Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4067/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: SERAFIM ALEXANDRE
Descritores: TAXA DE JUSTIÇA DEVIDA PELA EXECUÇÃO
DE UMA COIMA APLICADA PELA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
Data do Acordão: 01/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 89º, N.º 2 E 3, DO DL 433/82 E 23º, N.º 2, DO C. C. JUDICIAIS
Sumário: A promoção, pelo M.º Público, nos termos do art.º 89º, n.º 2 e 3, do D. L. n.º 433/82, da execução de uma coima aplicada pela Direcção-Geral de Viação, não está sujeita ao pagamento da taxa de justiça prevista pelo art.º 23º, n.º 2, do C. C. Judiciais, não só porque age em função de uma obrigação que a lei directamente lhe confere, como o acto da autoridade administrativa que se executa não é um acto de mera administração mas sim um acto que prossegue um interesse de ordem pública (de execução de política criminal).
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:

No tribunal da comarca de Albergaria-A-Velha correm termos os autos n.º 1105/04 em que ocorre o seguinte:
- A Direcção-Geral de Viação aplicou ao arguido A...., melhor identificado nos autos, a coima de 90,00 euros por ter violado o art.º 85º, n.º 4, do C. da Estrada;
- Não tendo o arguido pago a referida coima, aquela entidade remeteu ao M.º Público o competente processo para efeitos de execução, nos termos do art.º 89º, n.º 3, do D. L. 433/82, de 27 de Outubro;
- Apresentado, pelo M.º Público, o respectivo requerimento executivo, a Secretaria apresentou os autos ao M.º Juiz solicitando que determinasse se as petições devem ser distribuídas ou se haverá lugar à recusa prevista no art.º 474º, al. f), do C. P. Civil, face ao não pagamento prévio da taxa de justiça devida pela promoção de execução, nos termos do art.º 23º, n.º 2, do CCJ;
- Foi então proferido o seguinte despacho:
Vem a sra secretária expor dúvidas quanto ao não pagamento de taxa de justiça inicial na presente execução por coima por parte do Ministério Público.
De facto, antes da actual versão, o art.2º do CCJ estabelecia que o Ministério Público estava isento de custas.
Assim, e seguindo a letra expressa da lei, nunca o Ministério Público pagava custas, fosse qual fosse as vestes em que interviesse num processo judicial
No entanto, tal norma foi alterada, na redacção do CCJ introduzida pelo DL 324/2003 de 27 de Dezembro.
Actualmente, estabelece o art. 2º do CCJ que “Sem prejuízo do disposto em lei especial, são unicamente isentos de custas: a) O Ministério Público nas acções, procedimentos e recursos em que age em nome próprio, na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei”.
Ora, a dúvida que imediatamente se coloca aos operadores judiciários é a de definir quais os casos em que o Ministério Público age em nome próprio na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei.
De facto, atendendo a que o Ministério Público age sempre em representação do Estado (entendido em sentido amplo), a definição dos casos em que a lei pretendeu que este pagasse custas toma-se tarefa algo espinhosa, não isenta de dificuldades.
Refere o preâmbulo da actual lei, no que tange ao pagamento de custas por parte do Ministério Público:
“Neste particular, estende-se aos processos de natureza cível o princípio geral de sujeição do Estado e das demais entidades públicas ao pagamento de custas judiciais (...). Com efeito, e por maioria de razão, não faria sentido que, sendo essa a regra na jurisdição administrativa, a mesma não fosse também aplicável na jurisdição comum.
Tal medida reveste carácter essencial para a concretização plena do direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, garantindo uma efectiva igualdade processual entre a Administração e os cidadãos. Introduz-se, pois, também neste domínio, um factor de responsabilização acrescida do Estado e das demais entidades públicas pelas consequências derivadas das suas actuações e do seu comportamento processual, contribuindo, com claros benefícios para a comunidade globalmente considerada, para a moralização e racionalização do recurso dos tribunais.
Esta alteração não prejudica, obviamente, a actuação do Ministério Público que, independentemente da sujeição ao pagamento de custas por parte dos seus representados, continua a gozar de isenção nas acções e procedimentos para os quais disponha de legitimidade própria, tendo naturalmente em conta os superiores interesses em causa neste âmbito”.
Conjugando o preâmbulo da lei com o normativo do art. 2º parece resultar que a lei quis isentar o Ministério Público de custas apenas nos casos em que. estejam em causa os interesses da Colectividade, e a sua defesa seja tarefa directamente confiada ao MP, isto é, nos casos em que o Ministério Público seja o representante directo da colectividade sem intermediação de outros organismos integrados na Administração Pública.
Em causa, está portanto, a distinção entre Estado Colectividade e Estado Administração.
O Estado Colectividade é “uma forma social de vivência organizada. Uma comunidade de pessoas com organização política e jurídica, fixa num território, prosseguindo com independência e através de órgãos constituídos por sua vontade, a realização de ideias e interesses próprios” (,,,) (...)corresponde às tarefas principais de criação do direito e à definição de política geral do país, segundo um regime jurídico constitucional — (ver António da Costa Neves Ribeiro, O Estado nos Tribunais, Coimbra Editora, 2~ edição, 1994, fls. 73 e 74).
Ora, casos há em que Ministério Público representa directamente esta colectividade constituída em Estado. E porque entre o MP e a Colectividade, nenhum organismo se interpõe, age em “nome próprio, na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados”.
E age em representação da colectividade, indubitavelmente, quando:
a) exerce a acção penal;
b) assume a defesa dos interesses colectivos e difusos;
c) defende a independência dos Tribunais, na área das suas atribuições e vela para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis
d) fiscaliza a constitucionalidade dos actos normativos;
e) intervem nos processos de falência e de insolvência e em todos os que envolvam interesse público;
f) recorre sempre que a decisão seja efeito de conluio das partes no sentido de fraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa.
(c. art. 3º do Estatuto do Ministério Público)
Em todas as situações enumeradas estão em causa os fundamentos da colectividade, constitucionalmente consagrados e que prevalecem sobre as políticas conjunturais e variáveis em função de critérios de oportunidade.
A par do Estado Colectividade, surge o Estado Administração, subordinado ao primeiro e tendente a prosseguir os seus fins.
“O Estado-Administração corresponde à noção restrita do Estado, enquanto pessoa colectiva que, para efeitos de direito interno corporiza, por excelência, a função administrativa do Estado-Colectividade” (obra citada, fls. 49)
O Estado Administração envolve todas as tarefas de gestão, necessárias à prossecução dos fins essenciais do Estado Colectividade. É instrumental relativamente a este, sendo que a forma de realizar os objectivos primários da colectividade podem variar conforme as disponibilidades do momento ou as opções dos responsáveis pelos diversos órgãos.
Ora, a prossecução dessas tarefas estaduais são cometidas quer a serviços públicos integrados na Administração — Direcções Gerais, Unidades Militares ou militarizadas, entre outras -, quer a serviços personalizados — institutos públicos, empresas públicas
Ao Ministério Público cabe igualmente representação de alguns desses serviços.
No entanto, essa representação já não é em nome próprio, na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei”.
Age sim em representação de entes públicos certos e determinados, com uma estrutura e orgânica própria.
Assim, por exemplo, quando o Ministério Público instaura uma acção de reclamação de créditos, age em nome da Administração Tributária.
No caso em apreço, estamos perante a execução de uma coima aplicada por uma direcção geral.
As coimas são a sanção correspondente à prática de uma contra-ordenação. Estas
inserem-se no movimento de descriminalização que visou expurgar do direito penal a tutela de bens de menor coloração ético-social (sobre o tema confrontar, Figueiredo Dias, Para uma dogmática do direito penal secundário, RLJ, n.º 3714-3720 e Manuel da Costa Andrade, Contributo para o conceito de contra-ordenação (a experiência alemã), Revista de Direito e Economia, ano VI e VII, 1980/1981.
Ora, a aplicação do direito das contra-ordenações é, por excelência, do âmbito das autoridades administrativas.
É a estas que compete fiscalizar, processar e aplicar a sanção, sendo que as entidades judiciais só são chamadas a intervir em caso de não conformação do particular com a decisão da entidade administrativa.
Nas execuções por coimas, o papel do Ministério cinge-se, por isso, ao de representante da entidade estadual que aplicou a coima, Direcção Geral de Viação, Direcção Geral dos Transportes Terrestres, etc.
Não age, assim em nome próprio, mas em nome de um qualquer órgão da Administração.
Deve, por isso, estar sujeito ao pagamento de taxa de justiça inicial, nos termos do CCJ — art. 2º n.º 1 a), art.23º n.º 2 e art. 29º n.º 1 a) e 2 e 3.
Em face do exposto, entende-se que deve o requerimento executivo ser rejeitado, o que se determina.”
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É deste despacho que recorre o M.º Público, concluindo:
1. Quando promove, por força da lei, a execução das decisões das autoridades administrativas que sancionam a violação do direito de mera ordenação social, o Ministério Público actua em defesa da legalidade democrática e em representação do Estado — Colectividade.
2. Consequentemente, actua em nome próprio, encontrando-se, por isso, isento de custas, nos termos do artigo 2º n.º 1, al. a) do Código das Custas Judiciais;
3. Assim, ao interpretar a norma em causa no sentido de que o Ministério Público actua em representação do Estado enquanto pessoa jurídica, a decisão recorrida violou-a.
Pelo exposto, deve o despacho da Mma. Juiz a quo ser revogado e substituído por outro que receba o requerimento executivo apresentado.
Vossas Excelências, contudo, melhor apreciará, fazendo, como sempre, Justiça.
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Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
1. A questão controvertida reconduz-se a determinar se o Ministério Público enquanto promotor da execução de coimas na sequência da decisão administrativa e assim exequente - está obrigado ao pagamento prévio da taxa de justiça inicial tal como decidido se mostra no despacho recorrido.
2. No recurso interposto defende-se posição contrária (não pagamento) desde logo perante a imposição constante doo conteúdo da Circular n.º 10/04 da Procuradoria Geral da República, vinculante para o Ministério Público.
Sem embargo, a solução aí preconizada pode sustentar-se na base da disciplina legal pertinentemente instituída nela avultando um apropriado conjunto de considerandos.
3. Assim é que o artigo 1º do C.C. Judiciais define o conceito de custas nele englobando a taxa de justiça inicial e subsequente com eliminação dos preparos, acrescendo uma harmonização actual do conceito de custas na parte cível e parte criminal.
Por sua vez, perante o estatuído no artigo 89º, n.º 2 da Lei-Quadro o Ministério Público detém a competência para promover a execução observando com as necessárias adaptações o disposto no C. P. Penal sobre a execução da multa, de tanto decorrendo a remissão para os artigos 495º e 510º do C. P. Penal, a envolver a previsão aplicativa e subsidiária do C.C.J. e C. P. Civil. Entretanto ao Ministério Público, no artigo 116º, n.º 1 do C.C. Judiciais está cometida a instauração da execução quando ao devedor de custas ou multas forem conhecidos bens penhoráveis.
4. Aqui chegados cumpre realçar que o artigo 2º, n.º 1, a) do C.C. Judiciais previne que ressalvado o disposto em lei especial são unicamente isentos de custas o Ministério Público nas acções, procedimentos e recursos em que age em nome próprio na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei.
Não se duvidará que a execução por custas, ainda que com as suas especialidades, conforma o conceito de acção executiva pois a sua regulamentação e objectivo visam a obtenção coactiva duma prestação ou equivalente patrimonial da pessoa do devedor, estando, pois, enquadrada pelo artigo 4º do C. P. Civil para efeito dos artigos 89º da Lei-Quadro e 2º, n.º 1, a) do C. C. Judicias.
Assinalando-se que o Ministério Público, em tal acção, age em nome próprio que não em representação.
Seja em função dum critério de exclusão, já que não representa nenhuma entidade concreta, seja em função dum critério de directa apreciação na medida em que actua em nome da colectividade, ocorrendo que a própria lei lhe atribui legitimidade e competência para a promoção da execução como resulta duma análise interligada incidente sobre os dispositivos legais mencionados.
5. Em reforço do que vem expendido, pode e deve citar-se o teor da parte preambular do DL 324/03 de 27.12, que no seu n.º 6 esclarece que a alteração do regime de isenção de custas não prejudica a actuação do Ministério Público.
Isto porque, independentemente da sujeição ao pagamento de custas por parte dos seus representados, continua a gozar de isenção nas acções e procedimentos para os quais disponha de competência própria por via de lei expressa na perspectiva realizadora dos superiores interesses confinados e subjacentes a tal domínio.
6. Como assim, a nosso ver, o recurso deve merecer decisão de provimento.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
Como resulta claro de todas as posições acima referidas, o que está em causa é saber se o M.º Público, ao promover a execução de uma coima aplicada pela D. G. de Viação, nos termos do art.º 89º, n.º 2, do D. L. 433/82, age em nome próprio (como referido no art.º 2º do CCJ, na redacção do DL 324/03) ou em representação daquela entidade e, consequentemente, se não é ou é devida a taxa de justiça prevista no art.º 23º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
A resposta surge directamente dos textos legais e da natureza do acto a praticar.
Vejamos:
I- Do art.º 219º.n.º 1, da Constituição decorre que “ao ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como (...) participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”.
Tais princípios são explicitados depois na Lei Orgânica do Ministério Público (art.º 3º e seguintes).
E o referido art.º 89º, n.º 2, do DL 433/82 estabelece que “a execução é promovida pelo representante do Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa”
E o seu n.º 3 diz que “quando a execução tiver por base uma decisão da autoridade administrativa, esta remeterá os autos ao representante do Ministério Público competente, para promover a execução.”
Surge, assim, bem claro que o M.º Público, ao promover a execução das coimas aplicadas pela autoridade administrativa, está a agir em função de uma obrigação que a lei directamente lhe confere, desde logo a própria Constituição..
Assim decidiu já o Ac. da Relação de Lisboa, de 4-11-2004 (http:/WWW.dgsi.pt.nsf/3318).
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II- Mas isso ainda se torna mais claro quando se aprecia a natureza da decisão administrativa ao aplicar uma coima:
- O direito de mera ordenação social é um direito penal administrativo.
- A distinção entre crime e contra-ordenação é, em última instância, jurídico-pragmática;
- São espécies de direito distintos, mas sempre de direito sancionatório: o crime pertence ao direito penal, a contra-ordenação ao direito de mera ordenação social;
Sendo assim, o acto pelo qual a administração aplica uma coima, não é um acto administrativo stricto sensu. É verdadeiramente um acto, seguindo o raciocínio do despacho recorrido, de Estado Colectividade e não de um Estado Administração. É a própria administração que surge aqui como participante na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania. Não exerce um acto de mero interesse da administração. Prossegue um interesse de ordem pública.
Sendo assim, nunca o M.º Público, ao promover a execução destes seus actos (não sendo eles próprios de mero interesse administrativo) poderia agir em mera representação de tais entidades.
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Procedem, assim, as conclusões do recorrente, devendo o despacho recorrido ser revogado.
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Nestes termos, julgando o recurso por provido, se revoga o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que ordene a prossecução da execução sem o pagamento da taxa de justiça inicial
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Sem tributação.
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    Coimbra: