Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
27/07.1TBOFR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
ARRENDAMENTO RURAL
RENOVAÇÃO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO
PRÉDIO CONFINANTE
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DE FRADES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1025.º DO CÓDIGO CIVIL E ARTIGO 28.º, N.º 1, DO DL 385/88
Sumário: 1) Sendo impugnada a letra de documento particular, cabe ao apresentante fazer a prova da sua veracidade;

2) O prazo máximo por que o arrendamento pode ser celebrado é coisa diferente do prazo de duração do contrato;

3) Se o arrendamento não for denunciado (nem cessar por outra qualquer razão, como o acordo das partes, a resolução ou a caducidade), renova-se sucessiva e automaticamente no termo do prazo contratado ou legalmente estabelecido, ainda que se ultrapasse o prazo máximo por que pode ser celebrado;

4) O direito de preferência do arrendatário rural prevalece sobre os direitos de preferência concedidos pela lei geral.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal Da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            A, .................desmpredo, e mulher, B...., agricultora, residentes ....., intentaram acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra C..... e mulher, D...., residentes ......, e contra E...., viúva, residente no ....., alegando, em resumo, que:

São donos de dois prédios rústicos, sitos no lugar de T...., freguesia e concelho de O...., que lhe advieram por herança de seus sogros e pais, os quais, por si e antecessores, vêm possuindo, há mais de 20 anos, de forma conducente à sua aquisição por usucapião.

Os réus C..... e mulher, por sua vez, eram donos de um outro prédio rústico, sito no mesmo local, que venderam, por escritura pública lavrada em 16 de Outubro de 2006, à ré E.....

Um dos seus prédios confina, pelo lado sul, com o prédio que foi dos réus, enquanto que o outro está onerado a favor dele com uma servidão de passagem, de pé, com carácter permanente, e com uma servidão de carro ou tractor agrícola, para afolhar e desafolhar.

De tal resulta que lhes assiste o direito de preferência na alienação do prédio dos réus vendedores, seja por serem proprietários confinantes (e, dentre os confinantes os que mais conseguem aproximar-se da unidade de cultura), seja por serem proprietários de prédio onerado com uma servidão de passagem em favor do prédio alienado.

Os réus vendedores não lhes deram conhecimento dos elementos essenciais da alienação, sendo que nenhum dos prédios é urbano ou componente de prédio urbano e todos estão afectos à actividade e aproveitamento agrícolas.

Concluíram, pedindo se lhes atribuísse a preferência na alienação do referido prédio, mediante o pagamento do respectivo preço e demais encargos.

Os réus, regularmente citados, contestaram em conjunto, aceitando a generalidade dos factos alegados pelos autores na petição inicial, mas esclarecendo que o prédio vendido se encontrava arrendado à ré E...., por contrato escrito, celebrado em 1976, contrato esse que é a sequência lógica de um contrato que existia desde tempos imemoriais entre os antepassados do réu C...... e os antepassados do marido da ré E...., facto que é do conhecimento de toda a população de T.... e, também, dos autores, que aí residem.

Acrescentaram que a arrendatária é a pessoa que, segundo a lei, está em primeiro lugar na escala da preferência, já que o respectivo direito só cede perante o do co-herdeiro ou o do comproprietário, o que no caso se não verifica, e que os donos de prédios onerados com servidão de passagem constituída por usucapião não gozam do direito de preferência, só ao alcance dos proprietários de prédios onerados com servidão legal.

Disseram, por fim, que, em data imprecisa do primeiro trimestre de 2006, os autores manifestaram aos réus C..... e mulher interesse na compra do prédio em cuja venda pretendem agora preferir, mas por importância não superior 2.000.000$00, a qual disseram não voltar a subir.

E não passaram sem arguir a má fé dos autores, que acusam de litigar com dolo ou negligência grave, por conhecerem todos os factos alegados na contestação e, não obstante, deduzirem pretensão com consabida falta de fundamento.

Terminaram pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido e, ainda, pela condenação dos autores, como litigantes de má-fé, em multa e em indemnização a seu favor, a liquidar em execução de sentença.

Os autores replicaram, sustentando que o contrato de arrendamento rural celebrado entre os réus se extinguiu em 2001, pelo decurso do seu prazo máximo, que o documento junto para o comprovar é falso, por alteração da data (de 1971 para 1976), que, de qualquer modo, o contrato do mesmo constante tem objecto indeterminado, que o arrendatário rural não tem, hoje, melhor preferência do que o confinante e que não existe da sua parte litigância de má fé.

Requereram, ainda, a ampliação do pedido, de modo a declarar-se que o contrato é inexistente ou, se assim se entender, nulo por vício de forma.

Os réus treplicaram, impugnando, no fundo, tudo o que foi alegado na réplica.

Os autores apresentaram, ainda, um outro articulado, considerado inadmissível e cujo desentranhamento foi, por isso mesmo, ordenado.

No despacho saneador foi admitida a ampliação do pedido e declaradas, no mais, a validade e a regularidade da lide.

A selecção da matéria de facto (factos assentes e base instrutória) foi alvo de reclamação, atendida.

Realizado o julgamento e respondidos, sem reparos, os pontos de facto da base instrutória, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido.

Inconformados, os autores interpuseram recurso (qualificado como apelação, a que foi fixado efeito devolutivo) e apresentaram a sua alegação, que concluíram assim:

1) O contrato de arrendamento apresentado enferma de vício que o torna nulo ou, pelo menos, ineficaz;                    

2) Assim, não havia no critério da preferência contrato de arrendamento válido;

3) O artigo 28.º do Decreto-lei n.º 385/88 (Lei do Arrendamento Rural) não confere ao arrendatário rural prevalência ou prioridade sobre o proprietário confinante que pretenda, também, preferir;

4) À preferência que, assim, assiste aos autores acresce aqueloutra derivada de o seu prédio confinante com o alienado ser deste serviente, de pé e de carro ou tractor agrícola e de rego;

5) Foram violados os artigos 28.º do Decreto-lei n.º 385/88 e 1380.º e 1355.º do Código Civil.

Concluíram pela revogação da sentença e pelo reconhecimento de que gozam do direito de preferência.

Os réus responderam à alegação dos autores, onde defenderam a correcção da sentença apelada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Sabendo-se que o recurso é balizado pelas conclusões da alegação do recorrente, são estas as questões a resolver:

a) A validade do contrato de arrendamento rural celebrado entre os réus;

b) O direito de preferência do arrendatário rural em confronto com o do proprietário de prédio confinante e com o do proprietário de prédio encravado.

II. Na sentença recorrida foram dados por assentes os seguintes factos:

1) Os autores são proprietários dos seguintes prédios:

a) Prédio rústico, denominado “..Y...”, culto, com um castanheiro, com a área de 1140 m2, sito nos limites do lugar de T...., freguesia de O...., a confinar de norte com F...., nascente com G...., sul com C.... e poente com H......, inscrito na matriz sob o artigo .....º e descrito na Conservatória do Registo Predial de O.... sob o n.º ...., aí inscrito a favor da autora;

b) Prédio rústico denominado “W...”, culto, com a área de 1210 m2, nos mesmos limites, a confinar de norte com G...., nascente com I.... , sul com J.... e caminho e poente com L..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do registo Predial de O.... sob o nº ..., freguesia de O...., e aí inscrito a favor da autora.

2) Os autores, por si e antepossuidores, há mais de 20 anos, que nos prédios referidos em 1), de forma permanente e ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição, como se de coisa própria se tratasse e na convicção de exercerem um direito próprio, que vêm, semeando, colhendo, plantando árvores, fazendo obras e retirando todas as suas potencialidades desses prédios.                                                                      

3) Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de O.... em 16 de Outubro de 2006, os primeiros réus declararam vender e a segunda ré declarou comprar o prédio rústico, denominado “W.....”, culto, com videiras, com a área de 2600 m2, sito nos limites do lugar de T...., freguesia e concelho de O...., a confinar de norte com B..., nascente e poente com M.... e sul com I...., omisso no registo predial e inscrito na matriz sob o artigo 1889.º, pelo preço de € 13. 716,94 (treze mil setecentos e dezasseis euros e noventa e quatro cêntimos).

4) O prédio referido em 1), alínea a), confina pelo lado sul com o prédio referido em 3) e a soma das áreas destes dois prédios é, dos prédios confinantes, a que mais se aproxima da unidade de cultura fixada para a região.

5) Existe no prédio identificado em 1), alínea b), constituída há mais de 20 anos, uma passagem de pé, carro e tractor agrícola, que se revela por sinais visíveis e permanentes – trilho, terra batida pelo calcorrear das pessoas na passagem de pé –, quer pelos portais, cuja largura permite o trânsito de veículos, com carácter permanente, para afolhar e desafolhar, que os réus vendedores e os seus antepossuidores, utilizam para acederem ao prédio referido em 3, saindo na “estrada nacional 16”( lado direito, sentido T..../ Z....) e entrando pelo portal existente na estrema poente do prédio referido em 1), alínea b), em cerca de 10/15 metros  em linha recta e flectem para a esquerda (para norte) em direcção a outro portal (na estrema norte) em direcção ao prédio referido em 3) e aí entrando.

6) Os réus vendedores, antes da escritura referida em 3), não deram conhecimento aos autores da venda aí aludida e suas principais condições.

7) Os prédios referidos em 1) e 3) estão afectos à actividade e aproveitamento agrícolas.

8) Por documento escrito intitulado “Contrato de arrendamento rural”, assinado por N.....e O......, datado de 30 de Março de 1976 e entregue e registado na Repartição de Finanças de O...., consta que: “No dia 30 de Março de 1976, foi reduzido a escrito um contrato de arrendamento rural já existente desde 1963 entre o senhorio N... residente em O.... e o rendeiro O..., residente no lugar de T...., freguesia e concelho de O...., tendo como objecto os terrenos de cultura pertencentes ao primeiro dos outorgantes, sitos no dito lugar de T..... Entre ambos foi acordado o pagamento da renda anual de 5700$00 (cinco mil e setecentos escudos) a ser efectuado no domicílio do senhorio depois de feitas as colheitas”.

9) Os autores procederam ao depósito, nos presentes autos, da quantia de € 13.997.08, referente ao preço da venda referida em 3) e outras despesas.

10) O contrato referido em 8) é sequência de um contrato que existia desde tempos imemoriais entre os antepassados do réu C.... e os antepassados do marido da ré E....a.

11) Os prédios mencionados em 1) são os que são objecto da declaração mencionada em 8).

12) Quer os antepassados da ré E....a, o marido desta e, agora, esta, quase diariamente cultivam o prédio referido em 3).

13 Lavrando, semeando, colhendo, podando e regando.

14) Mediante contrapartida.

15) O que fazem na sequência do contrato referido em 8).

16) Os factos referidos de 10) a 15) são do conhecimento dos autores, há já muitos anos.

            Mais se provou que:

            17) C.... é filho de P... e de N... – assento de nascimento junto a folhas 106.

            18) O... faleceu, no estado de casado com E....a, em 06.01.1982 – assento de óbito junto a folhas 107.

            III. O direito:

            a) A validade do contrato de arrendamento

            Os autores intentaram a presente acção, com vista ao exercício do direito de preferência na venda de um prédio rústico, efectuada pelos réus C.... e mulher à ré E....a, alegando, para tanto, serem proprietários de dois prédios confinantes com o vendido, um dos quais, para além disso, está onerado, em benefício deste, com uma servidão de passagem constituída por usucapião.

            O seu direito entroncaria, afirmam, no disposto nos artigos 1380.º e 1555.º do Código Cível, diploma de que serão todos os preceitos que vierem a ser citados sem menção de origem.

            A posição dos réus, vertida na contestação, é a de que os autores não têm o direito que reclamam, na medida em que o prédio em questão foi vendido a arrendatário rural, que dispõe de melhor preferência do que o confinante e do que o proprietário de prédio onerado com servidão legal de passagem. 

            Para comprovar o alegado, concretamente que a compradora era arrendatária do prédio vendido, juntaram certidão de um documento, encimado pelo título “contrato de arrendamento rural”, assinado por N.... e por O..., datado de 30 de Março de 1976, do qual consta que, nesse dia, foi reduzido a escrito um contrato de arrendamento rural já existente desde 1963, entre o senhorio N... e o rendeiro O..., tendo como objecto os terrenos de cultura pertencentes ao primeiro dos outorgantes, sitos no lugar de T...., freguesia e concelho de O.....

            Na réplica, os autores sustentaram a invalidade do contrato de arrendamento, o que lançaria por terra a tese dos réus, com base na seguinte argumentação:

            O contrato de arrendamento em questão foi celebrado, efectivamente, em 1971, pelo que caducou em 2001, uma vez que a duração máxima do arrendamento é 30 anos (artigo 1025.º); para justificar a preferência da ré E...., que dependia da existência de arrendamento com mais de três anos à data da escritura de compra e venda, os réus adulteraram a data do contrato, de 1971 para 1976; o contrato de arrendamento é, pois, inexistente, não podendo fundamentar o invocado direito de preferência.

            Na sentença considerou-se que o arrendamento era válido, por ter sido celebrado na forma prescrita no artigo 3.º do decreto-lei 385/88, de 25 de Outubro, que disciplinou o regime geral do arrendamento rural, e por não ter resultado provada a tese da adulteração aventada pelos autores.

            Ora, que dizer das posições expostas?

            Em primeiro lugar, que os autores/recorrentes lavram nalguma confusão.

            Se fosse correcta (não é, como se verá) a tese de que o contrato de arrendamento caduca logo que atingido o prazo máximo por que pode celebrar-se, então o contrato de arrendamento rural referido nos autos teria caducado muito antes de 2001, uma vez que, conforme consta do documento de redução a escrito, teve o seu início em 1963; na pior (para os recorrentes) das hipóteses, teria caducado em 1 de Junho de 1997, ou seja, 30 anos depois da entrada em vigor do novo Código Civil (artigos 1025.º e 297.º, n.º 1, deste diploma, e artigo 2.º, n.º 1, do decreto-lei 47344, de 25 de Novembro de 1966, que o aprovou).

            Se a contagem se iniciasse, como parece ser o seu entendimento, no dia da redução do contrato a escrito, então era indiferente, para a sorte da tese que defendem, ter sido celebrado em 1971 ou em 1976, porque, em qualquer caso, os 30 anos de duração máxima do contrato seriam atingidos antes da realização da escritura de compra e venda, que teve lugar a 16 de Outubro de 2006.

            Em segundo lugar, que a sentença também não viu a situação pelo prisma mais correcto, quando considerou que cabia aos ora recorrentes fazer a prova de que a data do contrato de arrendamento foi alterada de 1971 para 1976.

            É que, a partir do momento em que a letra foi impugnada, no que tange à data, cabia aos réus, por se tratar de documento particular, fazer a prova da sua veracidade (artigo 374.º, n.º 2). A eles incumbia demonstrar, portanto, que o contrato de arrendamento foi assinado no ano de 1976, caso a data fosse relevante.

            Coloquem-se, então, as coisas no seu devido lugar.

            A preferência do arrendatário rural pressupõe a existência de contrato de arrendamento com, pelo menos, três anos de vigência (artigo 28.º, n.º 1, do decreto-lei n.º 385/88, de 25 de Outubro).

            Quando o contrato de arrendamento rural discutido nos autos foi celebrado (em 1963, como se vê do documento de redução a escrito apresentado pelos réus, do que os autores não discordaram), vigorava a regra da consensualidade, dado a lei em vigor, ao tempo (Lei n.º 2114, de 15 de Junho de 1962), não exigir formalidade especial. O actual Código Civil, que entrou em vigor em 1 de Junho de 1967, também nada alterou neste particular (artigos 1064.º e seguintes).

            A alteração chegou com o advento da revolução dos cravos. O decreto-lei n.º 201/75, de 15 de Abril, passou a exigir a forma escrita para o contrato de arrendamento rural, inclusive os de pretérito, para os quais estabeleceu um prazo, conquanto não cominasse a inobservância da lei com a sanção da nulidade, mas com meras consequências processuais (artigos 2.º, 39.º e 46.º).

            A lei n.º 76/77, de 29 de Setembro, que se lhe seguiu no tempo, manteve, no essencial, a situação; estabeleceu um prazo, escalonado no tempo, para os contratos de pretérito, mas continuou a evitar a sanção da nulidade, contentando-se com constrangimentos processuais (artigos 3.º, 4.º e 42.º).

            A lei em vigor (DL 385/88, de 25 de Outubro, como já se disse) estabeleceu a obrigatoriedade de redução a escrito para todos os contratos, mesmo os referentes a agricultor autónomo (artigo 3.º, n.º 1), mas esclarecendo que o regime só se aplicava aos contratos de pretérito a partir de 1 de Julho de 1989 (artigo 36.º, n.º 3). A sanção para a falta de forma passou a ser a nulidade (atípica, como emerge dos n.ºs 3 e 4 do artigo 3.º), acompanhada de consequências processuais (recusa de recebimento de acção judicial ou do seu prosseguimento, sob pena de extinção da instância, que não seja acompanhada de exemplar do contrato, a menos que se alegue que a falta é imputável à parte contrária – n.º 5 do artigo 35.º).

            Sob o aspecto formal, nada há que se aponte ao contrato de arrendamento rural invocado pelos réus, evidente que é que foi reduzido a escrito, em conformidade com as apontadas disposições do DL 385/88.

            A questão que, verdadeiramente, se coloca é a de saber se, aquando da venda do prédio, o contrato estava, ou não, em vigor.

            Na óptica dos autores/recorrentes, não, devido a caducidade, decorrente da ultrapassagem do prazo de duração máxima do arrendamento, estabelecido no artigo 1025.º do Código Civil.

            Mas continuam a confundir o inconfundível; prazo de arrendamento nada tem a ver com prazo de duração do contrato. O arrendamento rural (como o arrendamento urbano, também) tem um prazo mínimo (10 ou 7 anos, nos termos do artigo 5.º, n.ºs 1 e 2 do DL 385/88) e um prazo máximo (30 anos, consoante o falado artigo 1025.º do Código Civil, que é norma geral de locação, aplicável, portanto, ao arrendamento rural),[1] pelo qual pode ser celebrado; se no contrato tiver sido estipulado prazo inferior ao mínimo legal, é este que vale; se tiver sido estabelecido prazo superior ao máximo, considera-se reduzido a tal limite.

            A duração do contrato não tem prazo estabelecido; depende, no fundo, da conduta e da vontade das partes. Desde que o não façam cessar por mútuo acordo, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, não o denunciem ou resolvam, em conformidade com o prescrito nos artigos 17.º a 21.º do citado DL, nem ocorram factos geradores da sua caducidade (artigos 22.º a 25.º), o contrato renova-se sucessiva e automaticamente, no termo do prazo contratado ou legalmente estabelecido (n.º 1 do artigo 18.º).

            É este, aliás, o entendimento de Aragão Seia, quando escreve que o artigo 1025.º do Código Civil se refere aos prazos por que os contratos de arrendamento são celebrados e não aos prazos da sua duração, por motivo das sucessivas renovações (Arrendamento Urbano, comentário ao artigo 10.º do RAU, nota 1).

            E a mesma ideia transparece do mencionado acórdão do STJ, de 21.01.2003, quando se esclarece, em face de argumento avançado pelos recorrentes, que o contrato de arrendamento rural aí considerado não se podia ter renovado no termo do prazo máximo fixado por lei (na hipótese, 30 anos sobre a entrada em vigor do actual Código Civil), por ter caducado no ano anterior, com a morte do filho do primitivo arrendatário, a quem o arrendamento fora transmitido por óbito do pai. Ou seja, afastou-se a renovação por ter caducado o contrato em consequência da morte do arrendatário e não porque o decurso do prazo máximo de celebração legalmente fixado a impedisse.

            Pois bem: o prédio sobre o qual os recorrentes pretendem exercer o direito de preferência foi arrendado pela sua, então, proprietária ao marido da ré E....em 1963. Em 30 de Março de 1971 ou de 1976[2], o arrendamento foi reduzido a escrito. Falecido o primitivo arrendatário em 6 de Janeiro de 1982, o arrendamento transmitiu-se para a ré E....(artigo 23.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do DL 385/88). O contrato nunca foi denunciado ou resolvido nem caducou por qualquer das formas previstas na lei (pelo menos, que tenha sido alegado). Logo, mantinha-se em vigor à data da venda do prédio, em decorrência necessária do disposto no n.º 1 do artigo 18.º daquele diploma.

            O contrato é, pois, válido, ao contrário do que os recorrentes pretendem.

            b) O direito de preferência do arrendatário rural

             

            Na sentença considerou-se que a recorrida E...., porque arrendatária do prédio vendido, tinha melhor preferência do que os autores, em razão do que se julgou a acção improcedente.

            Entendem estes que a sua preferência, derivada, tanto da contiguidade, como do facto de um dos seus prédios estar onerado com servidão legal de passagem, não cede perante a do arrendatário rural, antes os coloca em igualdade de circunstâncias com ele.

            Assentemos, porque a matéria de facto disponível é, neste ponto, completamente clara, que os autores/recorrentes são donos de dois prédios rústicos confinantes com o vendido, um dos quais perfaz com ele a área que mais se aproxima da unidade de cultura fixada para a região, estando o outro onerado com uma servidão de passagem constituída por usucapião.

            Na sentença não se chegou a tomar posição sobre se a alegada preferência dos autores no caso concreto[3], na base de que a questão ficava prejudicada com o entendimento de que o direito de preferência do arrendatário rural sobrelevava o do proprietário de prédio confinante e o do titular de prédio onerado com servidão legal de passagem.

            E, se assim for, é evidente que não interessa saber se os autores chegam a gozar, efectivamente, do direito que invocam, na medida em que a venda teria sido efectuada a melhor preferente.

            Importa apurar, assim, se o direito de preferência conferido ao arrendatário rural pelo artigo 28.º, n.º 1, do DL 385/88, por um lado, e o direito da mesma natureza atribuído aos donos de terrenos confinantes e de prédios onerados com servidão legal pelos artigos 18.º do DL 384/88, de 25 de Outubro, e 1380.º do Código Civil e pelo artigo 1555.º deste último diploma, respectivamente, por outro, são iguais entre si ou se há entre eles diferenças qualitativas, favoráveis ao primeiro, como se concluiu na sentença.

            O direito de preferência do arrendatário rural teve expressão, pela primeira vez, no decreto-lei n.º 201/75, de 15 de Abril, e continuou nos diplomas subsequentes que disciplinaram ou disciplinam a matéria, ou seja, na Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro, e no decreto-lei 385/88, que está, ainda, em vigor, embora nem sempre com a mesma configuração.

            No DL 201/75 legislou-se assim: “na transmissão por acto entre vivos do direito de propriedade sobre o prédio arrendado ou de quota ideal de prédio indiviso arrendado têm preferência, por ordem de menção, o rendeiro cultivador directo, as cooperativas de produção de pequenos agricultores e trabalhadores rurais existentes no concelho onde o prédio se situa, e o Instituto de Reorganização Agrária, seguindo-se os demais titulares de direitos de preferência previstos na lei geral. Esta regra cede, contudo, em face do direito de preferência do co-herdeiro e do comproprietário” (n.º 1 do artigo 25.º).

            Não há a menor dúvida, tendo em conta a redacção do preceito, de que o direito de preferência do confinante e do onerado com servidão legal de passagem, porque previstos na lei geral, cediam perante a preferência do arrendatário; os únicos que se lhe sobrepunham eram o co-herdeiro e o comproprietário.

            A lei n.º 76/77 avolumou mais, ainda, o direito do arrendatário, conferindo-lhe a preferência absoluta (artigo 29.º); agora, até o co-herdeiro e o comproprietário foram preteridos.

            O DL 385/88 dispôs de forma muito semelhante ao que o fizera o DL 201/75, conquanto sem a mesma clareza no que se refere à hierarquização do direito; atribuiu a preferência na venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado aos arrendatários com, pelo menos, três anos de vigência do contrato (n.º 1) e acrescentou que o direito cedia perante o exercício do mesmo direito por co-herdeiro ou comproprietário (n.º 2).

            Resta saber se o legislador de 1988, apesar de não ordenar as várias preferências, como o fizera o legislador de 1975, quis retomar a solução inicial deste, ou, pelo contrário, igualar todos os preferentes atrás do co-herdeiro e do comproprietário.

            A ideia que faz mais sentido é a retoma da solução original, que é como quem diz, a colocação do co-herdeiro e do comproprietário à frente do arrendatário, mantendo este a distância que o separava dos restantes preferentes.   

            Só assim ganha consistência a linha de força predominantemente orientadora do DL 385/88, claramente afirmada no seu preâmbulo, de modernizar a agricultura portuguesa, através da implementação de condições de ligação efectiva das pessoas à terra, de que é primado a estabilidade do rendeiro.

            Foi na prossecução deste desígnio que se alargou o prazo mínimo do contrato, se adoptou, de uma vez por todas, a forma escrita e se dilatou o prazo de protecção dos investimentos.

            Tudo medidas centradas na defesa do instituto do arrendamento como motor do desenvolvimento da agricultura e, consequentemente, da melhoria da actividade produtiva do país.

            Não teria qualquer lógica, neste contexto, o regime de paridade com as diversas preferências previstas na lei geral, que, muito provavelmente, a mais não conduziria do que ao “disparar” do preço da terra (cfr. o artigo 1380.º, n.º 3), com resultados negativos para o futuro da agricultura, mormente ao nível dos investimentos, dada a incerteza dos arrendatários quanto à manutenção das suas explorações.

            A posição que aqui se defende foi sustentada, com inegável brilhantismo, aliás, no acórdão do STJ, de 25.06.2003 (acessível em www.dgsi.pt)[4], que, desvalorizou a circunstância de a lei não afirmar categoricamente que o direito de preferência do arrendatário rural só cedia perante o direito do co-herdeiro ou comproprietário, para realçar, antes, a identidade de redacção entre a parte final do n.º 1 do artigo 25.º do DL 201/75 e o n.º 2 do artigo 28.º do DL 385/88 e, bem assim, a garantia de estabilidade do arrendatário declarada no preâmbulo deste último diploma e, daí, concluir pela melhor preferência do mesmo.

            Como, de forma exemplar, aí se escreveu, com referência à intenção do legislador, “se tivesse querido ir mais além, impunha-se que expressamente o dissesse, pois tal constituiria uma modificação profunda do regime do direito de preferência do arrendatário”.   

            Não é crível, de facto, que, se o legislador pretendesse cercear um direito já arreigado no panorama jurídico português, mantivesse a afirmação da sua cedência em face de outro e não esclarecesse o que quer que seja em relação aos demais.

            A presunção de que consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), deixa seguro que a intenção visada foi a reposição do sistema de DL 201/75. 

            Em conclusão, o direito de preferência do arrendatário rural prevalece sobre todos os outros, com excepção do conferido ao co-herdeiro e ao comproprietário.

            O que afasta o direito de preferência invocado pelos recorrentes, que, por isso mesmo, não tinham de ser notificados para o exercer.

            Não merece censura, pois, a sentença recorrida, que haverá de ser confirmada.

            IV. Em resumo:

           

            1) Sendo impugnada a letra de documento particular, cabe ao apresentante fazer a prova da sua veracidade;

            2) O prazo máximo por que o arrendamento pode ser celebrado é coisa diferente do prazo de duração do contrato;

            3) Se o arrendamento não for denunciado (nem cessar por outra qualquer razão, como o acordo das partes, a resolução ou a caducidade), renova-se sucessiva e automaticamente no termo do prazo contratado ou legalmente estabelecido, ainda que se ultrapasse o prazo máximo por que pode ser celebrado;

            4) O direito de preferência do arrendatário rural prevalece sobre os direitos de preferência concedidos pela lei geral.

            V. Decisão:

            Em face do que se expôs, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, nessa medida, em confirmar a sentença recorrida.

            Custas pelos apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.


[1] Neste sentido, o acórdão do STJ, de 21.01.2003, in CJ/STJ, Ano XI, Tomo I, página 25, que cita, em abono da sua tese, Aragão Seia, Manuel Calvão e Cristina Aragão Seia, Arrendamento Rural, 3.ª edição, página 42, notas 9 e 10.
[2] O ano da celebração é, como se esclareceu, irrelevante, embora se deva dizer que faz muito mais sentido o ano de 1976 do que o de 1971, uma vez que a redução obrigatória dos contratos a escrito nasceu com o DL 201/75, de 15 de Abril; resulta, de facto, incompreensível que os outorgantes tivessem celebrado o acordo por forma verbal e o reduzissem a escrito poucos anos depois, quando isso não era obrigatório, nem constituía prática usual na sociedade portuguesa do tempo (quando, como soe dizer-se, a palavra valia uma escritura).
[3] Os réus aceitaram, em tese, claro, a preferência baseada na contiguidade dos prédios e da aproximação das áreas de ambos à unidade de cultura, mas não a emergente do ónus de ceder passagem, arrimando-se ao acórdão do STJ, de 01.02.1994, in CJTSTJ, Ano II, Tomo I, página 75).  
[4] E, também, nos acórdãos do mesmo Tribunal, de 04.03.2002 (www.dgsi.pt) e de 20.05.1997 (revista 825-A/96) e no acórdão da Relação de Évora, de 10.11.2005, CJ, Ano XXX, Tomo V, página 262.