Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1715/16.7PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
REQUISITOS
Data do Acordão: 02/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J I C – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º E 287.º, DO CPP
Sumário: I – O RAI [Requerimento de Abertura da Instrução] apresentado pelo assistente, não tendo por detrás uma acusação que delimite o âmbito do objecto a apreciar, tem de ser estruturado como uma verdadeira acusação, que ainda não existe no processo.

II – O requerimento de abertura da instrução constituirá, pois, nestas situações, o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz de instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.

III – No RAI, o que releva é o seu exato teor quanto ao integrar ou não todos os elementos ou requisitos legalmente exigidos e não propriamente quanto à forma, mais sintética, mais desenvolvida, ou estilo de escrita e descrição do conteúdo.

IV – O RAI preenche os requisitos legais exigidos quando, para alem de críticas e considerações, descreve sem qualquer dúvida, vários factos, quer quanto ao modo, tempo e circunstâncias da sua ocorrência, quer identificando os autores da prática desses factos e, faz a sua integração/subsunção jurídica, imputando-os aos arguidos, descrevendo igualmente o elemento subjetivo, indispensável para a eventual aplicação de uma pena.

Decisão Texto Integral:



I

1. Nos autos de processo de inquérito/instrução supra identificados, em que se investigam factos suscetíveis de integrarem a prática de um crime de furto qualificado p. e p. pelos artigos 202º, al. a) e 204º, nº1, al. a), do Código Penal,

            findo o inquérito, pelo Ministério Público foi proferido o despacho de fls. 79 a 81, no qual determinou o seu arquivamento com o fundamento de não existirem indícios suficientes da sua imputação aos denunciados.

            2. Inconformado com o arquivamento, requereu o assistente …, melhor id. nos autos, a abertura de instrução ao abrigo do artigo 287º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, imputando aos arguidos … e …, a prática, em coautoria, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204º, n.º 1 do Código Penal, em conjugação com o art.º 202º do citado diploma.

            3. Por despacho de fls. 126 a 129, datado de 16.05.2018 e pelos fundamentos que do mesmo constam, não foi admitida a abertura de instrução requerida pelo assistente.

            4. Deste despacho de não abertura de instrução recorre agora o assistente, que formula as seguintes conclusões:
a)       Vem o presente recurso interposto da douta decisão que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, por considerar, em suma, que o mesmo carece de “falta de indicação de factos [que] pode gerar a inexistência do processo e consequente inadmissibilidade do requerimento por falta de objecto”;
b) A decisão de que se recorre padece, salvo o devido e merecido respeito, de falta de fundamento legal que possa de alguma sustentar que o RAI não está devidamente instruído de acordo com as exigências elencadas no artigo 283º, nº3 do CPP.
c) Entende o aqui Recorrente que a decisão em apreço (do Tribunal a quo) só é perceptível à luz de um qualquer lapso de apreciação – próprio da natureza humana – que certamente toldou a análise crítica do Mmo. Juiz. Estamos, pois, perante uma clara e notória falta de correspondência entre a apreciação casuística-legal e o teor do RAI.
d) Assim, passamos a transcrever alguns artigos constantes do aludido requerimento e que se afiguram com relevância para a matéria de que aqui se trata:
“1.º
e) O queixoso (ora requerente) participou criminalmente contra incertos, pelo facto de no dia 25 de dezembro de 2016 (e não no dia 26.12.2016 como decorre de fls. 2 do Inquérito) ter tido conhecimento de que estavam a cortar os seus eucaliptos e a carregá-los (pelo menos parte dos eucaliptos) para uma galera, mais propriamente a galera com a matrícula ….”
- veja-se que no art. 1º o Recorrente localiza a ação no tempo e no espaço e inicia a descrição do tipo objectivo;
“2.º
Os eucaliptos são propriedade do ofendido dado que se encontravam plantados no seu prédio rústico, composto por eucaliptal, com o registo predial nº … da 1ª Conservatória do Registo Predial de (...)”
- o Recorrente mantém a narração dos factos, localizando-os (tipo objectivo);
(...)
“4.º
Foi, assim, com total surpresa que o ofendido teve conhecimento desta situação uma vez que não tinha vendido os seus eucaliptos a ninguém - nem tão pouco concedido qualquer autorização para que procedessem ao seu corte.”
- o Recorrente mantém a narração dos factos (tipo objectivo);
“5.º
(…) ...na noite do próprio dia (25.12.2016) – logo que chegou a - deslocou-se ao seu terreno e constatou que junto ao seu prédio se encontrava uma galera, ainda sem carga (vg. eucaliptos), de matrícula … (tudo cfr. registos fotográficos constantes de fls. 20 a 25 dos autos).”
- o Recorrente mantém a narração dos factos (tipo objectivo) iniciando a identificação das circunstâncias de modo e tempo, tal como os indícios da autoria dos mesmos;
“6.º
No dia seguinte (26.12.2016), por volta das 08h00m, o ofendido deslocou-se novamente ao local e, quando lá chegou, constatou que o reboque (galera de matrícula …) já estava meio carregado com eucaliptos (cfr. fotos de fls. 20 a 22 dos autos) e andava lá um trator florestal (e não um “camião” conforme consta do Inquérito) a carregar as árvores para a galera.”
- o Recorrente mantém a narração dos factos (tipo objectivo) iniciando a identificação das circunstâncias de modo e tempo, tal como os indícios da autoria dos mesmos;
16.º
(...) o/um do(s) indivíduo(s) em causa tem a alcunha de “paga pouco” e que trabalha(va) para a “…” - tudo isto foi relatado pela patrulha da G.N.R. ao ofendido e aos elementos da P.S.P., estando ainda presente, naquele momento, o Sr…, (…)
- o Recorrente mantém a narração dos factos (tipo objectivo) iniciando a identificação das circunstâncias de modo e tempo, tal como os indícios da autoria dos mesmos;
(…)
21.º
(..) no dia 19 de dezembro de 2016 estiveram no seu terreno uma carrinha de marca Toyota, modelo “pickup” de cor azul, com a matrícula … e, também, uma carrinha de marca Toyota, modelo Starlet de cor azul, com a matrícula …,
E,
22.º
Ainda, que o trator (camião) que posteriormente levou a galera (carregada com os eucaliptos) - pelo menos no dia 03 de janeiro de 2017 – é da marca Scania e tem a matrícula … (crf. Fls 18 dos autos) – propriedade da firma “…”.
23.º
Face ao todo o exposto, resulta claro que o comportamento daquele(s) que cortaram os eucaliptos do ofendido e deles se apropriaram não foi precedido de consentimento ou autorização do proprietário,
- o Recorrente continua a narrar dos factos (tipo objectivo) e fornecer mais elementos da identificação das circunstâncias de modo e tempo, tal como os indícios da autoria dos mesmos.;
24.º
Pelo que quem executou ou mandou executar os ditos trabalhos bem sabia, nem podia desconhecer, que estava(m) a entrar em propriedade privada apropriando-se de coisa alheia,
25.º
E que tal comportamento tem um enquadramento jurídico-penal indiscutível, dado que as pessoas visadas (sejam elas mandantes ou mandados), agiram de forma dolosa, livre e consciente, sabendo que a(s) sua(s) conduta(s) era(m) punida(s) por lei, cometendo crime de furto (de eucaliptos) qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 204º, nº 1, do Código Penal conjugado com a al. a) do artigo 202º do mesmo diploma legal,”
- o Recorrente enuncia e descreve o tipo subjetivo e objectivo do crime em apreço.

“26.º
Causando danos na propriedade do ofendido no valor seguramente superior a €8.000,00 (oito mil euros) – valor inicialmente mencionados pelo ofendido - , pois, de acordo com os valores de mercado e a área de plantação do terreno aqui em causa (que neste caso corresponde a 4.850 m2), e se considerarmos um preço de venda na ordem de €30,00/tonelada, e atendendo que, em média, bastam 2,5 árvores para atingir uma tonelada, com um espaçamento de 2 metros entre árvores um hectare tem plantados, em média, 2.500 eucaliptos, logo, cada hectare pode render até 30 mil euros por corte, pelo que ½ hectare (5.000 m2 – área aproximada do prédio do ofendido tal como resulta da caderneta predial junta aos autos a fls. 19) pode render até €15.000,00 dependendo  da idade dos eucaliptos (cuja idade óptima para efeitos de produção de pasta de papel – vg. de acordo com a (...) , mais conhecida pela sua anterior denominação de “ (...) ” – é precisamente os 10 anos de idade).”
- tipo objectivo de crime.

f) Ora, depois de fazer toda a análise crítica e enquadramento da matéria vertida nos autos, nomeadamente – e ao que aqui importa - na fase de Inquérito, e demonstrando as razões da sua discordância sobre o despacho de arquivamento, o Assistente/Recorrente retoma a factualidade identificativa do tipo objectivo de crime e sua autoria:
39.º
Em função de todo o exposto, parece-nos evidente que resultam indícios suficientes de que ao arguido … - quem supostamente cortou os eucaliptos do ofendido-  possa vir a ser aplicada em julgamento uma pena,
40.º
Como, ainda, a testemunha …, legal representante da “…”– empresa que se terá apropriado dos eucaliptos do ofendido, transportando-os e vendendo-os como se de seus se tratassem -  deveria igualmente ter sido constituído arguido em função da apropriação ilegítima dos eucaliptos,
41.º
Pelos documentos juntos aos autos, resulta claro que o dono dos veículos que transportaram os eucaliptos é a “…” cujo representante legal é a testemunha … que de forma lesta apontou o arguido como autor da prática criminosa aqui relatada,”
(...)
“44.º
Não obstante a suposta leveza com que se apontou o dedo ao arguido, parece-nos óbvio que além deste a “…”, na pessoa do seu legal representante, é co-autor material do crime de furto aqui em apreço, pelo que,
45.º
Por assim ser, parece-nos óbvio que o Sr. … deverá constar como autor material da prática do crime aqui em causa,
46.º
Pelo facto de o mesmo não poder deixar de ignorar que a sua conduta era proibida por lei, dolosamente empreendida, de forma ardilosa mas consciente e premeditada,”
(...)
“50.º
Quer dizer, quanto à verificação, no caso, da prática do crime de furto, resulta claro que o mesmo ocorreu,”
(...)
“52.º
Pois não restam dúvidas de que o seu autor foi, pelo menos, o representante legal da “…”,”
(...)
“55.º
Resulta, assim, de todo o exposto, que está suficientemente indiciado que o arguido … e a testemunha … (id a fls 44-46 dos autos) cometeram, em co-autoria, o crime de que aqui se cura e, portanto, deverão os mesmos ser acusados da prática de tal facto,
(...)
59.º
Bem assim, do arguido … que, em co-autoria, praticaram o crime de furto qualificado, devendo ser pronunciados pelos mesmos.
- o Recorrente enuncia e descreve o tipo subjetivo e objectivo do crime em apreço, bem como a sua autoria, culminado com o seguinte pedido:
g) “Termos em que deve o presente requerimento ser admitido e, em consequência, o Sr. … e o arguido … pronunciados pela prática, em co-autoria, do crime de furto (de eucaliptos) qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 204º, nº 1, do Código Penal conjugado com a al. a) do artigo 202º do mesmo diploma legal. “

h) Ora, em função da transcrição aqui trazida de parte do RAI, resulta claro que o Assistente (ora Recorrente) não se limita a descrever as razões de facto e de direito de discordância dos fundamentos do despacho de arquivamento. O Assistente vai mais além, construindo toda uma narração acusatória que – conforme se pode constatar – está devidamente enquadrada no espaço, no tempo e modo de como foi praticado e, bem assim, de quem são os seus autores materiais (vide, p. ex., o pedido formulado).

i) Salvo melhor opinião, o elenco acusatório narrado no RAI está descrito de modo lógico e encadeado e, portanto, perfeitamente perceptível a todos os seus destinatários. Estamos certos que quem, mesmo leigo na matéria, leia o RAI fica ciente de que naquele dia, naquele local, daquele modo e naquelas circunstâncias, aquelas pessoas (tudo e todos ali identificados) deverão ser acusadas pelo prática dos factos que integram o tipo de crime do concreto enunciado (quer quanto ao tipo objectivo, quer quanto ao tipo subjetivo),.

j) O Assistente/Recorrente requereu, ainda, em sede de RAI, a produção acrescida de prova.

k) Face à factualidade aqui demonstrada, estamos em crer que a decisão de que se recorre padece, salvo o devido e merecido respeito, de falta de fundamento legal que possa de alguma sustentar que o RAI não está devidamente instruído de acordo com as exigências elencadas no artigo 283º, nº3 do CPP.


l) Dispõe o nº 2 do artigo 287º do CPP, cuja epígrafe é “Requerimento para abertura de instrução”, que O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.” (sublinhados nossos).

m) Por eu turno, as al.s b) e c) do nº 3 do artigo 283º consignam que a acusação deverá conter:
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis;”

n) Ora , e como já referido não se procede à mera narração dos factos imputados com especial ênfase nos elementos objectivo e subjectivo dos crimes imputados , nos termos supra referidos.

o) O Recorrente, no RAI, narrou devidamente os factos que, em sua opinião, constituem indícios da prática dos crimes participados, e que mereciam uma investigação mais profunda e incisiva, tal como identificou devidamente os seus principais agentes, enquadrando os factos no espaço e no tempo.

p) Com efeito, o RAI indica exaustivamente datas, factos e até espaços, concretizando minuciosamente a atuação ou omissão dos denunciados, repetindo o que, por diversas vezes, já tinha sido apresentado na queixa, e concluindo por remissão relativamente a elementos de prova, conforme a mesma.

q) O RAI descreve factos integradores dos elementos constitutivos do crime  em apreço e que pretende ver imputados aos arguidos. Além disso, descreve ainda circunstâncias de tempo e lugar e identifica devidamente os arguidos.

r) Pelo que não deveria o Juiz a quo ter rejeitado a instrução por inadmissibilidade legal, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do CPP, já que a interpretação deste preceito legal não pode ser realizada de forma restritiva e meramente formalista, sendo necessário enquadrá-la no universo da complexidade dos crimes que poderão estar em causa.

s) Uma interpretação excessivamente formalista e srictu senso do artigo 287.º, parte final, do CPP, resultaria numa limitação efetiva do Acesso ao Direito e aos Tribunais, colidindo e violando o artigo 20.º, da CRP, tal como violaria o princípio da igualdade, estipulado no artigo 13.º, do mesmo diploma, pois coloca o Assistente numa posição de “desigualdade de armas” perante o MP, os quais, perante uma insuficiente investigação, têm os seus meios de reação dificultados, já que não podem narrar factos que ainda não foram alvo de investigação e podem ainda nem sequer ser conhecidos, o que se invoca expressamente.

t) Denote-se que, em bom rigor, a tese defendida na Decisão em crise constitui uma falsa questão, já que o RAI é indissociável da Denúncia/Participação, sendo certo que é esta que constitui a base fundamental da pronúncia (em caso de procedência), acrescida dos elementos carreados para os autos através dos atos de instrução e, portanto, será esta, a final, a verdadeira acusação, proferida pelo Senhor Juiz de Instrução, com respeito pelos princípios de garantia de defesa do arguido e princípio da vinculação temática.

u) Ou seja, é o próprio despacho de pronúncia que terá de conter todos os elementos constitutivos da acusação, despacho esse da competência do Juiz de Instrução e sobre a qual recai toda a defesa do ou dos arguidos, cfr. artigo 308.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.

v) A este propósito o Acórdão do TC nº 674/99, DR II, de 25/2/2000, realça que “a necessidade de uma narração de factos penalmente censuráveis pode ser vista como uma decorrência lógica do princípio da vinculação temática, já que, só deste modo a acusação pode conter os limites fácticos a que fica adstrito o tribunal no decurso do processo (cfr. António Barreiros, Manual de Processo Penal, Universidade Lusíada, 1989, pág. 424).”

w) “Ou seja, a narração dos factos, que constituem elementos do crime, deve ser suficientemente clara e perceptível não apenas, por um lado, para que o arguido possa saber, com precisão, do que vem acusado, mas igualmente, por outro lado, para que o objecto do processo fique claramente definido e fixado. É, assim, imperativo que a acusação e a pronúncia contenham a descrição, de forma clara e inequívoca, de todos os factos de que o arguido é acusado, sem imprecisões ou referências vagas.”
x) No RAI o Recorrente enunciou de forma ordenada e concreta, os factos imputados aos arguidos integradores dos tipos de crime imputados, na sua vertente objetiva e subjetiva, nos mesmos termos que são exigidos ao Ministério Público quando exerce a ação penal, tendo ali plasmado o preenchimento dos elementos objetivos do tipo de crime em causa, não de uma maneira vaga, mas de um modo conciso que permiti a defesa dos arguidos. Apenas a ausência dessa indicação inquinaria, desde logo, a viabilidade de aceitação do RAI, sendo certo que este deve conter, também, os elementos subjetivos do crime (tal como o requerimento em apreço).

y) Em suma, não houve qualquer motivo legal para a não admissão da instrução, devendo a mesma ser admitida com todas as legais consequências.

            Termos em que e com o douto suprimento de V. Exas. deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser admitido, por legalmente admissível, o requerimento de abertura de instrução apresentando pelo Assistente/Recorrente comas demais e devidas consequências legais, assim se fazendo, JUSTIÇA!

            5. O Ministério Público respondeu, concluindo do seguinte modo:
                        1. O requerimento de abertura de instrução deve conter as razões de facto e de direito da discordância relativamente à não acusação e ainda, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; tudo conforme o disposto no artigo 287º, nº 2 do CPP, que remete para o seu artigo 283º, nº 3 b) e c).
                        2. Assim definindo e fixando o objeto do processo e os limites da atividade a desenvolver pelo juiz de instrução, permitindo e garantindo também a defesa do arguido.
                        3. No requerimento de abertura de instrução o assistente alude a alguns factos, mas não procede à narração de factos e circunstâncias como exige o artigo 283º, nº 3 b) do CPP, não descrevendo os factos concretos que imputa a cada um dos arguidos e que integram o crime de furto qualificado denunciado, nem aqueles  que permitem concluir que os mesmos agiram em coautoria.
                        4. Antes, discorrendo sobre as razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento, questiona a apreciação da prova produzida e que fundamenta aquele despacho e indica outra que entende que deveria ter sido recolhida.
                        5. Mais, quando o assistente descreve factos não os imputa a qualquer dos arguidos (cf. pontos 23º, 24º, 25º e 26º do RAI), e ao concluir pela existência de indícios suficientes da prática dos factos e do crime denunciado refere-se àqueles de forma hipotética (cf. pontos 39º, 40º e 52º do RAI).
                        6. Entendemos, pois, que os artigos citados pelo recorrente não contêm a narração de factos e circunstâncias exigidos pelo artigo 283º, nº 3 b) do CPP, a qual tão pouco consta dos restantes pontos do RAI, como melhor resulta da sua leitura; tal não é infirmado pelo demais alegado pelo assistente, sendo que a indicação de prova complementar poderá fundamentar a reabertura do inquérito (cf. art. 279º CPP).
                        7. Assim, omitindo essa narração, entendemos que não cumpre o RAI com os requisitos de uma verdadeira acusação, enfermando de nulidade, pelo que o despacho recorrido, ao rejeitá-lo por inadmissibilidade legal, não violou qualquer norma, devendo ser mantido na íntegra.
                        No entanto, Vossas Excelências decidirão, fazendo JUSTIÇA!

            7. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, pois que o RAI não materializa uma verdadeira acusação.

            8. Veio o recorrido …, através do seu articulado de fls. 186, dizer que concorda inteiramente com o parecer do Ministério Público, pelo que deve o recurso ser julgado improcedente.

9. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II

Questão a apreciar:

A verificação ou não dos requisitos legais do requerimento de abertura de instrução.
      III

O despacho recorrido tem o seguinte teor:

             “No requerimento de abertura de instrução, o Assistente, limita-se a descrever as razões de facto e de direito de discordância dos fundamentos do despacho de arquivamento quanto ao crime em causa não construindo uma acusação com uma descrição encadeada no espaço, tempo e modo dos factos imputados .

Assim no art.º 1º do RAI o requerente alude à queixa por si apresentada ; posteriormente alude às declarações do ofendido que entende que foram confirmadas por depoimentos testemunhais e depois alude à discordância da valoração de tais elementos de prova por parte do MP , sem que , como já referido descreva de modo logicamente encadeado os factos que imputa ao arguido nos seus termos de espaço , tempo e modo relativo à subtracção das árvores que seriam da sua propriedade .


*

No caso de despacho de arquivamento proferido pelo MP, o requerimento de abertura de instrução constitui substancialmente uma acusação com as exigências elencadas no art.º 283º, n.º 3 do CPP.

Ora , no caso concreto foi omitida tal exigência legal.

Em conformidade , dispõe o art. 287º nº 2 do C.P.P. que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre quer disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283º nº 3 b) e c).

Três soluções possíveis se colocam :

- o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, e não se verificando, terá o juiz que abrir sempre a instrução e depois será no debate instrutório onde não pronunciará (cfr. Ac. RL de 12-6-2001, rec. 3437/01);

- o Juiz de Instrução deverá convidar o requerente a aperfeiçoar o seu requerimento (cfr. Ac. R.E. de 16-12-1997, BMJ nº 472, p. 585, Ac. RL de 20-6-2000, C.J., 3º, p. 153);

- não há base legal para o aperfeiçoamento, cfr. Ac. RL de 9-2-2000, C.J., t. 1º, p. 154, Ac. RL de 11-4-2002, C.J., t. 2º, p.147; Ac. STJ de 20-06-2002 , proferido no processo 7084/01- 5ª Secção, não publicado ; Ac. STJ de 11-04-2002 , proferido no processo n.º 471/02-5ª Secção;


*

1. A figura do aperfeiçoamento encontra-se prevista no art.º 508º do CPC e respectivo preceito no actual CPC de 2013 , mas não têm aplicação «ex vi »do art.º 4º no CPP , pois trata-se de um acto perfeitamente anómalo em face de regras procedimentais do processo penal as quais são claras e transparentes mercê dos direitos em causa no âmbito do processo criminal.

O anómalo aperfeiçoamento a existir teria de ser concedido a tudo e a todos, o que implicava a existência de aperfeiçoamentos de acusações. O processo penal português tem, como refere o Prof. Figueiredo Dias (Princípios estruturantes do processo penal, in Código de Processo Penal, vol. II, t. II, p. 22 e 24, Assembleia da República), uma “estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação oficial”, estabelecendo-se por força do princípio da acusação que a entidade julgadora não pode ter funções de investigação e de acusação no processo antes da fase de julgamento, podendo apenas investigar dentro dos limites da acusação fundamentada e apresentada pelo Ministério Público ou pelo ofendido (lato sensu), onde se inclui o requerimento de abertura de instrução.

Ou, nas considerações de juristas, não menos eminentes – Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira , Constituição da República Anotada , 3ª edição , p. 206 «… A estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais , a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo . Daqui resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar , directamente ou por convite ao assistente requerente da abertura de instrução…»;

A admitir o anómalo aperfeiçoamento da acusação ou do requerimento da abertura de instrução, constituiria uma violação do princípio do acusatório, ao ver a entidade julgadora a ter funções de investigação antes do julgamento, o que certamente, o actual C.P.P. não pretende. Por outro lado, como assinala o Ac. da Relação Lisboa nº 10685/2001, rel. Dr. Trigo Mesquita, "(...) o convite dirigido às partes, pelo juiz, para a correcção de peças processuais, implica uma cognoscibilidade prévia, ainda que perfunctória, da solução do pleito, interfere nas funções atribuídas às partes e seus mandatários e pode criar falsas convicções quanto aos caminhos a seguir por forma a obter uma decisão favorável da causa".

2. Não tem aplicação , no caso, a reparação oficiosa da irregularidade processual prevista no art.º 123º, n.º 2 do C:P, já que tal insuficiência não é susceptível de reparação oficiosa em virtude da violação do princípio do acusatório .

3. Não pode, no caso, ter aplicação o disposto no art.º 288º, n.º 4 do CPP que refere que incumbe ao juiz investigar autonomamente os factos que constituem objecto da instrução , já que , o que está verdadeiramente em causa é a falta de factos ( os factos integradores subjectivamente do crime) ;

O STJ veio a tomar posição quanto à questão no Ac. STJ de 7/2005 de fixação de jurisprudência entendendo que « Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução , apresentado nos termos do art.º 287º, n.º 2 do CPP , quando for omisso em relação à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido» , publicado no DR 1-A Série , de 4 de Novembro de 2005 .

Em suma , a "falta de indicação de factos pode gerar a inexistência do processo e consequente inadmissibilidade do requerimento por falta de objecto"(Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, verbo, vol. 3º, 2ª ed., p. 144 nota 3), como é o caso .

Assim, por inadmissibilidade legal, rejeito o requerimento de abertura de instrução (art. 287º nº 3 do C.P.P.) nos termos expostos e não admito a abertura da instrução .

Após , transito , arquive-se”.

IV

Apreciando:

A verificação ou não dos requisitos legais do requerimento de abertura de instrução.

            1. “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artigo 286º, do CPP.

            O que significa que, a instrução requerida pelo arguido visará a sua não submissão a julgamento perante a acusação deduzida pelo Ministério Público e eventualmente pelo assistente.

            Já a instrução requerida pelo assistente visará a submissão do arguido a julgamento perante despacho de arquivamento do Ministério Público.

           

            No caso sub examine, estamos exatamente perante esta última situação: o assistente requer a abertura da instrução perante o arquivamento dos autos pelo Ministério Público. Visa o assistente que os arguidos, que identifica, sejam pronunciados pelo crime de furto (de eucaliptos) qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 204º, nº 1, do Código Penal conjugado com a al. a) do artigo 202º do mesmo diploma legal e consequentemente, que sejam submetidos a julgamento por esses factos.

           

            Segundo a CRP de 76, o processo penal tem estrutura acusatória. Pelo que esta natureza do processo penal exige, desde logo, que a intervenção do juiz não seja oficiosa.

            Pois, não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, deve ter em conta e atuar dentro dos limites da vinculação factual fixados quer pela acusação quer pelo requerimento de abertura de instrução ou, no dizer da lei, “tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura de instrução” - n.º 4 do artigo 288.º do CPP.

            Caso tenha havido acusação, o objecto da instrução já se encontra delimitado por aquela.

            É pois ponto assente e unânime que o RAI (no caso, do assistente), não tendo por detrás uma acusação que delimite o âmbito do objecto a apreciar, tenha de ser estruturado como uma verdadeira acusação que ainda não existe no processo.

            O requerimento de abertura da instrução constituirá, pois, nestas situações[1], o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz de instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.

            No caso de requerimento de instrução do assistente, «o pressuposto da vinculação temática do processo só pode ser constituído pelos termos desse requerimento, que há-de definir as bases de facto e de direito da questão a submeter ao juiz. Na definição do objecto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há, assim, uma similitude funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura da instrução no caso de não ter sido deduzida acusação» - ac. do STJ de 24-09-2003, proc. 2299/03, http://www.dgsi,pt/.

            Segundo as palavras do Prof. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, III, pág. 139., formalmente, o assistente indica como o M.º P.º deveria ter atuado, ou seja, que «não deveria arquivar mas acusar e em que termos o deveria ter feito», invocando razões daquela dupla vertente, sendo imprescindível que do requerimento de abertura de instrução conste a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes imputados a cada um dos arguidos e das disposições legais.

            Também Frederico de Lacerda da Costa Pinto[2], escreve no mesmo sentido, dizendo que “para todos os efeitos o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente é material e funcionalmente equiparado a uma acusação, quer quanto às exigências que tem de respeitar (art.º 287.º, n.º 2 do CPP), quer quanto ao regime de constituição de arguido (art.º 57.º, n.º 1 do CPP), quer ainda quando à vinculação temática do Tribunal de instrução criminal (art.ºs 303.º, n.º 1 e 309.º, n.º 1)”.

            Esta exigência formal e substantiva do requerimento de abertura da instrução, por parte do assistente, significa também uma via ou imposição legal de concretização das garantias de defesa do arguido, sem que daí advenha qualquer limitação ao assistente no acesso aos tribunais para, também ele, fazer valer os seus direitos e pretensões.

            É neste sentido que se pronuncia o TC, In Acórdão n.º 358/2004, proferido no processo n.º 358/2004, publicado no DR II série, n.º 150, de 28 de Junho de 2004, aí defendendo que “o objecto da instrução tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e que tal definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, o que decorre de princípios fundamentais do processo penal, designadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória.

            Ora, “a descrição factual mencionada deve conter os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o assistente considere terem sido preenchidos” – ac. deste TRC de 6.7.2011, proc. nº 212/10.9TAFND.C1, onde é referenciada outra jurisprudência no mesmo sentido: acórdãos da RL de 30.03.2003, (CJ, II, pág. 131); da RP de 07.01.2009, proc. 0846210 e de 11.10.2006, proc. 0416501; da RG de 14.02.2005 (CJ, I, pág. 299); da RP de 23.05.2001 (CJ, III; pág. 238), e os Ac. da RP de 07.01.2009, proc. 0846210 e de 11.10.2006, proc. 0416501, estes dois últimos no que tange à necessidade de constar do RAI o elemento subjetivo do tipo de crime.

            2. Importa agora averiguar se o RAI apresentado pelo assistente, constitui ou não a exigida “acusação”, para que o Sr. Juiz de instrução declare esta aberta, proceda às diligências que entenda necessárias e decida se o arguido deve ou não ser pronunciado de acordo com a pretensão do assistente.

            Esta “acusação” tem de ser interpretada “cum grano salis”, no sentido de que a “acusação” do assistente não tem de ser uma cópia de uma “acusação” do Ministério Público.

Pelo menos no modus faciendi, ou seja, o que releva é o seu exato teor quanto ao integrar ou não todos os elementos ou requisitos legalmente exigidos e não propriamente quanto á forma, mais sintética, mais desenvolvida, ou estilo de escrita e descrição do conteúdo.

            A primeira exigência consta do artigo 287º, nº2, do Código de Processo Penal, quando diz que:

            “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas”.

            3. Compulsado o teor do requerimento de abertura de instrução, constata-se que efetivamente o assistente faz observações, críticas e outros considerandos à atividade investigatória do Ministério Público e sobretudo à opção pelo arquivamento dos autos.

            Assim, no artigo 3º[3], o assistente explicita como tomou conhecimento de que lhe andavam a cortar os eucaliptos, ou seja, através da informação fornecida por …, id. no processo.

            Nos artigos 7º a 15º, faz o assistente uma narração de factos e circunstâncias e diligências que realizou para apurar a identificação de quem lhe andava a cortar os eucaliptos, de sua pertença – no seu terreno.

            Nos artigos 17º a 20º, explica o assistente (razão de ciência) porque entende que a madeira de eucalipto empilhada na “galera”, era do seu eucaliptal, factos que transmitiu à PSP.

            Nos artigos 27º a 38º, o assistente faz considerações várias, críticas e sugestões sobre o que deveria ter sido feito em sede de investigação para apuramento dos factos, levando em conta vários elementos que constam dos autos bem como críticas a essa mesma investigação e consequente arquivamento.

            Acontece que todas estas considerações e críticas, afiguram-se legais e normais, cabendo e ajustando-se no teor do referido artigo (287º, nº 2, 1ª parte, do Código de Processo Penal)[4].

            O assistente mais não faz do que expor algumas razões de discordância quanto à não acusação pelo Ministério Público.

Todavia, o que se exige é que o requerimento deve ir muito mais além, deve conter

A narração, ainda que sintética, dos factos[5] que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que me deve ser aplicada “ - artigo 283º, nº 3, alínea b), por referência ao 287º, nº 2, in fine, ambos do Código de Processo Penal.

            É esta, na verdade, a questão relevante a apurar e a decidir:

Se o requerimento contém a narração de factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

Pois que, quanto aos demais requisitos de identificação dos arguidos, das disposições legais aplicáveis e a indicação das provas a produzir e diligências a realizar[6], o requerimento é expresso nesta matéria, satisfazendo esta exigência legal[7].

           

            O que está em causa nos presentes autos, é a eventual prática pelos arguidos … e … do crime de furto qualificado p. e p. pelo artigo 204º, nº 1, do Código Penal conjugado com a al. a) do artigo 202º do mesmo diploma legal. 

           

            Pelo que o que importa apurar é se o RAI contém todos os factos que, a indiciarem-se e a provarem-se, preenchem a prática do dito crime.

            4. Compulsado uma vez mais o teor do RAI, o mesmo, para além das críticas e considerações supra enunciadas, descreve sem qualquer dúvida, vários factos. Quer quanto ao modo, tempo e circunstâncias da sua ocorrência, quer identificando os autores da prática desses factos. E faz a sua integração/subsunção jurídica, imputando-os aos arguidos, descrevendo igualmente  o elemento subjetivo, indispensável para a eventual aplicação de uma pena.

            Pelo que, contrariamente ao afirmado no despacho recorrido, não peca o RAI pela falta de descrição ou narração de factos[8]. Pelo contrário, estes existem em substancial e pormenorizada narração.

            Concorda-se que não se trata de uma narração encadeada, desprovida de  considerações, críticas e sugestões, estas intercaladas nos ditos factos, conforme já referido e, essencialmente, não se está perante uma narração sintética.

            Na verdade, os factos integradores quer do elemento objectivo quer subjetivo, existem, mostram-se alegados, descritos. Estão é dispersos e rodeados de considerações e críticas sobre o teor do despacho de arquivamento. E não se mostram descritos da forma mais desejável em termos da lógica e dinâmica do seu desenvolvimento normal, segundo a cronologia do também normal acontecer.

           

            O que exige certamente um saneamento, uma “depuração” do RAI com vista a uma sintetização dos factos relevantes para a realização da instrução, segundo aquela visão mais lógica, dinâmica e racional para definição do dito âmbito do objeto da instrução, integradores da dita “acusação”.

            Acontece que este procedimento não é uma exigência legal para que, em caso de omissão, o RAI possa ser indeferido, não declarando aberta a instrução.

            Esta depuração acabou por ser feita, de algum modo, pelo recorrente, na motivação e conclusões do seu recurso, supra transcritas[9].

           

5. Com base em tais factos, é possível elaborar a dia “acusação”, grosso modo, com o seguinte teor:

            1. O assistente é dono de um prédio rústico, composto por eucaliptal, com o registo predial nº … da 1ª Conservatória do Registo Predial de (...)” – artigo …º[10].

2. No dia 25 de dezembro de 2016, o assistente teve conhecimento de que estavam a cortar os seus eucaliptos deste prédio e a carregá-los (pelo menos parte dos eucaliptos) para uma galera, mais propriamente a galera com a matrícula … – artigo 1º.

3. Na noite do dia 25.12.2016, deslocou-se ao seu terreno e constatou  que junto ao seu prédio se encontrava uma galera, ainda sem carga (vg. eucaliptos), de matrícula … – artigo 5º.

4. No dia seguinte, 26.12.2016, por volta das 08h00m, o ofendido deslocou-se novamente ao local e, quando lá chegou, constatou que o reboque (galera de matrícula …) já estava meio carregado com eucaliptos e andava lá um trator florestal a carregar as árvores para a galera – artigo 6º.

5. O trator (camião) que posteriormente levou a galera carregada com os  eucaliptos,  pelo menos no dia 03 de janeiro de 2017 , é da marca Scania, tem a matrícula … e são propriedade da firma “…”, sendo seu representante legal o arguido …, – artigos 22º e 41º.

6. O corte e carregamento dos eucaliptos do ofendido foi feito pelo arguido …, melhor id. nos autos, com conhecimento e colaboração do … representante legal da “…” – artigos 39º, 44º, 45º, 46º, 48º, 52 e 55º .

7. Em momento algum o ofendido vendeu os seus eucaliptos aos arguidos nem tão pouco lhes concedeu qualquer autorização para que procedessem ao seu corte, carregamento, transporte e venda – artigos 4º, 23º e 40º.

8. Os arguidos sabiam que os eucaliptos não lhes pertenciam e que agiam contra a vontade do seu dono, o ofendido, ao entrar no seu prédio e de se apropriarem dos eucaliptos como de seus se tratassem – artigos 24º, 25º e 40º.

9. Com o corte e transporte dos eucaliptos, os arguidos causaram ao ofendido um prejuízo seguramente superior a €8.000,00 (oito mil euros – artigo 26º, onde se pormenoriza ainda o modo de cálculo deste valor.

9. Os arguidos agiram de modo livre e consciente, bem sabendo que os eucaliptos não lhes pertenciam e que a sua conduta é proibida e punida por lei – artigos 25º, 44º, 45º e 46º.

10. Com a sua conduta, cometerem os arguidos … e …, em co-autoria, o crime de furto (de eucaliptos) qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 204º, nº 1, do Código Penal conjugado com a al. a) do artigo 202º do mesmo diploma legal, crime por que devem ser pronunciados – artigo 55º e parte final do RAI.

 

6. A tarefa acabada de fazer era, sem dúvida, a tarefa que deveria ter sido feita pelo tribunal recorrido, em vez de indeferir, como indeferiu, o RAI.

Pelo que se pode dizer que uma falta de narração autónoma, não equivale à falta de narração dos factos integradores do crime imputado, esta sim, ao invés daquela, integrante do conceito de inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução atenta a previsão da alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, aplicável por remição do disposto no n.º2 do artigo 287.º Código de Processo Penal.

            Pode ainda dizer-se que o RAI tem ainda outros factos e outros elementos, que podem ser integrados na dita acusação, podendo, consequentemente, ser objeto da instrução. O que se fez foi efetivamente uma súmula.

            Como se decidiu no ac. deste TRCoimbra de 02-12-2015, proferido no proc. nº 24/14.0T9FND.C1:

            “Sendo desejável que as menções, já antes identificadas, a que se reporta o n.º 2 do artigo 287.º do CPP venham tratadas/colocadas de forma ordenada, permitindo, assim, maior facilidade na respetiva abordagem, a deficiente sistematização não pode surgir a fundamentar a rejeição do requerimento para abertura da instrução.

            E assim é, desde logo, por não encontrar respaldo em qualquer norma; depois, por se assistir a uma evidente desproporção entre, por um lado o mal decorrente de uma menos cuidada arrumação e, por outro, a consequência que daí se retirou para o assistente, impedindo-o, em termos definitivos, de submeter a decisão de arquivar o inquérito a comprovação judicial; desproporcionalidade, essa, tanto mais clamorosa quanto, o nível de esforço de compreensão que o requerimento exige se apresenta, no caso, diminuto”.

            Assim é.

            A verdade material deve prevalecer sobre regras formais não obrigatórias nem impeditivas da compreensão do requerido pelo assistente.

            Basta ordenar ou sistematizar os factos alegados e porventura sintetizá-los, retirando-lhes todas as observações e críticas feitas ao despacho de arquivamento, para se obter uma peça processual de fácil leitura, compreensão e elemento de trabalho para a realização das diligências de instrução para o fim por esta visado.

            Tarefa supra realizada por este tribunal.

           

           

Importa, todavia, fazer uma ressalva:

Esta imputação dos factos não significa necessariamente indiciação nem muito menos forte indiciação da sua prática nos termos descritos ou narrados pelo assistente. Isso é já objeto da instrução e       decisão final a proferir, de pronúncia ou não pronúncia dos arguidos pelos factos apontados.       

IV

Decisão

Por todo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do assistente … e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que declare aberta a instrução por aquele requerida, seguindo-se os ulteriores trâmites legais.

Sem tributação.

Coimbra, 20 de Fevereiro de 2019

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários.

           

Luís Teixeira (Relator)

              

Vasques Osório (Adjunto)


[1] De arquivamento do inquérito pelo Mº Pº e consequente inexistência de acusação pública nos autos.

[2] Segredo de justiça e Acesso ao Processo, In jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, pág. 90.

[3] Do requerimento e abertura de instrução, ao qual se referem os artigos que se seguem.
[4] “…deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação…”.
[5] Sublinhado nosso.
[6] Sem prejuízo do Juiz de instrução levar a cabo os actos de instrução que entenda, sendo todavia obrigatório o debate instrutório – artigo 289º, nº1, do Código de Processo Penal.
[7] Consta do RAI:

“Requer a V. Ex." se digne ordenar a audição do Sr. … sobre os

Factos ora imputados bem como o conteúdo das declarações que acerca deles prestou.

Mais requer a V. Exa. que seja notificada a Guarda Nacional Republicana do

comando territorial de para que se digne identificar quem foram os

elementos daquela unidade que se deslocaram no dia 26.12.2016 ao lugar de (...) por forma a que os mesmos possam provar todo o alegado em 13º a 16º deste articulado.

Da Prova:

A- Documental: toda a constante dos autos:

B - Testemunhal:

1. Sr. …. com domicílio profissional na Rua …

., n" …, . ;

2. Sra. …. proprietária do prédio rustico

contiguo ao do ofendido e que, desdej , se requer que sejam notificadas por esse Tribunal
no seu domicílio fiscal (que por ora se desconhece).

[8] Quando diz:
“Assim no art.º 1º do RAI o requerente alude à queixa por si apresentada; posteriormente alude às declarações do ofendido que entende que foram confirmadas por depoimentos testemunhais e depois alude à discordância da valoração de tais elementos de prova por parte do MP , sem que , como já referido descreva de modo logicamente encadeado os factos que imputa ao arguido nos seus termos de espaço , tempo e modo relativo à subtracção das árvores que seriam da sua propriedade”.
[9] Correspondestes ao teor, parcial ou integral, dos artigos: 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 16º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 39º, 40º, 41º, 44º, 45º, 46º, 50º, 52º, 55º e 59º.
[10] Todos os artigos referenciados se referem ao RAI.