia, têm, entre si, uma estreita e forte conexão, expressamente afirmada no nº 1 do artº 12º do Dec. Lei nº 359/91, cuja validade, designadamente quanto ao seu conteúdo, se possibilita pelo princípio da autonomia privada consagrado no artº 405º do C. Civil.
Nesta estrutura de conexão – como se diz no voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Salvador da Costa lavrado no Ac. do S.T.J. de 12/05/2005 (www.dgsi.pt), que se debruçou sobre caso idêntico, mas não inteiramente coincidente, com o dos autos, já que, na situação ali visada, a reserva de propriedade fora feita a favor do alienante, – em termos de finalidade económica comum e de subordinação, as vicissitudes de um, como é característica dos contratos coligados, repercute-se no outro.
Excepcionando a regra de que a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato, nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento e, tratando-se de coisa móvel sujeita a registo, como é o caso dos autos, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros (artºs 408º, nº 1, e 409º do C.C.).
A cláusula da reserva de propriedade, admissível nos termos daquele artº 409º, tem como efeito suspender a transmissão da coisa decorrente do respectivo contrato. Por isso, a propriedade da coisa apenas se transmite para o respectivo adquirente quando este tiver cumprido as obrigações a que se vinculou e que determinaram a reserva da propriedade.
E, não obstante a cláusula da reserva de propriedade não ter sido concebida para o contrato de mútuo, vem sendo admitida a sua fixação, nomeadamente quando aquele contrato está intensamente conexionado com o de compra e venda, cujo preço é pago mediante o capital obtido através do contrato de mútuo.
Desde há muito, com efeito, que se assiste a uma evolução rápida no financiamento da aquisição de veículos automóveis, designadamente através de empresas especialmente vocacionadas para esse fim, possibilitando o alargamento da oferta e uma melhor satisfação da procura, num mercado que tem por objecto bens de considerável valor e de acentuada e rápida desvalorização.
O interesse do credor, que assim facilita a aquisição do veículo automóvel, não pode ficar desprovido da garantia resultante da inclusão da cláusula da reserva da propriedade, sendo certo que o legislador, desde há muito, nomeadamente através do citado Dec. Lei nº 54/75, que procura acautelar o interesse do credor que contribui para a aquisição de veículos automóveis.
Assim, não só se previne o pontual pagamento das prestações pecuniárias decorrentes do preço da aquisição de veículo automóvel, como também de outras obrigações, designadamente as emergentes do contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo, destinado à aquisição daquele tipo de bem, em que o próprio vendedor também pode intervir ou de cujo conteúdo lhe deriva um interesse relevante.
Será, por isso, que se admite expressamente a fixação da cláusula da reserva da propriedade, no contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo, como decorre do estipulado na al. f) do nº 3 do artº 6º do Dec. Lei nº 359/91.
Nada no texto desse diploma legal autoriza a afirmar que a cláusula da reserva da propriedade só tem aplicação no caso de coincidência na mesma pessoa do alienante e do financiador.
Por outro lado, a circunstância do mesmo diploma legal ter vindo a proteger, sobretudo, os interesses dos consumidores é também irrelevante, para se justificar a exclusão da fixação da cláusula da reserva da propriedade em favor apenas do mutuante.

Ademais, o artº 591º do C. Civil possibilita ainda que o devedor, cumprindo a obrigação, designadamente com dinheiro concedido por terceiro, possa sub-rogar este nos direitos do credor. Esta sub-rogação não necessita do consentimento do credor, mas está sujeita a declaração expressa, no documento que formaliza o empréstimo, de que o dinheiro se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor.
Deste modo, a menção do artº 18º, nº 1, do citado Dec. Lei nº 54/75, quanto ao “contrato de alienação”, pode e deve ser entendida como referindo-se, igualmente, ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva da propriedade.
A não ser assim, a cláusula da reserva de propriedade sobre veículos automóveis perderia a sua utilidade prática, dada a predominância actual da sua aquisição através do financiamento.
Deste modo, justificada a utilidade da inserção da cláusula da reserva de propriedade e sendo a mesma aceite pelo mutuário, não há razões que a invalidem (vide, neste sentido, o citado Ac. da Relação de Lisboa e demais jurisprudência aí citada).
Pode, assim, a ora apelante valer-se do invocado direito de reserva da propriedade do veículo em causa, inscrito a seu favor no registo, para lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo regulado nos artºs 15º e 16º do Dec. Lei 54/75, pelo que a sentença recorrida não se pode manter, tendo de ser substituída por outra que, verificados que se mostram os respectivos requisitos, decreta a requerida providência.

Sumário:
1 – A menção feita no artº 18º, nº 1, do Dec-Lei nº 54/75, de 12/2, ao “contrato de alienação” deve ser entendida como referindo-se, igualmente, ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva da propriedade;
2 – A mutuante com reserva do direito de propriedade sobre veículo inscrita a seu favor no registo pode lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo regulado nos artºs 15º e 16º do Dec-Lei nº 54/75, de 12/2.

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DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, o qual se substitui por outra que ordena a imediata apreensão do veículo de matrícula 65-51-VD, oficiando-se, para tanto, à Polícia de Segurança Pública da área de residência do requerido.
Custas pelo apelado.