Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
106/07.5 GACLB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
Data do Acordão: 04/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 292º DO CP
Sumário:

1. Os erros máximos admissíveis são parâmetros que devem ser tidos em conta na aprovação do aparelho de medição por parte da entidade legalmente incumbida de efectuar a avaliação metrológica dos mesmos, no caso o Instituto Português de Qualidade (cfr. pontos 9., 10. e 12. da Portaria).

2. Assim, só são aprovados os alcoolímetros cujos erros máximos admissíveis se situem dentro dos parâmetros previstos na referida Portaria.

3. O que significa que o aparelho que obedeça a tais parâmetros é um aparelho fiável para cumprimento das funcionalidades legais que lhe são atribuídas, designadamente a aferição da taxa de álcool no sangue.

4. Na utilização concreta de tais aparelhos, os valores pelos mesmos obtidos poderão não corresponder ao valor real, mas irão situar-se necessariamente dentro dos limites definidos por tais erros máximos admissíveis.

5. O valor obtido pelo alcoolímetro pode não corresponder ao valor real, mas isso não afecta minimamente a fiabilidade do aparelho, na medida em que tal valor se situa necessariamente dentro do intervalo definido pelos erros máximos admissíveis legalmente previstos, sendo esta a única certeza a que o resultado do alcoolímetro conduz.

Decisão Texto Integral: Recurso n.º 106/07.5 GACLB.C1 (286).

Processo Abreviado n.º 106/07.5 GACLB, do Tribunal Judicial de Celorico da Beira.


*

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

*

I – Relatório.

1.1. Mediante acusação deduzida pelo Ministério Público, o arguido JJ…, com os demais sinais nos autos, foi submetido a julgamento pela alegada prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal [CP].

Realizado o contraditório, na consideração da procedência da acusação deduzida, viu-se condenado na pena de 40 (quarenta) dias de multa, á taxa diária de € 3,00.

1.2. Irresignado com este veredicto, recorre o Ministério Público, extraindo da motivação oportunamente oferecida, as conclusões seguintes:

1.2.1. O artigo 292.º do CP define a condução em estado de embriaguez como a condução de veículo, com ou sem motor, com uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 g/l, exigindo, assim, do ponto de vista objectivo, a comprovação dessa taxa de alcoolemia num sentido preciso, afastando-se de conceitos mais ou menos indeterminados de tipo valorativo.

1.2.2. As regras gerais do controlo metrológico foram estabelecidas pelo Decreto-Lei [DL] n.º 291/90, de 20 de Setembro, que foi regulamentado pela Portaria n.º 962/90, de 9 de Outubro, sendo que a Portaria n.º 748/94, de 13.08, aprovou o Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros [RCMA], designadamente prevendo que estes obedeceriam às qualidades c características metrológicas e satisfazendo os ensaios estabelecidos na norma NF X 20-701 (v. n.º 4 do seu Anexo), decorrente da adesão de Portugal à Convenção que instituiu a Organização Internacional de Metrologia Legal assinada em Paris em 12.10.1955, pelo Decreto do Governo n.º 34/84, de 11.07, publicado no Diário da República [DR] n.º 159/84.

1.2.3. O Decreto Regulamentar [DR] n.º 24/98, de 30.1, revogou expressamente o DR n.º 12/90 e regulamentou os procedimentos para a fiscalização da condução sob a influência do álcool, dele resultando que a determinação quantitativa da taxa de álcool no sangue apenas pode fazer-se por um de dois métodos – método do ar expirado, mediante a utilização dos aparelhos aprovados pelo Instituto Português da Qualidade [IPQ] e que obedeçam às características que foram definidas pela Portaria n.º 1006/98, de 30.11, e método de análise toxicológica de sangue, efectuada com recurso a procedimentos analíticos que incluem a cromatografia em fase gasosa – vide artigos 1.º; 10.º e 12.º.

1.2.4. As sucessivas alterações do Código da Estrada [CE], por efeito do DL n.º 162/2001, de 22.05; do DL n.º 265-A/2001, de 28.09, e do DL n.º 44/2005, de 23.02, não contenderam com o regime que ficou definido podendo, então, afirmar-se que o mesmo se encontra regulado, no que ao caso importa, pelo DR n.º 24/98 e pela Portaria n.º 1.006/98.

1.2.5. Porém, actualmente colocam-se dúvidas quanto à vigência da referida Portaria n.º 748/94, de 13.08, já que esta aprovou o RCMA e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 1.º do DR n.º 12/90, como decorre do n.º 1 do seu Anexo este último veio a ser expressamente revogado pelo citado DR n.º 24/98.

1.2.6. No sentido de que a Portaria n.º 748/94 caducou por falta de objecto, pode ver­se o Acórdão da Relação de Lisboa [RL] de 28 de Novembro de 2006, in Processo n.º 10024/06-5, disponível no site www.pgdlisboa.pt.

1.2.7. Destarte, atenta a recente publicação da Portaria 902-B/2007, de 13-08, entrada em vigor no dia 15-08, que veio não só revogar expressamente a Portaria n.º 1000/98, como também remeter, no seu artigo 2.º, alínea a), para o RCMA, correspondente ao Regulamento aprovado pela Portaria n.º 784/94 (sendo certo que não foi aprovado qualquer outro em momento posterior), é nosso entendimento que a referida Portaria não foi expressa nem tacitamente revogada.

1.2.8. Assim, importa analisar em que medida os erros máximos admissíveis devem ser considerados para efeito de determinação da taxa de álcool no sangue, relevante para o preenchimento do tipo de condução de veículo em estado de embriaguez.

1.2.9. O despacho do Sr. Director Geral de Viação [DGV] – Ofício 14.811 de 19 de Julho de 2006, que mandou tomar em consideração tais erros, teve por base, para além das Recomendações da Organização Internacional de Metrologia Legal, a Portaria n.º 748/94, de 13 de Agosto, que surgiu na sequência do DR n.º 12/90, de 14 de Maio, que tinha sido revogado pelo DR n.º 24/98 – vd. Ac. da Relação do Porto [RP], de 14-03-2007, in Processo n.º 0617247, www.dgsi.pt –.

1.2.10. Sucede que, actualmente, é o IPQ e não a DGV, enquanto gestor e coordenador do Sistema Português da Qualidade, que, a nível nacional garante a observância dos princípios e das regras que disciplinam a normalização, a certificação e a metrologia, incluindo os aparelhos para exame de pesquisa de álcool nos condutores de veículos, bem como a unidade de doutrina e acção do Sistema Nacional de Gestão da Qualidade, instituído pelo DL n.º 165/83, de 27 de Abril.

1.2.11. Um alcoolímetro de modelo aprovado e com verificação válida, utilizado nas condições normais de funcionamento, fornece indicações válidas e fiáveis para os fins legais, não existindo quaisquer razões para duvidar da fiabilidade do mesmo, pelo que não se encontra fundamento para que o julgador, sem elementos de prova que o sustentem, proceda a correcções da taxa de álcool no sangue apurada pelos alcoolímetros, adequadamente aprovados e verificados.

1.2.12. Com efeito, a correcção infundada de valores, com o subjectivismo e, até, a maior incerteza que daí deriva, não é minimamente fundamentada, remetendo para a aplicação directa de um critério que não é aceitável e cria insegurança e desequilíbrios na ordem jurídica.

1.2.13. Nos presentes autos, a taxa de álcool considerada foi determinada a partir do exame de pesquisa de álcool no sangue realizado através do aparelho Drager, modelo 7110 MKIIIP, com o n.º de série ARRL-0063, aprovado pelo Despacho n.º 211.06.97.3.50.

1.2.14. Aceitando que a Portaria n.º 748/94 se mantém em vigor, não se pode olvidar que a aplicação das margens de erro se reporta à aprovação do modelo e às verificações dos alcoolímetros, da competência do IPQ, sendo certo que o erro de medição dos aparelhos é um risco, conhecido mas não necessariamente obstaculizante da convicção do julgador no sentido do resultado-leitura obtido, por forma a gerar séria suspeita sobre a veracidade da taxa imputada.

1.2.15. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 170.º, n.º 4 do CE, na redacção do DL n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, os elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares fazem fé em juízo até prova em contrário.

1.2.16. Ora, como referia o Professor Doutor Antunes Varela, in Manual do Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 472 “na prova do contrário é essencial convencer o juiz da existência do facto oposto, tornar (psicologicamente) certo o facto contrário (artigo 347.º do Código Civil)”, não bastando, pois, criar no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto.

1.2.17. O legislador entendeu que bastava o exame qualitativo realizado por aparelho de detecção de álcool no sangue para fazer prova da taxa de álcool. Contudo, não querendo limitar os direitos do arguido, criou a possibilidade do mesmo requerer a realização da contraprova através de análise ao sangue, a qual não admite qualquer margem de erro uma vez que não é efectuada por qualquer aparelho, mas sim em laboratório médico e depende apenas da vontade do próprio examinado em ser submetido a um outro exame, com a certeza de que o mesmo não admite qualquer margem de erro.

1.2.18. Ora, o arguido não requereu a contra prova sanguínea, conformando-se com o teste realizado por expiração do ar, resultado esse que era fiável.

1.2.19. Do Ofício da Procuradoria-Geral da República n.º 11.861/2007 resulta que “1 – O intérprete e aplicador da lei tem de presumir que o legislador, ao regular a matéria relativa á condução sob o efeito do álcool, conhecia todos os pressupostos das soluções adoptadas, incluindo os mecanismos de determinação das taxas relevantes para efeitos sancionatórios. 2 - As orientações e determinações sobre uniformização dos procedimentos relativos á fiscalização do trânsito não podem “contra legem”, prever quaisquer margens de tolerância ou margens de erro relativamente aos resultados obtidos através dos mecanismos legalmente previstos.”

1.2.20. Assim, não há que efectuar descontos sobre o valor que foi medido ao arguido e que efectivamente consta do talão, pois os níveis máximos de erro admissíveis já foram tidos em conta nas diversas aprovações, verificações e ensaios a que é sujeito o aparelho e ao arrepio do consagrado nos já citados diplomas e despachos publicados em DR.

1.2.21. Decidindo como o fez, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 292.º do CP, bem como o consagrado na Portaria n.º 784/94, de 13 de Agosto, e Anexo à mesma.

Terminou pedindo a revogação da sentença impugnada na parte em que considerou que a taxa de álcool determinada pelo alcoolímetro, descontado o erro máximo admissível, era de 1,97 g/l, e não 2,32 g/l.

1.3. Admitido o recurso, notificado ao efeito, o arguido não respondeu.

1.4. Remetidos os autos a esta instância, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente ao seu provimento.

Cumpriu-se com o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [CPP].

No exame preliminar a que alude o n.º 6 do mesmo normativo, consignou-se nada obstar ao prosseguimento dos autos e conhecimento da oposição.

Como assim, colhidos os vistos do M.mo Juiz Presidente e do M.mo Juiz Adjunto, realizou-se conferência.

Cabe agora apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. A materialidade considerada como provada na decisão recorrida foi a seguinte:

2.1.1. No dia 2 de Junho de 2007, pelas 20h16m, o arguido conduzia uma bicicleta, na E.N. n.º 17, ao Km 131, área da comarca de Celorico da Beira.

2.1.2. Em virtude de a bicicleta que o arguido conduzia se ter despistado, foi o mesmo submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, tendo apresentado uma TAS de 1,97 g/l, correspondente à TAS de 2,32 g/l, deduzido o valor do erro máximo admissível.

2.1.3. O arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas e que corria o risco de apresentar uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 g/l, conformando-se com essa possibilidade.

2.1.4. Mais sabia que não podia conduzir a referida bicicleta na via pública com uma taxa de álcool igualou superior ao limite referido em 3., e que ao fazê­-lo estava a praticar uma conduta tipificada na lei como crime.

2.1.5. O arguido actuou da forma descrita livre, voluntária e conscientemente.

2.1.6. O arguido vive sozinho numa casa emprestada e trabalha ocasionalmente na agricultura ao serviço de terceiros, sendo pago pelos seus serviços sobretudo com alimentação e roupa.

2.1.7. No registo criminal nada consta acerca do arguido.

2.2. Por seu turno, relativamente a factos não provados, consignou-se na apontada sentença que:

“Não há factos não provados.”

2.3. A motivação probatória inserta na dita sentença, preceitua por fim, que:

“O Arguido negou os factos vertidos no ponto 1. e 2., tendo afirmado que não conduzia a bicicleta, mas transportava a mesma pela mão, por se encontra danificada. No entanto, a sua versão dos factos não convenceu o Tribunal porque foi cabalmente contrariada pelo depoimento de A…, que afirmou ter visto o Arguido a circular em cima da bicicleta e pediu ajuda quando o Arguido caiu. Não foi apontada qualquer razão para pôr em causa a isenção desta testemunha, que, para além disso, depôs de forma segura e convicta, razão pela qual mereceu a credibilidade do Tribunal.

Foi igualmente relevante para o apuramento da factualidade vertida nos pontos 1. e 2., o depoimento de O…, o agente autuante que submeteu o Arguido ao exame de pesquisa de álcool no sangue na sequência do despiste.

No que respeita à taxa de álcool no sangue, o Tribunal teve em consideração o talão de fls. 10, ao qual foi aplicado o erro máximo admissível previsto na norma NF X 20-701, para a qual remete o artigo 6.º, al. a), da Portaria n.º 748/94, de 13-08.

A questão de saber se ao valor aferido pelos alcoolímetros deve ser descontado o erro máximo admissível para determinar a taxa de álcool no sangue, relevante para efeitos de preenchimento do tipo de ilícito em análise, tem sido discutida na jurisprudência.

O primeiro aspecto problemático da questão prende-se com a revogação ou não da Portaria n.º 748/94, de 13-08, que aprovou o Regulamento de Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, no qual se prevêem os erros máximos admissíveis por remissão para a norma NF X 20-701 (cfr. n.º 6 do Regulamento). A discussão surgiu, não porque tenha sido promulgado qualquer dispositivo legal posterior que tenha revogado expressamente este diploma, mas devido à publicação do Decreto Regulamentar n.º 24/98, de 30-10, que revogou o Decreto Regulamentar n.º 12/90, e da Portaria n.º 1006/98, de 30-11. Assim, o primeiro, em substituição do Decreto Regulamentar referido, veio “regulamentar (...) os métodos a utilizar na fiscalização e nos exames médicos e toxicológicos indispensáveis à detecção segura do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias estupefacientes ou psicotrópicas” (preâmbulo do diploma). Por sua vez, a Portaria veio “fixar os requisitos a que devem obedecer os analisadores quantitativos e o modo como se deve proceder à recolha, acondicionamento e expedição das amostras biológicas destinadas às análises toxicológicas para determinação da taxa de álcool no sangue e para confirmação da presença de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas” (preâmbulo do diploma).

No entanto, nenhum dos diplomas referidos dispõe sobre as operações e os requisitos a que deve obedecer o controlo metrológico dos alcoolímetros, pelo que a Portaria n.º 748/94 não foi revogada tacitamente pelos referidos diplomas, tendo presente o teor do dispositivo genérico plasmado no art. 7.º, n.º 2, 2.ª parte do Código Civil (CC).

Esta conclusão impõe-se de forma inequívoca com a recente publicação da Portaria n.º 902-8/2007, de 13-08, entrada em vigor no dia 15-08 (cfr. art. 33.º), que veio não só revogar expressamente a Portaria n.º 1006/98 (cfr. art. 32.º), como também remeter, no seu artigo 2.º, A), a), para o Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, que corresponde necessariamente ao Regulamento aprovado pela Portaria n.º 748/94, uma vez que não foi aprovado qualquer outro em momento posterior.

Extraída a conclusão de que os erros máximos admissíveis previstos nesta Portaria se mantêm em vigor importa, agora, analisar em que medida devem os mesmos ser considerados para efeito de determinação da taxa de álcool no sangue relevante para o preenchimento do tipo de ilícito em causa.

Para tanto é necessário perceber qual a funcionalidade dos erros máximos admissíveis. O Instituto Português da Qualidade escreveu a propósito o seguinte: “Os EMA são limites definidos convencionalmente em função não só das características dos instrumentos, como da finalidade para que são usados. Ou seja, tais valores limite, para mais e para menos, não representam valores reais de erro, numa qualquer medição concreta, mas um intervalo dentro do qual, com toda a certeza (uma vez respeitados os procedimentos de medição), o valor da indicação se encontra. É sabido que a qualquer resultado de medição está sempre associada uma incerteza de medição, uma vez que não existem instrumentos de medição absolutamente exactos. Esta incerteza de medição é avaliada no acto da aprovação de modelo por forma a averiguar se o instrumento durante a sua vida útil possui características construtivas, por forma a manter as qualidades metrológicas regulamentares, nomeadamente fornecer indicações dentro dos erros máximos admissíveis prescritos no respectivo regulamento.” – (in http://www.spmet.pt/comunicacoes 2 encontro/Alcoolimetros MCFerreira.pdf).

Da exposição precedente extraem-se duas conclusões: a primeira é que os erros máximos admissíveis são parâmetros que devem ser tidos em conta na aprovação do aparelho de medição por parte da entidade legalmente incumbida de efectuar a avaliação metrológica dos mesmos, no caso o Instituto Português de Qualidade (cfr. pontos 9., 10. e 12. da Portaria). Assim, só são aprovados os alcoolímetros cujos erros máximos admissíveis se situem dentro dos parâmetros previstos na referida Portaria. O que significa que o aparelho que obedeça a tais parâmetros é um aparelho fiável para cumprimento das funcionalidades legais que lhe são atribuídas, designadamente a aferição da taxa de álcool no sangue.

A segunda conclusão que se extrai é que, na utilização concreta de tais aparelhos, os valores pelos mesmos obtidos poderão não corresponder ao valor real, mas irão situar-se necessariamente dentro dos limites definidos por tais erros máximos admissíveis.

Assim, a conjugação das duas conclusões precedentes conduz à consideração final de que o valor obtido pelo alcoolímetro pode não corresponder ao valor real, mas isso não afecta minimamente a fiabilidade do aparelho, na medida em que tal valor se situa necessariamente dentro do intervalo definido pelos erros máximos admissíveis legalmente previstos, sendo esta a única certeza a que o resultado do alcoolímetro conduz.

Ora, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292.º, n.º 1, do CP, exige, para efeito de preenchimento do tipo de ilícito, uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 g/l. O legislador incluiu no tipo de ilícito “um valor exacto, certamente para fugir a problemas de indeterminabilidade (e mediatamente de tipicidade)” (Pedro Soares de Albergaria e Pedro Mendes Lima, “Condução em estado de embriaguez. Aspectos processuais e substantivos do regime vigente.” Sub Judice, n.º 17, 2000, p. 58). No entanto, ao circunscrever “a punibilidade da conduta com minúcia quantificável, [integrou] no tipo um elemento cuja prova é problemática” (idem, p. 59) e que exige “o recurso a meios técnicos mais ou menos sofisticados. (...) meios estes que não são quaisquer uns, mas apenas aqueles cuja fiabilidade seja reconhecida pelo Estado. Com efeito, a determinação quantitativa da TAS só pode fazer-se através de tecnologia, aparelhos e técnicas aprovadas por Portaria” (idem, p. 60, sublinhado nosso).

Existe, assim, uma ligação directa entre o tipo legal de crime e os aparelhos de medição que permitem determinar um dos elementos do tipo. No entanto, tal ligação não vai ao ponto de se concluir no sentido de que a taxa de álcool exigida pelo tipo legal é a taxa determinada pelos aparelhos de medição. Com efeito, o tipo refere apenas uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 g/l e essa taxa é a taxa real, atenta a inexistência de qualquer indicação em contrário no próprio tipo. Por conseguinte, os alcoolímetros são apenas meios de prova, através dos quais se vai tentar apurar a taxa real, sendo esta a taxa que consubstancia o elemento do tipo e não a taxa apurada pelo alcoolímetro. Como qualquer meio de prova, o alcoolímetro tem de obedecer a regras de admissibilidade, que são precisamente aquelas que se encontram previstas na Portaria n.º 902-8/2007 e na Portaria n.º 748/94. Ora, as regras de admissibilidade plasmadas nestes normativos, ao contrário do que sucede com outros meios de prova, destinam-se fundamentalmente a garantir a credibilidade/fiabilidade do aparelho, enquanto meio de prova, conforme já foi referido. Uma dessas regras de admissibilidade é precisamente que o aparelho apresente margens de erro máximo admissíveis dentro dos parâmetros legais. Situando-se dentro dos parâmetros legais, o aparelho é aprovado e é fiável como meio de prova. Aferida a admissibilidade do alcoolímetro o passo seguinte situa-se ao nível da valoração probatória, ou seja, o que é que o aparelho em causa permite demonstrar com certeza e segurança. Como se expôs anteriormente a única certeza a que o alcoolímetro conduz é que a taxa de álcool no sangue apresentada pelo condutor se situa dentro dos intervalos definidos pelos erros máximos admissíveis. Como não é possível determinar em qual dos valores deste intervalo se situa; então, por aplicação do princípio in dúbio pro reo, ter-se-á de concluir no sentido de que se situa no valor mais baixo desse intervalo.

Em suma, a convicção acerca dos factos concretizadores dos elementos de um tipo legal de crime tem de ser certa e segura. No caso do crime de condução de veículo em estado de embriaguez só é possível formar uma convicção certa e segura acerca da taxa de álcool no sangue no sentido de que esta se situa dentro dos intervalos definidos pelos erros máximos admissíveis, quando o meio de prova utilizado é o alcoolímetro, o que conduz necessariamente à determinação do limite mínimo, por aplicação do princípio in dúbio pro reo.

Poder-se-á eventualmente contra-argumentar no sentido de que o arguido pode requerer a realização de exames ao sangue para controlar o valor referido pelo alcoolímetro. No entanto, o simples facto de o arguido não requerer a contraprova não pode implicar a eliminação dos erros máximos admissíveis do alcoolímetro. Assim é, porque a circunstância de o arguido não ter solicitado a realização do exame de sangue significa que o único meio de prova que o tribunal dispõe para aferir a taxa de álcool no sangue é o valor aferido pelo alcoolímetro, que deve ser valorado de acordo com os parâmetros gerais, acima expostos, porque não existe qualquer norma especial que disponha sobre o valor probatório do resultado obtido pelo alcoolímetro quando não é requerida a contraprova.

Por todas as razões expostas, entende-se que a taxa de álcool no sangue relevante para efeitos de preenchimento do tipo legal de crime em análise deve ser a taxa de álcool determinada pelo alcoolímetro, descontado o erro máximo legalmente admissível.

Quanto aos factos consubstanciadores do elemento subjectivo do tipo legal de crime e da culpa, vertidos nos pontos 4. e 5., o Tribunal convenceu-se nos termos aí expostos, porquanto o Arguido, em audiência de julgamento, revelou ser uma pessoa com capacidades cognitivas, pelo menos, dentro da média, e confirmou que havia ingerido bebidas alcoólicas, não se afigurando, por isso, credível que o mesmo não tivesse colocado a possibilidade de apresentar uma taxa de álcool no sangue igualou superior ao limite mínimo previsto na lei penal e que tivesse conduzido porque se conformou com essa possibilidade. Nem, pelas mesmas razões, se afigurou credível que não tivesse conhecimento do carácter ilícito da sua conduta. Também do conjunto de circunstâncias por si descritas que rodearam a prática da sua conduta resultou a existência de qualquer causa que tivesse comprometido o carácter voluntário da sua actuação.

No que respeita aos factos descritos no ponto 6., relativos às condições pessoais de vida do Arguido, o Tribunal confiou nas declarações do Arguido, uma vez que as mesmas se mostram compatíveis com o meio onde vive.

Por último, a ausência de antecedentes criminais resultou da informação de fls.46.”


*

III – Fundamentação de Direito.

3.1. Como é consabido, o âmbito do recurso define-se através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), isto salvo a ocorrência de questões, mormente dos vícios elencados nas diversas alíneas do artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mas tão-só quando resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, que assumam carácter de conhecimento oficioso (vd. Ac. do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I.ª Série-A, de 28 de Dezembro de 1995).

No caso vertente, não se nos afigurando subsistir nenhuma de tais questões ou algum desses vícios, decorre das conclusões do recorrente Ministério Público que o thema decidendum se traduz em apurarmos qual a taxa de alcoolémia que deve ser considerada na condenação do recorrido – se a fixada pelo Tribunal a quo; ou, antes, se a avançada pelo próprio recorrente.

3.2. A questão suscitada decorre, se bem pensamos, de uma intervenção menos adequada da DGV, através do mencionado ofício n.º 14.811, de 19 de Julho de 2006 – e quase subsequente força de lei que nela se quer vislumbrar –, bem como de uma menos afoita compreensão do que constituem os EMA.

Daí também a polémica que grassa nos nossos Tribunais.

A título meramente exemplificativo, como ponto de arrimo e base de contraditoriedade à solução que, entendemos, melhor corresponde ao pensamento legislativo, ponderámos os Acórdãos dos Tribunais das Relações de Lisboa (de 20 de Junho e 3 de Julho); de Évora (de 22 de Maio); de Guimarães (de 26 de Fevereiro) e do Porto (de 12 de Dezembro, como os demais do ano pretérito), todos disponíveis no site www.dgsi.pt.

E, sem os olvidar, mas com a pertinência que neste enfoque nos parece assumir particular relevo, seguiremos de perto a comunicação apresentada por M. Céu Ferreira e António Cruz, no 2.º Encontro Nacional da Sociedade Portuguesa de Metrologia, aliás, citada na decisão recorrida, embora, salvaguardado o devido respeito, lida em moldes conclusivos distintos ao que decorre da sua fundamentação. Aí se produzem pertinentes considerações sobre a génese do processo tendente ao controlo metrológico do etanol e muito especificamente ao problema da alcoolemia.

Ponto essencial, porque o que contende com a questão cuja resolução se nos reclama, é o que respeita aos EMA (Erros Máximos Admissíveis).

Precisou-se a dado passo dessa dissertação:

“ (…) A definição, através da Portaria n.º 748/94, de determinados erros máximos admissíveis, quer para a Aprovação de Modelo e Primeira Verificação, quer para a Verificação Periódica, visa definir barreiras limite dentro das quais as indicações dos instrumentos de medição, obtidas nas condições estipuladas de funcionamento, são correctas. Ou seja, um alcoolímetro de modelo aprovado e com verificação válida, utilizado nas condições normais, fornece indicações válidas e fiáveis para os fins legais.

(…)

Os EMA são limites definidos convencionalmente em função não só das características dos instrumentos, como da finalidade para que são usados. Ou seja, tais valores limite, para mais e para menos, não representam valores reais de erro, numa qualquer medição concreta, mas um intervalo dentro do qual, com toda a certeza (uma vez respeitados os procedimentos de medição), o valor da indicação se encontra. É sabido que a qualquer resultado de medição está sempre associada uma incerteza de medição, uma vez que não existem instrumentos de medição absolutamente exactos. Esta incerteza de medição é avaliada no acto da aprovação de modelo por forma a averiguar se o instrumento durante a sua vida útil possui características construtivas, por forma a manter as qualidades metrológicas regulamentares, nomeadamente fornecer indicações dentro dos erros máximos admissíveis prescritos no respectivo regulamento.

É por isso, que em domínios de medição com vários níveis de exigência metrológica se definem classes de exactidão em que os EMA são diferenciados de classe para classe. No caso dos alcoolímetros não existem classes de exactidão diferenciadas, mas existem dois tipos de alcoolímetros: uns designados de “qualitativos”, outros de “quantitativos”. Apenas estes últimos têm características metrológicas susceptíveis de ser utilizados para medir a alcoolémia, para fins legais, dentro dos EMA definidos na lei. Os designados de qualitativos apenas servem para despistar ou confirmar situações de alcoolémia mais ou menos evidente, exigindo depois, se for caso disso, uma medição rigorosa com um alcoolímetro quantitativo legal.

(…)” (sublinhados nossos).

Isto é, e se bem interpretamos o que vem de citar-se, os EMA constituem simples factores de correcção considerados no momento de Aprovação de Modelo [AP]; de Primeira Verificação [PV] e de Verificação Periódica [VP].

Qualquer alcoolímetro que os respeite torna-se a partir de então um instrumento válido e fiável para as subsequentes medições realizadas, as quais devem ser consideradas nos valores obtidos sem nova consideração ou ponderação dos mesmos EMA.

Considerações válidas ainda, pese embora a recente aprovação da Portaria n.º 1.556/2007, de 10 de Dezembro, que apenas se limitou, ao que releva, a recepcionar os novos requisitos advenientes do acatamento da Recomendação OIML R 126.

Ora, transpondo o que vem de dizer-se para os autos, teremos, então, que mal andou a M.ma Juiz a quo ao considerar que o arguido conduzia sob a influência da TAS mencionada no talão junto a folhas 10, seja de 2,32, e, após fazendo funcionar o EMA correspondente, entendeu, com uma TAS de 1,97 g/l.

Isto com invocação e apelo também, como decorre do texto da decisão impugnada, ao princípio do in dúbio pro reo.

É que, sem qualquer contraprova ao exame realizado, produzida a pedido do arguido ou por iniciativa do Tribunal a quo, o que a este se deparava era um meio de prova inquestionável e a que devia acatamento, como dito.

Por outras palavras: não emergia qualquer dúvida sobre o concreto ponto material a impor a sua ponderação em sentido favorável ao recorrido, como decorre do funcionamento do princípio invocado.

Breves considerações, pois, para que se conceda a alteração reclamada.


*

IV – Decisão.

São termos em que perante o exposto se concede provimento ao recurso, e, consequentemente, no mais se mantendo inalterada a decisão recorrida, se altera apenas no ponto II.A – Factos provados 2., que passará a ter a redacção seguinte:

“Em virtude de a bicicleta que o arguido conduzia se ter despistado, foi o mesmo submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, tendo apresentado uma TAS de 2,32 g/l.”

Sem tributação.

Notifique.


*

Coimbra,